Baú: Fernanda Torres

Extraído da edição 129 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

“O Brasil é uma ilha continental, e a gente é isolado pela nossa língua. Ao mesmo tempo, a gente consome a nossa própria cultura. A gente tem total interesse por nós mesmos, porque nós somos uma potência de 200 milhões de pessoas. Somos um país complexo – a gente não é um país periférico. A gente tem as nossas próprias questões. Eu conheço a cultura francesa, a americana, a russa, a alemã, a italiana, mas eles não conhecem muito a brasileira. E às vezes eu tenho pena de quem nunca leu Machado de Assis, de quem não conhece o Eça de Queiroz. Agora as pessoas descobriram a Clarice Lispector e escrevem assombradas. Como é que eu posso falar com alguém que não sabe quem é Nelson Rodrigues, que não sabe quem é Candeia? Então, ao mesmo tempo, o Brasil tem esse complexo de vira-lata dessa não comunicação com o mundo; por outro lado, o Brasil tem pena de o mundo não saber o que a gente sabe. Quando alguém fura a fronteira e leva algo que nos é pessoal para fora, é essa espécie de sentimento de ‘olha o que a gente tem de rico’. É um sentimento de orgulho nacional bacana, bom de sentir.”

Fernanda Torres, esses dias, Uol Prime.

Zeh Gustavo: NO BEIJO DE UMA ASSOMBRAÇÃO: a nebulosa encruza da finitude com a dobra-sobra do eterno

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


“Permita, amor, que eu viaje às suas mãos…” — Hart Crane dá o tom inefável do último RelevO. Não intentaria um impresso, ou um livro, ou um coração partido, empreender senão uma mesma e repetidamente inédita, e necessária, viagem de afirmação da vontade de alcançar o belo, o que nos deveria governar e do qual deixamos, sorrateiros desistentes, de falar? Ou há perdida essa capacidade demasiado humana de entrever, no precário instantâneo do existir corrente, aquilo que sugere permanência, assim como jazem, perdidos no tempo do Onça (um detestável governador do Rio Império, nos 1700!), os luares amplos que a cidade engoliu com seus faróis ceguetas?

*

A diferença da viagem de fruição do jornal impresso para a do amor é que, embora absolutamente datados, diria, em tese, ultrapassados pelos atropelos do tempo da afetividade não afetável, o primeiro ainda se deixa pegar pela mão pouco antes de servir ao pipi do pet, enquanto, do outro, mal se nota o indisfarçável aceno de um adeus, rumo ao Bumble ou mesmo à adesão intelectualoide a alguma bobagem da vez.

*

Ambientação, a sacada do Enclave para elucubrar sobre por que certos filmes nos pegam e outros não, diz também de por que tomamos tanto remedinho e nos sentimos tão sós, neste hodierno. Ambientar(-se) dá uma obra danada. E que merda! — exige reconhecimento do outro como complexo enérgico de tipo vário ao seu. O outro é nosso negativo fundamental, por excelência, para que haja nós.

*

Anda faltoso, para com a gente, o tal de eterno. Ou nós para com ele, dá na mesma. Ainda que se trate, em tom viniciano, de um eterno enquanto dure.

*

No Apocalipse Imbecil de Toninho Pirassununga e Robert Esponja, “filmes supostamente adultos para histórias supostamente infantis vieram para ficar”. Se esse roteiro também é seu, se apresse para buscar seus royalties! Pois, do influencer de comida de rua ao turista profissional, a idiotia disfarçada de erudição é o melhor cobertor para a falta de assunto e propósito na vida. Logo, a concorrência é grande, pense bem.

*

Não se tocam trombetas, nem mesmo musiquinha de celular, na beira da hora que fica. O tempo passa, o tempo voa — sobretudo pra você que ainda lembra dessa peça publicitária.

*

Canta Silvio Rodriguez, em dada canção-pintura (Óleo de una mujer con sombrero), que vislumbramos uma luz que vacila e que promete nos deixar às escuras, se é perdida esta bela loucura — a nossa forma de amar. Na encruza de qual ela seja, essa forma, tomamos decisões. Devemos topar determinado trabalho ou viagem? Ir ou permanecer, donde estamos? E ao lado de quem? Na nossa balança de juízos, fechamos com o opressor gentil, em sua empáfia histórica ao comprar os direitos de nossa alma; ou com o suprimido que, mesmo sangrante, nos oferece — e também dá, de bandeja — sua não ociosa mão calejada?

