Cipriano Barata: O ombudsman é, antes de tudo, um chato

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Esta é a 51ª e derradeira coluna dominical que escrevo como ombudsman da Folha. Assumi em 5 de abril de 2007, e o meu mandato se encerrou anteontem. Embora o estatuto autorize a renovação por mais dois períodos, não houve acordo com a direção do jornal para a continuidade. A Folha condicionou minha permanência ao fim da circulação na internet das críticas diárias do ombudsman. A reivindicação me foi apresentada há meses. Não concordei. Diante do impasse, deixo o posto. Oitavo jornalista a ocupar a função, torno-me o segundo a não prosseguir por mais um ano. Todos foram convidados a ficar. Sou o primeiro a ter como exigência, para renovar, o retrocesso na transparência do seu trabalho.”

Mário Magalhães, em 6 de abril de 2008.

 

Nunca tive uma vírgula das minhas colunas alteradas por quem quer que seja. Afinal de contas, eu não estava fazendo mais do que cumprir à risca o trabalho para o qual havia sido contratado. Em essência, todos nós sabíamos que ter um ombudsman sério e renitente agrega credibilidade ao jornal. E é justamente disso, credibilidade, que os jornais vivem.

Lira Neto, ex-ombudsman de O Povo, em A herança de Sísifo: Da arte de carregar pedras como ombudsman na imprensa, 2000.

 

O ombudsman é, antes de tudo, um chato

Ufa, ainda bem que o ombudsman Cezar Tridapalli sai! Cheguei a ensaiar uma resposta pra ele uma vez, mas não conclui. Espero que pessoalmente ele não seja chato como era como ombudsman! O título provisório era “ombudsman do ombudsman”, mas meu gato ficou doente e nunca mais retomei: “O sertanejo é antes de tudo um forte”, vaticinou Euclides da Cunha, enquanto Fernando Pessoa não quis ir tão longe e, mergulhado em seus eus, cravou que “o poeta é um fingidor, que finge tão bem, que finge ser dor a dor que deveras sente”.

Há algo que me atrai nesse tipo de frase vaticinante, paralisante (lacrante, dirão os da geração MMA/Tuíter), que encerra a questão e aponta logo a cova para onde deve ser mandado o glorioso morto. Parece simples — afinal, soltar uma frase assim é fácil —, mas para ela ganhar esse poder todo, capaz de encerrar uma discussão — ou iniciá-la —, de ser repetida todos os anos por professores de literatura ávidos pela hora do almoço que não chega, para ganhar esse peso todo é preciso algo mais. Faço ideia nenhuma do que seja. Já me aventurei várias vezes por essa senda, sempre sem sucesso. Tento aqui novamente: “O ombudsman é acima de tudo um chato.” Está aí, redonda e definitiva — ao menos em pretensão. Ao que acrescento: no caso de RelevO, o ombudsman, além de chato, é prolixo. Não entenda o leitor, a leitora, e o próprio ombudsman, aqui qualquer ranço pessoal com Cezar Tridapalli, mas fique à vontade para ver um pingo de inveja, despeito.

Pois, desde que descobri essa função — na época em que Folha de São Paulo tinha resquícios de Jornalismo e não era pura publicidade travestida de jornalismo de segunda —, achei que tinha a minha cara, e muito me esforcei para estar à altura do cargo no momento oportuno. Segui um par de anos assim, até que meus amigos mais próximos me avisaram (foi numa discussão sobre o Japão e sua cultura, quatro horas da manhã): “dalmoro, você está muito chato, ô, caralho!”.

Estando pronto para o cargo, mas sem nenhum convite para exercê-lo, comecei a cogitar que deveria abrir mão do duvidoso e garantir as amizades certeiras. Isso virou convicção (não a made in Curitiba, até porque abomino Power Point desde o Windows 3.11) quando o poeta Cassio Correa me apresentou seu projeto de “Ombudsman do mundo”. Achei a ideia fantástica, tudo o que sempre sonhei (como canta Pullovers), e vi que havia mesmo ficado para trás. Fui ser guache na vida — resignadamente banal, sem peso de óleo ou leveza de aquarela, sem me chamar Carlos, nem rimar como João.

