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Ricardo Lísias: Confusão
Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Devo confessar que fiquei paralisado diante do editorial do último número do RelevO. A edição de novembro trouxe um conjunto de textos enfeixados sob um tema: a negritude, para usar um termo da própria apresentação dos editores. Edições temáticas podem ser interessantes também para contornar a fugacidade que, por definição, atinge os jornais. Um pesquisador irá procurá-lo daqui alguns anos. Os estudantes podem, desde já, usar a edição como fonte e matéria de informação. Os leitores, enfim, acabamos mais bem embasados se o tema nos interessar. Periódicos temáticos sempre me agradaram muito – por isso, aliás, lamento tanto o fim da circulação da revista Granta no Brasil.
Achei que na desnecessária intenção de se justificar, o editorial acabou se confundindo todo e lançando argumentos para lá de ultrapassados. O primeiro parágrafo, por exemplo, fala da tal “qualidade literária”. Ela não existe. O que se conhece por “cânone” é basicamente a imposição de grupos que, por ocupar espaços revestidos de poder para tanto, determinam critérios que incluem alguns textos e excluem outros. Trata-se de uma operação de violência.
A citação de Campos de Carvalho veio bem a calhar: há algo de nonsense em dizer que “a derrota é certa”. Eu não acho. A edição está ótima, mas tem um editorial muito defensivo. As pessoas que digam o que quiserem. Se os editores admitem que fazer a seleção para o jornal é um ato crítico, criar argumentos para classificar a qualidade dos textos dele também é. Nós e os outros temos todo o direito de sermos igualmente críticos.
Já a citação de Machado de Assis me pareceu quase uma esperteza. Lançar mão do nosso maior escritor é um lance de segurança. Eu discordo do que ele diz: não acho que seja possível existir uma consciência “tão pura e tão alta, que não sofra a ação das circunstâncias externas”. Quanto a Henry James, fico com um meio termo. Penso, como ele, que qualquer experiência nunca é completa. Meu texto não vai dizer tudo o que eu quero, então ele será sempre limitado, ao contrário do que ele diz depois.
O editorial derrapa mesmo no final, quando diz que acredita ter ultrapassado o “arvoredo ideológico”. É o contrário. Se houve um ato crítico para a seleção de um tema, a única coisa que se impôs foi uma ideologia. Não há problema nenhum nisso e não poderia ser diferente. A ideologia não “priva o olhar de maior pujança crítica”, mas sim o torna menos cínico: até hoje quase que só homens brancos tiveram a possibilidade de ver seus textos medianos e chapa-branca serem publicados e, muitas vezes, considerados bem melhores do que são. No Brasil contemporâneo, é batata, como diz meu vizinho. Se desde o início tivesse ficado claro que não há nada nisso que não seja ideologia, quem sabe essa violência tivesse sido ao menos controlada um pouco.
De resto, a edição ficou excelente.
Edição especial – novembro de 2017
Edição de novembro de 2017
Ricardo Lísias: Win & Rock in Rio
Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
A edição de outubro do RelevO parece ter aprimorado algo que se mostrou um grande acerto no número anterior: as páginas centrais. O uso do humor para criticar a tendência de infantilização e de mercantilização das questões psicológicas contemporâneas foi um enorme acerto, como já tinha sido com os emails que resumiam a politicagem e a agressividade preponderantes no “meio literário”. Agora ficou ainda melhor e mais divertido, o que já deixa expectativa para os próximos. William Winner é uma grande personagem.
Do mesmo jeito, os poemas parecem ter chegado a um equilíbrio e me pareceram bem escolhidos. Outro destaque eu deixaria com a apresentação do trabalho de Robson Vilalba por Ben-Hur Demeneck, bem realizado e, ao que tudo indica, Vilalba ainda vai fazer coisas muito boas. O que eu conheço da obra dele parece das melhores produções do gênero, infelizmente ainda muito pouco praticado entre nós.
