Amanda Vital: Ombudswoman: que reajam os mercados!

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Car_s leitor_s, é com uma confusão enorme e um cagaço maior ainda que dou início a esse cargo gostoso e mui belicoso do RelevO, o de ombudsman – no caso, ombudswoman (ou, se preferirem, palpiteira, pitaqueira, enxerida, “a mocinha ali”), por causa de uma pira do Nuno Rau de ter recomendado meu nome aos editores para a sucessão do cargo, que é rotativo. Ainda não sei o que deu na cabeça dele, mas vou tentar dar início a esse novo bom ciclo junto de vocês pelos próximos meses. Aproveito para agradecer imensamente a ele [Nuno] e aos editores deste espaço tão querido por nós, apesar de já ter deixado pagos uns cafés com pastéis de nata aqui no café local, a mais de 7 mil quilômetros de distância deles. E eles estão sabendo só agora. Mas vale o que vale, que esse tipo de coisa a gente não oferece a qualquer um.

Esse início é também muito simbólico politicamente falando: escrevo no primeiro número do Jornal desse ano de Lula, com uma nova e boa era se abrindo e o fogo da esperança aceso novamente, depois de um furacão perto de destruidor, no mínimo. Vivemos um período de alívio depois desses últimos quatro anos complicadíssimos com um fascista da qualidade de Bolsonaro no governo. É uma alegria, depois disso tudo, dizer que nosso presidente é Lula de novo. Mas muito se tem falado sobre o mercado reagir mal a isso, e a galera do neoliberalismo (que super funciona, confia) está alvoroçada com a ameaça do país em reduzir as desigualdades sociais, ter pobre almoçando e jantando de novo, essas frivolidades que ninguém quer saber. Olha, convido esses a rezar para os pneus a ver se o mercado ressuscita na forma de Jesus na goiabeira e abençoa a bolsa de vocês, capitalista como ele era. Por aqui, seguimos relativamente tranquilos. Mancando, porque uma pessoa vai comprar pão e tropeça em cinco pedindo intervenção militar, oito pedindo intervenção federal, três pedindo intervenção alienígena, uma Cássia Kis, dois lendo fake news num microfone abafado de acústica horrorosa e tosca… mas mancamos tranquilos. Relativamente.

E por acaso, em uma segunda boa sorte, me calhou uma edição bastante interessante para dissertar sobre, então vai ser meio difícil ser malvadona logo de cara (e o RelevO em si deixa a gente numa posição difícil de shibari, há sempre aquele traço de qualidade no que é publicado por cá). Começando pela capa excelente, uma espécie de Abaporu contemporânea construída com camadas de ícones. Alguns lembram ícones de programas de PC e de celular, por exemplo, de wi-fi, meteorologia… A arte na contracapa faz uma mistura d’O Grito de Van Gogh com o Desespero ou Autorretrato de Coubert, também numa versão contemporânea cheia de formas, curvas, preto no branco, em releituras e reconfigurações frescas e geniais. Tudo dialoga com muito do conteúdo igualmente fresco do número, que abre com biografias tinderescas encontradas no webnamoroverso, angariadas pelo Yuri Araújo, que fez uma curadoria de primeira. Até dá uma pontinha de saudade da juventude orkuteira, igualmente galanteadora e amostradinha, com aquelas biografias manhosas: “Naõ soou peerfeeita, neiim doona da veerdadee. Maaiis, soouu doona dee miim <3, doona dass miinhas voontaadees”. Ah, não faz essa cara, vai! A sua sobrinha usava uma igualzinha a essa!

E por falar em cortejo, a linguiça (blumenau) do Dédallo Neves é uma delícia. Excelente crônica curta, simples e boa, que retrata uma simples linguicinha como um guilty pleasure do narrador – e que acaba sendo nosso guilty pleasure também durante a leitura. O mix de nojo e desejo funcionou muito bem, em doses bem medidas, nada em excesso (nada contra os excessos, aliás), com o equilíbrio do jogo entre culpa e prazer, descrições de objetos e de sensações muito boas e originais. Ainda nos prazeres gastronômicos, o número conta com uma ótima matéria sobre o “chef” Michel Lämb – o requisitado que ninguém requisitou – e fiquei curiosa para saber se Michel é inspiração para alguém existente, dessas mentes mirabolantes da cozinha minimalista e meio nojenta. Não resisto a uma boa tirada de onda dessas gourmetizações, enquanto moradora de um concelho em gentrificação constante, que tem abandonado os prédios centenários onde funcionavam cafés e tasquinhas e, agora, desmontam tudo, pintam a fachada de turquesa e adicionam logotipos de acrílico desenhados no Canva para seus restaurantes mexicanos e japoneses (de empresários que são tudo menos mexicanos e japoneses, nem sabem nada de coisa alguma), lojinhas de presentes inúteis e superfaturados ou espaços de coworking que cobram metade do seu rendimento mensal para uma semana de poltronas ovais, lustres coloridos, mesas de sinuca e cactos.

De volta à literatura – por amor da santa – , o poema da Ana Vilalta também me ganhou um bom bocado. O diálogo com Margaret Atwood é um bom exemplo de como o ritmo na poesia (da pontuação ou falta dela, das estruturas de frase/fala e das quebras de verso) é o diferencial entre prosa e poesia em uma linguagem mais discursiva usada nos dias de hoje. Não concordo com as críticas dos meus queridos colegas de que a poesia desce em qualidade quando cruzada com a prosa. Poesia discursiva, descritiva, em diálogos informais e feita em uma linguagem e um contexto atrelados ao cotidiano, “pé no chão”, pode, sim, ser excelente e um espanto de autenticidade e de novo. Pode, sim, conter as ferramentas ditas “essenciais” da poesia – não só ritmo, mas melodia, conteúdo, beleza, dança (Nuno foi quem me ensinou que não existem formas fixas, as palavras dançam). E pode emocionar, espantar, ter o que falar sobre. É que os semideuses se esquecem de que vivemos em um mundo coletivo e transversal. E gente falando da própria vivência – e da vivência dos seus – na literatura. E, ainda, gente falando de estupro, de sexualidade (ou assexualidade), da falta de comida no prato, da seca, da bebedeira, da bipolaridade, da pedofilia, da falta de políticas públicas… A louvação do belo e o esculpir da palavra são coisas muito bonitas, é inegável. Mas as outras possibilidades não podem ficar no ar ou se esconder dos críticos empoeirados de casacos de cabedal. Até porque, ao mesmo tempo, o poema do Eleazar tem uma proposta diferente e também é excelente, e justamente nele, o que me chama atenção é algo diferente: o jogo de sons bem feito (poema bom para se ler em voz alta, se fortalecendo na oralidade), de rimas (escura/rua, segundo/fecundo, reaparece/prece, até as rimas ocorridas internamente, como bar/ar), e os -s sibilando um pouco ou bastante, como se emulasse um espectro, a Coisa perambulante, vagante, perto e longe da gente. O poema torna essa Coisa uma imagem móvel não só através do que se diz sobre ela, mas sobre como o conjunto da fonética corrobora para isso. E olha que bonita essa outra perspectiva: falando em imagens, o poema da Rosa Lobato de Faria também se ilumina pelas construções de imagens; agora, pela forma como ela descreve o amor em cruzamento com o corpo: olhos, boca, pele, mãos, e como o amor acontece através de cada uma dessas partes; o que quebra a pieguice esperada do tema “amor” é que, pelo meio, são entrecortadas essas imagens moventes no caos, algumas surrealistas até (somos bons em surrealismo), “pomba assustada do coração”, “espelho doido dos olhos”, “todos os gritos (…) debaixo da roupa”. Já o poema da Goliarda Sapienza (com tradução de Valentina Cantori) reúne um pouco disso tudo: a beleza, o inesperado, o ritmo, o cotidiano – e o teatral, que ela salpicou também, a originalidade das imagens, o surreal.

