“Não sei. O amor é assim”

Editorial extraído da edição de novembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Desde 2014, o RelevO produz uma edição especial da Copa do Mundo de Futebol. Gostamos muito de futebol, até mais do que gostaríamos. Também gostamos muito de literatura, mais discretamente. Como qualquer esporte (menos o beisebol), o futebol, em sua duração entre 90 e 100 minutos, carrega todos os elementos necessários para a criação de boas histórias: jornada do herói, imprevisibilidade, drama, beleza, técnica, envolvimento emocional.

Sabemos que nem todos os jogos de um Campeonato Paranaense são dignos de epopeias de Camões. Mas a Copa do Mundo é diferente. Ali se encontram os melhores praticantes do dito esporte, todos na busca pela consagração — e o futebol é um dos raros esportes em que as Olimpíadas não se configuram como “o momento sublime”. Mesmo com jogos considerados menos empolgantes, sabemos que a Copa é outra coisa; é outro modo de estar no mundo, a potência máxima da célebre frase da crônica de Rachel de Queiroz sobre o seu amor pelo Vasco: “Não sei. Amor é assim”.

A edição de novembro do RelevO — maior, com 40 páginas— é toda dedicada à literatura dos 32 países envolvidos no maior espetáculo monoesportivo do planeta. Buscamos trazer escolhas que fugissem da obviedade, ou mesmo veicular autores e autoras nunca publicados no Brasil. Contrariando um tanto a nossa aversão a bios, entendemos que, nesta edição, contextualizar cada escolha editorial é um processo pedagógico necessário.

Aliás, para que esta edição especial viesse à tona, contamos com a parceria do curso de Jornalismo da Universidade Positivo (UP). Mais de 50 estudantes de todos os períodos se envolveram, por quase dois meses, na pesquisa, produção e curadoria de conteúdo, desde a seleção de autores e autoras à captação de imagens e informações históricas. Também tivemos o aporte do nosso corpo de anunciantes e assinantes, que aderiu ao projeto, auxiliando em uma edição mais robusta e com uma tiragem três vezes maior que a nossa média. Em virtude do projeto especial e da redistribuição de conteúdo, as cartas dos leitores e as sessões Brazilliance e Enclave retornam em dezembro, assim como a prestação de contas. O ombudsman Nuno Rau fecha a presente edição, ao passo que nossas galhofas temáticas a abrem.

Boa leitura a todos. E boa Copa!

Nuno Rau: Quando o assunto é poesia & literatura não siga nenhuma regra. nem esta [bonus track: saudade dos aviões da panair?]

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


[…] e no entanto, o poema é um objeto que se afirma pela sua precisão, e tal precisão pressupõe regras. A rebeldia inerente a toda criação por certo se sente instada a contestar isso que soa como cárcere, limitação, bloqueio à livre expressão. Percebo agora que as linhas acima merecem uma explicação do que as teria motivado: a mensagem do escritor Igor Castanheira dos Santos, que, motivado pelo desejo de ajudar o jornal, oferece uma série de sugestões que, a despeito de não explicitarem sua motivação, imagino terem por objetivo melhorarem o periódico (o que implica, por óbvio – o que a leitura das sugestões confirma –, a percepção de fragilidades na proposta editorial do RelevO. A intenção é inegavelmente meritória, e o escritor, para que não pensemos que tirou da cartola como uma ninhada de coelhos tal conjunto de providências necessárias, elenca sua formação acadêmica, Ciências Econômicas e Marketing, o que, de saída, suscitaria outro debate, sobre a propriedade de tais formações em relação a uma política e uma prática editoriais no campo da literatura. Antes que se pense que este ombudsman advertiria o bem-intencionado escritor sobre a necessidade de formação específica em literatura ou edição para justificar seu direito a sugestões, esclareço que não, rigorosamente não. A literatura e sua edição se alimentam da diversidade de perspectivas, e qualquer “reserva de mercado” aqui seria um dano, uma limitação perigosa. As ciências da literatura, que nas universidades produzem dissertações e teses mais do que necessárias, ampliam o debate, aprofundam questões, dissecam seu objeto e expõem aspectos antes não observados, alimentam a crítica com novas possíveis abordagens, não precisam provar sua condição de existência; no entanto, se afirmasse que o exercício da criação (e considero aqui também a edição como um exercício de criação) tem como seu caminho incontornável o método científico e o trânsito pela produção acadêmica, essa afirmação seria um distanciamento da realidade. Se assim fosse, verificaríamos que a melhor produção literária viria, incontornavelmente, do mesmo lugar que teses e dissertações, o que está longe de ser uma realidade. Esclarecido este pequeno ponto, preciso, antes de prosseguir, confessar minha má vontade com o que chamam de “marketing”. A má vontade começa com a palavra em si, uma importação provavelmente desnecessária, como approach, asset, budget, coach, lead, trend e toda uma parafernália de palavras em inglês que só comprovam nossa rendição a um (não tão) novo colonizador (alguém atento poderá dizer: mas você aceitou a função de ombudsman, meu caro, veja bem: ombudsman…. É verdade, não tenho resposta para essa objeção, tenho e aceito minhas contradições). Não sei se vocês também sentem vontade de rir quando, numa reunião, alguém abre a boca e, quase sempre com um indisfarçável ar empolado, emite uma frase como “meu budget não prevê essas despesas”. Sempre me ocorrem pensamentos em torno da indigência cultural e da aceitação acrítica do que quer que venha, desnecessariamente, na língua do colonizador. O outro lado dessa má vontade tem a ver com a utilização majoritária do que chamam de marketing: ele tem por objetivo convencer as pessoas a adquirirem, quase sempre, o que não precisam com um dinheiro que não possuem. Seu intuito é fazer com que o Deus Mercado mantenha suas patas sobre a sociedade, e assim sigam existindo exploradores e explorados, os que possuem muito e os que nada possuem. Não, ninguém precisa me dizer que não vamos conseguir fazer a revolução. A contrarrevolução, na realidade, é a tendência mais forte, e a tal ponto que colonizou as consciências até no uso das palavras. É uma longa discussão que não caberia na cota máxima de cerca de 1500 palavras que me cabe no Jornal, e nem pretenderia esgotar.

