Baú: Anthony Bourdain

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Meu primeiro indício de que comida era algo mais que uma substância para se enfiar na boca quando batia fome – como que enchendo o tanque do carro – veio no final do quarto ano primário. Foi durante as férias em que viajamos para a Europa a bordo do Queen Mary e aconteceu no salão refeitório da classe econômica. Há uma foto dessa viagem: minha mão de óculos escuros à la Jackie O., meu irmão caçula e eu terrivelmente chiques para o cruzeiro, alvoroçadíssimos com nossa primeira visita à terra natal dos ancestrais de meu pai, a França.Foi a sopa.

Estava fria.

Uma descoberta e tanto para um menino curioso cuja experiência em sopas até aquele momento ia de creme de tomate Campbell’s a canja de galinha. Eu já havia comido em restaurantes, claro, mas essa foi a primeira comida em que realmente prestei atenção. Foi a primeira comida de que gostei e, mais importante, de que me lembro de ter gostado. Perguntei ao nosso paciente garçom britânico o que vinha a ser aquele líquido deliciosamente fresco e saboroso.

“Vichyssoise”, foi a resposta, palavra que até hoje – mesmo agora, uma veterana cansada de guerra de tantos cardápios, preparada mais de mil vezes por mim – ainda guarda um tom de magia. Lembro-me de tudo sobre essa experiência: a forma como nosso garçom tirou-a de uma terrina de prata com a concha, o frescor das cebolinhas verdes francesas que ele colocou por cima para guarnecer, o gosto cremoso e forte do alho-poró com batata, o choque agradável, a surpresa de saboreá-la fria.

Não me lembro de muita coisa mais a respeito da travessia do Atlântico. Assisti a Boeing Boeing com Jerry Lewis e Tony Curtis no cinema do navio e a um filme com Bardot. O velho transatlântico tremeu, roncou e vibrou que foi um horror a viagem inteira – cracas no casco era a explicação oficial – e de Nova York a Cherbourg foi como cavalgar um cortador de grama gigante. Meu irmão e eu não demorados a nos sentir entediados e passamos grande parte do tempo no “salão jovem”, ouvindo “House of the Rising Sun” na vitrola eletrônica ou vendo a água se mexer para lá e para cá feito um vagalhão contido entre quatro paredes na piscina de água salgada do convés inferior.

Mas aquela sopa fria nunca mais me deixou. Ela ressoou, me acordou, me deixou consciente da língua e, de alguma forma, me preparou para os acontecimentos futuros.

Anthony Bourdain, Cozinha Confidencial, 2000 (Companhia de Mesa, 2016).

Baú: W. Somerset Maugham

Extraído da edição 106 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Êste livro baseia-se nas minhas experiências no Departamento do Serviço Secreto durante a guerra, mas foi modificado com o propósito de ficção. O fato em si constitui tema muito pobre como enrêdo. Geralmente começa por acaso, muito antes do início da história, arrasta-se inconseqüentemente e some-se, deixando traços indecisos sem nenhuma conclusão. Arma uma situação interessante e a deixa no ar para seguir uma direção diferente que nada tem a ver com a história; não se prende a nenhuma ideia de clímax, e desperdiça inconseqüentemente seus efeitos dramáticos. Existe uma escola de novelistas que considera isso como o modêlo perfeito de ficção. Se a vida é arbitrária e irregular a ficção deve sê-lo também, pois ela imita a vida. Na vida as coisas acontecem a êsmo, e assim devem acontecer numa história; elas não conduzem a um clímax – o que é um ultraje à probabilidade –, mas sucedem-se a êsmo. (…)

Escrevi tudo isso para fazer ver ao leitor que êste livro é de ficção, se bem que eu possivelmente não diga muito mais do que vários outros livros publicados sôbre o mesmo assunto nos últimos anos e que se propõem ser memórias legítimas.

O trabalho de um agente do Serviço Secreto é, de um modo geral, extremamente monótono. Grande parte dêle é absolutamente inútil. O material que oferece para histórias é fragmentário e sem interêsse agudo; o autor tem de torná-lo coerente, dramático e provável. (…)

W. Somerset Maugham, prefácio de O Agente Britânico (Ashenden), 1928 (ed. Livraria do Globo, 1946).

Baú: John le Carré

Extraído da edição 105 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Breve história de George Smiley

Quando desposou George Smiley, pouco antes do fim da guerra, Lady Ann Sercomb qualificou-o, ante os seus atônitos amigos de Mayfair, de comovedoramente vulgar. Ao abandoná-lo dois anos depois por um automobilista cubano, ela anunciou enigmaticamente que, se não o tivesse deixado então, jamais poderia tê-lo feito; e o visconde Sawley fez uma visita especial a seu clube para comentar que o gato botara as unhas de fora.

