Destinos, o Grande Jogo, aqueles que não cabem em editais

Editorial extraído da edição de abril de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Desde sua fundação, em agosto de 2010, o RelevO nunca se propôs a ser apenas um jornal de literatura ou, pior, um jornal de pares, com uma galeria de ilustrados recorrentes e um pequeno lote para os candidatos a ilustrados. Nosso propósito sempre foi mais ambicioso, ou melhor, em uma direção menos óbvia: sustentar, com independência e vigor, um espaço em que a linguagem possa confrontar, subverter, emocionar e provocar — sem dar sustentação a CPFs conhecidos, currículos repletos de conquistas ou medalhões dispostos a colocar mais um X na imensa lista de lugares em que foram publicados.

O RelevO é um jornal de textos que gosta de outsiders, famigerados, inclassificáveis, amaldiçoados pela sina da prateleira de baixo. Gostamos dos indóceis, dos que não pedem licença para escrever. Gostamos dos que não cabem em editais nem em feiras temáticas. Dos obsessivos, dos desajustados, dos desafinados. Publicamos o que não se encaixa — e é justamente esse desalinho que nos dá forma. Por fim, ainda tentamos praticar algum humor pelo caminho. Na contramão dos tempos vigentes, nos dedicamos à permanência — ao gesto e ao gosto de editar, imprimir, dobrar e enviar literatura pelo correio, mês após mês, como quem aposta na repetição da palavra impressa e na presença do outro.

Nosso jornal é feito de margens: estéticas, geográficas, afetivas. Somos de Curitiba, mas quem nos conhece mais de perto sabe que não frequentamos nenhuma mesa das bandas que mais tocam na região. Gente que nunca havia publicado em impresso recebe um pagamento (módico, de R$ 60) e, a bem da verdade, pouco nos interessa de onde seja quem escreveu. Também não nos interessa tanto de onde somos. Somos, afinal, um jornal de textos para leitores e que orgulhosamente não segue tendências — publicamos apenas aquilo que, de alguma forma, nos comoveu.

[Aliás, passamos os últimos três meses (e contando) lendo novos materiais e dando devolutivas aos escritores. De modo geral, é um processo tranquilo, lento e individualizado, embora um & outro acabe nos homenageando assim, de um jeito mais universal:

“Percebo que seu comitê de leitura é assustadoramente limitado. Acho que vocês não entenderam nem meia palavra do significado da minha poesia de renome mundial. Mas cada um tem o direito de decidir como quiser. […] Muito obrigado, vocês são um bando de transexuais brasileiros idiotas que não entendem nada de arte. Dancem no Carnaval do Rio fantasiado de bufões e parem de se preocupar com arte. Seus idiotas!”.

Apesar desse tipo de retorno, digamos, mais emotivo, trata-se de um processo muito produtivo e que nos coloca diante do novo-novíssimo e do velho-velhíssimo. A partir dele, tentamos entender o que, hoje, leva um escritor ou uma escritora a sair dos escombros de uma página em branco e se mostrar ao mundo, a começar pela aldeia dos impressos.]

E quem lê tudo isso que publicamos há quase 200 edições? Quem nos ajuda a sustentar esse espaço rarefeito, improvável e um tanto fadado às melhores caixinhas de pets? É o leitor, a leitora; o curioso; o inquieto; o generoso; quem nos descobriu em uma panificadora de domingo; quem buscou uma edição em uma biblioteca pública. É o leitor que folheia o jornal no café da manhã ou no ponto de ônibus, que guarda um exemplar debaixo do braço, que marca uma frase com lápis e envia um e-mail depois dizendo “essa aqui me acertou em cheio” ou nos marca nas redes. O RelevO é um jornal feito com e para leitores que não querem apenas confirmar o que já sabem, mas topar o risco de serem desorientados por um bom texto. Leitores que sustentam, com suas assinaturas e sua atenção, a possibilidade de um jornal que não lambe vitrines nem serve de escada para o ego de ninguém.

Não temos um “comitê de curadoria” sentado em poltronas suecas, com jalecos conceituais e cenho franzido. Temos um grupo de pessoas cansadas, sim, mas inteiras, lendo tudo com o máximo de atenção possível. E o que torna tudo isso possível, mesmo com orçamento apertado e olheiras persistentes, é saber que há gente do outro lado. Gente que valoriza o texto bem colocado, o humor desgraçado, a imagem improvável. Gente que quer mais do que o óbvio.

E por isso, mais do que nunca, reforçamos: assim como a Receita Federal e a Wikipédia, o RelevO precisa de você. Assine, recomende, presenteie, envie àquele amigo estranho que coleciona selos e sublinha contos tristes. A cada assinatura, renovação ou exemplar enviado de presente, testemunhamos um pacto silencioso, porém profundo. Trata-se de um compromisso que vai além do apoio financeiro: é a afirmação de que ainda existe valor na leitura cuidadosa, na surpresa de uma página inesperada, no pensamento que se forma devagar, ao ritmo do papel. Os assinantes são os verdadeiros patronos dessa iniciativa.

Afinal, temos estrelas direcionando nosso destino ou somos meras peças do Grande Jogo? Talvez um pouco dos dois. Talvez sejamos somente um jornal literário de Curitiba, com orçamento apertado, diagramado madrugada adentro e enviado pelo correio com a esperança de que alguém, em algum lugar, vá folhear e nos dar um pouco de tempo. Mas também gostamos de pensar que temos textos nos guiando — um tipo de constelação que se forma quando um conto, uma crônica ou um ensaio encontra seu leitor, quando um envelope cruzando o país vira um sinal improvável de que a linguagem ainda conecta algo.

E se o destino tem mesmo estrelas, quem segura a luneta somos todos nós: leitores, apoiadores, autores, editores, críticos e entusiastas. Cada assinatura é uma pequena revolução contra a pasteurização cultural. Cada apoio é um lembrete de que ainda há espaço para o singular, o excêntrico, o fora de catálogo. O RelevO não existe sem você. É um projeto coletivo, imperfeito e orgulhosamente artesanal — mas é também um delírio compartilhado que resiste ao tempo, aos cortes e às certezas.

Por isso, deixamos aqui o convite: apoie o RelevO. Se você já é parte disso, renove. Se ainda não é, venha. Junte-se a nós nesse jornal que ousa ser ao mesmo tempo palco e bastidor, confessionário e picadeiro, bússola e tiro no escuro. Porque, no fim das contas, talvez sejamos todos peças do Grande Jogo — mas, juntos, podemos mover a pequena mesa da nossa sala.

Boa leitura a todos.

A imagem, o som e a letra impressa

Editorial extraído da edição de março de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Quando o RelevO surgiu, em setembro de 2010, éramos pura celulose e tinta, um amontoado de páginas que se recusava a obedecer a qualquer lógica que não fosse a nossa. A cada edição — com diagramação gradativamente melhor —, fomos desenvolvendo algumas linhas de certo humor caótico, ideias que se jogavam do penhasco sem saber se havia chão. Agora, estamos prestes a expandir nosso bestiário para o audiovisual. É um novo horizonte para esse modesto balcão organizado. Mas não se preocupe: ainda gostamos do cheiro do papel e da sensação reconfortante de que, mesmo se a internet cair, o impresso continua ali, firme, na gaveta, debaixo da mesa ou servindo de apoio para aquele pé de cadeira bambo. Mais: o impresso paga contas.