Feitas as confissões necessárias, volto para o terreno da literatura e da edição, e da necessidade ou não de regras. O título deste mês envolve, na realidade, uma certa provocação, na medida em que o desdigo na primeira frase. A realidade é que falta um termo na equação que o título afirma: quando o assunto é poesia & literatura não siga nenhuma regra, se essa regra representar um consenso socialmente estabelecido. Não se faz arte com base em consensos socialmente estabelecidos. Um exemplo: quando os livros de Rubem Fonseca passaram a ser amplamente reconhecidos como potentes exemplares de uma certa literatura de matriz urbana, passaram a emergir centenas de emuladores e emuladoras da sua escrita, e, o que é pior ainda, a emulação se dava pela superfície, pela aparência, e nenhuma dessas pessoas seguiu o processo de depuração e crítica que o autor de A coleira do cão percorreu até chegar a uma estética precisa. Minha má vontade, nessas horas, também se manifesta, e a tal ponto que passei anos sem conseguir reler Rubem Fonseca, porque sempre me vinham à memória lembranças de seus imitadores. O mesmo com Leminski, um poeta cuja forma é replicada quase ao infinito. Pior destino tem Charles Bukowski, que tem sub-réplicas não só de sua escrita, mas também do drama que encenou em vida envolvendo álcool, sexo e literatura, só que extraído, precisamente, o drama: são apenas garotos de classe média, entediados com suas vidas limitantes e sem imaginação para desenvolver algo próprio (sem falar da misoginia geralmente associada a essa emulação).

Munido das melhores intenções – disso não tenho a menor dúvida –, Igor apresenta suas propostas que, a rigor, não são boas ou ruins em si mesmas, porque dependem de contexto, mas teve, a meu ver, a má sorte de começar com “invistam em textos mais curtos”. Preciso confessar outra má vontade: a apropriação de termos do campo dos negócios para conversas que nada têm a ver com isso me incomoda demais. Quando leio algo como “invistam em textos curtos”, fico pensando nos editores despejando expressivas quantias na aquisição de ações do tipo “textos curtos”, sem saber que a saturação dos mercados, no campo da literatura (e da arte em geral) pode provocar sua queda irreversível, cuja recuperação às vezes dura o tempo de uma geração. Fico imaginando alguém como João Ubaldo Ribeiro lendo uma frase assim, tendo ao fundo, em sua estante, Viva o povo brasileiro. Ou Jorge de Lima, redivivo, escutando que o poema curto é o grande lance, que ninguém lê mais do que 140 caracteres (e aqui nesse texto já vamos pela casa dos 6.300). Quantos caracteres tem Invenção de Orfeu? Pensando bem, talvez haja uma semelhança entre o mercado de ações e a literatura: quando uma grande quantidade de pessoas está indo numa direção, é sempre saudável mensurar a possibilidade de mudar de rumo, porque manadas não raro marcham sem uma percepção dos riscos, justamente porque seus membros acreditam que a maioria sempre está certa, além de ser mais confortável e menos trabalhoso seguir receitas. Enquanto ainda há quem pense que ninguém mais lê além de 140 caracteres, às vezes tudo que quero é ler um romance como Doutor Fausto, ou reler a Divina Comédia (ou Invenção de Orfeu, para não esquecer de Jorge). Quando uma parcela da produção em prosa “investe” em frases curtas, tudo que desejo é me perder na sintaxe de Saramago, em suas labirínticas sentenças que não encontram ponto final. Quando uma massa nada desprezível de textos apontam a experiência urbana na literatura e na poesia, há em mim uma sede de reencontrar Grande sertão: veredas, ou algum(a) novo(a) autor(a) que se debruce sobre a realidade e a linguagem dos rincões desse país continental. Rosa não era isento de regras, muito ao contrário, sua escrita seguia regras rígidas: mas eram suas regras, sua visada crítica sobre o real. Assim também Graciliano, e Clarice, e Hilda, e Rubem, e toda pessoa que quiser fazer arte, que quiser fazer com que as palavras dancem sob a aparente fixidez da tinta sobre o papel (ou dos pixels nas telas).

Na verdade, tudo faz crer que há sempre um mundo estranho lá fora, e esse mundo reclama representação e diálogo. Penso nisso ao ler as propostas de Bolívar Escobar, as exumações textuais de Gloria Evangelina Anzaldúa (que potência!), a síntese e a elisão em Ana Clara Viana, a apropriação dos lugares comuns da fala em contraste com o absurdo da realidade em Zeh Gustavo, a densíssima atmosfera rarefeita dos poemas de Verônica Ramalho (sim, só um oxímoro poderia sintetizar o impacto dessa pequena série). Penso também que os poemas de Natasha Sardzoska, a despeito do mérito da tradução, me trazem a ideia de que saber várias línguas não é garantia de produzir bons poemas e bons livros, porque, como impressão geral, achei os poemas banais, crivados de lugares comuns, à exceção de Testamento. Penso também em como é bom poder estar equivocado em meus juízos provisórios, e em como, não raras vezes, essa provisoriedade vai se instaurando em permanência. Penso em gostar da edição de setembro equilibrar poemas e prosa, e humor, e cultura (as colunas Enclave e Brazilliance mantendo o brilho). Penso, enfim, que os editores tateiam buscando seus caminhos, assim como escritores, e ombusdmans, acertam, erram, mas a beleza está na procura e na não aceitação de regras socialmente impostas.

Bonus track: não posso negar que me divirto de algum modo com a querela literária encenada nas cartas. O tom antigo na elaboração dessa pendenga literária encena um não sei quê de crítica ao próprio argumento da peça, e isso é o que mais me agrada, e diverte. A despeito disso, tenho emoções contraditórias a esse respeito: ao mesmo tempo que sinto um certo fastio em face de qualquer querela no campo literário, em geral produzidas por egos ululantes e bem maiores do que o espaço que os contém, sinto falta das querelas reais, de contendas estéticas em que o problema de nosso presente seja posto em xeque. O oposto da querela é a passada de pano, a ação em grupo de pressão embebida em farisaísmo, e aí o fastio se reveste de náusea. A querela ora em questão, a despeito das diatribes hilárias, não foi exatamente a um ponto, e talvez seja esse meu maior incômodo.

Som incidental: Jonathan Swift comparece na última página do RelevO como o mais jovem e ácido escritor do momento.

De um futuro analógico

Editorial extraído da edição de outubro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O nosso futuro será analógico.

Em virtude do caráter forjado na regularidade, o RelevO reforça com certa frequência a importância dos hábitos e de seu pacto com o real. Acreditamos nos rituais, nas repetições, nas buscas individuais por espaços que fujam da pressão e da volatilidade de ser contemporâneo. De fato, folhear papel parece tão… século 20, assim como todas as coisas que possuem dimensões táteis, como um sapato. E não parece muito sustentável (assim como os sapatos). Contudo, folhear papel é uma experiência real, mensurável.

Não somos o que se pode chamar de conservadores e não somos o que se chama de progressistas. Ao nosso modo, buscamos participar das discussões que mobilizam nosso cotidiano, em um cruzamento entre o novo e a tradição, entendendo o humor como uma força norteadora de nossa existência. Por apostarmos em novos autores e autoras, almejamos oferecer um recorte do que é produzido na atualidade, sem desconsiderar, por exemplo, uma tradução de Emily Dickinson que chega à nossa caixa de entrada. Não existe o novo sem uma interlocução com repertórios anteriores.