Esse comentário, que durante uma curta temporada foi tomado por um mot, só pôde ser entendido pelos que conheciam Smiley. Baixote, gorducho e de índole tranquila, ele parecia gastar muito dinheiro com roupas de mau gosto, que lhe pendiam em volta da figura atarracada como a pele de um sapo engelhado. Sawley, de fato, declarou no enlace que “Sercomb se uniu a uma rã-touro numa rajada de sudoeste”. E Smiley, sem saber dessa descrição, atravessara gingando a nave lateral da igreja em busca do beijo que o converteria em príncipe.

Era ele rico ou pobre, camponês ou clérigo? De onde ela o fora tirar? A incongruência da união era acentuada pela beleza indiscutível de Lady Ann, o mistério estimulado pela desproporção entre o homem e sua noiva. Mas a bisbilhotice tem de ver suas personagens em branco e preto, atraviá-las de pecado e motivos facilmente transmitidos na estenografia da conversação. E assim, Smiley, sem escola, sem pais, sem regimento nem ofício, sem riqueza nem pobreza, viajou sem rótulos no vagão do condutor do expresso social e logo se transformou em bagagem perdida, destinada, quando o divórcio chegou e foi embora, a permanecer sem dono na prateleira empoeirada das notícias do dia anterior.

John le Carré, O Morto ao Telefone, 1961 (ed. Círculo do Livro, ano desconhecido).

Baú: Vladimir Nabokov

Extraído da edição 104 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O leitor irá certamente deplorar que, pouco depois do meu retorno à civilização, eu tenha tido mais um embate com a insanidade (se é que à melancolia e a uma sensação de opressão intolerável cabe de fato aplicar esse termo cruel). E devo minha plena recuperação a uma revelação que tive enquanto me tratava num sanatório particular especialmente dispendioso. Descobri que existia uma fonte inesgotável de intenso entretenimento em zombar dos psiquiatras: fornecer-lhes ardilosas pistas falsas; jamais deixar que percebessem o quanto conhecemos os truques do seu ofício; criar em seu benefício sonhos elaborados, clássicos no estilo (que faziam com que eles, os extorsionários de sonhos, acordassem aos gritos com seus pesadelos); espicaçá-los com “cenas primais” forjadas; e nunca permitir que tivessem o mais ligeiro vislumbre de nossos verdadeiros conflitos sexuais. Subornando uma enfermeira, adquiri acesso a certos arquivos e encontrei, para meu grande regozijo, fichas que me definiam como “potencialmente homossexual” e “totalmente impotente”. A diversão era tamanha, e seus resultados – no meu caso – tão estimulantes que permaneci internado por mais um mês depois de plenamente recuperado (dormindo admiravelmente e comendo como uma escolar). E depois ainda fiquei mais uma semana só pelo prazer do confronto com um poderoso recém-chegado, uma celebridade deslocada (e, sem dúvida, delirante), conhecido por seu talento de fazer os pacientes crerem que tinham testemunhado sua própria concepção.
Vladimir Nabokov, Lolita, 1955 (Alfaguara, 2011).

Baú: Baltasar Gracián

Extraído da edição 102 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

123. Não ser afetado.
Quanto mais talento, menos afetação. Trata-se de um defeito vulgar, que desmerece e é tão maçante aos outros quanto é incômodo a quem a pratica. Faz-nos sofrer de preocupação, pois é um tormento ter de manter as aparências. As maiores qualidades perdem seu mérito por causa da afetação, pois serão julgadas como sendo fruto do artifício em vez de uma graça natural, e o mais agradável do que o artificial [sic]. Os afetados serão tidos como fatos dos talentos que afetam. Quanto melhor você é em algo, mais deve ocultar seus esforços, de modo que a perfeição pareça a ocorrer naturalmente. Não se deve, tampouco, para fugir da afetação fingir não tê-la. O homem prudente não deve nunca demonstrar mais que conhece os próprios méritos; a displicência desperta a atenção dos outros. Duplamente grande é quem tem todas as qualidades, mas nenhuma em sua própria opinião. Percorre seu próprio caminho até chegar ao aplauso.(…)

136. Ir ao âmago das questões.
Tomar logo pulso dos negócios. Muitos se perdem nas árvores mas não atinam com a floresta, ou põem seus esforços a perder, falando sem parar, argumentando inutilmente, sem atingir o cerne da questão. Dão voltas e mais voltas, cansando a si mesmos e os outros, e nunca chegam ao que importa. Têm entendimento confuso, não sabem como desemaranhar. Desperdiçam tempo e paciência naquilo que deveriam deixar de lado, e depois não há mais tempo para o que deveriam fazer.