*

Ao contrário de mim — ou a favor, dependendo do ângulo — e talvez das evidên$ias, o Editorial nos afirmou haver, em curso, uma revolução silenciosa do impresso — e, por extensão poético-licenciosa minha, das velhas boas coisas imprestáveis, que jamais deveríamos deixar de cultuar.

*

Sobre a citada luz — mesmo que vacile, ela está lá. Ou seja, aí. E ainda Crane: “Luz se atracando sem descanso, lá, com luz, / Estrelas se beijando, onda a onda, até / O embalo do seu corpo!”.

*

A eternidade, ela pode nos escapar entre os dedos, sem meu pé me dói, como diziam os antigos; e sem sequer mais que um lastro no mar, se é perdida a cara forma do verbo — intransitivo, como nos ensinou Mario de Andrade — que nos é mais precioso.

*

Pode até parecer chato, mas olhe melhor: a razão do eterno é bem sexy!

Queremos ser a Bladnoch (antes da venda ou depois também)

Editorial extraído da edição de novembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


A Bladnoch, da região de Lowland, na Escócia, é uma pequena destilaria localizada perto de uma aldeia (e rio) de mesmo nome nos arredores de Wigtown, cidade a umas três horas de Edimburgo, famosa pelas suas livrarias, que olham de frente para a Irlanda do Norte. É a destilaria mais ao sul da Escócia. A população estimada de Wigtown é de 1.000 pessoas, um pouco menos que o número de assinantes do RelevO.

A destilaria surgiu em 1817. Ficou nas mãos da família que a fundou até 1938, indo parar, então, numa prateleira baixa da United Distillers, atual Diageo, conglomerado de marcas que engloba a Johnnie Walker (e o Red Label…), a vodca Smirnoff, o gin Tanqueray e a cachaça brasileira Ypióca. A Bladnoch foi fechada em 1993. A partir daí, houve um interessante ponto de virada.

Em 1994, o topógrafo e desenvolvedor de propriedades Raymond Armstrong, nascido na Irlanda da Norte, comprou a propriedade com vaca, carneiro, destilaria desativada e tudo. Originalmente, ele buscava apenas uma casa de férias. Pois faremos uma coloração narrativa e presumiremos que os deuses do uísque tocaram o coração de Armstrong, que não tinha relações com a indústria de destilados até então.

Assim como Truman Capote intuiu os pensamentos do assassino de A Sangue Frio, entendemos que Armstrong passou a compreender o que a destilaria significava para a comunidade local, reconsiderou seus planos originais e passou a trabalhar na reforma do espaço para reativar a marca. Essa atitude – pois veja – incomodou a Diageo, que havia enterrado quase 200 anos de história pelo fato de a destilaria não ser lucrativa para o grupo.

Após divergências entre a antiga firma e o novo proprietário, estabeleceu-se que a destilaria poderia retornar com um teto baixo de produção, o que, para a estrutura histórica, não foi exatamente um problema. E assim a destilaria retornou ao mercado, pequena e aparentemente desimportante para a história do mundo, mas certamente não para o povoado de Bladnoch. Trata-se de um uísque especialmente agradável, recomendado até para beber com sobremesa.

Mas não paramos por aí. Um desentendimento entre Armstrong e seu irmão sobre a venda da destilaria acabou levando-a à liquidação em março de 2014. Em agosto de 2015, o empresário australiano David Prior comprou a destilaria, os armazéns e o charmoso centro de visitantes, bem como os estoques produzidos entre 2000 e 2009 por uma quantia não revelada, criando uma nova empresa, a Bladnoch Distillery Ltd., que mantém o mesmo espírito da destilaria. Ela se orgulha de ser a “menor” destilaria da Escócia, título que a Edradour também disputa. A empresa continua tecnicamente pequena, mas agora conta com uma rede de distribuição maior e um portfólio mais amplo de produtos.