Entendemos que ser um jornal de papel e literatura em 2022 é promover um espaço de diversão (e alguma reflexão, vá lá) fora da tela. Somos pela produção de presença: o viés digital é apenas uma ferramenta de que fazemos uso moderado por conta de seu potencial de abrangência e distribuição. Nosso leitor ideal está procurando experiências off-line – também por isso nos solidarizamos com os leitores que não prosseguem com a assinatura por falta de tempo. De fato, deve ser frustrante investir 70 reais ao ano para uma leitura de aproximadamente uma hora e não conseguir ler no intervalo de 30 dias; é melhor gastar em outra coisa que produza presença – como uma pizza, mais ou menos nesse valor.

É possível argumentar que é melhor passar uma hora mensal nas redes sociais (sabemos que a média de vida que o brasileiro passará na internet é de 40 anos, com potencial de aumento de tempo), porque não se gasta. Mas aí temos uma diferença para um produto físico que custa 70 reais ao ano: em muitos casos, o produto nas redes é o próprio consumidor, imerso em uma rede alucinante de publicidade e recolhimento de dados. Assim, pela identificação dos hábitos (quem diria), o consumidor é avaliado pelas plataformas e o consumidor, então, compra ou vira audiência (que vira dinheiro). É a máxima recente: “se você não está pagando por isso, você não é o cliente – você é o produto”.

Acreditamos que o futuro será analógico não porque os cabos subterrâneos de internet serão cortados e voltaremos a usar lampião de querosene. Não somos luditas, muito menos saudosistas que acreditam que os egípcios de três mil anos atrás faziam intervenções dentárias melhores. Quando dizemos “nosso futuro”, nos referimos a uma parcela de pessoas que não aguentará mais a linearidade do consumo cultural e pagará para receber uma experiência em casa, longe de banners, pop-ups, comerciais indesejados, novos links, cookies, WhatsApp Web aberto, Craque Neto. E isso que nem estamos falando dos smartphones como intensificadores de ansiedade e depressão.

Um cínico de carteirinha pode apontar que o leitor de jornal de papel e de literatura que posta seu hábito analógico no Instagram é uma fraude. Pois nós não concordamos. Este nosso leitor ideal apenas está em busca de sua comunidade analógica, que pode desconhecer os benefícios (não é nossa função, mas agradecemos se houver) de simplesmente parar e ler algo aleatório – algo, sobretudo, tangível e não produtivo.

No RelevO, você recebe o que paga. Buscamos oferecer o que consideramos serem os mais interessantes textos contemporâneos. E nós pagamos aos colaboradores. Pouco, é verdade, mas em proporção infinitamente maior que a do Spotify para pagar aos músicos catalogados, por exemplo (com orçamento infinitamente menor). Outro fator que não desconsideramos é o simples aspecto egoísta de ter um produto de arte em mãos e poder fazer o que quiser com ele, como levar a uma cachoeira ou a um café, ou somente aproveitá-lo para forrar os copos diante da imediata mudança de casa.

Uma boa leitura a todos.

David Bowie: caos e transcendência

Extraído da edição 111 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

No set de The Man Who Fell to Earth (1976) — David James/Taschen.

É impossível não pensar em David Bowie: sensações após Moonage Daydream, um não documentário totalmente Bowiecêntrico.

Era noite de sexta-feira (16/09) quando cheguei ao Imax para assistir a Moonage Daydream (2022), documentário de Brett Morgen dedicado a David Bowie. Com descrição pretensiosa (“não é um documentário, mas uma odisseia, uma jornada etc.”), mentes cínicas poderiam torcer o nariz se diante deste mesmo nariz uma tela gigantesca não entregasse belas e raras cenas dos anos 1970 acompanhadas pelo remix de ‘Hallo Spaceboy‘ dos Pet Shop Boys em decibéis ensurdecedores.

A brincadeira era coisa séria.

Ao longo das pouco mais de duas horas seguintes, ouvimos, assistimos e acompanhamos Bowie – e tão somente ele. Sem talking heads (o recurso, não a banda… mas também sem a banda), sem informações, sem dados, sem capas, sem vendas, sem comitivas.

Não aprendemos absolutamente nada sobre qualquer disco, músico, gravação. Não escutamos qualquer anedota sobre um baixista de 1969, tampouco vemos algum vizinho octogenário descrever o pequeno David Jones. No máximo, descobrimos algo sobre o meio-irmão, Terry, e sobre a segunda esposa, Iman – sempre e tão somente a partir do próprio Bowie.

Ninguém fala, a não ser David Bowie (e alguns fãs, na década de 1970, à beira de um AVC por êxtase). Não se trata de um documentário informativo, malemal de um documentário. A execução conquistou o direito à pretensão: que odisseia fantástica; basta sentar-se e absorver.

Me obriguei a assistir outra vez, já na quarta-feira (21), lamentavelmente o penúltimo dia de exibição no Imax de Curitiba. Poderia reassistir outras tantas vezes com a mesma leveza. Dias depois, não consigo parar de ouvir a trilha sonora, relembrando cena por cena – outros amigos vivem a mesma situação.

Se a dimensão visual do filme oferecesse apenas uma tela preta, já valeria o ingresso. Algumas músicas de Bowie ganharam uma mixagem especial para o longa – outras simplesmente estão limpas e altas o suficiente –, e escutá-las no Imax foi uma experiência fantástica. É impressionante, no sentido mais puro e literal da palavra, como o áudio envolve e permite um contato renovado com o material.

  • Nunca havia realmente gostado de ‘The Jean Genie‘, ‘Aladdin Sane‘ e ‘Cracked Actor‘, por exemplo, na intensidade trazida por Moonage Daydream. Possibilitar essa revisão (e renovação) da experiência é encantador por si só.

Ademais, o trabalho de mixagem é primoroso ao trazer fluidez. Músicas diferentes, sons e falas se misturam em um só rio de imersão. A quem não assistiu no cinema, sugerimos com ênfase a experiência num sistema de som decente – nada de ver no notebook.

Por sua vez, as imagens intercalam entrevistas antigas, shows, clipes, filmes e bastidores de todos estes, além de nos mostrarem diversas referências abraçadas por Bowie ao longo da vida. Brett Morgen separou oito semanas para organizar o material que tinha em mãos; naturalmente, o processo levou dois anos – e um infarto. A família do músico inglês colaborou integralmente com o projeto.

Para um nerdalhaço em Bowieismo – que já tenha chegado ao nível de gravações descartadas e documentários perdidos –, talvez não haja tantos momentos inéditos, muito menos informações novas. O que absolutamente não é o ponto, tampouco a tentativa.