Gastei os caracteres quase todos e quase não falei de prosa, mas deixo uma menção honrosa ao texto “O Filme”, do Andrey Derzette (essa palestra empreendedoresca pré-filme, super do nosso tempo, mas de leitura imersiva e cativante, ao mesmo tempo em que dá vontade de deitar o diretor na porrada). No mais, fico por aqui e desejo um começo de ano gostoso para todo mundo. Bebam muito, mas não façam merda. E sejam amigos (mas se não quiser, não precisa).

2023: um tônico e um euforizante

Editorial extraído da edição de janeiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


A edição de janeiro do RelevO chega com duas novidades. A primeira é a apresentação da nova ombudsman – ou ombudswoman. Depois do ciclo do poeta, arquiteto e professor de história da arte Nuno Rau por quase todo o ano de 2022, Amanda Vital é a nova detentora do cargo, um dos mais importantes do nosso Jornal. Ela é a 15° ocupante do cargo, podendo ficar de 3 a 9 meses na função.

Neste espaço, o ombudsman escreve sobre o RelevO, agindo como mediador entre o leitor e o jornal, apontando aspectos positivos ou negativos do veículo, considerando críticas, sugestões e reclamações ou, ainda, trazendo ponderações sobre o conteúdo publicado. Ao lado da Folha de S.Paulo e d’O Povo, de Fortaleza, somos os únicos jornais do Brasil com o serviço.

A coluna – enviada mensalmente por volta do dia 25 – não pode ser editada pela publicação, cabendo aos revisores apenas o apontamento e a possível correção de erros não intencionais. Amanda Vital é assistente editorial da editora Patuá e co-editora da revista Mallarmargens, além de mestra em Edição de Texto e autora do livro Passagem (Patuá, 2018).

A atual titular foi uma indicação do ombudsman anterior, que pode sugerir até três nomes para substituí-lo. Acreditamos que o olhar de Amanda Vital, insider do meio literário e agente em diversas frentes deste mesmo mercado, possa trazer discussões importantes sobre o Jornal, abrangendo as recepções de leitura e o contexto todo em que estamos inseridos.

A segunda novidade é mais discreta, mas igualmente importante. Reformulamos o nosso Conselho Editorial, adicionando novos nomes. Em 2022, perdemos a bibliotecária Jacqueline Carteri, uma das nossas maiores entusiastas em mais de 12 anos de Jornal. Jacqueline morreu precocemente e deixa um espaço que jamais será preenchido. Atualmente, oito pessoas compõem o grupo, que contempla desde apoiadores muito próximos ao Jornal a ex-ombudsmans que trouxeram colaborações fundamentais ao nosso processo de existir.

Para 2023, ambicionamos reunir presencialmente este Conselho para discutirmos aspectos sempre delicados do RelevO, como as relações entre a política editorial e o departamento financeiro, as dinâmicas do Jornal com os autores recusados para publicação e as naturais complicações de ser um veículo impresso de literatura em um país sempre à beira da convulsão (ou de virar um istmo e sair flutuando pelo mundo).

De modo geral, desejamos que o novo ano seja um pouco mais… equilibrado. Não procuramos a cura que Comte-Sponville menciona em A felicidade, desesperadamente: a pílula da felicidade. “Uma pilulazinha azul, cor-de-rosa ou verde, que bastaria tomar todas as manhãs para se sentir permanentemente (sem nenhum efeito secundário, sem viciar, sem dependência) num estado de completo bem-estar, de completa felicidade”. Apenas queremos continuar com o nosso trabalho, nos divertindo entre a transcendência e a vulgaridade, com menos cambalhotas financeiras para fechar a edição no azul.

Uma boa leitura a todos.

Lolitas de Nabokubrick

Extraído da edição 112 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, é o melhor livro que este editor leu em 2022, ainda que dezembro inteiro possa surpreendê-lo. Não esperava menos. Quem já teve contato com qualquer coisa escrita por Nabokov entende que o sujeito era basicamente um ET. Ademais, esse clássico contemporâneo dispensa apresentações, em que pese o fato de sua temática por si só ter-lhe fomentado a fama.

Por fim, quem também já teve contato com qualquer coisa dirigida por Stanley Kubrick entende que se trata de outro ET, talvez literalmente. E um jovem Kubrick, após o épico Spartacus (1960), assumiu a tarefa ingrata, hercúlea, espinhosa de adaptar Lolita (1962, hoje disponível no HBO Max). Por sua vez, a Enclave é basicamente uma newsletter sobre adaptações (releituras, reinterpretações, deslocamentos). Concluímos que o encontro Nabokubricko é um prato cheio.

Premissas

Muito já se falou – escreveu, argumentou, esmiuçou – sobre Lolita, em ambientes muito mais confiáveis que este. Porém, vale listar algumas considerações que elucidem, do nosso ponto de vista, por que esse romance é tão desgraçado. A despeito de detalhes muito conhecidos, principalmente para quem leu, partiremos de um leitor menos familiarizado (ou lembrado).

Lolita acompanha as memórias de Humbert Humbert, professor de meia-idade, em uma história já encerrada no momento da narração. Chegamos a ela por meio de um (fictício) editor de livros de psicologia. Nas mãos erradas, metalinguagem pode ser uma bomba de tédio; para Nabokov, é sempre um tempero. “Humbert Humbert” já é um pseudônimo dentro da história.

A partir disso, acompanhamos a trajetória e os devaneios de Humbert, um narrador absolutamente não confiável. Este é um dos cernes do livro: Lolita é, essencialmente, uma história que contém tudo aquilo que conhecemos dentro da perspectiva de seu maior infrator, e apenas dele.

Para tanto, está em boas mãos – nas melhores possíveis. Nabokov transformaria uma história de bingo na igreja na narrativa mais interessante do planeta se a mediasse por um narrador padre inseguro.

Pois bem, assim conhecemos a menina Dolores Haze, “Lolita” apenas na mente torpe de Humbert. Ou melhor, tentamos, pois tudo que ela pensa, sente ou executa nos é relatado pelo narrador que por ela se apaixona e que dela abusa. Não detalharemos o enredo em si.

Mas Lolita, o romance, nos oferece algumas surpresas; não por acaso é tão aclamado. A primeira delas, talvez menos lembrada: como qualquer obra-prima, o livro contém lampejos brutais de humor. Há duplos sentidos, jogos de palavras, azedumes do narrador – rimos dele, não com ele –, xadrez verbal com camadas de interpretação (Nabokov era um estrangeiro nos Estados Unidos e, naturalmente, na língua inglesa, na qual escreveu o livro). Ao longo da jornada de Humbert e Dolores pelo país, há inúmeros códigos à disposição do leitor-desbravador.