O que a Bladnoch teria a dizer sobre a “indústria” de jornais impressos de literatura a partir de sua tumultuada história de vendas e aquisições? E qual seria o benefício de disputar para ser reconhecido como o menor em tempos de aquisições, holdings, fusões, filiais e franquias? A Bladnoch talvez nos sugerisse que, para manter algo genuíno e de valor, é preciso resistir às lógicas de mercado que achatam a cultura em favor da padronização e da rentabilidade. O uísque artesanal, envelhecido e restaurado por um certo amor à tradição e ao saber local, torna-se uma imagem para a sobrevivência da literatura independente e do Jornalismo cultural. Porém, não sabemos ao certo se resistir ao mercado é exatamente o que queremos enquanto RelevO. Talvez almejemos existir neste mercado.

Cada um desses universos lida com a pressão de se expandir, diversificar, aumentar produção e seguidores, contudo, no fim, o que realmente os torna únicos não é o tamanho da operação, e sim a profundidade da experiência que oferecem – e aqui também ficamos na dúvida se utilizamos o termo “experiência”, tão gasto pelas majors na atualidade.

Tal como Armstrong, que, ao perceber a importância da destilaria para o vilarejo, decidiu investir no projeto com mais dedicação que qualquer acionista distante poderia ter, o RelevO reconhece seu papel na comunidade de leitores que alimenta. E o RelevO também bebe. Ainda que pequeno, por escolha e necessidade, a decisão de ser “menor” é, em grande parte, uma resposta às engrenagens de um sistema que nem sempre reconhece o valor do peculiar e do pessoal, transformando tudo em opacidade linear.

Não há garantias, é claro; os altos e baixos, as vendas e recomeços são parte do processo. Mas a missão de preservar a identidade, mesmo quando isso não se traduz em expansão, é um propósito difícil de defender e explicar quando nos deparamos com os números frios. Com seu produto, a Bladnoch oferece sua interpretação de Lowland; nós, no RelevO, almejamos oferecer um lugar que não sabemos bem qual é, em edições limitadas e longe das grandes prateleiras. Sobretudo distante do Red Label.

Uma boa leitura a todos.

Baú: João Cabral de Melo Neto

Extraído da edição 128 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O que o senhor diria a um jovem poeta que deseja ‘construir seu objeto’?

Essas coisas são muito difíceis. Primeiro, que evite sempre a palavra abstrata e prefira a palavra concreta. Eu acho que a palavra maracujá é muito mais poética do que melancolia, porque maracujá você sabe o que é. Se eu ponho num poema maracujá, estou pondo um objeto diante de sua vista; se ponho melancolia não, porque tenho um conceito de melancolia, você tem outro. Cada pessoa chama tristeza, melancolia, depressão e essa coisa de um estado diferente. Porque usando essas palavras abstratas você não pode ser preciso. Você dilui a poesia porque usa uma palavra que tem dez sentidos, cada pessoa dá o seu sentido a essa palavra, ao passo que maracujá ninguém confunde com manga.

João Cabral de Melo Neto. Revista ISTOÉ Senhor n. 1059, 3. janeiro de 1990.

Zeh Gustavo: ANGÚSTIA, BOSTALGIA, INFETAÇÃO: tudo, mas não necessariamente nesta (des)ordem!

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


eu também tomo café
em uma sala em chamas
só que não é café
é rum eu espero

Matheus Hotz

I
desde as cartas
é que se instaura uma certa primazia
do sistema digestório
na quase ainda possível
comunicação:
abdômen-ritornelo
a gerar um chiado
& pá
& poom
& pés
& zooms!

II
de uma bet
que dela não se reporte
o seu vício fundador
mas a elegância
do patrocínio negado
que subjaz no exercício
de uma das parcas soberanias
que elegemos para levar
as horas
no comércio hodierno
em que nos enfiaram
até a bacia das almas
(inclusos os corpos)

III
uma boa revolução
se faz é com menos quinhentão
na conta
e um sorriso na cabeça

no bolso
uma bússola
desregrada
& um mapa
de alcançar
corações danados
como os nossos

IV
nos dias seguintes
aos tantos poemas relegados
à indiferença presidenta
do conselho do mundo
regido por big techs
é que o ombudsman
rasga o jornal
em rebeldia cega
ele
vocês sabem
adora fazer merda
porque contínuo

contínuo do baixio do palavreado
e de solfejadas sofrências de amor
(contínuo! – gritaria
o pai-empresário escroque
da Bonitinha mas ordinária
aquele que não é solidário
nem no câncer!)