(…)

138. Não se intrometer.
Principalmente quanto mais agitadas estiverem as ondas do social ou familiar. O convívio humano tem seus tumultos, suas tempestades de vontade; em tais ocasiões é sensato retirar-se para um porto seguro e deixar as ondas se acalmarem. Os remédios muitas vezes pioram os males. Deixe agir a natureza ali, e a moralidade aqui. O médico experiente sabe quando prescrever ou não o medicamento, e às vezes a sabedoria consiste em não aplicar remédios algum. De vez em quando, dar de ombros é uma boa maneira de debelar tormentas vulgares. Dando agora tempo ao tempo, será vencedor depois. Basta um pouco para turvar as águas de um regato, que não voltará a ficar limpo com tentativas, mas deixando-o em paz. Não há remédio melhor para a confusão do que deixá-la seguir seu curso, terminando assim por si mesma.

 

Baltasar Gracián, A Arte da Prudência, 1647 (Sextante, 2003).

Baú: Thomas Pynchon

Extraído da edição 101 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em certos dias, ir de carro para Santa Monica era como ter alucinações sem se dar a todo o trabalho de adquirir e depois ingerir uma droga qualquer, embora em certos dias, sem sobra de dúvida, qualquer droga fosse melhor que ir de carro para Santa Monica.

Hoje, depois de uma volta enganosamente ensolarada e monótona pelas propriedades da Companhia Hughes – uma espécie de smörgasbord de zonas de combate americanas em potencial, espécimes de tipos de terrenos que iam de montanhas e desertos a pântanos e florestas e coisa e tal, todos ali, segundo a lógica da paranoia, para servir à regulagem fina de sistemas de radar de combate – passando por Westchester e a Marina até Venice, Doc chegou à via de entrada de Santa Monica, onde começou o seu mais recente exercício mental. De repente ele estava em algum planeta onde o vento pode soprar simultaneamente em duas direções, trazendo neblina do oceano e areia do deserto ao mesmo tempo, obrigando o motorista incauto a reduzir a marcha assim que entrava nessa atmosfera alienígena, com a luz do sol obscurecida, a visibilidade reduzida a meio quarteirão, e todas as cores, inclusive as dos sinais de trânsito, desviadas radicalmente para outro ponto do espectro.

Thomas Pynchon, Vício Inerente, 2009 (Companhia das Letras, trad.
Caetano W. Galindo, 2010).

Baú: Marco Aurélio

Extraído da edição 100 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

7. Jamais estima algo como vantajoso a ti, se vier a te obrigar algum dia a violar tua fé, a abrir mão do respeito que tens por ti, a odiar alguém, levantar suspeita, lançar maldições, ser hipócrita, desejar algo que exige paredes e tapeçarias. Com efeito, aquele que preferiu a sua própria inteligência, a sua divindade tutelar e o culto religioso em razão desta dignidade, não atuará em nenhuma tragédia, não se porá a lamentar e dispensará o isolamento e a presença maciça das pessoas; e, sobretudo, não viverá nem se apegando à vida, nem fugindo dela. Não o preocupa que sua alma permaneça por um intervalo maior ou menor de tempo tendo um corpo por invólucro; se, com efeito, for necessário desde já que ele o abandone, estará pronto para isso e partirá sem qualquer embaraço, como o faria em relação a outras atividades que pudesse executar reservada e decentemente. Por toda a vida, seu único cuidado é manter seu pensamento ocupado com o que é próprio a um ser vivo racional e social.

8. No pensamento daquele que foi contido pela moderação e purificado, não podes descobrir nada de purulento, imundo nem que prossegue supurando internamente. Nem o destino o pega com sua vida incompleta, como se diz de um ator trágico que se afasta antes de encerrar a peça e completar seu papel. Ademais, nele não verás servilismo, nem afetação, nem demasiado apego, nem demasiado desapego, nem sujeição a um ajuste de contas nem dissimulação.

9. Honra a faculdade de pensar e conceber opinião. Tudo se encontra nela, pois não há na tua faculdade condutora um pensamento que não esteja de acordo com a natureza e a constituição de um animal racional. Ela nos prescreve a não precipitação, a boa administração das relações com os seres humanos e a obediência dos deuses.