E aos poucos, Dolor’osamente (tssssc), nos apegamos ao narrador, um pedófilo manipulador, cretino e triste. Esse é o grau de qualidade da escrita da Nabokov, que brinca com sua arte, esfregando na nossa cara que conseguiria ganhar uma Libertadores com um time da Copa Kaiser. É como se ele nos desafiasse, provocando: “qual é a maneira mais difícil de eu te convencer? Um pedófilo neurótico professor de literatura é o suficiente para vocês? Pois bem”.

Parece piada, mas é bem provável que esse tenha sido o ponto de partida do escritor, um estudioso dos problemas de xadrez.

Ao fim de Lolita – emocionados, frustrados, raivosos, confusos –, experienciamos o suficiente para compreender com um só golpe a beleza da palavra escrita.

Adaptando o inadaptável

Which is why adaptar Lolita é uma tarefa tremendamente estúpida. Kubrick já sabia disso, vide o próprio cartaz da produção:

“Como foi que fizeram um filme de Lolita?”; fotografia de Bert Stern.

Afinal, estamos falando de uma suprassumo da palavra escrita. O que acontece na narrativa é menos esteticamente relevante que o efeito da narração. Como transportar esse efeito para o cinema (ou transformá-lo em outra coisa)? E, principalmente, por quê? Ademais, como expor o relacionamento de um marmanjo com uma garota de 12 anos?

Stanley Kubrick também gostava de um desafio – e de xadrez.

You’re gonna take my queen”, antecipa Charlotte, mãe de Dolores.

O responsável pelo roteiro é o próprio Kubrick, que editou pesadamente o material de Nabokov (ainda que este o assine). Sua Lolita pode ser classificada como uma comédia – a presença do gênio Peter Sellers, capaz de roubar qualquer cena, corrobora essa mudança de ênfase.

No longa-metragem, famoso pela iconografia consagrada no cartaz – isto é, o pirulito e o óculos (que sequer aparece no filme) –, Dolores tem mais que os 12 anos do romance. Ela também é chamada de “Lolita” pelos demais personagens, não só Humbert, e dispõe de uma malícia da qual devemos desconfiar plenamente no livro, afinal só a acessamos via Humbert.

Sue Lyon, aos 14 anos no início das gravações, faz um trabalho extraordinário como enfant terrible, para desespero da mãe, Charlotte (Shelley Winters). E para desespero de Sue Lyon, que nunca conseguiu se desvencilhar “do filme que causou minha destruição como pessoa”.

Dessa combinação emerge a ideia de “lolita” na cultura popular, isto é, da jovem adolescente sedutora – uma figura injusta em relação ao romance.

Por fim, Kubrick sabiamente inverte a ordem (ou o foco) dos acontecimentos – também não detalharemos –, dando muito mais destaque ao personagem de Peter Sellers. O diretor omite qualquer relação explícita entre Humbert e Dolores, promovendo apenas sinais indiretos, embora suficientemente claros.

Ao assistir a Lolita, não lembrava que o filme havia sido gravado em preto e branco. Essa não era uma condição em 1962, mas uma preferência de boa parte dos diretores porque a tecnologia colorida ainda não era tão sólida. Com isso em mente, chama atenção (para surpresa de ninguém) como Kubrick aproveita o máximo de cada quadro, com tomadas longas e diversas camadas visuais em perspectiva. Por exemplo, a cena do baile na escola ou as cenas nos quartos de hotel, com janelas ao fundo.

A trilha sonora de Nelson Riddle (que alguns anos depois faria os arranjos de The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, segundo disco de Tom, que por sua vez recusaria compor a trilha de A Pantera cor-de-rosa [1963], que por sua vez consagraria mundialmente Peter Sellers como o inspetor Jacques Clouseau, um ano depois de brilhar em Lolita… [que por sua vez, 10 anos depois, declararia seu amor à música de Jobim no Sunday Times]) e, pera lá, só um momento, nos perdemos tentando conectar os pontos do planeta, afinal esta seção se chama hipertexto.

A trilha sonora de Nelson Riddle, marcada pela música-tema da protagonista, é por si só um sopro de ar fresco que converge com o tom da obra: Lolita é um filme mais leve, muito menos desafiador que o livro. Esse traço não é um intrinsecamente um defeito, embora exponha a dificuldade de lidar com um material tão complexo. Diante do desafio – e segurando as expectativas –, o resultado surpreende.

All in all, o romance é uma obra-prima, a quinta-essência de sua mídia. O longa-metragem é um bom filme nas mãos de um gênio ainda em desenvolvimento (pois não é nem o quinto em sua essencial filmografia). O encontro Nabokubricko não corresponde ao suprassumo de ambos, mas, não tendo anulado um ao outro, é suficiente para se sustentar. Ler Lolita é uma experiência extraordinária; assistir, no mínimo, vale a pena.

Baú: Ann Miura-Ko; Beethoven

Extraído da edição 112 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em qual obra de arte você não consegue parar de pensar?

A Nona Sinfonia de Beethoven. Por que é que eu a adoro? Primeiro, precisamos compreender como eram Beethoven e a fase da vida em que ele se encontrava quando a compôs.

Por todos os relatos, Beethoven era um misantropo paranoico que afastava mesmo aqueles que o amavam e a quem ele amava. Era arrogante e não parecia importar-se muito com as emoções dos outros. Além disso, quando a Nona Sinfonia estreou, ele estava completamente surdo.

A Nona Sinfonia é conhecida por seu famoso tema em seu último movimento, chamado ‘Ode à Alegria’. Como é que um homem tão miserável tem uma compreensão real da natureza da alegria? O que acho fascinante é que a sinfonia completa demonstra a viagem necessária para se alcançar a alegria.

O primeiro movimento dá pistas sobre a raiva e a tragédia. No final, a sinfonia transforma-se numa verdadeira celebração da amizade e da fraternidade. Beethoven usa unicamente vozes humanas nesse último movimento da sinfonia. Há algo de tão poético na ideia de que, para alcançar a alegria, para alcançar tal amor transformacional, é preciso passar por provações de miséria e raiva. Diz algo profundo sobre Beethoven. Apesar da dor de perder a sua audição, ele teve a alegria de compreender o dom que tinha. É uma das composições mais incríveis que já encontrei porque nos diz tanto sobre quem era Beethoven e sobre o potencial de resiliência humana.

Ann Miura-Ko (Modern Meditations, The Generalist, 2022).


Oh! vós que pensais ou me declarais hostil, moroso e misantropo, quão injusto sois, e quão pouco sabeis a causa secreta do que assim vos parece! O meu coração e a minha mente sempre foram desde a infância propensos aos mais ternos sentimentos de afeto, e eu estava sempre disposto a realizar algo grandioso. Mas não deve esquecer que há seis anos fui atacado por uma doença incurável, agravada por médicos incautos, iludido de ano para ano, também pela esperança de alívio, e forçado à convicção de uma aflição duradoura (cuja cura pode durar anos, e talvez afinal de contas revelar-se impraticável).