V
um
bando
de
bunda-suja

nunca
seremos
um

rolo

um

rolo

nem
mesmo
de
um
reles
papel
higiênico

VI
parede
ou porta:
qualquer sólido
será esquecido
ao vento
que o levará
ao mar poluído
antes que o que seja
mera performance
possa se tornar
até mesmo
um aviso sequer
de permanência

desde já
esteja proibido
algo que seja
do terreno
da passagem
porventura
se fixar

VII
a pergunta
aos mortos
precisa ser
dirigida
– e digerida –
pelos vivos

porque os mortos
eles não têm
necessidade
de pergunta
não porque já saibam
toda resposta
mas porque já sabem
toda ausência

VIII
o neomoralismo pimpão
é transfronteiriço:
propagandeia
suas bandeirolas
com superioridade
voraz

o neomoralismo pimpão
é chato pra cacete
como a palavra
transfronteiriço
e ai de quem zombeteie
de sua falso-desleixada
mania de nobreza

o neomoralismo pimpão
contém tantas
amarras
quanto a propaganda
de um carro
de um sabão em pó
ou do amor livre
na boca de professor
universitário
em busca de likes
pro lattes

o neomoralismo pimpão
confunde geral
se espalha como brasa
(brasa líquida, claro)
a flertar com o
uso e descarte
de tudo

o neomoralismo pimpão
é o estado da arte
oculto
de quem beija a mão
do opressor
e senta a pua
no suprimido

o neomoralismo pimpão
odeia o que chama de
samba de raiz
amor romântico
escrita elitista
letra difícil
filosofia de botequim
o que pense
política & estética & existência
o que sinta
demais & intenso & visceral

ou seja
o neomoralismo pimpão
odeia toda utopia
que nos possa levar
adiante
sem esse gosto
de rivotril
na boca

IX
para dar bug é preciso
operar o sistema
desde os seus ossos

para dar bug é preciso
jogar não só uma cadeira
mas alguma alma
e em alguém
que tanto a mereça
que viciou em descrer
nessa oferta de tanto

para dar bug é preciso
se jogar na alma arremessada
reconhecer nela
não o alvo
mas o destino
e puxá-la
para dentro
de si

Na falta de um francês melhor, ser guache na vida

Editorial extraído da edição de outubro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


No editorial de setembro, mencionamos a revolução silenciosa do impresso em tempos digitais. Temos alguns motivos para acreditar em uma espécie de reposicionamento do impresso em tempos de adoecimento pelo uso excessivo de telas.

Ao mesmo tempo, tal qual o time pequeno que perde inúmeros gols fora de casa e sai derrotado por 1×0 no final em um lance isolado, fomos punidos pelos deuses do papel-jornal por arriscar tamanho otimismo: tivemos, no mês passado, um dos mais difíceis períodos de arrecadação para o custeio geral da nossa operação.

Diferentemente do impresso, em que sintetizamos um período a partir de textos e entregamos números finais, nossa presença digital acompanha um tanto das oscilações de caixa, do espírito do tempo mais curto, essa coisa do dia a dia mais repetitivo, necessário e desinteressante. Chegamos, e sabemos disso, a exagerar na passada de chapéu —que falta nos faz um sobrenome melhor… E cada novo assinante representa mais um voto de confiança, o que soa ao mesmo tempo simbólico e efetivo. O assinante é quem paga a conta.

Nas edições de julho e agosto, atingimos aproximadamente 95% da meta de arrecadação. Um prejuízo aceitável, do jogo e das oscilações da vida financeira de um negócio de pequeno porte. Então, veio setembro… E o resultado é perceptível na página 2, com o balanço geral da edição. Aliás, no Brasil, somos o único jornal impresso que apresenta publicamente as próprias contas.

E quanto custa, afinal e mensalmente, a operação RelevO? Em torno de R$ 10 mil, puxados, sobretudo, pelo custo de gráfica e de distribuição. O custo de pagamento de autores, além da equipe editorial, não pesa tanto porque, enfim, não remuneramos bem, embora não exista alguém não remunerado nos processos internos do periódico, dos autores aos empacotadores.