Enfim, o ombudsman de RelevO. Recém comecei a acompanhar o jornal, de modo que não sei o quanto concordo com tri-ombudsman — me centro mesmo na forma. Hei de convir, antes de mais nada, que faz seu papel, e ataca o jornal sem concessões — diferentemente dos últimos da Folha que acompanhei, mais de meia década atrás, que exerciam a função de “ombudsman de defesa”, apontando as falhas dos leitores. Mas talvez devesse ceder um pouco e desenhar uma crítica um pouco menos em seus juízos de valor. Sim, há vários pontos que eu não “concordo”, por não coadunar com meu senso estético, às vezes em suas filigranas. Mas meu senso estético, se consegue se basear em certo repertório erudito e premissas racionalizáveis, não deixa de ser questão de gosto.

 

Da redação:

A partir de agosto, habemus novo ombudsman. É Robson Vilalba, artista gráfico, vencedor, em 2014, do Prêmio Vladimir Herzog pela série Pátria Armada Brasil. O material sobre o golpe militar de 1964 gerou a graphic novel Notas de um Tempo Silenciado, lançado pela BesouroBox em 2015.

Acreditamos que o cargo de ombudsman é de suma importância para o jornalismo literário que propomos. Buscamos transparência, humor, compromisso com o texto e tocar um periódico destituído de amarras senão aquelas que prometemos a cada assinante, de entregar mensalmente um jornal divertido e um tanto inconsequente.

Cezar Tridapalli: Despedida

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Acho curiosa a ênfase que o RelevO dá a suas entradas e saídas financeiras, como se fosse um órgão público financiado com dinheiro público. Esse rigor assíduo das lamentações me faz suspeitar que o jornal quer manter e ampliar a base de assinantes despertando piedades, convocando o altruísmo de quem fala “nossa, coitados, não recebem nada pra fazer isso”. Gostemos ou não, o jornal está dentro da mais lisa e límpida lógica capitalista: vai ter assinante enquanto tiver gente disposta a pagar uns dinheiros para receber uma experiência de leitura impressa. Se, somando e subtraindo as contas mensais de cada um, a experiência valer esses dinheiros, o jornal terá assinantes.

Pode ser nobre abrir as contas e mostrar pudor ao dizer que a equipe cogita receber pelo trabalho. Na prática, não há qualquer necessidade disso. O assinante paga pelo conteúdo do jornal, o anunciante paga para aparecer com um destaque que julgue compatível com o investimento. O que o jornal faz com o dinheiro de assinatura e anúncio não deveria ter nenhum interesse, tal informação no máximo alimenta a fofoca e o imaginário. Qualquer gasto do eventual lucro somente diz respeito a quem o gasta, não a quem paga, pois quem paga, paga pelo jornal e não para saber se a equipe vive mal ou bem. Quer um conteúdo significativo, quer que sua marca apareça decentemente. Ninguém pode chegar falando “ôrra, galera tá ficando rica às minhas custas”, “dia desses vi o editor tomando cerveja artesanal de 14 real”. Resumindo: leitor assinante paga para receber e ler, anunciante paga para aparecer. Equipe do RelevO: faz um jornal que cause desejo e demanda, e envia corretamente. O que liga leitor, anunciante e editor é o jornal, o papel em sua forma e conteúdo. Não de onde assinantes e anunciantes tiram seu dinheiro e nem para onde esse dinheiro vai quando entra na conta da equipe. Não precisa gastar editoriais inteiros para angariar compaixão.