Nosso jornal sempre foi um convite à leitura torta, ao texto que parece errado. Agora, queremos experimentar o peso da imagem, o ritmo do som, as possibilidades do movimento — sem perder nossa veia seletiva, satírica e, acima de tudo, inquieta. Isso significa que [quem sabe] teremos vídeos desafiando a lógica do algoritmo e um conteúdo visual que, se bobear, poderá muito bem ser desenhado à mão. Vamos estudar as possibilidades, sem esquecer que nosso porto-seguro é de papel, dobra no meio e resiste ao tempo melhor que qualquer feed.

A expansão para o audiovisual nem tem como implicar um adeus ao impresso — longe disso! É só mais uma forma de provar que a palavra não precisa ficar restrita a um formato. Vamos testar novas formas de contar histórias e provocar. Quais? Ainda não sabemos; estamos apenas confabulando. Precisamos apenas continuar nos divertindo e desempenhando algo dentro do nosso limite técnico. Nosso singelo círculo de competência. Temos o mais difícil: anos e anos de conteúdo original, não necessariamente de qualidade.

Mas calma, para quem já estava preparando o textão, quem sabe alardeando que “o RelevO se vendeu para as telas”, fique tranquilo. Nosso maior sonho ainda é perder a alma para a Red Bull e virar um cone de arrancadão. Nossa tradição gráfica segue viva e forte. Continuaremos a estampar páginas com textos que desafiam padrões, referências que só três pessoas entendem e piadas que, às vezes, só fazem sentido três edições depois. A diferença é que esses mesmos devaneios febris poderão ganhar voz, trilha sonora e até dublagem dramática.

Portanto, revisem seus conceitos de Jornalismo sério e esperem por algo que nem nós sabemos exatamente como vai ser — essa sempre foi a nossa maior especialidade. O RelevO está ampliando sua bagunça organizada. A diferença é que, agora, talvez ela tenha vinhetas.

Os rumos do impresso no país dos não leitores

Editorial extraído da edição de fevereiro de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Em um cenário saturado pelo digital, onde o scroll infinito domina as interações e o tempo livre, mudando a percepção de foco e derretendo nossa concentração, a alternativa do impresso justifica sua existência de formas cada vez mais lógicas. Na competição diária pela atenção e na macarronada de algoritmos moldando nossos interesses, o impresso oferece uma pausa intencional e menos fragmentada, algo que a experiência digital – cada vez mais como uma roda de hamster a serviço de anúncios – dificilmente consegue (ou tem interesse de) replicar.

A recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, trouxe à tona a grave realidade do desinteresse pela leitura no país. Mais da metade da população (53%) não leu sequer parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa, independentemente do suporte. Esse dado é comovente não só por demonstrar a desconexão com o hábito da leitura como um todo, mas também por revelar um sintoma mais profundo: uma sociedade em que não ler caminha para a norma, ao contrário do uso de tecnologias cada vez mais balbuciantes. (Convenhamos, não que antes da internet o Brasil fosse o Olimpo da intelectualidade…)

Outro dado merece atenção. A predominância do celular – 75% dos entrevistados afirmam passar mais tempo no dispositivo do que com um livro impresso –, quase uma platitude, traz uma ponderação acerca do impacto das telas em outros aspectos da vida. A hiperconectividade digital não afeta só os hábitos de leitura, uma vez que transforma o modo como nos relacionamos com o tempo e com o mundo físico. Atividades que dependem de presença, como caminhar, visitar amigos, ou até mesmo o estabelecimento de vínculos íntimos como… sexo, estão em declínio, substituídas por interações mediadas por telas.

Claro que estamos falando de uma generalização a partir de dados – e que temos, sim, zonas de respiro também nas gerações nascidas já com a internet em domínio. E não esqueçamos novamente da pesquisa: apenas 17% dos adultos acima de 40 anos têm o hábito da leitura. É uma geração pré-internet. O problema é muito mais antigo. Entendemos que o impresso, nesse cenário, pode se tornar, paradoxalmente, um ato de renovação, já que o formato não se limita somente à transmissão de informação; é um retorno à experiência tátil, visual e emocional. Livros, revistas e jornais oferecem um tipo de interação imersiva e não linear, permitindo ao leitor pausar, reler e contemplar, em oposição à efemeridade do conteúdo digital. Impresso não tem pop-up. Para além da nostalgia, o impresso encontra novas justificativas para sua existência: é um meio que incentiva o foco, a introspecção e o distanciamento saudável da saturação informacional.

Assim, o desafio não é resistir ao digital, tampouco introjetar leitura em dançarino do TikTok, mas construir uma cultura em que o consumo de conteúdo impresso seja mais presente. Chamamos isso de letramento analógico. Em um país onde a quantidade de não leitores supera a de leitores, fomentar o hábito de leitura é um passo vital para formar indivíduos menos… derretidos. Não que o RelevO, especificamente, vá salvar o Brasil de seu buraco quente (não o sanduíche), mas as redes dos bilionários malucos da ideologia californiana do Vale do Silício certamente não estão aqui para nos conduzir à evolução.

No dia a dia do Jornal, conversamos muito sobre o letramento para impresso. O que isso significa? É a nossa tentativa miúda de colocar mais leitores em contato com a nossa “plataforma”. Nosso plano logístico de distribuição, que dá acesso [grátis] ao periódico em mais de 400 pontos culturais do Brasil, tem como mote o contato com o impresso. O plano é todo financiado por nossos assinantes. Também pensamos no acesso do Jornal aos escritores. Janeiro, por exemplo, é o mês em que fazemos as devolutivas dos autores e autoras que mandaram materiais no último semestre. Acredite: muitos escritores nunca folhearam uma edição do RelevO (ok) ou sequer de outro impresso (aí complica). Mesmo entre aqueles que escrevem, as trocas de mensagens são estarrecedoras. “Olá, obrigada pelo retorno, mesmo que vocês não utilizem meu material. Quem sabe na próxima! O que é periódico? Gostaria de entender melhor” ou “Estava mais interessado na publicação do que na leitura do Jornal, não precisa mandar a edição de cortesia não”. “Mas como chega o jornal? Por email?”. Todos exemplos reais, ipsis litteris.

Em outra ponta, enquanto o Brasil vê regredir sua curva de leitura rumo ao grunhido, até mesmo gigantes do setor digital tomam ações na direção do impresso. A recente decisão da ByteDance, dona do TikTok, de expandir sua editora 8th Note Press para o mercado de livros físicos, é emblemática. A gigante chinesa aposta no crescimento da comunidade BookTok para lançar livros impressos voltados às gerações Millennial e Z. Paralelamente, revistas como Vox, Vice e Saveur retornam às bancas, ao passo que o mercado americano celebra o lançamento de mais de 70 novas publicações impressas apenas no último ano. Por aqui, temos o retorno ao impresso da folclórica Capricho.

Claro: em tempos de incertezas, a nostalgia desempenha um papel importante. Objetos físicos, como livros, vinis e câmeras analógicas, carregam uma carga emocional que os torna refúgios em meio ao barulho. Revistas impressas, muitas vezes transformadas em peças de decoração ou colecionáveis, ganham espaço pela experiência sensorial de folhear suas páginas e pelo valor estético de seus projetos editoriais minimalistas. Em muitos casos, isso não deixa de ser apenas um fenômeno de boutique.