Eu esperava mais, no entanto, dos textos propriamente ensaísticos. Compreendo que uma análise do Rock in Rio possa comportar algum tipo de irreverência. Mas, diante da edição desse ano, cabia mesmo apenas a brincadeira? De longe, o menor dos problemas era a presença ali de músicos que, talvez, não fossem exatamente roqueiros. Do mesmo jeito, é verdade que nomes como “Rock in Rio USA” ou “Rock in Rio Lisboa” são cafonas, para dizer o mínimo.
O festival de 2017 foi realizado em uma cidade sitiada. Enquanto ocorria, o exército cercava diversos bairros que estavam no trajeto dos hotéis ao show. Milhares de pessoas viram seu direito de ir e vir cerceado, uma mesma quantidade de crianças não pôde ir à escola, o que aliás está se tornando um fato cotidiano na cidade do Rio de Janeiro. Quantas pessoas foram assassinadas durante o Rock in Rio? Uma das universidades mais importantes do país, a UERJ, ficou agonizando enquanto o festival acontecia.
Aliás, a criação de uma bolha para a classe social privilegiada reproduziu o que já tinha acontecido durante as Olimpíadas. Como agora alguns dos responsáveis pela tragédia humanitária que se tornou a capital carioca estão presos, parece que se perdeu um pouco do pudor dos Jogos. Dessa vez, a calmaria ficou mesmo restrita às arquibancadas. Para o resto da população, foi o salve-se quem puder diário.
Considerando, por fim, que boa parte do rock sempre esteve relacionada a questões políticas – e nisso o primeiro Rock in Rio foi notável –, uma brincadeira que anima a conversa com os amigos no bar não é o mais adequado para discutir os verdadeiros problemas que cercaram o enorme evento em um jornal impresso dirigido ao público literário. O mundo não foi tão livre durante o festival, como queria Neil Young, que aliás já esteve em uma das edições e arrasou. E é por isso que faltou rock, não por causa desse ou daquele músico ou estilo mais deslocados.
Edição de outubro de 2017
Ricardo Lísias: Incômodo
Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Acabei em uma posição incômoda. Eu deveria, para cumprir com certa razoabilidade minha função de ombudsman, apontar o que me parecera ruim na edição anterior, de setembro, do jornal. Só que me diverti bastante com a leitura do RelevO de agosto. A página central, com um conto formado por trocas de emails entre o editor e alguns leitores, acabou me gerando umas boas risadas. E realmente valorizo coisas engraçadas, até porque vivemos em uma realidade cada vez mais indigesta, o que torna o humor raro e também difícil de fazer.
O projeto gráfico parece também ter sofrido uma alteração, tornando-se um pouco mais leve, o que é um ganho. E o jornal continua superavitário, o que também nos tranquiliza bastante.
Quanto ao conto citado, achei que faltou apenas algo a mais no trecho da personagem Gabriella Feden. Não ficou claro se Daniel Zanella a estava paquerando. A resposta, enfim, parece ter sido promissora em caso positivo. Mas acho que, ainda que as coisas tenham se encaminhado para certa intimidade entre os dois, faltou para o leitor ao menos algum tipo de esclarecimento.
Do mesmo jeito, não entendi muito bem por que o primeiro interlocutor, o mais divertido de todos, não recebeu um nome, mas sim a alcunha de Amargo. Evidentemente, ele está mesmo bastante amargurado, mas como os outros não ganharam apelido, parece que ele é o que mais irritou o narrador. Pelo tom das mensagens, porém, a personagem Daniel Zanella se irrita mesmo é com Ulisses Louzeiro, chegando inclusive a agredi-lo verbalmente.
Não são defeitos, porém, que comprometam o conto. A parte da Suzana César, por exemplo, está muito bem feita. Sinto falta, no contexto contemporâneo, de textos de ficção que sejam formados por essas novas maneiras de interação como o email, as redes sociais e outras. O fato ainda da personagem Zanella insistir, no ambiente virtual do conto, que está lidando com um jornal impresso acaba causando uma fricção também curiosa.