Nascido com um temperamento apaixonado e excitável, profundamente suscetível aos prazeres da sociedade, fui ainda obrigado desde cedo a isolar-me, e a passar a minha existência em solidão. Se em algum momento resolvesse superar tudo isto, oh! Quão cruelmente me senti novamente repelido pela experiência, mais triste do que nunca, da minha audição defeituosa! – e, no entanto, achei impossível dizer aos outros: “Fala mais alto; grita! Pois sou surdo!” Ai de mim! como poderia eu proclamar a deficiência de um sentido que deveria ter sido mais perfeito comigo do que com outros homens – um sentido que outrora possuía na mais alta perfeição, até certo ponto, de que poucos da minha profissão alguma vez desfrutaram! Infelizmente, não posso fazer isto! Perdoai-me, portanto, quando me virdes afastar-me de vós com quem tão de bom grado me misturaria. O meu infortúnio é duplamente grave por me fazer ser mal compreendido. Já não posso desfrutar de recreação nas relações sociais, de conversas refinadas, ou de derramamento mútuo de pensamento. Completamente isolado, só entro na sociedade quando sou obrigado a fazê-lo. Devo viver como um exilado. Em companhia, sou assaltado pelas mais dolorosas apreensões, pelo pavor de ser exposto ao risco de ser observado… Que humilhação quando alguém ao meu lado ouviu uma flauta à distância, enquanto eu não ouvi nada, ou quando outros ouviram um pastor a cantar, e eu ainda não ouvi nada! Tais coisas levaram-me à beira do desespero, e quase me levaram a pôr um fim à minha vida. Arte! Só a arte dissuadiu-me. Ah! como poderia eu desistir do mundo antes de trazer à tona tudo o que sentia ser a minha vocação de produzir?

Ludwig van Beethoven, Testamento de Heilingenstadt (carta não enviada ao irmão, 1802 – portanto, antes da Nona Sinfonia –, via The Marginalian).

Nuno Rau: Ombudsman na pista pra negócio [ou: o fim pode não ser o fim]

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A realidade é dura, car_s leitor_s, e eis que me encontrarei, depois do fechamento da presente edição, demitido de minha tão amada função de ombudsman do RelevO. E não me adianta vociferar contra os editores, brandir com virulência frases de efeito sobre as cruéis leis de mercado, a insensibilidade do capitalismo neoliberal: nada disso seria verdade. Eis que me encontro demitido porque essa é a beleza da função de ombudsman no RelevO: ela é rotativa, e no mês que vem outra cabeça virá dialogar com as páginas do jornal, suas qualidades, eventuais fragilidades, idiossincrasias, bem como com a voz de leitor_s que, pela natureza da mensagem, reclamam (e merecem) diálogo. As linhas acima, com certo quê dramático, são apenas pra ressaltar o gosto com que desempenhei essa função, aderindo ao projeto editorial com amor, e tendo percebido mais ainda, de dentro, a sua inteireza, seu compromisso, sua ética.

No entanto, a função de ombudsman também implicou no diálogo com o presente: o texto da edição de novembro foi escrito sob uma atmosfera carregada de angústia, às vésperas do segundo turno das eleições mais dramaticamente decisivas desde a redemocratização, todos nós atravessados por certo desespero diante do claro avanço do fascismo sobre nossas instituições, com apoio do mercado e das classes médias, essas em que vamos imersos. Provisoriamente vencemos, uma vitória por menos votos do que se esperava, até porque, pelo que soube no contato direto com diversos pontos de meu Rio de Janeiro — que continua lindo e selvagem —, o voto de cabresto foi ostensivamente remixado ao arrepio dos tribunais eleitorais, e de modo tão competente, capilarizado, fragmentado, que nos faz entender o motivo da decepção do candidato fascista e dos milicianos mais próximos a ele: as estratégias espúrias por pouco não deram certo, e eles esperavam realmente ganhar. Não fosse o Nordeste, teriam logrado êxito.

Emergimos do outro lado do túnel nutrindo grandes esperanças, e eis que escrevo esta última coluna sob o céu de Paraty, pedaço de território em que agora se movem escritor_s, poetas, editor_s, leitor_s e outr_s louc_s de plantão em meio a muitos exemplares das classes médias que vêm espargir seu brilho fátuo e fake, edulcorado pelo que capturam por osmose ao discurso da propaganda, enquanto provavelmente sentem um frisson percorrendo a espinha toda vez que os telejornais ou outros veículos mencionam a palavra “mercado”, posto que seus prazeres são profundamente integrados a ele, chegando a emular suas leis mesmo quando não haveria motivo razoável para que isso ocorresse. O pior: esse quadro inclui as parcelas há bem pouco tempo despauperizadas. As classes médias são um fenômeno complexo. Sempre que penso nelas me lembro, entre o riso e a tristeza, de uma reunião entre o centro acadêmico e a direção do IFCS — Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, onde puxei algumas disciplinas, por interesse pessoal (meu curso era Arquitetura), no começo dos anos 1980. No embate político que se dava, a imagem que um amigo empregou para representar os corpos discente e docente do IFCS foi simplesmente genial, pelo poder de síntese de sua metáfora, pelo aspecto inusitado e escatológico, alcançando grande impacto por força do choque (estamos falando de um momento em que a ditadura civil-militar ainda vigia, por mais que estertorasse), e para mim sempre representou também uma imagem fiel das classes médias, onde quer que elas vivam. Nas palavras dele, que tento escavar na memória, “nós somos como aquela parte da merda que, quando bate na água do fundo, espirra e se gruda pelo meio do vaso, e aí ficamos contentes de não estarmos no fundo, mas quando derem a descarga, nosso destino é o mesmo”. Este é o sentimento que guia as classes médias, e faz com que sejam aderentes aos fascismos de toda cepa, e é dessa parcela da sociedade que saem os intelectuais que, em percentual não desprezível — utilizando aqui a terminologia de Gramsci —, agem como prepostos do grupo dominante, comprometidos que estão em garantir que a visão de mundo e as práticas sociais do povo estivessem afinadas com o desenvolvimento da estrutura econômica daquele grupo. Foram intelectuais dessa espécie que emitiram, quase em uníssono, a frase “o mercado reagiu negativamente” quando Lula reafirmou seu maior compromisso de campanha que acabar com a fome é mais importante que respeitar o teto de gastos (que deveria ser entendido como teto de investimentos no bem-estar social). Para combater esse estado de coisas, temos outros intelectuais, dos quais Chico Science fez outra brilhante síntese: “E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ Que eu me organizando posso desorganizar/ Que eu desorganizando posso me organizar”. Desorganizar a visão de mundo dominante, desorganizar as bases do capitalismo, que, em sua forma mais estrita, recende a fascismo.