10. Então, descartando tudo o mais, retém apenas esses poucos princípios, lembrando, ao mesmo tempo, que cada um se limita a viver o presente, que tem duração muito curta; quanto ao restante, é incerto ou impenetrável. Efêmera, portanto, é a vida de cada um e pequeno é o cantinho em que vive; efêmero, inclusive, é o mais duradouro dos renomes oferecidos pela posteridade, e até isso segundo uma sucessão de pessoas medíocres que não tardarão a morrer, que nem sequer conhecem a si mesmas, muito menos aquelas que morreram há muito tempo.

Marco Aurélio (121-180 d.C.), Meditações, Livro III (Edipro, trad. Edson Bini, 2019).

Baú: Giovanni Falcone

Extraído da edição 99 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

No geral, considera-se que a máfia privilegia certas técnicas de homicídio em relação a outras. É um erro. Ela sempre escolhe a forma mais rápida e menos arriscada. Esta é a sua única regra. Não há nenhuma preferência ou feticha por uma técnica ou por outra.

O melhor método continua sendo a lupara bianca, a morte pura e simples da vítima escolhida, sem deixar traços do cadáver e nenhum sangue. É uma realidade que deixa estupefato qualquer um que tenha visto um filme sobre a máfia, no qual não economizam rios de sangue. Repito, quando pode, a máfia prefere as operações discretas, que não chamam a atenção. Eis a razão pela qual o estrangulamento se afirmou como a principal técnica de homicídio da Cosa Nostra. Nada de tiros, nada de barulho. Depois de estrangulada, a vítima é dissolvida em um barril de ácido, em seguida esvaziado num poço, num canal de escoamento, ou num lixo qualquer.

(…)

Além da crueldade gratuita da Cosa Nostra, eu gostaria de esclarecer outro lugar-comum, muito divulgado e até mesmo exaltado por certo tipo de literatura. Trata-se dos chamados rituais de morte. É comum pensar que existe uma espécie de hierarquia das punições com base na gravidade das faltas cometidas, e uma classificação da violência segundo o nível de periculosidade que a futura vítima apresenta. É um erro.

Não há dúvida, por exemplo, de que um mafioso, quando quer intimidar uma construtora, começa fazendo ir pelos ares uma escavadeira. Sendo uma empresa de limpeza urbana, tocará fogo num caminhão. Mas, se depois de discutido com o capo di famiglia for preciso eliminar alguém – um inimigo, um rival, um concorrente – o mafioso terá diante de si somente uma possibilidade. Se tiver condições de se aproximar da vítima – amigo ou conhecido –, o golpeará de surpresa, fazendo o cadáver desaparecer em seguida (a melhor solução, porque deixará dúvida sobre o autor do assassinato e o destino da vítima). Se, ao contrário, não tiver como se aproximar da vítima, caberá a ele encontrar a melhor maneira para eliminá-la, expondo-se ao menor risco possível. O camicase não é um modelo em voga entre membros da Cosa Nostra. Um homem de honra deve fazer seu trabalho sem se arriscar ou colocar em risco a sua famiglia; o fascínio mórbido pelo suicídio ou pelo próprio sacrifício não faz parte da sua bagagem cultural.

Como eu disse, o principal problema para quem recebe ordem para matar ou sinal verde, em certo sentido, é colocar-se em contato, aproximar-se da vítima. Não é fácil: nos sicilianos, e ainda mais os mafiosos, o perigo sempre iminente aguça sua percepção; são desconfiados por natureza.

(…)

Outros homicídios famosos demonstram o extraordinário pragmatismo e a capacidade de adaptação da Cosa Nostra, e confirmam, mais uma vez, que não existem categorias predeterminadas de reação aos diversos tipos de crime. Nem para os consumados internamente, nem para os externos.

Salvatore Inzerillo, valoroso capo della famiglia palermitana de Uditore, foi morto por uma rajada de Kalashnikov, em 1981, enquanto entrava no seu carro blindado. O comissário Ninni Cassarà, em 1985, foi cortado por uma rajada de metralhadoras enquanto subia os degraus que separavam seu carro blindado do portão de sua casa. Em 1983, o juiz Rocco Chinnici foi pelos ares com a explosão de um carro recheado de dinamite, estacionado em frente a sua casa. Em 1985, o comissário Beppe Montana morreu com um único tiro de pistola, disparado quando voltava de um passeio de barco. Estava desarmado.