Pode ser cinismo meu, uma coisa muito “gestão empresarial e pragmática” para um jornal que é, veja bem, de literatura, que lida com subjetividades, mas desde o início imaginei que uma das minhas funções fosse estabelecer contrapontos. Exercício de ombudsman lida o tempo todo com a questão do duplo, a gente se desdobra para construir outras lógicas e trazer à tona um olhar novo que, como tal, pretende colocar na cabeça de leitores e editores sempre um “é mesmo!”. Muitas vezes falhamos miseravelmente (que clichê gostoso), mas a gente tenta, é nossa linha do horizonte, a utopia que faz o ombudsman caminhar: provocar um “é mesmo!”. Ou pelo menos testar convicções.

 

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Quando fui convidado pelo editor-chefe deste RelevO, foi-me proposto trabalhar de três a nove edições. Encerro minha participação na quinta. Pode parecer pouco, mas achei sufi ciente. Além de questões pessoais (sempre importante ser ombudsman de si mesmo), percebi que deixei o meu recado, fiz a minha avaliação dos pontos que julguei mais importantes. O periódico tem esse formato de compilação de textos e isso não vai mudar. É diferente de um veículo diário de imprensa com seus vários cadernos e notícias aos montes, que a todo o momento está sujeito a escorregar numa tomada de posição, subestimar alguma pauta fundamental, ser francamente tendencioso em relação a temas que mereceriam ter dois ou mais lados contemplados. Nesses casos, cabe perfeitamente a figura de um ombudsman que fique um ou dois anos. No caso do RelevO, desde que achem mesmo importante manter essa figura – que não seja mero fetiche jornalístico –, temporadas curtas são a meu ver o melhor caminho. Depois de entender o mecanismo de funcionamento do jornal, de apontar pontos fortes e fracos, de perceber que alguns padrões não vão mudar, o que resta?

Tirar o time de campo e dar a vez a outros olhares.

A curta experiência não deixou de ser intrigante para perceber o quanto esse verbo, “perceber”, entra na rede de representações que as pessoas têm dentro de si, recombina o que está lá dentro e gera reações muito diferentes. Leitores me acharam cruel, outros me criticaram por ter puxado o freio nas edições seguintes. Ombudsman não é – ao menos não necessariamente – a figura que chega “para falar mal”. É alguém que compõe o conjunto de olhares sobre uma publicação e que, como qualquer leitor, pode escrever elogiando ou descendo a lenha. A vantagem é que a gente ganha um espaço maior e tem certeza de que será publicado.

Enfim, agradeço o convite e o espaço que ganhei durante cinco meses. Aprendi mais do que ensinei, em que pese a retórica meio demagógica dessa afirmação.

Cezar Tridapalli: Muros e demolições

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O RelevO de abril está afiado. Depois de minha apresentação em janeiro e minhas críticas duras em fevereiro e março, apontadas pelos leitores – uns gostando, outros não –, creio ser o momento de pensar o jornal com uma lente diversa. O jornal não me comprou, até porque, sabemos bem, dinheiro não é o forte da publicação e o choro a esse respeito tem cadeira cativa a cada número.

O que me move hoje é pensar um tema que – desde que recomecei a ler o jornal todos os meses, e texto a texto – tenho percebido como importante para os leitores. Das últimas edições (e eleições) de 2018 até esse abril de 2019, sempre há alguém falando sobre a postura política e ideológica do jornal, cobrando ou avalizando o modo como o RelevO se comporta.

Assumir um lado do espectro político, seja esquerda ou direita, liberal ou conservador, capitalista ou comunista, é fácil, é simples. Elegem-se temas e textos, que elegem também o público: uma das alas da relação dualista cai fora, a outra abraça a ideia. É assim que se cria mais um instrumento para o júbilo dos amigos e a fúria ou a indiferença dos inimigos. Em um país marcado por uma polaridade tão flagrante, cujo diálogo foi cortado, não entendo que pular para um dos lados do muro e ficar nele seja desejável para um jornal de literatura. Portanto, minhas críticas anteriores falavam mais era da falta de jeito de selecionar os textos e de arremessá-los nas páginas. Que um jornal de arte e literatura não deva querer ser enfeite, isso é muito bom, mas também não pode ser um aglomerado qualquer e se rotular como artístico “porque arte é isso mesmo, essa coisa muito lôka”. Ser louco e ser artista/jornalista que usa a eventual potência da loucura são coisas diferentes.