A última edição é toda dedicada à Copa, ao futebol, à literatura dos países que estão na competição, e já vamos quase pela metade do texto sem nada falar sobre a relação entre a pelota e a pena. Pois aqui vamos, então, auxiliados por Pasolini, que, em texto descoberto por meio do livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik, fala do futebol como algo que oscila entre a poesia e a prosa. Pasolini acabara de ver o mundial de 1970, e estabeleceu uma relação entre o futebol-prosa da seleção italiana (alheio ao drible por preferir a “prosa coletiva” da construção da jogada ensaiada, o gol nasceria como a conclusão de um raciocínio tornado visível pela organização coletiva), e o futebol-poesia do escrete brasileiro (o drible, o toque de efeito, a alegria gratuita). Na verdade, levei o equivalente a duas odisseias (em tempo, sem dúvida, e parcialmente em atribulações) até começar a ver o futebol sem preconceito. Não estou muito mal acompanhado, tenho a meu lado Lima Barreto, “que viu na adoção do esporte inglês no Brasil a degradação da cultura intelectual, a afirmação de um poder tiranizador e truculento, e uma sobre carga racista que a abolição havia atenuado”, como nos relata Wisnik. Se o velho Lima não estava completamente equivocado, também não acertou em cheio, porque não supôs o que nossa permanente vocação antropófaga faria com o esporte bretão nos campinhos de várzea, de onde surgiram deuses como Didi “Folha Seca”, Garrincha, Tostão, Pelé e talvez o jovem Richarlison, de quem sei pouco mais do que ter vindo do Espírito Santo, e demonstrar uma ética bastante precisa sobre questões sociais. Na contracorrente da visão do futebol que levei anos pra construir, como uma realidade mais complexa e não redutível ao bordão “esporte-alienação”, a percepção de que o mercado (sempre o mercado) atua como um vírus se combinando com as entranhas do esporte, catapultando meninos despreparados ao patamar de milionários em geral deslumbrados que não têm nada a oferecer como modelos para meninos do futuro além da habilidade de seus corpos em campo — não falo aqui do futebol das mulheres porque segue, ainda, outras lógicas, espelho que é das estruturas da sociedade: mulheres executam as mesmas funções ganhando menos, e com menos visibilidade, mesmo apresentando, não raro, maior profissionalismo, desempenho, dedicação, talento.

Como nada é simples, o futebol é também um campo privilegiado de observação do social, reproduz suas grandezas, suas mazelas, as paixões, exclusões, e na literatura, assim como na canção popular, no cinema, nas telenovelas, e em todas as demais manifestações da arte e da indústria cultural, funciona como motor de obras fundamentais — o painel traçado por RelevO é um testemunho disso. Entre os 32 textos selecionados para a edição de novembro, alguns são a representação da complexidade que se move sobre o idioma de cada povo, e a espessura com que certos poemas e trechos de prosa capturam esses movimentos complexos sob os códigos da linguagem nos atinge como um dardo. Os poemas de Elke Erb, Ghazi Al-Gosaibi, Kim Chun-Soo, Akiko Yosano, Irit Amiel, sem falar no poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, sua permanente investigação sobre o mar e a alma humana, e nos versos de Dylan Thomas, sobre seu/nosso ofício ou arte amarga, essa que nos traz aqui para indagar nos versos de tantos lugares do mundo a forma de nosso rosto.

Ao longo desses 12 meses penso não ter feito outra coisa senão perscrutar o que de nosso rosto fragmentário estava posto em cada página do RelevO, o quanto de nossa seiva comum percorria as fibras de celulose das páginas do jornal, imantadas pela tinta negra. O desenho desse rosto será cada vez mais importante como guia para fora do labirinto para onde nos vimos conduzidos, um pouco anestesiados que estávamos, talvez inebriados com as conquistas do campo progressista, parcas ainda, mas conquistas, relativas, mas conquistas, incompletas, mas conquistas distensionando relações, redimensionando estruturas, reelaborando percursos. Houve um lado positivo nesse habitar o labirinto: ao longo da dolorida estadia pudemos contemplar, ao menos parcialmente, a profundidade do abismo que existe quase em todo o entorno, como um fosso, e mesmo que ainda dentro dele conseguimos agora entrever a estreita passagem de volta, como um nada fácil contorno que teremos que cumprir até retomar o empuxo anterior, agora com certeza — sim, esperemos isso — com um sólido princípio de realidade. Queria deixar nessas palavras finais uma provocação aos editores do RelevO, e também a editor_s de todas os veículos de literatura, a escritor_s, poetas, leitor_s: que ações concretas podemos fazer, com ou sem apoio do Estado, para nos afastarmos cada vez mais do labirinto e do abismo que é seu entorno imediato? De que modos podemos sair em campo, mais ainda que antes, com mais força, mais assertividade, mais atenção e fúria, para fazer da literatura um instrumento ainda mais concreto e efetivo de transformação social, sulcando mais fundo a realidade desse presente conturbado?

Por fim, meu muito obrigado aos editores do Jornal pela parceria incondicional, a tod_s _s leitor_s pela interação possível, e que esta edição, que vocês têm em mãos agora, seja um sinal do novo tempo que devemos fazer com nossos corações, nossas mentes, nossas mãos, nossos corpos.

2023: logo ali

Editorial extraído da edição de dezembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Chegamos à última edição de 2022. Neste ano de pós-pandemia, eleições e Copa do Mundo (e do primeiro Encontro Ufológico de Joinville), o RelevO continua imprimindo ininterruptamente, seguindo sua sina de ser de papel e de literatura desde setembro de 2010. Provavelmente, quando esta edição chegar às suas mãos, já saberemos que fim teve o Brasil na maior competição monoesportiva do planeta. Em novembro, para lembrar, fizemos uma edição especial com a literatura dos 32 países que disputam a Copa do Mundo. Não é segredo que gostamos muito de futebol e, em dezembro, nos aproveitamos das analogias esportivas para refletir sobre os últimos 12 meses.

Se o Jornal fosse uma seleção, seria, quem sabe, o Irã – organizado e aplicado, mas limitado e distante de uma grande liga? Temos uma equipe de apenas seis pessoas. Ou então a Croácia, com um futebol equilibrado e rompantes técnicos, mas com poucos recursos humanos para dar aquele passo adiante e se tornar grande? Temos, como fonte de renda, apenas assinantes e anunciantes privados. Seria alguma seleção que não foi pra Copa? Nunca nos sentamos nas principais mesas do meio literário.

2022 foi um ano desafiador sob muitos aspectos, com aumento de 23% de custos operacionais em uma ponta, diminuição do nosso corpo de assinantes em 15% em outra ponta e aprimoramento da nossa comunicação interna, com a circular, a Enclave e a Latitudes unidas em uma única base de controle (Substack). Conseguimos, enfim, centralizar toda a nossa produção de conteúdo digital, ajustar questões estruturais tão importantes quanto entediantes do nosso site e deixar cada vez mais evidente as vantagens de alguém nos assinar por apenas 70 reais ao ano.

Buscamos convencer nossos novos e velhos assinantes pelo trabalho contínuo em prol do que consideramos o melhor da literatura brasileira contemporânea. Não conseguimos competir em preço, mas nos esforçamos editorialmente – e não devemos favores. Somos uma defesa forte que busca aproveitar suas poucas chances de gol. Se subirmos demais ao ataque, seremos amassados. Assim, crescemos lentamente, adaptando-nos às intempéries naturais da vida. Estamos distantes das maiores competições do planeta, mas sobreviveremos até a festa de encerramento.

Uma boa leitura a todos.

“Não sei. O amor é assim”

Editorial extraído da edição de novembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Desde 2014, o RelevO produz uma edição especial da Copa do Mundo de Futebol. Gostamos muito de futebol, até mais do que gostaríamos. Também gostamos muito de literatura, mais discretamente. Como qualquer esporte (menos o beisebol), o futebol, em sua duração entre 90 e 100 minutos, carrega todos os elementos necessários para a criação de boas histórias: jornada do herói, imprevisibilidade, drama, beleza, técnica, envolvimento emocional.