De fato, o prazer do toque, da textura e do cheiro das páginas não pode ser replicado pelo digital. Não há interrupções irritantes, anúncios invasivos ou notificações que desviam a atenção. A leitura flui em um ritmo próprio, permitindo uma experiência limpa e imersiva. Além disso, o impresso resgata a noção de permanência. Enquanto plataformas digitais adicionam e removem conteúdos sem aviso, o que mantemos fisicamente em nossas mãos reflete nossa identidade e gera memória. Livros e revistas tornam-se extensões de quem somos, objetos que não só representam nossas preferências, mas também estreitam laços e promovem a troca de ideias. Impresso não pode ser editado a posteriori.

O milésimo renascimento do impresso não significa uma rejeição ao digital, mas sim uma convivência harmoniosa entre os dois formatos. Ambos têm seus méritos: o digital para a instantaneidade e o alcance global, e o físico para a profundidade e a conexão emocional. É nessa coexistência que leitores, criadores e editores encontram novas possibilidades: estamos falando de reimaginar o século 21 antes que ele se torne o ferro-velho completo dos bots.

(Outra) carta aos leitores em (outros) tempos difíceis

Editorial extraído da edição de janeiro de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Chegamos ao início de um novo ano carregando as marcas de 2024, quando conseguimos a façanha de fechar nove meses no vermelho – um recorde não atingido desde 2019. Os últimos meses exigiram de todos nós uma série de novas habilidades para enfrentar percalços que insistem em testar nossa capacidade de seguir adiante, não sem repensar o modelo de negócio e o próprio negócio em si. Será o momento de parar? O nosso corpo de assinantes finalmente… cansou? Em meio às incertezas, é reconfortante observar que, mesmo quando nosso pequeno mundo parece vacilar, o jornal impresso segue como um abrigo seguro, uma alternativa, uma ponte entre o caos e o repouso. Lembremos que 2024 foi repleto de intensos debates sobre os limites e os transtornos provocados pelo excesso de tempo diante das telas. Brain rot, de “cérebro apodrecido” ou “atrofia cerebral”, foi eleita a palavra do ano pelo Dicionário Oxford.

Ao virarmos a página do calendário, refletimos sobre os desafios enfrentados e renovamos o desejo por um ano melhor. Todos os janeiros carregam em si essa promessa de recomeço, de página virada – para usarmos uma imagem gasta –, mas também nos lembram de que o ciclo de dificuldades faz parte da própria experiência humana. Talvez, soando um pouco como Osho (pronuncia-se Oxxo), ao reconhecermos a repetição desses padrões, podemos assumir tanto as dores como as possibilidades de transformação que elas trazem.

Para muitos de nós, escrever e ler não são apenas atos culturais, mas também atos de manutenção e de escape. É verdade que as crises têm cobrado seu preço também deste universo. Pequenas editoras lutam para lançar seus livros, livrarias de rua resistem ao fechamento e ao mercado predatório digital, e escritores enfrentam o dilema de criar em meio às pressões cotidianas, como pagar aluguel e tratamentos médicos. A vida custa – inclusive, está bem mais caro o cafezinho que acompanha a leitura habitual de jornal. Ao mesmo tempo, nesses momentos vemos nascer iniciativas coletivas, projetos colaborativos e movimentos que reafirmam a força da literatura como um bem comum. A produção literária se transforma, encontra novos meios, alcança novos leitores. Ou, então, assumimos de vez que a literatura é um privilégio e vamos todos assinar o streaming menos invasivo por R$ 59,90 ao mês.

Aos nossos leitores, queremos dizer: estamos aqui. O Jornal RelevO continua como um espaço para acolher vozes diversas, para impulsionar novos autores e praticar algum humor. Seja parte deste exercício de continuidade: leia, escreva, divulgue, compartilhe, assine.

Que 2025 seja um ano melhor.

Por uma boa leitura,

Equipe do Jornal RelevO

Dobras de 2024: ventos contrários, páginas viradas, publicando sob sol e chuva

Editorial extraído da edição de dezembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


2024 foi e ainda é um ano que merecia virar personagem do RelevO: cheio de nuances, tropeços e desvios, daqueles que a gente acompanha com uma mistura de desconfiança, preocupação e esperança, torcendo para um bom ponto de virada, como se o arco narrativo estivesse próximo do final feliz. No limite, como todo bom personagem de humor caricato, 2024 conseguiu arrancar um sorriso de leve e alguma faísca de otimismo. Nos vemos na canção ‘Aprendizagem’, de Yamandú Costa (não confundir com o personagem Yamancu Bosta, que já constou em nossas páginas): “Quando lembro cada página do meu passado / Nunca me arrependo / Do que foi lembrado / Do que foi riscado / E dado pra viver”. Todos temos o nosso tempo de aprender.

No aspecto financeiro, foi especialmente desafiador. A instabilidade nos obrigou a fazer malabarismos que dariam inveja a qualquer trapezista. Mas sobrevivemos, sobreviveremos. Aliás, sobreviver parece ter virado nossa especialidade desde 2010 – e assim pensamos até quem sabe termos o mínimo controle dessa trama, apesar de não vivermos uma semana sem alguém sugerir que sejamos um periódico online.

Aprendemos muito. Descobrimos que consistência e teimosia são ferramentas indispensáveis quando os recursos estão em falta. Com mais coragem que precisão, seguimos publicando. Fomos em diversas feiras literárias independentes pela primeira vez – e não passamos vergonha. Aliás, até fizemos bonito, se nos permitem a modéstia de quem levou uns “não” educados antes de ouvir alguns “sim” pelo caminho. O RelevO tem 14 mil seguidores no Instagram e uma coleção de mais de 27 mil negativas ao longo de sua história. Somos especialistas em obter recusa. Outro número interessante: depois da assinatura, mais de 3.500 indivíduos desistiram de seguir conosco ao longo de quase 15 anos.

Outro marco importante foi ampliarmos nossa distribuição. Agora, temos leitores em lugares onde nem sabíamos que chegaríamos, além de estarmos cada vez mais próximos de chegar ao patamar logístico que tínhamos antes do início da pandemia. E sim, ultrapassamos a marca de 1.000 assinantes. Sabemos que isso não nos torna nenhum gigante do mercado, mas, para nós, é um feito enorme. A cada assinatura renovada, a gente festeja como quem desenterra um tesouro escondido no quintal. (Ok, sem exageros – é algo mais prosaico, como encontrar dinheiro esquecido no bolso do casaco.)

Queremos que 2025 seja o ano do Jornal. Nosso plano é participar ainda mais de eventos independentes. Queremos que a nossa lojinha finalmente saia do papel e comece a funcionar – e queremos lançar o livro dos 15 anos do RelevO, com os nossos melhores textos publicados de 2015 pra cá. Afinal, temos o RelevO 5 Anos, que, inclusive, pretendemos relançar no pacote de novos erros editoriais.

Também estamos de olho em algo ousado: ter menos prejuízo. Quem sabe até um dia chegar no tão sonhado “se pagou”. O breakeven constante. 2024 foi um ano de nove meses no vermelho. Mais que isso, queremos continuar nos divertindo. Publicar bons textos, seguir como um espaço onde leitores e escritores se sintam em casa, mas não a ponto de querer trocar assinatura por texto publicado.