Primeiro, pagamos pelo recorte, isto é, a arte suprema é a colagem, não o papel colado. Segundo, pouco interessa quem trocou as cordas do baixo quebrado em 1981 ou se o artista almoçou bife com fritas antes de gravar um single na Tunísia. Informações estão disponíveis e catalogadas em décadas de material produzido sobre David Bowie: já há diversos livros e documentários cobrindo fatos, aspectos técnicos, curiosidades e a mera punhetagem.

O que Moonage Daydream oferece é uma leitura da cosmovisão de Bowie – e sua maturação – a partir da melhor experiência sensorial possível. Acompanhamos o artista, já calibrado pelo Budismo, trafegando pela Ásia (em especial as cenas noturnas, estonteantes); ouvimos esse indivíduo ao mesmo tempo tão exposto e impenetrável discorrer sem pressa sobre a vida. Testemunhamos suas referências e nos deliciamos com elas.

Então, choramos ou seguramos lágrimas (na chuva!) com o fim – de Bowie, do filme, da nossa própria existência. Ambicioso, experimental e conceitual sem abandonar o palatável, esse não documentário inclassificável é a cara de David Robert Jones.

Baú: Joaquim Ferreira dos Santos

Extraído da edição 111 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Uma das mais deliciosas conversas furadas de 1958 foi o boato de que a carne bovina consumida entre o Rio e Minas Gerais estava contaminada – não por bactérias assassinas como a da vaca louca, muito menos por algum vírus pré-aidético, pois definitivamente os tempos eram mais delicados. A carne dos açougues da época estaria contaminada por enormes porções de uma vacina de hormônios femininos. No panic, gritavam os mais liberais, mas qual!…

Generalizou-se entre os machos cariocas o medo horripilante, não de morrer como os que deglutiram hambúrgueres na Inglaterra nos anos 90, mas de que o até então pacato e viril cidadão, após ingerir um acém, um filé, subitamente adquirisse, ainda na mesa de refeição, alguma característica graciosa da identidade fêmea. Inspirado pelo fait-divers, o trio Paquito, Romeu Gentil e José Gomes compôs, com lançamento no final de 58 para a farra de 59, a marchinha Boi da cara preta, cantada por Jackson do Pandeiro e Almira:

“Coitado do Valdemar
Está dando o que falar
Comeu carne de boi falou fino
E deu pra se rebolar
Mas que azar.”

Já era sofisticado entre os bem-pensantes dizer que a música de carnaval estava em decadência. (…)

Joaquim Ferreira dos Santos, Feliz 1958 (Ed. Record, 1997).

Nuno Rau: Notas marginais ao texto de jack london, (ou Pasolini mais moderno que todos nós, procurando irmãos que não existem.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A verdade é que ainda estou em dúvida, e mais que isso: são, agora, mais de duas semanas em estado de suspensão. Perguntar aos editores sobre a verdade estragaria o tribunal íntimo a que me entreguei, não sem um certo prazer. A beleza está muitas vezes no caminho, na deriva, a chegada tem um quê de previsível, a concretude dos fatos pode ser aborrecida e os contornos diluídos abrem possibilidades de sentido – podem também retirar o chão. O fato: não tenho certeza se a seção de cartas está sendo utilizada como espaço de ficção. Não totalmente, porque isso seria sonegar a correspondência real, exercendo uma escrita ora crítica, ora onírica, ora autoelogiosa, algumas vezes vazada de humor, e não é essa a proposta do RelevO na seção “Cartas”. Talvez a dúvida tenha me bloqueado porque a estratégia me interessa muito como forma de questionar o estatuto do real, desabilitar certezas, inserir níveis de indeterminação no sistema – mas há indícios que apontam para a constatação de que aquelas cartas são verdadeiras: (i) o editorial, onde se busca explicar o óbvio (que justamente por ser óbvio nem sempre é percebido), (ii) a afirmação (ficcional) de que “é tudo real” na parte 4 da seção “Enfezadinhos”, e, por fim, (iii) a coexistência com cartas que são reais, foram de fato enviadas. Existe, claro, uma outra hipótese, que é de poetas/escritor_s usarem a seção de correspondência para exercitar um tipo de laboratório, criando tipos, propondo debates por meio dessas cartas-garrafas de náufrago.

De que cartas estou falando? Das cartas-não cartas, as que foram supostamente enviadas por potenciais colaboradores que tiveram seus textos recusados pelo jornal: Renata (ou Renato?) Duque, Feliciano Moreira, Ramiro Gregorin, Ronald Cabello, Alves Viana e Vanderley Gonçalves, reais, imaginários ou reais-imaginários, destilam sua amargura por não conseguirem (ainda, existe sempre um ainda nessa etapa) aceder ao status de autores publicados. Pondo de lado que meus planos consistiam em seguir conversando sobre alguns aspectos da poesia e da prosa contemporâneas, e falar disso a partir das ideias de Pasolini, o desvio que a dúvida causou pode ser útil para alguns aspectos da relação com a escrita. De saída, na hipótese de serem reais as manifestações, o texto de Jack London traduzido por Eder Capobianco tem tudo que aponta para o quão fora de foco elas estão, e de modo tão intenso que essas linhas poderiam ser apenas notas à margem de “Sobre a filosofia de vida do escritor” (p. 6 e 7 da edição de agosto). É curioso como London afirma a escrita como trabalho humano, propõe uma relação com a tradição que não imobilize ou esvazie seus resultados – como é o caso dos chatoboys neoparnasianos e seus sonetos insossos, inermes, inanimados –, e vincula, na medida exata, texto e experiência vital, sendo esta filtrada pelo pensamento. Ele é explícito: “Ao nascer eles [os que London considera talentosos, originais, os que possuem uma filosofia de trabalho] devem ter sido muito semelhantes a todos os bebês, mas de alguma forma, do mundo e de suas tradições eles adquiriram algo que seus companheiros não adquiriram. E isso não era nem mais nem menos do que algo a dizer. Agora você, jovem escritor, tem algo a dizer, ou apenas pensa que tem algo a dizer? Se você tem, não há nada que impeça que você o diga.” Essa última afirmação me faz lembrar de Antônio Abujamra quando disparava a seguinte fala para seus entrevistados no programa “Provocações” “Agora use sua liberdade, a que talvez você nunca tenha tido e que gostaria de ter por um momento, e fale para aquela câmera tudo que você gostaria de dizer”. O efeito da pergunta era, quase invariavelmente, curioso: as pessoas ou travavam ou diziam banalidades – a liberdade de dizer assusta, e na escrita não é muito diferente.