Por coisas que poderiam ser explicadas, quem sabe, pela projeção de signo, o editor acumula as funções de curadoria e pagador de boleto — em inglês soa mais imponente: publisher. Ou seja, seleciona textos, com o auxílio do editor-assistente e criador-culpado pelos textos da Enclave; encaminha dúvidas ao Conselho Editorial; conversa com possíveis ilustradores; questiona a resolução das imagens com a gráfica, o corte das páginas, “segue foto em anexo”. Essa é a parte realmente divertida.

E para lidar com tantas oscilações de nascimento & desenvolvimento, o lado B de gerirmos um pequeno negócio para seguir gerando divertimento, contamos com o senso de comunidade do RelevO, essa coisa que, ao longo do tempo, fomos criando, um certo jeito de se relacionar com as coisas que envolvem a escrita, a leitura e a discussão literária. Em suma, nosso senso de comunidade se constrói a partir de um ecossistema de trocas, apoio mútuo e pertencimento em torno de uma palavra ligada na outra, pagando contas e virando páginas.

Uma boa leitura a todos.

Baú: Jerry Saltz

Extraído da edição 127 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Gustave Flaubert se perguntou: “Seriam os escritores muito mais que papagaios sofisticados?”. A maioria dos artistas conhece esse sentimento – de que estamos sendo conduzidos por algo alheio a nós mesmos. Todos nós escolhemos nossos estilos, materiais, modos, meios, ferramentas etc., mas a obra que criamos não é inteiramente uma questão de escolhas conscientes. Eu nunca sei bem o que vou escrever até que o escreva – e, ainda assim, não tenho certeza de onde veio o que escrevi. Essa é a alteridade da arte. Ela é tão poderosa que você às vezes pode se perguntar se a arte está nos usando para se reproduzir – se ela seria uma força cósmica autorreplicante (ou um fungo?) que nos colonizou em um serviço simbiótico.

Isso pode ser emocionante, mas também desconcertante. “É como se um fantasma estivesse escrevendo”, disse Bob Dylan, “só que o fantasma me escolheu para escrever a canção”. Não deixe que isso te apavore. Pelo contrário, aprenda a confiar nessa alteridade.

Jerry Saltz. Como ser artista, 2020 (ed. Seiva, 2024).

Zeh Gustavo: FAÇA AMOR! FAÇA ARTE! E pode fazer suas merdas também!

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Calma lá, não baixei de coach, ainda sou alguém. E este título se inspira noutro, do Fausto Wolff, de crônica de junho de 1981, n’O Pasquim: “Você não é um merda!”. Nela, Fausto ataca o “complô maquinado (…) para que vocês esqueçam o fim que dá significado à existência de vocês. Um plano para transformá-los em mortos-vivos, sem vontade própria (…).” Em outro momento, incita o leitor a entender que pensava; que sentia; que, afinal, vivia – não era um telefone! E Fausto escreve numa era pré-smartphone…

*

“O silêncio é uma ética.” Anda difícil o ombudsman não citar nossos Editoriais. “As nossas vidas são permeadas por um constante fluxo [tagarela, como o define Adauto Novaes] de informações, notificações e alertas que competem por nossa atenção, fragmentando nosso foco e nos empurrando para hábitos de hamster.”

A tecnologia atual é contrarrevolucionária, reativo-positiva, no sentido de que cria mais e melhor de um mesmo que nos joga para trás. Somos instados a nos superarmos em troca de uma espécie de pseudoeus (inter/super)ativos que nos ocupam o tempo inteiro, sem pausa para o silêncio premente à produção real de sentimento e reflexão.

*

Mas não renunciaremos de todo a nós, certo? As “Nuvens não querem se separar das montanhas. / Vivem assim: em luta eterna para conciliar seus desejos.” O Hino à sedução do tudo, de Adonis, é dos vários pontos altos da última edição. Outro verso, de “Divisórias”: “Você, coisa incompleta, / inicia a perfeição.”

*

Trauma da contemporaneidade: o consenso em torno de uma autovivência condicionada, extenuante, fármaco-dopada, individualoide e precarizada.

*

Outro: o neomoralismo. Camaradagem, toda bundinha já esteve e estará um dia suja. Não se rebaixe à canalhice do lugar-comum de frases como “Não passo pano para…”, porque você passa sim, geral passa pano, toda hora, porque se não passar não tem vida em sociedade. Vivemos de passar pano. A novidade é a escalada preocupante do cancelamento, fantasma onipresente, que habita o mundo do juízo deserto de qualquer razoabilidade, que não dá a menor pelota ao contraditório e ao perdão do erro, que visa a punir sem prazo e muitas vezes nem lei.