Que venha 2025, portanto! Continuaremos aqui, materializando o calendário, rabiscando futuros, inventando projetos e provando que um jornal independente pode, sim, seguir em frente – mesmo com alguns descompassos. Quem sabe, no próximo editorial, estaremos comemorando não só a sobrevivência, mas também o encontro leve entre a incerteza e a nossa narrativa.

Queremos ser a Bladnoch (antes da venda ou depois também)

Editorial extraído da edição de novembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


A Bladnoch, da região de Lowland, na Escócia, é uma pequena destilaria localizada perto de uma aldeia (e rio) de mesmo nome nos arredores de Wigtown, cidade a umas três horas de Edimburgo, famosa pelas suas livrarias, que olham de frente para a Irlanda do Norte. É a destilaria mais ao sul da Escócia. A população estimada de Wigtown é de 1.000 pessoas, um pouco menos que o número de assinantes do RelevO.

A destilaria surgiu em 1817. Ficou nas mãos da família que a fundou até 1938, indo parar, então, numa prateleira baixa da United Distillers, atual Diageo, conglomerado de marcas que engloba a Johnnie Walker (e o Red Label…), a vodca Smirnoff, o gin Tanqueray e a cachaça brasileira Ypióca. A Bladnoch foi fechada em 1993. A partir daí, houve um interessante ponto de virada.

Em 1994, o topógrafo e desenvolvedor de propriedades Raymond Armstrong, nascido na Irlanda da Norte, comprou a propriedade com vaca, carneiro, destilaria desativada e tudo. Originalmente, ele buscava apenas uma casa de férias. Pois faremos uma coloração narrativa e presumiremos que os deuses do uísque tocaram o coração de Armstrong, que não tinha relações com a indústria de destilados até então.

Assim como Truman Capote intuiu os pensamentos do assassino de A Sangue Frio, entendemos que Armstrong passou a compreender o que a destilaria significava para a comunidade local, reconsiderou seus planos originais e passou a trabalhar na reforma do espaço para reativar a marca. Essa atitude – pois veja – incomodou a Diageo, que havia enterrado quase 200 anos de história pelo fato de a destilaria não ser lucrativa para o grupo.

Após divergências entre a antiga firma e o novo proprietário, estabeleceu-se que a destilaria poderia retornar com um teto baixo de produção, o que, para a estrutura histórica, não foi exatamente um problema. E assim a destilaria retornou ao mercado, pequena e aparentemente desimportante para a história do mundo, mas certamente não para o povoado de Bladnoch. Trata-se de um uísque especialmente agradável, recomendado até para beber com sobremesa.

Mas não paramos por aí. Um desentendimento entre Armstrong e seu irmão sobre a venda da destilaria acabou levando-a à liquidação em março de 2014. Em agosto de 2015, o empresário australiano David Prior comprou a destilaria, os armazéns e o charmoso centro de visitantes, bem como os estoques produzidos entre 2000 e 2009 por uma quantia não revelada, criando uma nova empresa, a Bladnoch Distillery Ltd., que mantém o mesmo espírito da destilaria. Ela se orgulha de ser a “menor” destilaria da Escócia, título que a Edradour também disputa. A empresa continua tecnicamente pequena, mas agora conta com uma rede de distribuição maior e um portfólio mais amplo de produtos.

O que a Bladnoch teria a dizer sobre a “indústria” de jornais impressos de literatura a partir de sua tumultuada história de vendas e aquisições? E qual seria o benefício de disputar para ser reconhecido como o menor em tempos de aquisições, holdings, fusões, filiais e franquias? A Bladnoch talvez nos sugerisse que, para manter algo genuíno e de valor, é preciso resistir às lógicas de mercado que achatam a cultura em favor da padronização e da rentabilidade. O uísque artesanal, envelhecido e restaurado por um certo amor à tradição e ao saber local, torna-se uma imagem para a sobrevivência da literatura independente e do Jornalismo cultural. Porém, não sabemos ao certo se resistir ao mercado é exatamente o que queremos enquanto RelevO. Talvez almejemos existir neste mercado.

Cada um desses universos lida com a pressão de se expandir, diversificar, aumentar produção e seguidores, contudo, no fim, o que realmente os torna únicos não é o tamanho da operação, e sim a profundidade da experiência que oferecem – e aqui também ficamos na dúvida se utilizamos o termo “experiência”, tão gasto pelas majors na atualidade.

Tal como Armstrong, que, ao perceber a importância da destilaria para o vilarejo, decidiu investir no projeto com mais dedicação que qualquer acionista distante poderia ter, o RelevO reconhece seu papel na comunidade de leitores que alimenta. E o RelevO também bebe. Ainda que pequeno, por escolha e necessidade, a decisão de ser “menor” é, em grande parte, uma resposta às engrenagens de um sistema que nem sempre reconhece o valor do peculiar e do pessoal, transformando tudo em opacidade linear.

Não há garantias, é claro; os altos e baixos, as vendas e recomeços são parte do processo. Mas a missão de preservar a identidade, mesmo quando isso não se traduz em expansão, é um propósito difícil de defender e explicar quando nos deparamos com os números frios. Com seu produto, a Bladnoch oferece sua interpretação de Lowland; nós, no RelevO, almejamos oferecer um lugar que não sabemos bem qual é, em edições limitadas e longe das grandes prateleiras. Sobretudo distante do Red Label.

Uma boa leitura a todos.

Na falta de um francês melhor, ser guache na vida

Editorial extraído da edição de outubro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


No editorial de setembro, mencionamos a revolução silenciosa do impresso em tempos digitais. Temos alguns motivos para acreditar em uma espécie de reposicionamento do impresso em tempos de adoecimento pelo uso excessivo de telas.

Ao mesmo tempo, tal qual o time pequeno que perde inúmeros gols fora de casa e sai derrotado por 1×0 no final em um lance isolado, fomos punidos pelos deuses do papel-jornal por arriscar tamanho otimismo: tivemos, no mês passado, um dos mais difíceis períodos de arrecadação para o custeio geral da nossa operação.

Diferentemente do impresso, em que sintetizamos um período a partir de textos e entregamos números finais, nossa presença digital acompanha um tanto das oscilações de caixa, do espírito do tempo mais curto, essa coisa do dia a dia mais repetitivo, necessário e desinteressante. Chegamos, e sabemos disso, a exagerar na passada de chapéu —que falta nos faz um sobrenome melhor… E cada novo assinante representa mais um voto de confiança, o que soa ao mesmo tempo simbólico e efetivo. O assinante é quem paga a conta.

Nas edições de julho e agosto, atingimos aproximadamente 95% da meta de arrecadação. Um prejuízo aceitável, do jogo e das oscilações da vida financeira de um negócio de pequeno porte. Então, veio setembro… E o resultado é perceptível na página 2, com o balanço geral da edição. Aliás, no Brasil, somos o único jornal impresso que apresenta publicamente as próprias contas.

E quanto custa, afinal e mensalmente, a operação RelevO? Em torno de R$ 10 mil, puxados, sobretudo, pelo custo de gráfica e de distribuição. O custo de pagamento de autores, além da equipe editorial, não pesa tanto porque, enfim, não remuneramos bem, embora não exista alguém não remunerado nos processos internos do periódico, dos autores aos empacotadores.