Cada um foi atingido num momento do dia e num local em que pareciam mais vulneráveis. Somente considerações estratégicas e técnicas determinam o tipo de homicídio e de arma a serem empregados. Com uma pessoa que se locomove usando carro blindado, como Rocco Chinnici, é comum se recorrer a métodos espetaculares.

Sobre esse escrito foi escrito: “Eles o eliminaram à libanesa para aterrorizar Palermo.” Na realidade, eles o mataram da única forma possível, causando cinco mortes e destruindo uma dezena de automóveis, porque Chinnici era muito prudente e atento quando se tratava da sua segurança pessoal. Aprendemos a refletir de modo sereno e laico sobre os métodos da Cosa Nostra: antes de atacar, a organização sempre realiza um estudo sério e aprofundado. Por isso, é muito difícil pegar um mafioso com a mão na massa. Contam-se nos dedos de uma das mãos os que foram presos em flagrante delito: Agostino Badalamenti, por exemplo, surpreendido com uma pistola nas mãos, por algum tempo conseguiu fazer-se passar por pouco, antes de ser condenado, já que sua mente era perfeitamente sã.

Giovanni Falcone* (com Marcelle Padovani), Coisas da Cosa Nostra, 1991 (ed. Rocco, 2012).

* Morto pela Cosa Nostra por meio de explosivos detonados na estrada. Com ele, a esposa e três policiais que faziam a escolta.

Baú: Nelson Rodrigues

Extraído da edição 98 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Eis o que desejo dizer, sem nenhuma fantasia retrospectiva: eu entrava [na igreja] e tinha vontade de não voltar nunca mais. Ficar ali para sempre. A igreja sempre estava vazia. Minto, não estava vazia. Havia alguém no confessionário, alguém contando os sonhos da carne e da alma. Eu ouvia apenas, apenas um sussurro. Aí está dito tudo: — a igreja da minha infância era exatamente o sussurro. Na confissão, o homem era ouvido por uma catedral. Eis o que importa: — ser ouvido. (Na vida real ninguém nos ouve; somos todos surdos uns para os outros). A utopia de cada qual é encontrar um ouvinte. Nada mais. Uma das figuras mais decisivas da nossa época é o psicanalista, e por quê? Em cada sessão de 45 minutos, ele nos ouve. Está ali, ouvindo o ruído da nossa alma. Portanto, vale um milhão por mês. O médium é o ouvinte do que morreu. A igreja vazia era também a ouvinte: — ouvia o eterno, e ouvia o sagrado, que estão enterrados em nós.

Nelson Rodrigues, “A grande utopia do homem é achar um ouvinte”, 1968 (O melhor de Nelson Rodrigues, ed. Nova Fronteira, 2018).

Baú: Jonathan Franzen

Extraído da edição 97 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Entre as angústias que são mais refreadas pelo cigarro está, paradoxalmente, o medo de morrer. Que fumante inveterado não sentiu um princípio de pânico ao pensar em câncer de pulmão e em seguida acendeu um cigarro para combater o pânico? (É a lógica da Guerra Fria: temos medo de armas nucleares, então vamos construir outras mais.) A morte é um rompimento da conexão entre a individualidade e o mundo, e, uma vez que a individualidade não pode imaginar não existir, talvez o que seja realmente assustador sobre a perspectiva de morrer não seja a extinção da minha consciência, mas a extinção do mundo. O temor de um holocausto nuclear global era, portanto, funcionalmente idêntico ao meu medo particular da morte. E o potencial fatídico dos cigarros era reconfortante por permitir, com efeito, que eu me familiarizasse com o apocalipse, que me relacionasse com os contornos do seu terror, de modo que o potencial de morte do mundo fosse menos estranho e, portanto, um pouco menos ameaçador. O tempo para enquanto dura um cigarro: quando fumamos nos fazemos presentes a nós mesmos; saímos da roda-viva cotidiana. É por isso que se permite aos condenados um último cigarro, é por isso (ou pelo menos é assim que a história é contada) que os cavalheiros vestidos a rigor fumavam em pé ao lado da amurada do Titanic enquanto o navio afundava: é muito mais fácil deixar o mundo quando temos certeza de que estivemos nele. Como Goethe escreve em Fausto: “Estar presente é nosso dever, nem que seja apenas por um momento”.

Jonathan Franzen, Como ficar sozinho, 2002 (ed. Companhia das Letras, 2012).