*

Que duo formoso a obra plástica de Oli Maia, em que a gente nota cores mosaiculosas num singelo preto e branco; com o “Costume” de Anderson Almeida Nogueira, p. 22-23 (volta lá no mês passado para seguirmos juntos adiante). E aí a gente vira a página e tá lá estampada a letra de um genuíno samba ensinado por Zé Keti e Elton Medeiros: aquilo que “Não fala, meus amigos, de ninguém / Simplificando a história / Não fala de mim também”. RelevO, definitivamente, não é qualquer parede.

***

Isto, obviamente: tal de defender a profundidade, prioridade, preciosidade que é existir, não se trata de o indivíduo se pôr a babar asneira academicuzona ou namastê-afetiva na internet, recomendando (aff!) leveza no relacionamento (ficou demodê falar no seu correlato mais fodão, que seria amor, como trocam fácil arte por diversão numa programação dita cultural) e outras bobageiras graciosas.

Sabe o que é leve? Merda. Sempre boia, no mar. Em suma: faça das suas, mas corra de sê-las.

*

No meu último escrito que talvez tu leias, (re)luto ante teu medo e incidente confusão; ainda e sempre, nos insisto. E, já que urge a vida, que é esta, como a temos e não como gostáramos numa visada de novela ou partida tensa de fuga de rebaixamento boleiro, te grito: mergulha! Que oceano é coisa nossa de não perder de vista, para além. Mergulha logo. Que, no início, a gente bate perna; uma hora até aprende a nadar.

A revolução silenciosa do impresso ou 14 anos da primeira edição

Editorial extraído da edição de setembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Em 2 de setembro de 2010, o RelevO saiu com a sua primeira edição impressa, oito páginas, preto & branco, formato tabloide, 1000 exemplares de tiragem. A fatura da gráfica: R$ 200. A arrecadação do mês: R$ 200. Gastamos entre R$ 30 e R$ 60 com distribuição, concentrada em Curitiba e Araucária, cidade da RMC que foi a sede logística do nosso periódico por quase 12 anos. Pouco tempo depois da edição #1, adotamos o slogan “Não tem fins lucrativos — porque não consegue”, logo depois destituído em prol do elevado “Qualquer coisa, a culpa é do revisor”.

Na época, observávamos três movimentos regulares no mercado de jornais de papel: (1) o fechamento da versão impressa de diversos jornalões, (2) o aumento de custos de papel e de materiais de papelaria e (3) a migração de leitores para as novas mídias — fenômeno que veio a se alastrar com ainda mais força a partir da portabilidade de internet em celulares. Nosso primeiro anunciante, um proprietário de uma loja de calçados, inclusive, já na terceira edição, perguntou-nos se não era o caso de se tornar digital ou abrir um blog ou um portal de literatura.

14 anos depois, aqui estamos em um cenário que não é exatamente animador, mas se distancia com folga do clima de terra arrasada e de destruição dos produtos analógicos. Inclusive, a terra do eldorado digital passa por sérias problematizações e/ou necessidades de regulação, sobretudo por parte dos pais, que lidam hoje com crianças e adolescentes viciados em celular, com problemas visuais, claras limitações de interação física e local, desconstrução dos vínculos afetivos com a família, além do comprometimento da saúde física e psicológica, de estresse à ansiedade. Não estamos sendo saudosistas: apenas conhecemos as salas de aula.

Mas veja bem: não que isso tudo – que hoje vemos como pontos de atenção em relação às tecnologias – não existisse antes em um grau menor ou atrelado às mídias ditas tradicionais, como rádio e televisão. Apenas constatamos que a primeira década de internet ilimitada trouxe uma geração nova de distúrbios, que, parece, podem ser minimizados com comportamentos… analógicos — o famoso axioma do Filho de Steve Jobs, famoso por não deixar seus rebentos usarem dispositivos eletrônicos sem mediação.