Por coisas que poderiam ser explicadas, quem sabe, pela projeção de signo, o editor acumula as funções de curadoria e pagador de boleto — em inglês soa mais imponente: publisher. Ou seja, seleciona textos, com o auxílio do editor-assistente e criador-culpado pelos textos da Enclave; encaminha dúvidas ao Conselho Editorial; conversa com possíveis ilustradores; questiona a resolução das imagens com a gráfica, o corte das páginas, “segue foto em anexo”. Essa é a parte realmente divertida.

E para lidar com tantas oscilações de nascimento & desenvolvimento, o lado B de gerirmos um pequeno negócio para seguir gerando divertimento, contamos com o senso de comunidade do RelevO, essa coisa que, ao longo do tempo, fomos criando, um certo jeito de se relacionar com as coisas que envolvem a escrita, a leitura e a discussão literária. Em suma, nosso senso de comunidade se constrói a partir de um ecossistema de trocas, apoio mútuo e pertencimento em torno de uma palavra ligada na outra, pagando contas e virando páginas.

Uma boa leitura a todos.

A revolução silenciosa do impresso ou 14 anos da primeira edição

Editorial extraído da edição de setembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Em 2 de setembro de 2010, o RelevO saiu com a sua primeira edição impressa, oito páginas, preto & branco, formato tabloide, 1000 exemplares de tiragem. A fatura da gráfica: R$ 200. A arrecadação do mês: R$ 200. Gastamos entre R$ 30 e R$ 60 com distribuição, concentrada em Curitiba e Araucária, cidade da RMC que foi a sede logística do nosso periódico por quase 12 anos. Pouco tempo depois da edição #1, adotamos o slogan “Não tem fins lucrativos — porque não consegue”, logo depois destituído em prol do elevado “Qualquer coisa, a culpa é do revisor”.

Na época, observávamos três movimentos regulares no mercado de jornais de papel: (1) o fechamento da versão impressa de diversos jornalões, (2) o aumento de custos de papel e de materiais de papelaria e (3) a migração de leitores para as novas mídias — fenômeno que veio a se alastrar com ainda mais força a partir da portabilidade de internet em celulares. Nosso primeiro anunciante, um proprietário de uma loja de calçados, inclusive, já na terceira edição, perguntou-nos se não era o caso de se tornar digital ou abrir um blog ou um portal de literatura.

14 anos depois, aqui estamos em um cenário que não é exatamente animador, mas se distancia com folga do clima de terra arrasada e de destruição dos produtos analógicos. Inclusive, a terra do eldorado digital passa por sérias problematizações e/ou necessidades de regulação, sobretudo por parte dos pais, que lidam hoje com crianças e adolescentes viciados em celular, com problemas visuais, claras limitações de interação física e local, desconstrução dos vínculos afetivos com a família, além do comprometimento da saúde física e psicológica, de estresse à ansiedade. Não estamos sendo saudosistas: apenas conhecemos as salas de aula.

Mas veja bem: não que isso tudo – que hoje vemos como pontos de atenção em relação às tecnologias – não existisse antes em um grau menor ou atrelado às mídias ditas tradicionais, como rádio e televisão. Apenas constatamos que a primeira década de internet ilimitada trouxe uma geração nova de distúrbios, que, parece, podem ser minimizados com comportamentos… analógicos — o famoso axioma do Filho de Steve Jobs, famoso por não deixar seus rebentos usarem dispositivos eletrônicos sem mediação.

Há uma sutil e silenciosa revolução acontecendo no interior dos negócios de comunicação, mais especificamente no que tange aos periódicos de nicho: “— podemos chamar isso de ascensão vitoriosa dos leitores relaxados que estão cansados de ler nas pequenas telas de seus celulares — e essa revolução tem a mídia impressa como protagonista”, na definição do professor em cibercultura Mario A. García (não confundir com Márcio Garcia).

Quem acompanha o dia a dia do mercado de feiras e festivais, além dos lançamentos de edições premium de clássicos repaginados, sabe que os produtos analógicos exercem poder de sedução, mesmo que os números do mercado livreiro tradicional não sejam dos mais promissores.

Entre os periódicos de literatura que orbitam tal ecossistema com certa desenvoltura, observamos uma recente onda de revistas independentes de pequenos lotes, com propostas que atravessam da curadoria de literatura, como o próprio RelevO, até revistas de invenção como a Caça & Pesca, além da novíssima revista Júlia, da Livraria e Editora Arte & Letra, que já se encaminha para a segunda edição.

Editoras ainda partem para clubes de livros personalizados, ao passo que a TAG (não confundir com Transtorno de Ansiedade Generalizada) Livros acaba de completar 10 anos, lidando com as perdas ocasionadas pelas enchentes do Rio Grande do Sul. Em paralelo, García ainda reforça o caráter de individualização do impresso, com embalagens que retornam ao prazer do tato, exploram as possibilidades de formato, resgatando a beleza de juntar palavras e imagens de um jeito próprio, aquilo que convencionamos chamar de experiência.

[as revistas] têm um preço premium, às vezes excedendo US$ 25 por edição, e são destinadas tanto para exibição em mesas de centro quanto para leitura. Seu conteúdo normalmente não está disponível online, reforçando sua natureza exclusiva e colecionável. Essas revistas atendem a interesses específicos, como escalada, surfe, esqui e corrida, enfatizando conteúdo de qualidade com publicidade mínima. Elas são projetadas para serem itens colecionáveis em vez de leituras descartáveis.

O RelevO não custa nem 25 dólares ao ano. Longe disso. Em quase 200 edições de papel, sem pular sequer um mês, seguimos em conflito com os custos operacionais da vida, mas convictos de que as mídias analógicas continuarão com o seu espaço — também desconfiando que a saída dos grandes jornais da mídia impressa é mais uma ação de diminuir o acesso das pessoas à informação do que estratégia democrática.

Ao nosso modo, entregamos também uma estratégia, um jeito analógico de existir no mundo. E já vimos crises suficientes para dizer que seguiremos como um impresso — enquanto tivermos leitores e leitoras dispostos a questionar a hipertrofia do mundo.
Uma boa leitura a todos.

“Como pensar o silêncio no meio de tão vasta explosão?”

Editorial extraído da edição de agosto de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Em 2017, em entrevista ao Diario de Sevilla, David Le Breton desenvolveu um ideário a favor da quietude, o silêncio como forma de resistência. “Boa parte da nossa relação com o ruído procede do desenvolvimento tecnológico, especialmente em seu caráter mais portátil: sempre carregamos sobre nós dispositivos que nos recordam que estamos conectados, que nos avisam quando recebemos uma mensagem, que organizam os nossos horários com base no ruído. Esta circunstância veio incorporar-se às que já haviam tomado forma no século 20 como hábitos contrários ao silêncio, especialmente nas grandes cidades, governadas pelo tráfego de veículos e por numerosas variedades de contaminação acústica”.

Na contemporaneidade, de fato, o silêncio tornou-se um luxo raro. Como definiu Eugênio Bucci, “Como pensar o silêncio no meio de tão vasta explosão? (Explosão, aliás, duradoura e persistente, que não é de hoje, que vem se intensificando pelo menos desde o final do século 19)”. O silêncio é uma ética. As nossas vidas são permeadas por um constante fluxo de informações , notificações e alertas que competem por nossa atenção, fragmentando nosso foco e nos empurrando para hábitos de hamster. A tecnologia, embora revolucionária em sua capacidade de conectar e facilitar — e não estamos aqui para defender luditas —, também nos joga a um ciclo incessante de estímulos sonoros e visuais, a uma certa prosa infinita do mundo, produzindo ruídos internos crônicos. Não é difícil observar a qualidade de nossas interações, envolvidos que somos por pastéis de vento emocionais.