Retomo agora a primeira afirmação que fiz, lá no primeiro parágrafo: o RelevO de abril está afiado. E não é para selecionar o público, não é para dividir seus leitores entre rivais e amigos, entre aqueles que concordam e aqueles que discordam. É porque o RelevO está sim fazendo política e está sendo ideológico. Como não sê-lo? Mesmo se publicasse receitas de bolo, com o país em frangalhos vexaminosos, seria ideológico, estaria tomando o partido da indiferença e da aceitação. Mas o RelevO não faz isso quando escolhe, por exemplo, publicar uma entrevista sobre histórias em quadrinho que pretendem recontar a História (“A rainha-cadáver do mundo ibérico”), ou um relato pessoal da escritora Natalia Borges Polesso (“Eu escritora, eu lésbica”. O poema da página 11, aliás, é dela?), ou ainda quando satiriza frases-feitas, a autoajuda melosa que em meio ao abandono da educação e da cultura anda tendo, cof, cof, caráter formativo (adorei o José Viral, 17, que teve a grande sacada da vida quando leu no Facebook “Não importa o que você decida, importa o que te faz feliz”), entre tantos outros exemplos e escolhas da edição de abril. Isso é ser afiado sem conversa fiada. É ser afiado quando se consegue espetar o gume em gregos e troianos, na carne que sentir a pontada. Ou alguém aí, filiado a gregos ou troianos, se acha livre de defeitos? Deixar-se cortar pode ser sábia decisão. Deixar a lâmina aguçada do texto abrir uns talhos em nosso mundo simbólico instituído é o que nos faz mudar. Só a fissura no concreto armado das nossas convicções pode nos demover, comover, mover. Só fazemos travessia, ou seja, só saímos de onde estamos se algo nos desequilibrar e nos obrigar a buscar equilíbrio em outros portos, até uma nova travessia. O próprio ato de andar pede de nós desequilíbrio para reequilibrarmo-nos.

De tempos para cá, também percebo a menção do jornal ao caos. Só no editorial de abril, o caos apareceu três vezes. Já falei nas edições anteriores do caos-bagunça, sem a proposição de uma nova ordem, o que é lamentável. Mas há um caos necessário, que revolve a ordem instituída – com a qual, desconfio, não estamos contentes – e pode (deve?) provocar divergência e diversão (falei mais longamente sobre a di-versão na edição de março). A demolição de uma ordem social pode se dar na marra, com a organização de grupos que cheguem quebrando tudo, ou podem se dar – mais lento, mas mais consistente – com a leitura, tendo a palavra uma grande capacidade de tornar as nossas barreiras mais permeáveis, mais porosas, recombinando sua matéria ou mesmo erodindo-a.

A figura do isentão é malvista. O isentão fecha os olhos, ou talvez os abaixe para ver melhor o umbigo. Mas a ideia de estar em cima do muro sempre me foi sedutora, acho a imagem bem rica. De cima do muro pode-se olhar para os dois lados e para as linhas do horizonte, descobrir a comédia humana em ação, assistir à miséria humana em ato. Porque quem está só em um dos lados não vê o outro, vê um muro e atira pedras sem saber direito em quem acerta.

Ficar em cima do muro – entendam, é uma imagem retórica, pois sabemos que descemos dele muitas vezes – é ter ponto de vista privilegiado, mesmo que sejamos alvos fáceis de pauladas e pedradas.

Enfim, lâmina afiada e caos resumem a cadeia significante que propus para a avaliação do RelevO de abril. A lâmina revolve, busca fazer do caos uma outra ordem possível e oculta. Pode machucar, mas desperta todo o mundo que não está anestesiado. E espero que não estejamos.