Baú: reféns da modernistolatria

Extraído da edição 96 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Voltemos: como a Semana de Arte Moderna adquiriu o estatuto de Fato Maior? Simples de dizer, complicado de demonstrar. A Semana foi protagonizada por artistas variados, com saliência para Mário de Andrade e Oswald de Andrade (com o tempo, o primeiro foi canonizado, enquanto o segundo teve seu papel diminuído). Mas é claro que eles todos expressavam, em suas invenções, birras e vontades, um sentido que hoje se pode assimilar sem dificuldade à conta do projeto de poder da elite de São Paulo, província que já se preparava nos anos 20 para dominar o cenário econômico brasileiro – o que ocorreu com clareza dos anos 50 em diante –, província que então se ressentia da força simbólica exercida pelo Rio de Janeiro, mal ou bem o centro político e intelectual do Brasil, capital federal, sede da Academia Brasileira de Letras e residência de todo escritor de prestígio até então.

(…)

Fechado este abraço que a força histórica comandada por São Paulo ia dando, nada restou fora de seu alcance: o modernismo, aquele exclusivamente ligado à Semana de 22 segundo a depuração que podemos chamar, sem maior rigor, de tropicalista (que excluiu os Menotti del Picchia e os Graça Aranha do cenário), o modernismo agora era a lente certa e única para ler tudo, do começo ao fim: da formação colonial, agora ressubmetida a avaliação, até o futuro, que já tinha sido alcançado e era, então, mera decorrência do que já estaria, para sempre, previsto e mesmo desempenhado pelos mártires do novo panteão. O mundo da invenção estética brasileira passou a viver essa aporia conceitual – tudo que vale é modernista, sendo que o modernismo ao mesmo tempo já aconteceu e é a coisa mais moderna que se pode conceber –, aporia cuja figuração banal aparece nos livros escolares e na crítica trivial com a patética sequência de termos pré-modernismo>modernismo>pós-modernismo, tomados como capazes de descrever tudo que o século XX (o XXI também, claro) já produzira, produzia e viria ainda a produzir. Essa aporia foi plenamente aceita e até naturalizada: todas as tentativas de invenção, em todos os campos, daí por diante, seriam quando muito atualizações de propostas ou de ações ou de desejos já plenamente configurados ou em Mário ou em Oswald. Fora disso, tudo era regressivo, conservador, caipira, regionalista, qualquer coisa assim de péssimo.

(…)

Questão mais ampla, para meditação posterior: modernismo e tropicalismo passaram a ser os donos do campinho no Brasil, submetendo tudo ao Imperativo do Novo a Qualquer Custo. Tudo se mede então pelo Novo, colagens inesperadas, materiais imprevistos, abordagens inéditas, assuntos raros, tudo acompanhado por caretas e trejeitos para plateias embevecidas, já afinadas, ou plateias contrariadas, gente lamentavelmente antiga; o.k. Então, Mário sentiu-se à vontade para dizer que tudo de bom que havia era modernismo (com a preliminar de que modernismo era o que ele dizia que era), assim como, hoje, alguém – ponhamos aí o nome de Caetano Veloso – pode reivindicar que tudo que há de bom é tropicalismo (tudo aquilo que ele pensar e deliberar que seja tropicalismo).

Temos aí um fenômeno notável: artistas que são também pensadores da arte (os dois citados acima, sem dúvida) se convertem também em validadores de sua própria produção, sem qualquer necessidade de vozes que exponham o ponto de vista da recepção. E, justamente no meio desse caminho histórico, a crítica literária que funcionava em arena pública, o jornal, representando, ainda que mal, o polo da leitura, estiola e praticamente fenece, substituída pelo estudo acadêmico, que de regra circula apenas intramuros, em prosa de iniciados e publicações que pouquíssimos leem. Não aparece ninguém para opor resistência, nem para perguntar, por exemplo, se a gente não deveria desconfiar, pela esquerda, da impressionante afinidade, da irmandade profunda entre o bloco modernismo/tropicalismo e o chamado Mercado, os dois regidos pela mesma lógica do Novo a Qualquer Custo.

(…)

Em entrevista para a revista Azougue, em 2007, o antropólogo e pensador Eduardo Viveiros de Castro fez, ou repetiu, um trocadilho nessa linha: imaginava-se que o Brasil era o país do futuro, mas o que ocorreu foi que o futuro virou o Brasil. Por quê?