Há uma sutil e silenciosa revolução acontecendo no interior dos negócios de comunicação, mais especificamente no que tange aos periódicos de nicho: “— podemos chamar isso de ascensão vitoriosa dos leitores relaxados que estão cansados de ler nas pequenas telas de seus celulares — e essa revolução tem a mídia impressa como protagonista”, na definição do professor em cibercultura Mario A. García (não confundir com Márcio Garcia).

Quem acompanha o dia a dia do mercado de feiras e festivais, além dos lançamentos de edições premium de clássicos repaginados, sabe que os produtos analógicos exercem poder de sedução, mesmo que os números do mercado livreiro tradicional não sejam dos mais promissores.

Entre os periódicos de literatura que orbitam tal ecossistema com certa desenvoltura, observamos uma recente onda de revistas independentes de pequenos lotes, com propostas que atravessam da curadoria de literatura, como o próprio RelevO, até revistas de invenção como a Caça & Pesca, além da novíssima revista Júlia, da Livraria e Editora Arte & Letra, que já se encaminha para a segunda edição.

Editoras ainda partem para clubes de livros personalizados, ao passo que a TAG (não confundir com Transtorno de Ansiedade Generalizada) Livros acaba de completar 10 anos, lidando com as perdas ocasionadas pelas enchentes do Rio Grande do Sul. Em paralelo, García ainda reforça o caráter de individualização do impresso, com embalagens que retornam ao prazer do tato, exploram as possibilidades de formato, resgatando a beleza de juntar palavras e imagens de um jeito próprio, aquilo que convencionamos chamar de experiência.

[as revistas] têm um preço premium, às vezes excedendo US$ 25 por edição, e são destinadas tanto para exibição em mesas de centro quanto para leitura. Seu conteúdo normalmente não está disponível online, reforçando sua natureza exclusiva e colecionável. Essas revistas atendem a interesses específicos, como escalada, surfe, esqui e corrida, enfatizando conteúdo de qualidade com publicidade mínima. Elas são projetadas para serem itens colecionáveis em vez de leituras descartáveis.

O RelevO não custa nem 25 dólares ao ano. Longe disso. Em quase 200 edições de papel, sem pular sequer um mês, seguimos em conflito com os custos operacionais da vida, mas convictos de que as mídias analógicas continuarão com o seu espaço — também desconfiando que a saída dos grandes jornais da mídia impressa é mais uma ação de diminuir o acesso das pessoas à informação do que estratégia democrática.

Ao nosso modo, entregamos também uma estratégia, um jeito analógico de existir no mundo. E já vimos crises suficientes para dizer que seguiremos como um impresso — enquanto tivermos leitores e leitoras dispostos a questionar a hipertrofia do mundo.
Uma boa leitura a todos.

Baú: Antônio Maria

Extraído da edição 126 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Acorda esse homem inesperada e injustificavelmente cedo, sem saber direito onde está, mas inteiramente certo de que aquela cama não é a sua. O despertar de quem dorme fora é sempre assim e a primeira sensação é uma desconfiança: terei sido raptado? Aos poucos, as ideias se arrumam, a inconsciência do sono vai cedendo lugar à lucidez das coisas exatas e a realidade se comprova na cor da parede, no desenho dos móveis, no cheiro da fronha e dos lençóis, que é uma agradável novidade olfativa. Esse homem chega à simples conclusão de que é um hóspede. Tem um dia grande e vadio pela frente. Poderá, se quiser, continuar na cama, lendo, tramando, cochilando e, mais que tudo, gozando a perspectiva do tempo sem horários e sem tarefas. Mas decide levantar. Antes, faz sua reza íntima de todas as manhãs, a que diz: “Não te deixes tomar pelo pequeno êxito e não te eleves acima do conhecimento que tens da tua frequente fragilidade” etc. Abre a janela. A bruma baixa desfigurou a silhueta dos montes. Vai chover e o dia terá um céu triste. Mas o vento frio da serra e as flores, que são tantas — amarelas, vermelhas, azuis — trazem uma alegria completa, uma impressão de salvamento, em que os cansaços e desgostos aparecem como penas já cumpridas. Dali por diante, esse homem está quite com os castigos e lhe chegam — como nos domingos da meninice — as esperanças, o ânimo, a ideia tranquila de existência. Esse homem não sabe se está apaixonado por uma mulher ou simplesmente pela vida. Mas, em seu coração, há um amor indefinido, que por si, pelo bem que faz, poderá ficar sem alvo certo, sem reciprocidade. Basta-lhe a manhã de vento frio, o perfume das flores e o verde do capim viçoso. Deve ser este um grande momento de sua vida, porque a sensação constante de saudade não está, pela primeira vez, entre os seus sentimentos.