O silêncio, para um jornal de literatura, por exemplo, não é apenas necessário, e sim a substância primeira de sua consolidação, uma forma de sobrevivência da experiência. Nesse sentido, torna-se uma forma analógica de resistência – termo cujo processo de banalização agora reforçamos. Resistir à tentação de estar constantemente conectado, resistir à pressão de responder imediatamente a cada notificação, resistir à cacofonia moderna que ameaça nossa capacidade de introspecção.

Hoje, a resistência ao ruído é, de certa forma, uma resistência ao próprio fluxo do tempo moderno. O pesquisador Adauto Novaes define a experiência de ser contemporâneo como fluxo tagarela: “Damos com muita facilidade e até certo desprezo um ‘adeus’ às palavras de maneira tão tirânica e tão natural que nem conseguimos colher imagens que ela nos propõe. Sem o tempo do pensamento, a simplicidade das palavras e a riqueza dos sentidos desaparecem no fluxo tagarela. Sem a experiência do silêncio não se entende o que se diz. Ora, conhecer uma coisa é experiência; conhecer o sentido da fala é experiência”. Seria verdade, então, que somente é capaz de silêncio um ser que pode falar que tem linguagem? Quem nunca diz nada, assim como quem nada tem a dizer, não consegue guardar silêncio?

Se pensarmos no Adonis de “Você, coisa incompleta, inicia a perfeição” como uma estratégia de definir um leitor, chegamos ao valor final absoluto: quem dá vida ao texto, transformando página em alguma coisa além de uma palavra colada na outra, é o leitor que se rebela contra o ruído, que, nas palavras de Frédéric Gros, faz do silêncio uma superfície isolante branca que serve de anteparo diante do ruído.

O caminho foi cantado há muito tempo pelos Secos & Molhados: “Eu não sei dizer / Nada por dizer / Então eu escuto (…) Eu só vou falar / Na hora de falar / Então eu escuto”.

Uma boa leitura a todos.

A arte de perder não é nenhum mistério

Editorial extraído da edição de julho de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Quando Elizabeth Bishop escreveu que “Tantas coisas contêm em si o acidente / De perdê-las, que perder não é nada sério”, certamente não se referia ao escopo de escolhas de um jornal de literatura, muito menos do RelevO. Mas isso não nos desanima, tampouco nos impede de forçar a analogia.

Na média, recebemos 400 textos por mês – muito mais que a nossa capacidade de leitura – e estamos sempre em débito com as devolutivas aos autores recusados, o que nos gera espezinhadas regulares nas redes sociais. Para Alain, em Considerações sobre a Felicidade, ninguém tem escolha. “A arte de viver consiste, antes de mais nada, parece-me, em não brigar consigo mesmo sobre a decisão que se tomou ou o ofício que se exerce”.

Escolher o que publicar é um exercício de curadoria complexo. Isso de sermos condenados a ser livres, de abraçar a incerteza e a ambiguidade, já que envolve uma análise subjetiva a partir do gosto dos editores somado à busca por uma compreensão objetiva de textos soltos que possam gerar um conjunto interessante para uma única edição. Por outro lado, gostamos da capacidade simples e prazerosa de identificar novos talentos. Tentamos, assim, ser um espaço de mediação que conecta escritores e leitores, os quais muitas vezes estão nas duas frentes.

Não temos a ambição de orientar os leitores em meio à enxurrada de informações, destacando obras que merecem atenção pela sua qualidade, originalidade e pertinência. Ao selecionar textos de diferentes estilos, gêneros e perspectivas, não temos a pretensão de ser um farol literário que ilumina todos os caminhos da literatura – isso daria muito trabalho!

Nosso objetivo é mais modesto, porém não menos significativo: queremos ser um pequeno espaço de sensações em que cada leitor encontre algo que ressoe com suas próprias experiências – mais que um cardápio de um restaurante elegante, nos vemos como um honesto buffet por quilo.

Essa falta de pretensão não diminui nosso compromisso com a qualidade dos textos que publicamos. Não queremos ditar tendências ou definir padrões; somos apenas um ponto de encontro analógico, um café de domingo, um jeito de estar no mundo, mesmo para quem não selecionamos, afinal “Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada”, como define Bishop.

Sabemos que ser recusado em um processo de seleção pode ser desanimador para os autores. Entretanto, essa decisão não diminui o valor ou o talento de quem escreve. A curadoria é um processo subjetivo e, muitas vezes, um texto pode não se encaixar no perfil ou na linha editorial que buscamos em um momento específico. Sequer precisamos entrar no mérito de grandes autores recusados ao longo da história.

Para os autores não selecionados, queremos dizer que o RelevO continua aberto e interessado em suas criações futuras. Encorajamos todos a persistirem, a explorarem diferentes estilos e temas e a continuarem submetendo seus trabalhos. Só não encorajamos a tentar trocar publicação por assinatura. Isso realmente nos ofende (o que é difícil…) e, para esses, desejamos um péssimo dia!

Para todos os outros, uma boa leitura.

“Por que não ser digital?”

Editorial extraído da edição de junho de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


De tempos em tempos, fazemos um compilado de motivações para seguirmos impressos. O primeiro argumento é simples: gostamos dessa forma de existir. Depois, comumente citamos

  • a) a conexão física, a experiência sensorial em si de folhear um jornal;
  • b) o ritual de leitura, aquilo do jornal no café da manhã de domingo, abrir o malote para, então, ler de acordo com as próprias manias;
  • c) a experiência offline, com menos distrações, menos desvios de atenção: jornal impresso não tem pop-up nem notificação de tela;
  • d) o apelo visual, afinal, nos entendemos vulgarmente como um jornal de arte com uns textos dentro, e a cada edição procuramos entregar um produto de valor estético que não seja perfeitamente reproduzível em um… PDF (ou você se pega dizendo “que PDF bonito”?);
  • e) outros argumentos que envolvam materialidade para caixinhas de pet, hábitos tradicionalistas, tangibilidade, acessibilidade, curadoria, limite: imagine que podíamos ser uma edição com 893 melhores textos. A edição de junho entrega apenas 10 textos.

Também não negamos que oferecemos limitações visíveis ao consumo: jornal molha, rasga, gera ansiedade visível da não leitura, amassa, avoluma, amarela. Nem precisamos nos estender nisso porque o nosso entorno reforça tais déficits o tempo todo. Entretanto, reconhecemos ultimamente uma nova não vulnerabilidade, vista principalmente em nativos digitais e em seus apelos por rentabilidade (nós também fazemos apelos – não estamos julgando, apenas constatando).

Pois vejam: em um mundo cada vez mais dominado por algoritmos e por tráfego pago, o jornal impresso pretende se pagar já em sua materialidade, sem a necessidade direta do pedágio das redes. Paga-se – você paga – para receber 12 edições de papel.