Eu tomaria ainda um pouco de cuidado com o título. Ao afirmar que está criando um diálogo com o meio literário, parece que apenas um dos interlocutores faz parte desse ambiente, quando obviamente não é assim. Aqui, também sublinho que é muito difícil ver os veículos assumindo-se como personagens de uma trama e enfim se colocando não como centro ou suporte de uma narrativa, mas parte dela.
Acredito, inclusive, que o autor deveria ampliar o conto, pensando mesmo em um romance. Mas aí não sei se estou reivindicando algo para me satisfazer: apenas sublinho que é esse o tipo de ficção que me parece a mais relevante hoje.
Edição de setembro de 2017
Ricardo Lísias: Heroísmo
Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
O editorial de agosto do RelevO me pareceu bastante ilustrativo de um certo abuso na utilização das palavras. Mais do que isso, é como se utilizar um termo para determinada situação seja suficiente para que ela ocorra. O jornal se declara um ato de subversão, basicamente por existir de forma impressa.
Em todas as discussões sobre o livro virtual, por exemplo, um detalhe se repete: os autores parecem sempre ansiosos para ver seus livros também impressos. É como se o ebook fosse apenas uma segunda possibilidade, bem-vinda, mas apenas secundária diante do verdadeiro reconhecimento que é ver o texto impresso. Todo mundo que quer publicar, deseja publicar um livro. Nem todos, porém, fazem questão de que o mesmo texto seja publicado sob a forma digital. Apenas em ebook, acho que quase ninguém.
Muita gente que adora ler fala com clareza que jamais vai aderir ao suporte digital. Os argumentos vão desde o cheiro do papel até a possibilidade de escrever um comentário na margem das folhas. Fala-se simplesmente de um hábito que, por ser tão agradável, não deve ser deixado para trás. Raros, por outro lado, são os leitores que dizem recusar a folha em nome da tela.
Fica então aqui a minha primeira inquietação: o que pode ter de subversivo em existir sob uma forma que todo mundo deseja? Do mesmo jeito, posso listar uma série de veículos impressos sobre literatura ou arte em geral que circulam com significativa desenvoltura no Brasil contemporâneo. Evidentemente, sei que muitos jornais e revistas de literatura ou cultura acabaram nos últimos anos. Outros apareceram e alguns continuam existindo. Aqui e ali a gente vê a reclamação: somos os resistentes! A palavra resistir, já gasta, vira um troféu. Só não listo dez resistentes subversivos para não ficar constrangedor demais.
Somos todos subversivos?
Depois, mais surpreendente ainda foi ver o orçamento do jornal: se não entendi errado, ele é superavitário! Houve em agosto um lucro de 300 reais. Não há de fato nenhuma subversão em ter lucro. Certo, não é o lucro do Itaú, mas não vejo nenhum tipo de grande heroísmo em publicar textos de qualidade elevada, fotografias interessantes e um poema realmente excelente (o de Ismar Tirelli Neto) e ainda não perder dinheiro com isso.
Pode-se dizer que a doação pessoal dos responsáveis pelo jornal é o seu tempo. Ora, é evidente que eles gostam de literatura. Fica claro que sentem prazer em fazer o RelevO. Subversão não combina muito com isso. Que risco vocês estão correndo? Nem dinheiro perdem…
Acho que no caso houve um nítido abuso da palavra subversão. Parece que se declarar subversivo já é suficiente para que essa condição se realize. Não é o caso. Inclusive, os verdadeiros excluídos da ordem contemporânea não têm sequer o interesse em estabelecer com o status quo algum tipo de medida. Dizendo de outro jeito, talvez o verdadeiro subversivo esteja tão afastado da ordem que sequer mensure o seu espaço.
O que eu senti foi uma espécie de gozo em se declarar subversivo. Mas em setembro de 2017, acho que não é tão fácil assim. Mais razoável é se enxergar um bom jornal. Qual o problema disso?