O que London afirma, no entanto, leva a pensar sobre o porquê da escrita. Em certa medida – e acho que já falei sobre isso em alguma edição –, é um ato solitário, mas apesar de existir a outra dimensão, coletiva, social, e apesar de que o ato de publicar seja de fato importante, imprescindível – porque tornar público um texto cria o potencial do diálogo e da crítica –, se quem escreve tem uma relação de dependência quase sôfrega com a publicização do que produz, algo está no lugar errado. Minha premissa é a seguinte: todos devemos escrever indiferentes à recepção, seja de editoras, de revistas, jornais, leitor_s etc. Não se deve buscar alimento nessas relações, elas são o depois da escrita, e podem vir ou não, inclusive de modo desvinculado da qualidade e significado da produção (claro que aqui tangenciamos um terreno complexo, pantanoso e impossível de esgotar no espaço de uma coluna – a definição do que seja qualidade num poema, conto, romance). Há casos bastante emblemáticos e conhecidos em que elas não vieram, ou não vieram com a proporção merecida (Emily Dickinson e Fernando Pessoa, por exemplo), porque ao fim e ao cabo é tudo muito aleatório: premissas de editores, comissões editoriais, júris de concursos, todos que viabilizam a publicação e veiculação do que quer que seja escrito. São tramas complexas, e, nesse campo, ancorar nosso trabalho a expectativas é desviar o foco do mais importante: escrever apesar de, apesar de, apesar de.

Não raras vezes alguém atravessou esse assunto num poema; é o caso de Pasolini, que afirma a potência da escrita em “Eu sou uma força do Passado”, escrito em 1964, aqui em tradução de Régis Bonvicino: “Eu sou uma força do Passado/ Somente na tradição está o meu amor/ Venho das ruínas, das igrejas/ dos retábulos, das aldeias/ abandonadas dos Apeninos ou Pré-Alpes/ onde habitavam os irmãos/ Vago pela Tuscolana como um louco,/ pela Ápia como um cão sem dono./ Vejo os crepúsculos, as manhãs/ de Roma, da Ciociaria, do mundo,/ como os primeiros atos da Pós-História,/ que testemunho, por conta da idade,/ da borda extrema de qualquer época/ sepulta. As vísceras de uma mulher morta/ pariram um ser Monstruoso./ E eu, feto adulto, vagueio/ mais moderno que todos os demais/ a procurar irmãos, que não existem mais”. O poema é carregado de significados complexos, ancorados na História, além de ser composto por muitas camadas. Ser uma força do passado, por exemplo, significa para ele “perceber a parte mais vital de nossa memória, morada de nossas memórias e conflitos”. E compreender o passado é essencial, porque não tê-lo entendido implica em revivê-lo como farsa: “viver o passado em forma de pedra significa remover a parte vital”, segundo o próprio Pier Paolo.

O principal aqui, penso, é perceber que o poema é um modo de estar no mundo, de esgrimir com a História, de enfrentar as contradições, inclusive as nossas – e sob essa ótica o chororô de ser ou não publicado parece vir de quem foi criado a leite com pera e ovomaltine na bandeja. Existe algo mais afastado da poesia, da literatura, da arte? Claro que há: os fascismos, por exemplo. No entanto, deixar de sentir-se o centro do mundo e aproveitar o tempo em trabalhos não contraproducentes como indignar-se por ser recusado me parece mais sintonizado com o que Jack London prescreve. Não custa lembrar também que a longo prazo estaremos todos mortos. Colocar a morte em perspectiva costuma ser um bom exercício para diluir essas veleidades. Outra coisa produtiva é a raiva, bem dirigida, contida em margens de ferro e transmutada em esforço de produção, escrever é trabalho humano que sempre permite ser aprimorado, ajustado. Resumindo ao máximo: é preciso parar de lero-lero e ir à luta.

Mas ainda não falei quase nada sobre o RelevO de agosto… Invertendo o pêndulo de edições anteriores, apenas dois textos em prosa estão presentes: um trecho de “Metamorfoses do Sr. Ovídio”, de Julia Raiz, e “mas que inferno”, de Mariana Soeiro. Contos curtos e pedaços de romances ou novelas não deixam entrever, exatamente, o potencial de um autor, uma autora, trazem sinais desse potencial, e o maior deles é nossa curiosidade por ler mais – o que os dois textos provocaram em mim. A poesia ocupou, também proporcionalmente, mais espaço. As traduções de Piotr Kilanowski para poemas de Halyna Petrosaniak, Vasyl Stus e Serhij Zhadan se ocupam do problema da guerra e suas consequências nos indivíduos, e as boas surpresas que foram os poemas “9 tempos para entrar no mar”, de Raquel Zepka, e “Monocultura”, de Fernanda Lira, panorama que é completado pela tradução feita por Laura Assis do poema “A casa”, da poeta queniana Warsan Shire. Todos os poemas deslocam perspectivas, cada um a seu modo, afirmam um olhar diferente sobre a parte da realidade que trazem à superfície – e este é um traço da poesia que diz ao que veio. No mais, continuo curtindo as colunas Enclave e Brazilliance, sem deixar de lembrar que poesia e ficção são o que fazem de RelevO um jornal sempre esperado por leitor_s (menos pelos recusados indignados).

Pós-escrito: para que todo o acima escrito não ganhe ar de encenação, preciso dizer que antes de escrever os dois últimos parágrafos não aguentei a curiosidade e perguntei ao editor se as cartas eram reais. Não sem algum espanto (porque havia a esperança do contrário) recebi a confirmação: as manifestações indignadas de autores recusados – sim, ao que parece todos do gênero masculino – são absolutamente reais.

12 + 1: o que nunca fizemos

Editorial extraído da edição de setembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Cento e sessenta edições.

O RelevO completa 12 anos e chega a um número redondo de circulação, quase como um acaso beneficente: 12 anos de circulação ininterrupta e mais de 5 mil assinantes diferentes (hoje, somos pouco mais de 1050 assinantes regulares). Embora tenhamos feito um pouco de tudo ao longo desse período, seguimos virgens em algumas atitudes. Por exemplo, nunca fizemos:

  1. Acordo com escritor em troca de assinatura ou privilégio editorial.
  2. Acordo com editora em troca de resenha ou espaço preferencial.
  3. Concessões humorísticas por conta de assinantes que cancelaram assinaturas em função do nosso humor. Jamais deixamos de publicar textos considerados impróprios para uma parcela de nossos assinantes e anunciantes. Também nunca…
  4. Servimos de palanque político-partidário para qualquer figura naturalmente transitória.
  5. Alegamos que somos a salvação da literatura brasileira ou o maior jornal de literatura do Brasil.
  6. Agredimos idosos na FLIP.
  7. Escondemos nossas dificuldades, pontos cegos ou limitações.
  8. Deixamos de apresentar nossas melhorias, aprimoramentos e evoluções logísticas.
  9. Mimamos o artista/escritor/poeta, tratando-o como sujeito sagrado e removido da sociedade. [Sempre respeitamos quem tem contas a pagar – e torcemos o nariz para quem não tem.]
  10. Deixamos de publicar ofensas, críticas agressivas, reações exacerbadas, violências originais e todo tipo de insulto de que, muitas vezes, fomos merecedores ou que simplesmente nos entreteram muito.