Sabemos que jornal custa caro, da gráfica ao Correios, mas a operação é muito mais previsível que a dos meios de comunicação, cada vez mais dependentes de – e, portanto, vulneráveis a – qualquer ligeira mudança das plataformas contemporâneas. Os Correios podem fechar? Sim. As gráficas podem triplicar o preço da tiragem? Também. Porém, estes são elementos de jogo muito mais jogáveis, a nosso ver, que a disputa por atenção e o desespero com mudanças nas políticas de monetização nas redes.

Podemos observar essa resistência (ou teimosia) a partir da lógica do Efeito Lindy. Inicialmente, a constatação de seu criador, Albert Goldman, em 1964, foi: “a expectativa de futuro de carreira para um comediante de televisão é proporcional ao total de exposição no passado pela metade”. Então simplificamos para uma regra de bolso: se X existiu por Y anos, podemos presumir que existirá por mais Y (ou metade de Y, como propôs Goldman).

Assim, se o seu projeto artístico, negócio ou relacionamento depende de redes sociais criadas semana passada ou de algoritmos ajustados ontem, é muito mais provável que ele esteja vulnerável (e desapareça) a partir de mudanças nos algoritmos atualizados hoje ou redes sociais evaporadas semana que vem. A nossa inadequação, quem sabe, seja a nossa fortaleza. Por isso, impresso.

Uma boa leitura a todos.

Ergonomia: eu quero uma pra viver

Editorial extraído da edição de maio de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O tempo, mais do que urgente, é constante. O RelevO é um jornal impresso de papel e de literatura que enfrenta o calendário a cada 30 dias. A cada edição em que retiramos os exemplares da gráfica, em que fazemos o mesmo caminho e vemos os mesmos rostos, completamos o atestado da nossa sina: ser impresso.

Dentro do exercício rotineiro de existir como um produto material, buscamos nos atualizar para fazer mais do mesmo. Melhor: para nos adaptarmos e, então, fazer melhor este mais-do-mesmo. Entregar um jornal que justifique a presença no tempo é o nosso objetivo, digamos, mais semântico. Funcionamento é o nosso jeito de praticar beleza. Assim, de certo modo, acreditamos em ergonomia.

A lógica é simples. Ao longo de nossa trajetória, que logo se encaminha para 15 anos de existência, aprendemos a 1) operar planilhas; 2) melhorar processos logísticos; 3) calcular custos de curto, médio e longo prazos; 4) prever algumas variáveis; 5) encontrar os melhores espaços de alavancagem de audiência; 6) estudar estratégias de presença física e digital; 7) reconhecer mudanças no perfil de consumo de conteúdo; 8) lidar com as nossas restrições técnicas e de orçamento. Enfim, somos um peculiar modelo de negócio que, para persistir, precisa se comportar como… um negócio, contando com riscos e acasos.

[Entendemos que, se um dia nós simples e inevitavelmente virarmos fósseis nos fundos de uma casa a dois anos sem alugar, não poderão dizer que ficamos acomodados fazendo tudo do mesmo jeito. Estamos sempre buscando alternativas para fazer mais com o que temos à disposição. Não se trata de trabalhar mais, e sim de modo mais inteligente.]

Recentemente, executamos três mudanças operacionais profundas. A primeira corresponde ao sistema de envio de textos para publicação. Acabaram-se os tempos hediondos de envios manuais ao editor, pois resolvemos uma enorme e longínqua dor de cabeça. Trouxemos uma solução elegante: um formulário próprio. Basta seguir as instruções e anexar os arquivos, tudo ainda no mesmo endereço (jornalrelevo.com/publique).

O segundo avanço corresponde à otimização do nosso sistema de assinaturas, cada vez mais automatizado e distante da lógica “acertando com o publisher”. É um meio simples, porém efetivo de garantir profissionalismo e transparência nos procedimentos. Alteramos a maneira com que as compras são catalogadas pelo MercadoPago, o que não muda nada para o assinante, mas nos ajuda um tanto.

A terceira novidade diz respeito à Latitudes. A newsletter mensal (e gratuita) é a nativa digital da casa, voltada para concursos literários, editais, feiras, festivais e cursos de literatura. As edições têm entre dez e 15 notas, as quais reúnem as principais informações sobre cada proposta cultural. Trata-se do nosso material com maior compartilhamento, impulsionado pela base qualificada de assinantes do Substack, cheia de escritores, jornalistas, editores, artistas e demais entusiastas desse negócio de uma-palavra-ligada-na-outra. Muitos assinantes, inclusive, migram da assinatura digital para a física, colaborando para o custeio de nossa operação.

Desde a edição de maio, temos espaços pagos dedicados a lançamentos de livros ou à divulgação de obras de editoras independentes e de autores autopublicados. Trazemos – com aviso de publieditorial – a capa, uma pequena sinopse e as informações de acesso ao conteúdo. Assim, buscamos ampliar o nosso fôlego financeiro e apresentar mais uma novidade dentro do escopo de possibilidades de um jornal impresso que se considera conectável.

Nosso intuito prático final, em todas as novidades, é conseguir viabilizar o Jornal. Em suma, pagar a gráfica → pagar os envios pelos Correios → pagar a nossa equipe que seleciona e produz conteúdos → seguir publicando. Nosso intuito mais difícil de mensurar, mas nem por isso menos fundamental, é melhorar a experiência do leitor, do assinante e do colaborador. Assim, nos esforçamos para entregar o melhor jornal possível dentro de uma jornada de 30 dias.
Uma boa leitura a todos.

Zeh Gustavo: ESSA CHUVA, MAIOR QUE NÓS: o náufrago pede desculpas… e se afoga

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma sombra
chega,
senta,
segura-me do braço.

“Escuta.” Escuto. “A lua existe”.

Segunda, terça, quarta, quinta, sexta-feira:
“Existe a lua, existe”.
E sábado e domingo:
“Existe a lua, existe.”

Antônio Fraga, Moinho e

Esta chuva não remete às águas de março, que não fecham mais o verão, porque do verão restarão desertos pipocando, aqui e acolá! (Voltarei às pipocas – à vida, à morte!) A água desceu foi do “Naufrágio” de Camila Ferrazzano: “as calhas despencaram / mágoa na casa toda”.

Tampouco falo de mágoas e sim de fato poético: há roupa (ora encharcada, um dia seca, noutro rota, também dizem — se rasga, toda — num dia há um farrapo; noutro, fantasia). Há roupa. Para toda uma existência: “essa chuva é maior que nós”.

*

Essa chuva, essa lua, na cidade escusa… Há um maior que nós, vê? Que quem não cuida assume o risco de contrair uma idiotia latente, que porventura se mantenha ali, à espreita, mesmo após um doutorado em Harvard ou um samba ganho no Salgueiro. E que é capaz manifestar-se em uma abjeta condição, que é a de alguém não se tocar da própria precariedade (e sua potência). Tá ligado? O maior que nós não está aqui de bobeira!

Ou você pensa que patriotários de caminhão que rezam pra pneu, burros ilustrados citadores de livro de autoajuda como se fosse Verissimo ou Clarice, influencers em geral surgiram assim do nada?

*

Também não estão de bobeira as galerinhas da Tovi — primeira torcida organizada declaradamente franciscana e antidinizista; e da Comissão do Orçamento Participativo da Invasão Extraterrestre — cujo mandato já começa eivado de malfeitos que vão além da disseminação proselitista da tese do monodimensionalismo ocupacional. Mas sigamos, prescreveu o Bolívar Escobar, a “transfigurar a estranheza” – quiçá o maior legado que um escrevente possa deixar aos seus não leitores.