Edição de agosto de 2017
Gutemberg Medeiros: Memórias de todo mundo, distopias e algo mais
Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Assim como acontece a mais de quatro décadas nos EUA e na Europa, no Brasil está instaurada uma realidade corporativa no mercado editorial, onde se formam grandes grupos a fagocitar selos já existentes. Disso decorre uma consequência das mais negativas: publica-se apenas o que dá retorno em curto prazo. É o fim dos long sellers ou dos autores novos ou mesmo já com quilometragem que apostam no novo. Ou seja, dificilmente um Guimarães Rosa teria lugar nas gôndolas.
Quem está provendo o mercado de bons títulos fora desse horizonte contábil são as pequenas editoras. Entre elas, destaca-se uma segmentada em literatura russa, Kalinka, que já trouxe em cuidadas traduções diretas de autores como Daniil Kharms e Sologub. Em seu site há também uma revista, com poemas de Anna Akhmatova vertidos pela professora do Curso de Russo da USP Aurora Bernardini.
Pois a editora vai lançar em 2018 uma obra de fundamental importância, as memórias de Nina Nikolaievna Berberova, também traduzidas por Aurora. Boris Schnaiderman considerava esta obra uma das mais importantes da chamada literatura de exílio russo. Memórias de Nina e de todo mundo que interessava na literatura russa da primeira metade do século passado.
Nascida a 1901, em São Petersburgo, emigrou da ex-URSS em 1922 com o poeta Vladislav Khodasevich e viveu em Berlim até 1924 e, depois, em Paris – os maiores bolsões de emigrados russos no mundo. Na capital francesa, atuou como jornalista em jornais russos onde publicou sua prosa e poemas, histórias curtas, poemas, crítica de filmes e resenhas sobre a nascente literatura soviética. Ainda em Paris, escreveu uma das primeiras biografias sobre Tchaikovski, em 1936, onde aborda a homossexualidade do compositor.
O grande valor de suas memórias – além da apurada e deliciosa carpintaria literária – está em falar sobre a vida dos exilados russos e sobre bastidores valiosos do mundo literário. Em suas páginas, encontramos Anna Akhmatova, Vladimir Nabokov, Boris Pasternak, Marina Tsvetaeva, Vladimir Maiakovski, Ievgueni Zamiatin, entre tantos outros.
A autora emigrou aos EUA em 1950 onde se tornou destacada professora em universidades como Yale e Princeton. Justamente em Princeton, o escritor argentino a conheceu pessoalmente e ficou tão impressionado com ela a ponto de basear um personagem na prosa “O caminho de Ida”, uma das últimas do escritor argentino. Certamente, o livro das memórias de Berberova deve ser um dos mais importantes lançamentos de 2018, forte concorrente aos principais prêmios editoriais, como o Jabuti.
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Outro lançamento que deve chegar até o fim do ano pela Editora 34 é a primeira tradução competente e direta do russo publicada no Brasil do clássico Nós, de Zamiatin, vertido por Francisco Araújo. Outra direta foi publicada recentemente, mas infelizmente não deu conta da complexidade da obra. O texto original exige a noção de Transcriação pensada por Haroldo de Campos e não apenas tradução, priorizando mais os sentidos e a musicalidade interna do texto do que propriamente versão literal.
Muitos viram Nós como exemplo de ficção científica, um equívoco. É, acima de tudo, uma grande reflexão sobre a condição humana na modernidade, independente do regime político em que o sujeito está inserido. Assim, representa o pensamento distópico, avesso ao da utopia, em torno do controle opressivo da sociedade sobre o indivíduo. A sua importância pode ser medida por ter inspirado outros clássicos contemporâneos a exemplo de 1984 de George Orwell, Admirável mundo novo de Aldous Huxley e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Leitura indispensável, especialmente para os tempos que correm. Aviso ao leitor: fique de olho nas próximas versões do russo de Francisco Araújo – certamente um dos mais capacitados da nova geração de tradutores que emergiu nos últimos dez anos no Brasil.