(…)

Ou, mais embaixo, é porque as iniquidades sociais, antes restritas ao Brasil e a certa América, agora se espalharam para centros urbanos que antes eram mais cuidadosos com a decência burguesa das relações republicanas? Ou é porque, como poderia dizer um discípulo de Adorno, em tom grave, pura e simplesmente o sonho socialista foi derrotado e o império da mercadoria alcançou tudo, homogeneizando o que antes era variedade, igualando os objetos, as culturas, as pessoas, sempre pelo mais baixo preço, como ocorre em todas as liquidações?

Luís Augusto Fischer, 2013 (Piauí).

Baú: de Quintino Bocaiuva para Machado de Assis

Extraído da edição 95 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Machado de Assis,

Respondo á tua carta. Pouco precizo dizer-te. Fazes bem em dar ao prélo os teus primeiros ensaios dramaticos. Fazes bem, porque essa publicação envolve uma promessa e acarreta sobre ti uma responsabilidade para com o publico. E o publico tem o direito de ser exijente contigo. E’s moço, e foste dotado pela Providencia com um belo talento. Ora, o talento é uma arma divina que Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor serviço dos seus semelhantes. A idéa é uma força. Inoculal-a no seio das massas é inocular-lhe o sangue puro da rejeneração moral. O homem que se civiliza, cristianiza-se. Quem se ilustra, edifica-se. Porque a luz que nos esclarece a razão é a que nos alumia a consciencia. Quem aspira a ser grande, não pode deixar de aspirar a ser bom. A virtude é a primeira grandeza deste mundo. O grande homem é o homem de bem. Repito, pois, nessa obra de cultivo literário há uma obra de edificação moral.

Das muitas e variadas formas literárias que existem e que se prestam ao conseguimento desse fim escolheste a forma dramática. Acertaste. O drama é a forma mais popular, a que mais se nivela com a alma do povo, a que mais recursos possui para atuar sobre o seu espírito, a que mais facilmente o comove e exalta; em resumo, a que tem meios mais poderosos para influir sobre o seu coração.

Quando assim me exprimo, é claro que me refiro às tuas comédias, aceitando-as como elas devem ser aceitas por mim e por todos, isto é, como um ensaio, como uma experiência, e, se podes admitir a frase, como uma ginástica de estilo.

A minha franqueza e a lealdade que devo à estima que me confessas obrigam-me a dizer-te em público o que já te disse em particular. As tuas duas comédias, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a profusa riqueza do teu estilo. Não inspiram nada mais do que simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas as formas da concepção.

Como lhes falta a idéia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São valiosas, como artefatos literários, mas até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma.

Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me diriges, devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre a rampa da cena do que há em oferecê-las à leitura calma e refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo à apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comédias são para serem lidas e não representadas. Como elas são um brinco de espírito podem distrair o espírito. Como não têm coração não podem pretender sensibilizar a ninguém. Tu mesmo assim as consideras, e reconhecer isso é dar prova de bom critério consigo mesmo, qualidade rara de encontrar-se entre os autores.

O que desejo o que te peço, é que apresente nesse mesmo gênero algum trabalho mais sério, mais novo, mais original e mais completo. Já fizeste esboços, atira-te à grande pintura.

Posso garantir-te que conquistarás aplausos mais convencidos e mais duradouros.

Em todo caso, repito-te que fazes bem. Sujeita-te à crítica de todos, para que possas corrigir-te a ti mesmo. Como te mostras despretensioso, colherás o fruto são da tua modéstia não fingida. Pela minha parte estou sempre disposto a acompanhar-te, retribuindo-te em simpatia toda a consideração que me impõe a tua jovem e vigorosa inteligência.

Teu

Q. Bocaiúva.

Quintino Bocaiuva, 1862-1863 (Wikisource).

Baú: John Gray

Extraído da edição 94 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Um fantoche pode parecer a própria encarnação da falta de liberdade. Seja movido por uma mão oculta ou puxado por cordéis, não tem vontade própria. Seus movimentos são comandados pela vontade de outro — um ser humano que decidiu o que o fantoche fará. Totalmente controlado por uma mente fora dele, o fantoche não tem escolha em sua maneira de viver.

Seria uma situação insuportável, não fosse o fato de que um fantoche é um objeto inanimado. Para sentir falta de liberdade, é preciso ser um ser consciente. Mas um fantoche é um objeto de madeira e pano, um artefato humano sem sentimento nem consciência. Um fantoche não tem alma. Consequentemente, não tem como saber que não é livre.