Sabemos que nem todos os jogos de um Campeonato Paranaense são dignos de epopeias de Camões. Mas a Copa do Mundo é diferente. Ali se encontram os melhores praticantes do dito esporte, todos na busca pela consagração — e o futebol é um dos raros esportes em que as Olimpíadas não se configuram como “o momento sublime”. Mesmo com jogos considerados menos empolgantes, sabemos que a Copa é outra coisa; é outro modo de estar no mundo, a potência máxima da célebre frase da crônica de Rachel de Queiroz sobre o seu amor pelo Vasco: “Não sei. Amor é assim”.

A edição de novembro do RelevO — maior, com 40 páginas— é toda dedicada à literatura dos 32 países envolvidos no maior espetáculo monoesportivo do planeta. Buscamos trazer escolhas que fugissem da obviedade, ou mesmo veicular autores e autoras nunca publicados no Brasil. Contrariando um tanto a nossa aversão a bios, entendemos que, nesta edição, contextualizar cada escolha editorial é um processo pedagógico necessário.

Aliás, para que esta edição especial viesse à tona, contamos com a parceria do curso de Jornalismo da Universidade Positivo (UP). Mais de 50 estudantes de todos os períodos se envolveram, por quase dois meses, na pesquisa, produção e curadoria de conteúdo, desde a seleção de autores e autoras à captação de imagens e informações históricas. Também tivemos o aporte do nosso corpo de anunciantes e assinantes, que aderiu ao projeto, auxiliando em uma edição mais robusta e com uma tiragem três vezes maior que a nossa média. Em virtude do projeto especial e da redistribuição de conteúdo, as cartas dos leitores e as sessões Brazilliance e Enclave retornam em dezembro, assim como a prestação de contas. O ombudsman Nuno Rau fecha a presente edição, ao passo que nossas galhofas temáticas a abrem.

Boa leitura a todos. E boa Copa!

Nuno Rau: Quando o assunto é poesia & literatura não siga nenhuma regra. nem esta [bonus track: saudade dos aviões da panair?]

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


[…] e no entanto, o poema é um objeto que se afirma pela sua precisão, e tal precisão pressupõe regras. A rebeldia inerente a toda criação por certo se sente instada a contestar isso que soa como cárcere, limitação, bloqueio à livre expressão. Percebo agora que as linhas acima merecem uma explicação do que as teria motivado: a mensagem do escritor Igor Castanheira dos Santos, que, motivado pelo desejo de ajudar o jornal, oferece uma série de sugestões que, a despeito de não explicitarem sua motivação, imagino terem por objetivo melhorarem o periódico (o que implica, por óbvio – o que a leitura das sugestões confirma –, a percepção de fragilidades na proposta editorial do RelevO. A intenção é inegavelmente meritória, e o escritor, para que não pensemos que tirou da cartola como uma ninhada de coelhos tal conjunto de providências necessárias, elenca sua formação acadêmica, Ciências Econômicas e Marketing, o que, de saída, suscitaria outro debate, sobre a propriedade de tais formações em relação a uma política e uma prática editoriais no campo da literatura. Antes que se pense que este ombudsman advertiria o bem-intencionado escritor sobre a necessidade de formação específica em literatura ou edição para justificar seu direito a sugestões, esclareço que não, rigorosamente não. A literatura e sua edição se alimentam da diversidade de perspectivas, e qualquer “reserva de mercado” aqui seria um dano, uma limitação perigosa. As ciências da literatura, que nas universidades produzem dissertações e teses mais do que necessárias, ampliam o debate, aprofundam questões, dissecam seu objeto e expõem aspectos antes não observados, alimentam a crítica com novas possíveis abordagens, não precisam provar sua condição de existência; no entanto, se afirmasse que o exercício da criação (e considero aqui também a edição como um exercício de criação) tem como seu caminho incontornável o método científico e o trânsito pela produção acadêmica, essa afirmação seria um distanciamento da realidade. Se assim fosse, verificaríamos que a melhor produção literária viria, incontornavelmente, do mesmo lugar que teses e dissertações, o que está longe de ser uma realidade. Esclarecido este pequeno ponto, preciso, antes de prosseguir, confessar minha má vontade com o que chamam de “marketing”. A má vontade começa com a palavra em si, uma importação provavelmente desnecessária, como approach, asset, budget, coach, lead, trend e toda uma parafernália de palavras em inglês que só comprovam nossa rendição a um (não tão) novo colonizador (alguém atento poderá dizer: mas você aceitou a função de ombudsman, meu caro, veja bem: ombudsman…. É verdade, não tenho resposta para essa objeção, tenho e aceito minhas contradições). Não sei se vocês também sentem vontade de rir quando, numa reunião, alguém abre a boca e, quase sempre com um indisfarçável ar empolado, emite uma frase como “meu budget não prevê essas despesas”. Sempre me ocorrem pensamentos em torno da indigência cultural e da aceitação acrítica do que quer que venha, desnecessariamente, na língua do colonizador. O outro lado dessa má vontade tem a ver com a utilização majoritária do que chamam de marketing: ele tem por objetivo convencer as pessoas a adquirirem, quase sempre, o que não precisam com um dinheiro que não possuem. Seu intuito é fazer com que o Deus Mercado mantenha suas patas sobre a sociedade, e assim sigam existindo exploradores e explorados, os que possuem muito e os que nada possuem. Não, ninguém precisa me dizer que não vamos conseguir fazer a revolução. A contrarrevolução, na realidade, é a tendência mais forte, e a tal ponto que colonizou as consciências até no uso das palavras. É uma longa discussão que não caberia na cota máxima de cerca de 1500 palavras que me cabe no Jornal, e nem pretenderia esgotar.

Feitas as confissões necessárias, volto para o terreno da literatura e da edição, e da necessidade ou não de regras. O título deste mês envolve, na realidade, uma certa provocação, na medida em que o desdigo na primeira frase. A realidade é que falta um termo na equação que o título afirma: quando o assunto é poesia & literatura não siga nenhuma regra, se essa regra representar um consenso socialmente estabelecido. Não se faz arte com base em consensos socialmente estabelecidos. Um exemplo: quando os livros de Rubem Fonseca passaram a ser amplamente reconhecidos como potentes exemplares de uma certa literatura de matriz urbana, passaram a emergir centenas de emuladores e emuladoras da sua escrita, e, o que é pior ainda, a emulação se dava pela superfície, pela aparência, e nenhuma dessas pessoas seguiu o processo de depuração e crítica que o autor de A coleira do cão percorreu até chegar a uma estética precisa. Minha má vontade, nessas horas, também se manifesta, e a tal ponto que passei anos sem conseguir reler Rubem Fonseca, porque sempre me vinham à memória lembranças de seus imitadores. O mesmo com Leminski, um poeta cuja forma é replicada quase ao infinito. Pior destino tem Charles Bukowski, que tem sub-réplicas não só de sua escrita, mas também do drama que encenou em vida envolvendo álcool, sexo e literatura, só que extraído, precisamente, o drama: são apenas garotos de classe média, entediados com suas vidas limitantes e sem imaginação para desenvolver algo próprio (sem falar da misoginia geralmente associada a essa emulação).