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Impressionam manifestações nas redes sociais contra Lima Barreto ser tema da FLIP de 2017 por ser este um evento de mercado e completamente avesso à obra do escritor. Equívoco. Há anos não se fala tanto de Lima na imprensa, em blogs e em outras mídias. Tudo bem, fala-se muita besteira. Mas essa exposição, de uma forma ou de outra, vai trazer leitores a esse escritor tão importante. O que já compensa. Afinal, Lima escreveu para ser lido e as reedições de suas obras são fundamentais para isso – autor bom é autor na gôndola das livrarias analógicas ou virtuais. O resto é especulação vazia.
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Outra coisa que me impressionou foi a edição, certamente, não proposital do último RelevO em que foi publicado um texto sobre encontro com Mia Couto e a minha coluna alusiva às besteiras que assolam o país.
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Também na edição anterior do periódico a feliz escolha das traduções dos poemas de Nizar Oabbani, Nazik Al-Malaika e Ezequiel Zaidenwerg. Deste, fica no ar de que revolução o poeta fala. No mesmo exemplar, é bom saber que ensaísmo dos bons continua sendo feito, como o trecho de prefácio de Guardião de Datas. No texto, Ben-Hur Demeneck consegue exercer a difícil arte da síntese sem reducionismo. Não à toa, este cronista dá o valor devido à poesia “encalacrada no cotidiano” sob a égide do tempo. Agora é esperar mais da produção deste remador digno de ser personagem de Nelson Rodrigues.
Edição de julho de 2017
Gutemberg Medeiros: Besteiras ainda assolam o país
Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Besteiras continuam jorrando todos os dias na grande imprensa, é impossível ignorá-los. Apenas dois recentes envolvendo o atual ocupante da cadeira da presidência da República assim o comprova. Na agenda oficial, a supracitada autoridade constava uma visita à “República Socialista Federativa Soviética da Rússia”, nome do antigo do principal componente da ex-URSS finda em 1991. Em discurso de 26 de junho, o mesmo chefe do Poder Executivo afirmou que despertou o vívido interesse de “empresários soviéticos” investirem no Brasil. Na mesma viagem, declarou que iria almoçar com o “rei da Suécia”, quando estava na Noruega sob o reinado de Harald V.
Provavelmente este senhor não saiba, mas está inserido em rica e extensa tradição que viceja no Brasil e um de seus maiores historiadores da realidade emergente foi Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo do jornalista e escritor Sérgio Porto – em seu impagável “Festival de Besteiras que assolam o País”. Originalmente coluna do jornal Última Hora, rendeu três ótimos volumes publicados nos anos de 1960 e recentemente enfeixados em apenas um pela Companhia das Letras. Fonte inesgotável para os mais diversos perfis de leitores – de leitores a escritores até aos que desejam tentar entender onde vivemos.
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Falando em besteira, uma das mais interessantes foi proclamada por Mário de Andrade em determinada resenha ao afirmar que “Conto será sempre aquilo que seu autor batizou de conto”. Ironia desregrada ao referir-se a determinada coletânea publicada em França paga pela Academia Brasileira de Letras onde havia de tudo, até pedaço de romance. Pois ao folhear o RelevO de maio e junho foi com prazer que me deparei com alguns dos vencedores do Concurso de Conto de Curitiba e constatar que esse gênero não apenas continua vivo, mas com bons representantes surgindo neste cenário. O tema da competição não poderia ser mais próximo ao gênero, “Um olhar sobre a Cidade”, pois o que são fundamentais os andarilhos da urbe nas tradições próximas de conto e crônica. Como atesta Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Rubem Braga, Drummond, João Antônio e tantos outros. Tanto os jovens autores quanto os tradicionais comprovam que bater perna na rua pode gerar boa literatura.
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O novo é uma construção eventualmente inacessível ao olhar de seus contemporâneos. O novo também é derivado se suportes recém-surgidos, como a literatura emergente do meio digital em redes sociais. Pois experimentação do tipo também constou do exemplar de junho de RelevO. Importante veiculá-la, não há dúvida, mas ainda não vejo consistência estética pelo que foi publicado. Provavelmente, miopia minha como a de Anatoli Lunatcharski, o ministro da Educação e Cultura de Lênin, ao nada ver de importante nas vanguardas russas. Apesar disso, ele deu todo o apoio material para que fossem veiculadas e garantiu um dos mais preciosos tesouros que ainda nos alimenta.