Por fim, também (11) nunca deixamos de, em alguma medida, nos divertir. Parece besteira, mas é o vício inerente capaz de nos manter operacionais. Acreditamos na leveza e, seguindo a lógica habitual, o desafio para os próximos 12 anos é existir. Que venha o 13.

Uma boa leitura a todos!

Arte sem artista, imaginação praticada

Extraído da edição 110 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

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Essa é uma pintura de Edward Hopper no Rio de Janeiro, embora Hopper (provavelmente) nunca o tenha visitado, muito menos retratado. Para criá-la, precisei digitar uma frase e clicar em um botão.

Empolgado, fiz Hopper ir a Tóquio e recriar seu ‘Nighthawks’ lá. Por fim, ele precisou reproduzir a obra em uma estação espacial.

 

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Aí a coisa começou a ficar séria. Subitamente, me senti movido por aquela inquietação primal diante da infinidade de escolhas. Havia um universo de possibilidades à minha frente, à minha disposição. Bastava eu brincar.

E se Canaletto pintasse Hong Kong? E se também pintasse o Rio de Janeiro?

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E se Francisco de Goya retratasse uma casa de ópio?

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A partir daí, misturei diversos temas que já passaram por este enclave (“E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?!”, Nelson Rodrigues).

Obriguei Umberto Boccioni a retratar uma partida de futebol; e Pieter Jansz Saenredam, o Maracanã. Fiz os astecas derrotarem os conquistadores espanhóis com um auxílio cyberpunk; depois, fiz Picasso estar lá para imortalizar o momento. Então, vi a gloriosa Tenochtitlán ser invadida pelas criaturas alienígenas de Guerra dos Mundos.

Eu poderia passar horas nisso sem piscar. Caravaggio recriando Blade Runner; Syd Mead desenhando um Honda Civic 2000; Arnold Böcklin retratando o ritual de Eyes Wide Shut; a Xangai futurista de Hieronymus Bosch; Pieter Bruegel pintando a colonização de Marte.

Bruegel e a colonização de Marte <beta.dreamstudio.ai>

A partir do DreamStudio, como outras ferramentas já fazem (DALL-E 2, a mais famosa delas), eu estava concretizando sonhos, devaneios, fantasias e demais ocupações lúdicas da mente – sem dispor de nenhuma técnica para tal. A inteligência artificial, nesse estado tão desenvolvido quanto acessível (de graça), já é capaz de produzir arte sem o artista. Que troca fabulosa!

Claro, podemos estender uma discussão semântica para o conceito de “artista”: serão os programadores? Seremos nós, meros usuários? Porém, não vamos estender essa discussão (não hoje). Afinal, diante de ferramentas como o DreamStudio, a própria função [artista] se torna dessacralizada – sem abandonar a beleza da criação [arte] em si.

E aí, quem sabe, isso nos trará algum tipo de crise existencial (não será a primeira; não será a única). Quem sabe banalizaremos qualquer elemento belo gerado sem nenhum esforço. Quem sabe isso não será problema, diante da breguice em escala industrial. Vale lembrar que estamos em um planeta cheio de bonecos funko pop – e que eles custam caro.

Enquanto isso não acontece, vale deliciar-se com a novidade de terceirizar a execução da própria imaginação. Em algum momento, é inevitável que a mesma brincadeira não se aplique à música, se é que isso já não existe.

Isto é, em uma mera página do navegador – carregando uma infraestrutura inimaginável há 20 anos –, que eu possa solicitar e gerar um álbum colaborativo entre Tom Jobim e David Bowie com um clique, pedir a música X com o arranjo de Y ou consiga produzir faixas drum & bass do Geraldo Vandré.

O texto é uma mídia mais acessível: o gerador de pós-modernismo, por exemplo, data de 1996 (!). Da mesma forma – mas com um funcionamento mais complexo –, hoje alguns chatbots até conseguem sustentar uma conversa (às vezes, às vezes).

Quem sabe um dia, com ainda mais processamento, dados etc., eu não consiga gerar um longa-metragem (“O Homem que Copiava by Stanley Kubrick”), e até lá a noção de artista, autoria e atribuição já tenha se diluído de tal forma a nos aperfeiçoarmos nos verdadeiros desafios imutáveis da sociedade, como inserir anúncios na Lua e impedir os sem-teto de dormir confortavelmente.

Já vivemos num mundo onde a Magalu quer ser sua melhor amiga e um rapper virtual assina um contrato, depois é demitido por negligência racial (FNMeka: seu TikTok, cujo apelo me foge, já tem 10 milhões de seguidores). A inteligência artificial também já pode corrigir sotaques – atenção às aspas, mesmo sem aspas – para call centers e identificar você, seus amigos, sua família em fotografias pessoais.

Por ora, a Enclave segue apaixonada por qualquer ferramenta que lhe proporcione inserir o ‘Caminhante sobre o mar de névoa’ em Júpiter.

<beta.dreamstudio.ai>

Baú: Elias Thomé Saliba

Extraído da edição 110 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Bem mais recentemente, nas áreas conexas da neurociência cognitiva e alavancadas por sofisticados sistemas de informática, inúmeras pesquisas vêm mostrando que o humor é um mecanismo de enfrentamento psicológico, um estratagema que o cérebro humano usa para a resolução de conflitos: nem sempre este conflito aparece na forma de uma piada, pelo contrário, ele é inerente à vida humana na sua totalidade. Neste sentido, como veremos mais adiante ao analisarmos as teorias do humor, as inúmeras pesquisas da neurociência parecem corroborar a noção de incongruência – uma das teorias humorísticas mais utilizadas por todos os analistas, apesar da sua notável imprecisão. Elas sustentam que o humor revela a enorme complexidade do cérebro humano: se o cérebro fosse um governo, não seria uma ditadura, uma monarquia ou mesmo uma democracia – seria mais semelhante a uma anarquia: partes conectadas a outras partes que, por sua vez, são conectadas a outras e que, em nenhum lugar no sistema, existe uma autoridade central que decide o que dizer ou fazer. Essa situação gera alguns benefícios, como nos permitir resolver problemas e, até mesmo, raciocinar sobre várias coisas. Mas, em alguns momentos, isto provoca conflitos como, por exemplo, quando tentamos lidar com duas ou mais ideias inconsistentes ao mesmo tempo. Quando isso ocorre, o cérebro conhece apenas uma resposta: o riso. Noutras palavras, o cérebro lida bem com ideias que são conflitantes e usa estas situações para alcançar pensamentos e soluções mais complexas. Esse processo pode ser prazeroso, gerando o humor.
Elias Thomé Saliba, História cultural do humor: balanço provisório e perspectivas de pesquisas (Revista de História, USP, 2017)