Munido das melhores intenções – disso não tenho a menor dúvida –, Igor apresenta suas propostas que, a rigor, não são boas ou ruins em si mesmas, porque dependem de contexto, mas teve, a meu ver, a má sorte de começar com “invistam em textos mais curtos”. Preciso confessar outra má vontade: a apropriação de termos do campo dos negócios para conversas que nada têm a ver com isso me incomoda demais. Quando leio algo como “invistam em textos curtos”, fico pensando nos editores despejando expressivas quantias na aquisição de ações do tipo “textos curtos”, sem saber que a saturação dos mercados, no campo da literatura (e da arte em geral) pode provocar sua queda irreversível, cuja recuperação às vezes dura o tempo de uma geração. Fico imaginando alguém como João Ubaldo Ribeiro lendo uma frase assim, tendo ao fundo, em sua estante, Viva o povo brasileiro. Ou Jorge de Lima, redivivo, escutando que o poema curto é o grande lance, que ninguém lê mais do que 140 caracteres (e aqui nesse texto já vamos pela casa dos 6.300). Quantos caracteres tem Invenção de Orfeu? Pensando bem, talvez haja uma semelhança entre o mercado de ações e a literatura: quando uma grande quantidade de pessoas está indo numa direção, é sempre saudável mensurar a possibilidade de mudar de rumo, porque manadas não raro marcham sem uma percepção dos riscos, justamente porque seus membros acreditam que a maioria sempre está certa, além de ser mais confortável e menos trabalhoso seguir receitas. Enquanto ainda há quem pense que ninguém mais lê além de 140 caracteres, às vezes tudo que quero é ler um romance como Doutor Fausto, ou reler a Divina Comédia (ou Invenção de Orfeu, para não esquecer de Jorge). Quando uma parcela da produção em prosa “investe” em frases curtas, tudo que desejo é me perder na sintaxe de Saramago, em suas labirínticas sentenças que não encontram ponto final. Quando uma massa nada desprezível de textos apontam a experiência urbana na literatura e na poesia, há em mim uma sede de reencontrar Grande sertão: veredas, ou algum(a) novo(a) autor(a) que se debruce sobre a realidade e a linguagem dos rincões desse país continental. Rosa não era isento de regras, muito ao contrário, sua escrita seguia regras rígidas: mas eram suas regras, sua visada crítica sobre o real. Assim também Graciliano, e Clarice, e Hilda, e Rubem, e toda pessoa que quiser fazer arte, que quiser fazer com que as palavras dancem sob a aparente fixidez da tinta sobre o papel (ou dos pixels nas telas).

Na verdade, tudo faz crer que há sempre um mundo estranho lá fora, e esse mundo reclama representação e diálogo. Penso nisso ao ler as propostas de Bolívar Escobar, as exumações textuais de Gloria Evangelina Anzaldúa (que potência!), a síntese e a elisão em Ana Clara Viana, a apropriação dos lugares comuns da fala em contraste com o absurdo da realidade em Zeh Gustavo, a densíssima atmosfera rarefeita dos poemas de Verônica Ramalho (sim, só um oxímoro poderia sintetizar o impacto dessa pequena série). Penso também que os poemas de Natasha Sardzoska, a despeito do mérito da tradução, me trazem a ideia de que saber várias línguas não é garantia de produzir bons poemas e bons livros, porque, como impressão geral, achei os poemas banais, crivados de lugares comuns, à exceção de Testamento. Penso também em como é bom poder estar equivocado em meus juízos provisórios, e em como, não raras vezes, essa provisoriedade vai se instaurando em permanência. Penso em gostar da edição de setembro equilibrar poemas e prosa, e humor, e cultura (as colunas Enclave e Brazilliance mantendo o brilho). Penso, enfim, que os editores tateiam buscando seus caminhos, assim como escritores, e ombusdmans, acertam, erram, mas a beleza está na procura e na não aceitação de regras socialmente impostas.

Bonus track: não posso negar que me divirto de algum modo com a querela literária encenada nas cartas. O tom antigo na elaboração dessa pendenga literária encena um não sei quê de crítica ao próprio argumento da peça, e isso é o que mais me agrada, e diverte. A despeito disso, tenho emoções contraditórias a esse respeito: ao mesmo tempo que sinto um certo fastio em face de qualquer querela no campo literário, em geral produzidas por egos ululantes e bem maiores do que o espaço que os contém, sinto falta das querelas reais, de contendas estéticas em que o problema de nosso presente seja posto em xeque. O oposto da querela é a passada de pano, a ação em grupo de pressão embebida em farisaísmo, e aí o fastio se reveste de náusea. A querela ora em questão, a despeito das diatribes hilárias, não foi exatamente a um ponto, e talvez seja esse meu maior incômodo.

Som incidental: Jonathan Swift comparece na última página do RelevO como o mais jovem e ácido escritor do momento.

De um futuro analógico

Editorial extraído da edição de outubro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O nosso futuro será analógico.

Em virtude do caráter forjado na regularidade, o RelevO reforça com certa frequência a importância dos hábitos e de seu pacto com o real. Acreditamos nos rituais, nas repetições, nas buscas individuais por espaços que fujam da pressão e da volatilidade de ser contemporâneo. De fato, folhear papel parece tão… século 20, assim como todas as coisas que possuem dimensões táteis, como um sapato. E não parece muito sustentável (assim como os sapatos). Contudo, folhear papel é uma experiência real, mensurável.

Não somos o que se pode chamar de conservadores e não somos o que se chama de progressistas. Ao nosso modo, buscamos participar das discussões que mobilizam nosso cotidiano, em um cruzamento entre o novo e a tradição, entendendo o humor como uma força norteadora de nossa existência. Por apostarmos em novos autores e autoras, almejamos oferecer um recorte do que é produzido na atualidade, sem desconsiderar, por exemplo, uma tradução de Emily Dickinson que chega à nossa caixa de entrada. Não existe o novo sem uma interlocução com repertórios anteriores.

Entendemos que ser um jornal de papel e literatura em 2022 é promover um espaço de diversão (e alguma reflexão, vá lá) fora da tela. Somos pela produção de presença: o viés digital é apenas uma ferramenta de que fazemos uso moderado por conta de seu potencial de abrangência e distribuição. Nosso leitor ideal está procurando experiências off-line – também por isso nos solidarizamos com os leitores que não prosseguem com a assinatura por falta de tempo. De fato, deve ser frustrante investir 70 reais ao ano para uma leitura de aproximadamente uma hora e não conseguir ler no intervalo de 30 dias; é melhor gastar em outra coisa que produza presença – como uma pizza, mais ou menos nesse valor.

É possível argumentar que é melhor passar uma hora mensal nas redes sociais (sabemos que a média de vida que o brasileiro passará na internet é de 40 anos, com potencial de aumento de tempo), porque não se gasta. Mas aí temos uma diferença para um produto físico que custa 70 reais ao ano: em muitos casos, o produto nas redes é o próprio consumidor, imerso em uma rede alucinante de publicidade e recolhimento de dados. Assim, pela identificação dos hábitos (quem diria), o consumidor é avaliado pelas plataformas e o consumidor, então, compra ou vira audiência (que vira dinheiro). É a máxima recente: “se você não está pagando por isso, você não é o cliente – você é o produto”.

Acreditamos que o futuro será analógico não porque os cabos subterrâneos de internet serão cortados e voltaremos a usar lampião de querosene. Não somos luditas, muito menos saudosistas que acreditam que os egípcios de três mil anos atrás faziam intervenções dentárias melhores. Quando dizemos “nosso futuro”, nos referimos a uma parcela de pessoas que não aguentará mais a linearidade do consumo cultural e pagará para receber uma experiência em casa, longe de banners, pop-ups, comerciais indesejados, novos links, cookies, WhatsApp Web aberto, Craque Neto. E isso que nem estamos falando dos smartphones como intensificadores de ansiedade e depressão.