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RelevO de maio trouxe em sua quarta capa trechos de ensaios de Otto Maria Carpeaux derivados do trabalho de pesquisa de Eduardo Zomkowski e em publicação no seu site Projeto Carpeaux. O pesquisador informa que já peneirou mais de 50 textos inéditos em 20 periódicos. Retomar a produção desse austríaco radicado no Brasil é fundamental, pois ele teve vasta atividade não apenas na imprensa, mas também no mercado editorial. Para citar um exemplo: a coletânea em nove volumes de contos russos pela Editora Luz, no início dos anos 60, todos organizados e com lúcidas introduções de Carpeaux – que conhecia as obras de lê-las em russo.
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Para quem estiver em São Paulo em 28 de julho, na Biblioteca Mário de Andrade às 19 horas farei a palestra “Tolstói e o novo homem russo do século XX” sobre a prosa “A morte de Ivan Ilitch”. Além de analisar esta obra fundamental, vou expor como o autor russo está presente ainda hoje na literatura brasileira – especialmente em Lima Barreto e Hilda Hilst. O evento está inserido no inédito ciclo “Literatura, teatro, antiteatralidade e performance” a reunir dez montagens de companhias paulistas e seis conferências de pesquisadores ligados aos autores e peças programadas, sob a refinada curadoria do jornalista e doutorando da ECA/USP Álvaro Machado. As palestras e encenações ocorrem até novembro.
Edição de junho de 2017
Gutemberg Medeiros: Nelson Rodrigues em Som e Fúria
Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
A mais longeva crítica teatral no Brasil, Barbara Heliodora, desde 1957 em jornais diários, não hesitava em comparar Nelson a Shakespeare. “Apenas pelo fato de serem dois homens de suas épocas, que absorveram os universos que os rodeavam e tiveram não só uma capacidade excepcional para criar as personagens que habitariam suas obras. Ambos tinham talento especial para o teatro, vendo o mundo em termos de ação, pois só quem pensa assim escreve bom teatro”, enfatizava.
A amizade entre eles nasceu quando o dramaturgo soube que Barbara era filha do “Marcos do Fluminense”. “Meu pai foi tricampeão pelo time e goleiro da seleção campeã sul-americana de 1919. O Nelson volta e meia falava nele. Nós nos encontrávamos no teatro ou no Maracanã, sempre com papos tranquilos e simpáticos”.
Barbara acreditava que parece “um engano a busca do clima das chamadas peças míticas, nas quais Nelson não chega a estabelecer uma dramaturgia realmente eficiente” e o melhor está em Vestido de noiva e O beijo no asfalto. Já seu maior tino estaria nas peças cariocas, nas quais, “pela primeira vez, transpõe para o palco, em termos teatrais, o linguajar do Rio de Janeiro, criando, com seu ouvido de repórter, ações dramáticas que lembram o ‘aqui e agora’ de A vida como ela é…, alterando definitivamente o teatro brasileiro”.
Por outro lado, Nelson era grande frasista. Barbara contava uma que ouviu pessoalmente dele, sentada ao seu lado no intervalo de um jogo no Maracanã – naturalmente, ambos torcendo pelo Fluminense: “Tenho a impressão de que em outra encarnação eu já pastei; porque olho para esse verde e me dá uma tranquilidade…” ou “Se carrocinha apanha cachorro, por que não apanha crítico?”. O humor e as frases jorravam em seu cotidiano.
Lembrar Nelson Rodrigues hoje parece ser fundamental, especialmente ao ver como a grande imprensa reprocessa os acontecimentos. O dramaturgo era nietzschiano ao defender que não existem fatos, mas a interpretação dos mesmos.