Nuno Rau: A aura romântica que paira, impávida, e brilha no céu da pátria em raios fúlgidos, (ou: o conformismo nosso de cada dia.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em Signos em rotação, Octavio Paz começa um ensaio com a seguinte questão: “Começarei por uma confissão – estou certo da existência de alguns poemas escritos nos últimos anos por alguns poetas latino-americanos, mas não o estou da existência da poesia latino-americana.” Sob os efeitos de uma inquietação semelhante, não me soa despropositado dizer que não estou certo da existência de uma poesia brasileira contemporânea, inquietação de fundo – percebo agora depois de alguns meses procurando desempenhar de modo ao menos aceitável a função provisória de ombudsman do jornal RelevO – que atravessa a quase totalidade dos textos elaborados entre março e julho deste ano (e estendo essa quase angústia à prosa de ficção). Tomando o jornal como registro de um dado recorte dessa produção, a questão parece se justificar plenamente; para começar a refletir sobre o problema, confrontemos o conteúdo do editorial de julho com a carta de Ademir Demarchi do mesmo mês. O primeiro nos informa que são recebidos quase 400 textos por mês, o que gera, em razão do espaço disponível (em razão dos custos de impressão, são 24 páginas), uma recusa de 98% do material enviado. Se como termômetro tomarmos também a edição do mês passado, na qual nenhum/a poeta brasileiro/a foi publicado/a, ficamos diante da pergunta: a poesia remetida foi de fato tão inferior à prosa?

Antes de tentar aprofundar a questão, penso que cabe alguma conversa sobre os textos em prosa publicados, ainda diante da exposição pragmática do editorial, com seus 98% de recusas, mas diante, também, da nossa circunstância – e quero dizer com isso: da história, de nossa condição incontornável de animais políticos. Não, não estou estreitando os parâmetros de juízo para privilegiar uma produção que tem por tema explícito as questões especificamente políticas de nosso tempo, que são muitas e candentes; não desejo que todo mundo escreva romances como Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Os que bebem como cães, de Francisco de Assis Brasil, ou contos como A morte de D.J. em Paris, de Roberto Drummond, e Você vai voltar pra mim e outros contos, de Bernardo Kucinski. A investigação do aspecto trágico de nossa condição como animais políticos está presente nos contos de Dalton Trevisan, quase sempre debruçados sobre a micropolítica dos afetos, em Nelson Rodrigues e em Cassandra Rios, para não me estender em exemplos. “Primavera ao sol”, de Luis Felipe Mendes dos Santos, não aproveita a concisão necessária ao conto para jogar com possíveis tensões da situação nele desenhada, conformando-se ao pitoresco e ao inusitado; esse lado inusitado é explorado por Fernanda Mellvee n“O amante fantasma”, que também – em meu modo de ver, claro – tem diante de si a oportunidade criada pela trama insólita (ainda que já explorada, por exemplo, em Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado), mas não transita nas possibilidades de exposição mais caricata das fraturas expostas da relação conjugal em sua face micropolítica (impossível não pensar em Madame Bovary, em que Flaubert delineia esse jogo, milimetricamente). A surpresa, para mim, se resumiu ao fragmento do romance Na contramão, Curitiba, de D. K. Montoya, com suas descrições obsessivas, como se tentasse extrair dos detalhes aparentemente insignificantes e banalíssimos a possibilidade de um sentido, numa articulação entre forma e conteúdo que é o cerne da literatura. Não sei se é essa a proposta do romance, mas até para poder comprovar ou não essa intuição, me senti capturado pela vontade de lê-lo. O texto do italiano Alberto Arecchi sobre Opicino de Canistris, apesar de estar entre meus interesses pelo tema (o tempo e o lugar em que a acumulação primitiva do capital foi, talvez, mais interessante – a Itália entre o fim da Idade Média e o Renascimento), não entra nesse argumento por não se tratar de autor brasileiro.

Retornemos, então, à poesia, que na edição passada esteve representada pelas traduções que Piotr Kilanowski trouxe de Jacek Podciadlo, poeta polonês contemporâneo, Irina Ratuchínskaia, porta russa nascida na atual Ucrânia, e Vasyl Symonenko, poeta ucraniano, com três poemas políticos que abordam a impossibilidade de ação diante da experiência totalitária e da guerra (tema candente, no momento em que duas nações imperialistas não vindas do projeto Escamandro, da poeta indiana Tishani Doshi, em que também estão imbricadas questões políticas no campo ampliado. Poesia brasileira contemporânea? territorialistas fazem a Ucrânia de marisco, entre a onda e a pedra); também as traduções, Nada. Aqui chegamos à (des) carta de Ademir Demarchi: “Por falar em poema, esse é um aspecto do jornal que o aproxima do Almanaque do Biotônico, assim como do próprio xarope, com esses textos choramingados e sentimentalóides (‘gotas caem como chuva’, ‘ir garimpar estrumes de vazio’, ‘dói, mas estamos juntos regando plantinhas’, ‘regar as plantas dos pés’, ‘quem é mau, ama com maldade’, ‘o céu é cheio de imortalidades… a língua é sempre doce’, ‘e todas as noites têm lua e todas as noites têm cigarras’), todos textos que o tom marcante de kitsch a esse nano-nanico curitibano chegado a colunas dóricas.” Se tomarmos exclusivamente os trechos apontados, chegaremos à conclusão de que a poesia anda tangenciando a banalidade com roupas de metáfora prêt-à-porter.

Voltemos ao texto de Octavio Paz para investigar suas conclusões. Depois de pôr de lado a poesia brasileira, por sua especificidade em relação à produzida no restante do continente, Paz conclui que a poesia precisa estar conectada a certa continuidade histórica: “Mas história e poesia se cruzam e às vezes coincidem. É indubitável que de Bolívar a Zapata e de Zapata a Fidel Castro – um aristocrata, um camponês e um revolucionário de classe média – há uma certa continuidade, não nas ideias mas nos propósitos profundos e talvez inconscientes. O que alguns chamam de ‘lógica da história’ e outros de ‘destino’. Um poeta latino-americano não pode ser insensível a essa continuidade, encontrar a palavra de origem e fundar uma sociedade não são, no essencial, tarefas contraditórias, mas complementares. Quando a história e a poesia rimam, essa coincidência se chama, por exemplo, Whitman; quando há discórdia entre uma e outra, a dissonância se chama Baudelaire.”