Um cínico de carteirinha pode apontar que o leitor de jornal de papel e de literatura que posta seu hábito analógico no Instagram é uma fraude. Pois nós não concordamos. Este nosso leitor ideal apenas está em busca de sua comunidade analógica, que pode desconhecer os benefícios (não é nossa função, mas agradecemos se houver) de simplesmente parar e ler algo aleatório – algo, sobretudo, tangível e não produtivo.

No RelevO, você recebe o que paga. Buscamos oferecer o que consideramos serem os mais interessantes textos contemporâneos. E nós pagamos aos colaboradores. Pouco, é verdade, mas em proporção infinitamente maior que a do Spotify para pagar aos músicos catalogados, por exemplo (com orçamento infinitamente menor). Outro fator que não desconsideramos é o simples aspecto egoísta de ter um produto de arte em mãos e poder fazer o que quiser com ele, como levar a uma cachoeira ou a um café, ou somente aproveitá-lo para forrar os copos diante da imediata mudança de casa.

Uma boa leitura a todos.

David Bowie: caos e transcendência

Extraído da edição 111 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

No set de The Man Who Fell to Earth (1976) — David James/Taschen.

É impossível não pensar em David Bowie: sensações após Moonage Daydream, um não documentário totalmente Bowiecêntrico.

Era noite de sexta-feira (16/09) quando cheguei ao Imax para assistir a Moonage Daydream (2022), documentário de Brett Morgen dedicado a David Bowie. Com descrição pretensiosa (“não é um documentário, mas uma odisseia, uma jornada etc.”), mentes cínicas poderiam torcer o nariz se diante deste mesmo nariz uma tela gigantesca não entregasse belas e raras cenas dos anos 1970 acompanhadas pelo remix de ‘Hallo Spaceboy‘ dos Pet Shop Boys em decibéis ensurdecedores.

A brincadeira era coisa séria.

Ao longo das pouco mais de duas horas seguintes, ouvimos, assistimos e acompanhamos Bowie – e tão somente ele. Sem talking heads (o recurso, não a banda… mas também sem a banda), sem informações, sem dados, sem capas, sem vendas, sem comitivas.

Não aprendemos absolutamente nada sobre qualquer disco, músico, gravação. Não escutamos qualquer anedota sobre um baixista de 1969, tampouco vemos algum vizinho octogenário descrever o pequeno David Jones. No máximo, descobrimos algo sobre o meio-irmão, Terry, e sobre a segunda esposa, Iman – sempre e tão somente a partir do próprio Bowie.

Ninguém fala, a não ser David Bowie (e alguns fãs, na década de 1970, à beira de um AVC por êxtase). Não se trata de um documentário informativo, malemal de um documentário. A execução conquistou o direito à pretensão: que odisseia fantástica; basta sentar-se e absorver.

Me obriguei a assistir outra vez, já na quarta-feira (21), lamentavelmente o penúltimo dia de exibição no Imax de Curitiba. Poderia reassistir outras tantas vezes com a mesma leveza. Dias depois, não consigo parar de ouvir a trilha sonora, relembrando cena por cena – outros amigos vivem a mesma situação.

Se a dimensão visual do filme oferecesse apenas uma tela preta, já valeria o ingresso. Algumas músicas de Bowie ganharam uma mixagem especial para o longa – outras simplesmente estão limpas e altas o suficiente –, e escutá-las no Imax foi uma experiência fantástica. É impressionante, no sentido mais puro e literal da palavra, como o áudio envolve e permite um contato renovado com o material.

  • Nunca havia realmente gostado de ‘The Jean Genie‘, ‘Aladdin Sane‘ e ‘Cracked Actor‘, por exemplo, na intensidade trazida por Moonage Daydream. Possibilitar essa revisão (e renovação) da experiência é encantador por si só.

Ademais, o trabalho de mixagem é primoroso ao trazer fluidez. Músicas diferentes, sons e falas se misturam em um só rio de imersão. A quem não assistiu no cinema, sugerimos com ênfase a experiência num sistema de som decente – nada de ver no notebook.

Por sua vez, as imagens intercalam entrevistas antigas, shows, clipes, filmes e bastidores de todos estes, além de nos mostrarem diversas referências abraçadas por Bowie ao longo da vida. Brett Morgen separou oito semanas para organizar o material que tinha em mãos; naturalmente, o processo levou dois anos – e um infarto. A família do músico inglês colaborou integralmente com o projeto.

Para um nerdalhaço em Bowieismo – que já tenha chegado ao nível de gravações descartadas e documentários perdidos –, talvez não haja tantos momentos inéditos, muito menos informações novas. O que absolutamente não é o ponto, tampouco a tentativa.

Primeiro, pagamos pelo recorte, isto é, a arte suprema é a colagem, não o papel colado. Segundo, pouco interessa quem trocou as cordas do baixo quebrado em 1981 ou se o artista almoçou bife com fritas antes de gravar um single na Tunísia. Informações estão disponíveis e catalogadas em décadas de material produzido sobre David Bowie: já há diversos livros e documentários cobrindo fatos, aspectos técnicos, curiosidades e a mera punhetagem.

O que Moonage Daydream oferece é uma leitura da cosmovisão de Bowie – e sua maturação – a partir da melhor experiência sensorial possível. Acompanhamos o artista, já calibrado pelo Budismo, trafegando pela Ásia (em especial as cenas noturnas, estonteantes); ouvimos esse indivíduo ao mesmo tempo tão exposto e impenetrável discorrer sem pressa sobre a vida. Testemunhamos suas referências e nos deliciamos com elas.

Então, choramos ou seguramos lágrimas (na chuva!) com o fim – de Bowie, do filme, da nossa própria existência. Ambicioso, experimental e conceitual sem abandonar o palatável, esse não documentário inclassificável é a cara de David Robert Jones.

Baú: Joaquim Ferreira dos Santos

Extraído da edição 111 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Uma das mais deliciosas conversas furadas de 1958 foi o boato de que a carne bovina consumida entre o Rio e Minas Gerais estava contaminada – não por bactérias assassinas como a da vaca louca, muito menos por algum vírus pré-aidético, pois definitivamente os tempos eram mais delicados. A carne dos açougues da época estaria contaminada por enormes porções de uma vacina de hormônios femininos. No panic, gritavam os mais liberais, mas qual!…

Generalizou-se entre os machos cariocas o medo horripilante, não de morrer como os que deglutiram hambúrgueres na Inglaterra nos anos 90, mas de que o até então pacato e viril cidadão, após ingerir um acém, um filé, subitamente adquirisse, ainda na mesa de refeição, alguma característica graciosa da identidade fêmea. Inspirado pelo fait-divers, o trio Paquito, Romeu Gentil e José Gomes compôs, com lançamento no final de 58 para a farra de 59, a marchinha Boi da cara preta, cantada por Jackson do Pandeiro e Almira:

“Coitado do Valdemar
Está dando o que falar
Comeu carne de boi falou fino
E deu pra se rebolar
Mas que azar.”

Já era sofisticado entre os bem-pensantes dizer que a música de carnaval estava em decadência. (…)

Joaquim Ferreira dos Santos, Feliz 1958 (Ed. Record, 1997).