Antônio Maria. Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria, Todavia, 2021, pp. 130-131. Publicada, originalmente, no Diário Carioca, de 07/11/1954.

Zeh Gustavo: DE COMO OUTRAR É PRECISO e a máquina de triturar autores (e seus livrinhos)

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Naturalizou-se a disgrama: a literatura-literatura (alô, Odvan! abraço, Luxa!) depender de autores venderem seus livrinhos aos amigos e parentela; livrinhos esses fabricados por editoras cujos clientes são os próprios autores, por sinal vistos como menos que clientes, algo como uma gente chata, que não entende o processo.

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Vivemos do descontão de 30% de que falei de passagem na última coluna, concedido para comprarmos e doarmos ou revendermos, de mão em mão, nossas próprias obras. Não se fala mais em remuneração dos autores. Não se fala mais em distribuição. E faz é tempo! O livro (não) é vendido no site da editora. Não há estratégia de lançamento, cuja organização igualmente recai nos ombros dos autores. Aí vem as feiras — para as quais você se desloca com os seus próprios recursos, se delas a editora participa. Carece sim dizer: não está bom, não está justo.

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Não, não meti atestado. E sei o que li no jornal passado. Por exemplo, a espécie de autoalta que Diana Joucovski se deu para contar que “alguns já nascem como a noite: demasiados, indomáveis, criaturas horrendas passionais, tão humanas que beiram à desumanidade”. Laura Redfern Navarro, por sua vez, nos apresentou ao termo aotubiografia: escrita do si no tu. Com todo o respeito, é claro!

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F. Da Costa ilustrou com traço peculiar e manchadiço uma edição de diagramação redondíssima. Nem sempre atentamos à forma, adictos que ficamos em conteúdo. Largados na ilha, desprezamos o continente, inscrevemos em nossa fala diária que queremos ir ao mar, seja como for: “mas nada dos rudimentos / passa em branco”, nem mesmo aquela “faísca alada / que saltita pela casa/ inundada de noite / e anseios quebrados”, como verseja Nadja Rodrigues.

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Há que notarmos, ainda, a inquietação com que o RelevO aborda o tempo. Não, não é sacanagem: filosofia, que chama! Em pleno e pelo impresso.

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Enshittification e gamificação são duas fases do mesmo jogo de tornar as experiências da vida em unidades de um negócio pulsional absolutamente descartável.

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Nós escribas aceitarmos de boníssima pagar pelo nosso trabalho deve-se à premência um tanto egoica mas também altruísta ou missionária que temos de continuar a produzir e lançar nossas coisas, fato. Contudo, o silenciamento a respeito das más condições em que isso se efetiva remete a uma autoimagem rebaixada a ponto de fazer corar o vira-latas complexado do Nelsão; e/ou à condição de pertença, de tantos, a uma classe mais remediada, outro fato. Mas, olho no lance (saudade, Silvio Luiz!): se sucumbimos diante das contingências como se elas fossem inescapáveis (coitada da editora, ela é pequena!), quem achamos que vamos enganar com isso, além dos nossos mais chegados, que já devem estar de saco cheio de, sozinhos, nos prestigiarem?

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O eu é o centro e o alvo do descarte vital consentido. Outrar é preciso. Até para obrar.

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Fechando o reclame do ombudsman: causam-me, até hoje, absoluta perplexidade o surgimento e a longevidade de (bons) prêmios que requerem a concorrência exclusiva de autores inéditos. Que raios de fetiche é esse de renovar o cabedal de futuros trabalhadores precários do meio (fodidos privilegiados, como dizia o saudoso Abujamra!) lhes dando uma oportunidade que não vai se repetir logo adiante?

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A gente brinca porque ainda está num certo (falso) controle. Porém, os mad menx estão aí, na raça!, nos pedindo um soco na cara que nunca lhes damos. “O que você afinal faz no seu trampo? Ah, meu, eu sou um criativo!”. Não se engane: eles parecem fofos, mas merecem uma morte lenta e cruel.