*

Meus protestos ao conto do Fiorot: onde vamos parar? E se a moda pega? Investigar a ficha corrida de móveis e eletrodomésticos para se averiguar se um dia já foram gente, como parece insinuar, irresponsavelmente, o bardo escriba: vai ajudar o Fluminense a ser campeão, como dizia o filósofo (e eterno terceiro goleiro aposentado) Ricardo Berna? O que ele quer? Que coach também seja reconhecido como gente, ainda que num passado remoto?

*

A pipoca, na mitologia cristã, é associada, no seu modo estouro, à ressurreição do imenso Jesus, o de Nazaré, aquele mesmo — imigrante preto, comunista da Galileia, produtor artesanal de vinho. O precioso salgado obtido de sal, gordura e milho bole com vida e morte. Pros da curimba: o banho de pipocas é ritual de cura perante Obaluaê — também orixá da doença. A vida é CPX, pois. Paulinho da Viola, Portela-raiz, futuro orixá, quando compôs samba para a coirmã Mangueira, já o sabia: “que a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais”.

*

Conhece-o, quão bem, a Rosana Batista Almeida: “A poeira ficou antes de nossos olhos nascerem, / das pernas apontarem nas ruas de computador.” E ela arremata: “A pele vive.”

*

Alguém tem, aí, ciência de quando sai o edital para livros de ficção e poesia censurados, para serem, ordinariamente, lidos? A censura é a nova crítica! E carece ser assumida como política pública! Adeus resenha, matéria em jornal… Mané premiozinho! E não reclame: a nova ordem das coisas facilita a vida de todo mundo — principalmente a do coitado do Algoritmo, que não aguenta mais tal de teixtaum e tem na treta sua unidade linguística — e de negócios.

*

Por estilo, e por isso tudo que dissemos — o acrobata cai, o náufrago se afoga. O nome disso é literatura.

Em que consiste uma vida bem vivida?

Editorial extraído da edição de abril de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Em Dias Perfeitos (2023), de Wim Wenders, acompanhamos um zelador japonês em sua rotina mundana — o que, logo questionaremos, talvez não seja um pleonasmo.
Hirayama, o protagonista (Koji Yakusho no mais alto nível), limpa banheiros. Com esmero, capricho, atenção. Ele acorda sempre do mesmo jeito; toma o mesmo café da manhã; locomove-se da mesma forma; mantém os mesmos hábitos (fotografia, jardinagem); descansa na mesma praça; banha-se no mesmo lugar; bebe o mesmo highball. Suas tecnologias já pararam no tempo, o que não demove seu prazer, uma vez que ele permanece um entusiasta de música e literatura.

O RelevO, este zelador sensível que chora de alegria sozinho no carro e de tristeza ao abraçar a família, sabe que a alegria reside na tristeza; e a tristeza, na alegria. Não somos os anjos de Asas do Desejo que leem pensamentos e se solidarizam com a melancolia humana — somos banalmente humanos e periódicos. Não há muito o que fazer além de, bom, continuar fazendo. Afinal, nosso tempo é finito: por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida? Em que consiste uma vida bem vivida?

Viajar pelo mundo? Conhecer um grande amor (ou vários)? Acumular poder? Acumular dinheiro? Qualquer indivíduo que já tenha vivido mais de meia-hora neste planeta sabe não subestimar nenhum desses fatores e, ao mesmo tempo, reconhece que acima de todos eles reside o bem-estar volátil, intempestivo e eternamente angustiado de cada um. Viajar pelo mundo com um grande amor e muito dinheiro certamente ajuda, mas não garante satisfação alguma — não por muito tempo. Se Anthony Bourdain se matou, por que eu não me mataria?

Não existe fórmula, tampouco algo mais solúvel que felicidade. O que diabos é a felicidade? Quem disse que devemos perseguir felicidade? A vida é o que é, os seres humanos são humanos e fazemos o que fazemos — simplesmente. A magia acontece nas pequenas e inesperadas fissuras, nas grandes sensações de momentos discretos, minúsculas quebras da nossa percepção viciada. Repetição e rotina não são um problema, e definitivamente não são o problema. Toda concentração traduzida em movimento é bela, e o que nos mata é a falta de atenção.

Dias Perfeitos não ganhou o Oscar a que concorreu, mas ao menos uma certeza carregamos: importar-se com premiações não é lá uma vida bem vivida. Lembremos uma anedota de Thomas Bernhard, em Meus Prêmios, ao ganhar o Prêmio Grillparzer, uma das maiores honrarias do sistema literário austríaco:

Agora, estavam todos de pé no salão, comprimindo-se em direção ao palco e, é claro, também da ministra e do presidente Hunger, que conversava com ela. Desconcertado e sem saber o que fazer, eu me postara com minha tia logo ali ao lado, e ouvíamos o falatório cada vez mais agitado das cerca de mil pessoas presentes. Passado algum tempo, a ministra olhou em torno e, numa voz de inimitáveis arrogância e estupidez, perguntou: Mas cadê o escritorzinho? Eu estava bem ao lado dela, mas não ousei me identificar. Puxei minha tia e saímos dali. Sem que ninguém nos impedisse ou mesmo nos dispensasse a menor atenção, deixamos a Academia de Ciências por volta da uma da tarde. Lá fora, amigos nos aguardavam.

De banheiro em banheiro, seguimos.
Uma boa leitura a todos.

Dos manuais e guias

Editorial extraído da edição de março de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O excesso é o mal da escrita americana. Somos uma sociedade sufocada por palavras desnecessárias, construções circulares, afetações pomposas e jargões sem nenhum sentido. Quem consegue entender o linguajar cifrado usado pelo comércio americano no dia a dia, ou seja, um memorando, um relatório empresarial, uma carta de negócios, um comunicado de banco que explique o seu mais recente e “simplificado” balanço? Qual usuário de um seguro ou de um plano de saúde consegue decifrar o livreto que explica todos os seus custos e benefícios? Que pai ou mãe consegue montar um brinquedo para uma criança com base nas instruções que vêm junto com a embalagem? Nossa tendência é inflar tudo e, assim, tentar parecer importante. O piloto de avião que anuncia que em alguns minutos atravessaremos uma área de turbulência por causa das nuvens carregadas e possíveis precipitações nem sequer pensa em dizer simplesmente que poderá chover. Se a frase é simples demais, deve haver alguma coisa errada nela.

William Zinser em Como escrever bem.

o

céu

era açuc ar lu

minoso

comestível

vivos

cravos tímidos

limões

verdes frios s choc

olate

s. so b,

uma lo

co

mo tiva c uspi

ndo

vi

o

letas.

e.e.cummings em tradução de Haroldo de Campos.

Jarros de polvo!

Efêmero um sonho.

Luar de verão.

Bashô em tradução de Fabiano Sei.

Entusiasmo. Prazer. Raramente ouvimos essas palavras! Raramente vemos pessoas vivendo e, no nosso caso, criando com base nelas! Ainda assim, se me perguntarem sobre os itens mais importantes no figurino de um escritor, as coisas que moldam o seu material e o impelem em direção ao caminho que ele deseja percorrer, eu apenas o aconselharia a olhar para o seu entusiasmo, para o seu prazer”

Ray Bradbury em Zen e a Arte da Escrita.

Uma boa leitura a todos.