Nelson provavelmente elaborou os dois momentos mais intensos de metajornalismo no Brasil nas peças Boca de ouro (1960) e O beijo no asfalto (1961). Após a estreia desta última peça, declarou: todos estamos afetados por esta peça e ninguém que a veja poderá sentir-se alheio a ela, pois nos envolve a todos. Eu creio firmemente que vivemos numa floresta de papel impresso: somos modelados, condicionados pela imprensa. Em O beijo no asfalto é dramatizado e tratado como se fosse uma personagem da peça. Cria-se então uma mútua dependência: os leitores tornam-se vítimas do que leem nos jornais e estes tornam-se vítimas dos caprichos, das atitudes e reações de seus leitores.
O beijo no asfalto mereceria ser lida com atenção por todos os que querem tecer uma leitura crítica do que os cerca. Literalmente, mostra como os fatos são reprocessados conforme a conveniência do veículo em que são expostos.
A histórica montagem se deu em 1961, com o grupo de Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Mário Lago e grande elenco no Teatro Municipal, na Cinelândia carioca. Era comum no teatro rodrigueano o jornalismo ser representado por profissionais de ética, no mínimo, discutível. Em O beijo no asfalto, o dramaturgo parte de um fato: um homem comum cumpre o último desejo de um atropelado que, às portas da morte, pede um beijo na boca.
Um repórter de polícia faz matérias forjando um caso escandaloso de homossexualidade. Para dar veracidade à peça, Nelson faz com que esse jornalista, personagem chave do espetáculo – praticamente seu protagonista –, receba o nome verdadeiro do maior repórter dessa editoria no poderoso jornal Última Hora: Amado Ribeiro. Samuel Wainer, o dono do periódico na vida real – o mesmo no qual Nelson era sucesso há dez anos com sua coluna “A vida como ela é…” – também é mencionado em cena. E o próprio jornal é apresentado, na visão do escritor, como aquele que induz a chamada “opinião pública”, a mesma que execra aquele que beijou na boca, levando-o a uma morte trágica.
Luiz Fernando Mercadante – que atuou por grandes veículos como Jornal do Brasil e a revista Realidade – lembra que na estreia do espetáculo em questão, mais da metade da plateia era formada por jornalistas do Rio de Janeiro e de outros estados. “Corria o boato de que Nelson escrevia uma peça contra nós e a classe compareceu em peso”. Após o pano final, não teve o aplauso esperado. Os jornalistas saíram em silêncio e, no dia seguinte, alegaram que o autor retratava a redação de Última Hora e que todos os outros eram éticos no cotidiano. Mercadante viu a felicidade estampada no rosto de Amado Ribeiro durante a temporada. “Ele era pior do que na peça”, lembrava o jornalista. Mas, fora o Amado e Wainer, todos viraram a cara para Nelson, o que o fez sair do jornal.
A última coisa que o autor de O beijo no asfalto – e de outras 16 peças, além de romances e contos – deseja fazer é um retrato realista e agradável da vida urbana: o realismo, dizia ele, é uma “quase canalhice”. A fusão de memorialismo, reflexão, notícia e ficção em seu trabalho lembra a tradição satírica da imprensa russa da segunda metade do século 19, com debates políticos, morais e metafísicos em linguagem semicifrada para escapar à censura.
Nelson morreu afirmando que o grande autor de sua vida foi Dostoievski, tudo estava lá. E certamente se valeu de O duplo e Crime e castigo, entre outros, ao recusar o realismo e a ausência de tensão trágica, ao contrário da maioria. Ele nunca explicou em detalhes sua visão de Dostoievski, mas legou uma ou outra observação, como “a grande ficção nada tem a ver com o bom gosto” e “Dostoievski é o meu único professor de drama”. Não à toa, Nietzsche foi atento leitor do russo, a partir do qual elaborou a sua concepção de Super-Homem.
Para melhor ler os tempos que correm, falta-nos alguém como Nelson no Jornalismo. Para melhor traduzir esses trás dos fatos, tão plenos de som e fúria.