Postos os termos do problema, é importante chamar atenção para a incompreensão de Paz sobre Baudelaire, que também não havia encontrado até então muita compreensão por parte dos críticos de esquerda, amarrados à leitura de seus poemas como expressões da arte pela arte, cuja exceção seria tão somente Walter Benjamin. Mesmo Brecht teria incidido nessa difração da leitura, quando disse: “Baudelaire é a punhalada final nas costas de Blanqui. A derrota de Blanqui é sua vitória de Pirro.” É Dolf Oehler quem demonstra, décadas depois, como o poeta cifra sua escrita como “testemunha de acusação do processo que o proletariado move à classe burguesa”, como apontado por Benjamin, indicando um dos possíveis caminhos que podem ser trilhados com as devidas vênias do presente, suas complexidades e contradições específicas – sem deixar de considerar que, em parte, o século 19 não acabou, o que também se percebe por outra vertente da produção atual, que emula Baudelaire em sua forma (alguns com extenso domínio), sem apropriar sua subversão no jogo dos sentidos, sua maravilhosa traição de classe. Se tais poetas estão em um polo, no outro gravita o grupo de quem aposta na pura expressão, sem qualquer consciência dos debates que atravessam a poesia ao longo das décadas, estabelecendo em sua produção uma posição crítica, como fizeram poetas que marcaram território, como Drummond, Murilo, Cabral, Ana C., Waly, Secchin, Geraldo Carneiro e tant_s outr_s. É de Antonio Carlos Secchin, por sinal, uma das mais precisas observações que já li sobre a relação com a tradição, que não pode significar aprisionamento: “Há muitos modos de aprisionar o transbordamento do mundo, não queiramos que a poesia seja mais um. Ela deve ser a palavra vigorosa, diante de todo arbítrio classificatório, a voz que não se pode perceber senão nas margens. Por isso a poesia representa a fulguração da desordem, o mau caminho do bom senso, o sangramento inestancável do corpo da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum.”

Novamente este ombudsman recorre a seus estratagemas para se queixar de não haver nenhum poema de poeta brasileir_ contemporâne_ (na edição de junho apareceu um, ao menos), por mais que ache importante haver textos de humor, embora o Mapa baixo astral não siga os passos de edições anteriores, por uma enorme e importante ressalva: o texto escorrega em estereótipos de certo universo masculino que não estão alinhados com um pensamento que se considere crítico. Uma boa referência é a série “Viver do riso”, dirigida por Ingrid Guimarães, que mostra como o humor vem acompanhando as (necessárias) mudanças políticas do mundo (link para um episódio: bityli.com/uNQeoj). Sigo curtindo a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance, mas outra vez chamo aos editores a atenção de que poesia e ficção potentes, distantes da diluição, devem manter espaço nas páginas de RelevO.

“Hoje pavão, amanhã espanador”

Editorial extraído da edição de agosto de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Um impresso de literatura vive de pequenas conquistas não simbólicas. Por exemplo, a gráfica. Pagar a gráfica não é alegórico. Não temos como permutar a gráfica ou convencê-los de que os preços subiram e “esse mês tem como pendurar?”. O mesmo vale para todos os nossos insumos: itens de papelaria, envelopes, combustível, manutenção do carro do jornal — o prestidigitado RelevOMóvel. Estar em dia, para nós, equivale a continuar em circulação. Portanto, é um sintoma de nossos acertos.

Nesse cotidiano em que a logística é muito importante – e, certamente, o coração operacional do Jornal –, às vezes deixamos certos vácuos editoriais sem solução (ou apenas com sistemas de continuidade duvidosos). Como já relatamos em editoriais recentes, sempre tivemos muita dificuldade de estar em dia com as leituras dos textos encaminhados para avaliação ao nosso Conselho Editorial. A situação já foi tão desesperadora que chegamos a ter dois mil textos não lidos. Na pandemia, o drama se acentuou.

Pois bem: em julho, conseguimos, enfim, zerar a caixa de entrada, ou ao menos encaixá-lo no que a nossa própria política de publicação alega ser o ideal: “Tentamos, mas não conseguimos acusar recebimento. Se você não receber retorno em 60 dias, não utilizamos o material. Se o aprovarmos depois deste prazo – estamos em constante atraso –, evidentemente entraremos em contato. Textos selecionados têm sua aprovação comunicada antes do fechamento da edição”. Em suma, os textos não lidos (menos de 40) agora se encontram na margem de retorno.

Além das leituras, retornamos individualmente para cada autor ou autora não selecionada. Reforçamos que o material não será utilizado pelo nosso Conselho Editorial e que isso não significa, de modo algum, que o trabalho não tem potencial literário: apenas não se encaixa na linha editorial das próximas edições. “Fique à vontade para submeter outros materiais quando quiser” foi o tom que buscamos apresentar, entendendo que estamos em um circuito interligado, o dito meio literário. [Nós mesmos publicamos textos que hoje não publicaríamos apenas porque… mudamos, como tudo na natureza.]

O RelevO não é um periódico de um banco ou de um órgão público. Nossa equipe é enxuta, regular e preza por transparência (talvez até com um certo grau obsessivo). Assim como trazemos a público a satisfação de, depois de mais de três anos, estar com a caixa de entrada em um nível decente, também dividimos os melhores-piores retornos dos recusados, curiosamente todos homens. Você pode conferir tudo na nossa seção de cartas, em que apenas mudamos os nomes dos autores porque é justamente dessa união entre ego frágil e tempo livre que nascem alguns processos.

Reiteramos aquilo que consta nas nossas orientações há anos: “Tentamos, mas não conseguimos acusar recebimento. Se você não receber retorno em 60 dias, não utilizamos o material. Se o aprovarmos depois deste prazo – estamos em constante atraso –, evidentemente entraremos em contato. Textos selecionados têm sua aprovação comunicada antes do fechamento da edição. Uma recusa absolutamente não impede novas tentativas. Não tome a avaliação como pessoal. Se você não tem preparo emocional para receber um não – todos nós já recebemos vários –, por favor, não nos envie seu trabalho”. Também sabemos há muito tempo que autointitulados não leem edital algum.

Nada do que recebemos como retorno negativo nos surpreendeu. Sabemos que uma parcela significante do meio literário sofre de egoesclerose ou da mera dificuldade de compreender que qualquer veículo toma decisões não inclusivas. Ao mesmo tempo, a imensa maioria dos temporariamente recusados foi gentil, cortês e estreitou vínculos conosco. Dentro da nossa miudeza de projeto e do nosso lastro de quase 12 anos de publicação, não somos nada mais do que atravessadores, que tomam emprestado textos que julgamos bons.

Tudo nesse mundo é emprestado, como relembra a canção.

Boa leitura a todos.