Para Heinrich von Kleist, no entanto, os fantoches representavam um tipo de liberdade que jamais estaria ao alcance dos seres humanos. Em seu ensaio “O teatro de marionetes”, publicado em 1810, o escritor alemão leva o narrador, perambulando por um parque da cidade, a encontrar “Herr C.”, que acaba de ser nomeado primeiro bailarino da Ópera. Vendo-o em diversas oportunidades em um teatro de marionetes montado na praça do mercado, o narrador manifesta surpresa pelo fato de um dançarino frequentar essas “pequenas burletas”. Em resposta, Herr C. comenta que um dançarino pode ter muito a aprender com esses espetáculos. Pois tantas vezes não são os títeres — controlados do alto pelos titereiros — extremamente graciosos em seus movimentos de dança? Nenhum ser humano poderia se equiparar às marionetes em sua graça natural. O títere é:

incapaz de afetação. — Pois a afetação ocorre, como se sabe, sempre que a alma […] se situa em um lugar que não seja o centro de gravidade de um movimento. Como o titereiro, manuseando os cordéis ou o fio, não tem outro ponto de apoio senão o que está sob seu controle, todos os outros membros são o que devem ser: inertes, meros pêndulos, e apenas obedecem à lei da gravidade; um excelente atributo que em vão procuraremos na maioria de nossos dançarinos […] esses fantoches têm a vantagem de ser resistentes à gravidade. Do peso da matéria, o fator que mais atua contra o dançarino, são totalmente ignorantes: pois a força que os eleva no ar é maior que a que os prende ao solo […]. As marionetes mal tocam o solo, feito elfos, a parada momentânea confere aos membros um novo ímpeto; mas nós o usamos para repousar, para nos recuperar do esforço da dança: um momento que evidentemente não é dança em si mesmo, com o qual nada podemos fazer, exceto superá-lo o mais rapidamente possível.

Quando o narrador reage com espanto a essas afirmações paradoxais, Herr C., “cheirando uma pitada de rapé”, observa que ele deveria ler “com atenção o terceiro capítulo do Gênesis”. O narrador entende a alusão: ele tem “perfeita consciência dos danos causados pela consciência à natural graça de um ser humano”. Mas ainda assim se mostra cético, e então Herr C. lhe conta a história de como enfrentou um urso. Bom esgrimista, ele seria capaz de trespassar com facilidade o coração de um ser humano; mas o animal se esquivava, aparentemente sem qualquer esforço:

Ora eu investia, ora simulava um ataque, já estava suando em bicas: tudo em vão! O urso não se limitava a se esquivar a todas as minhas investidas, como o melhor esgrimista do mundo; quando eu simulava um ataque — nenhum esgrimista seria capaz disso —, ele sequer reagia: olhando-me bem nos olhos, como se pudesse ver minha alma, ficava com a pata erguida, de prontidão, e, quando minhas investidas não eram sérias, ele nem se mexia.

Os seres humanos não são capazes de imitar a graça de um animal assim. Nem a fera, nem o fantoche, sofrem da maldição do pensamento autorreflexivo. Por isso, na visão de Kleist, é que são livres. Se os seres humanos um dia forem capazes de alcançar esse estado, será apenas depois de uma transmutação em que se tornem infinitamente mais conscientes:

assim como duas linhas que se cruzam em um ponto, depois de terem passado por uma infinidade, subitamente convergem de novo do outro lado, ou como a imagem em um espelho côncavo, depois de viajar na direção do infinito, de repente se aproxima de novo de nós, também, quando a consciência tiver por assim dizer passado por uma infinidade, a graça retornará; de tal maneira que a graça estará mais puramente presente na forma humana que não tiver consciência ou a tiver em um alcance infinito, vale dizer, em uma marionete ou em um deus.

O diálogo é concluído dessa maneira:

— Mas então — intervim, meio confuso — precisaríamos comer de novo da Árvore do Conhecimento para retornar ao estado de inocência?
— Certamente — respondeu ele —, é o capítulo final da história do mundo.

John Gray, A Alma da Marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana, 2015 (ed. Record, 2018).

Baú: Chandler vs. ficção científica

Extraído da edição 93 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Você já leu isso que chamam de ficção científica? É uma gréia. Escreve-se assim:

Fiz meu checkout com K19 em Adabaran III e atravessei a escotilha de crumalite no meu modelo 22 Sirius Hardtop. Encaixei o timejector em segunda e fui abrindo caminho entre a relva azul de manda. Minha respiração congelou em pretzels cor-de-rosa. Acionei as barras de calor e os Brylls dispararam em cinco pernas usando as outras duas para produzir vibrações de crylon. A pressão era quase insuportável, mas eu detectei a variação no meu computador de pulso através dos cisícitos transparentes. Apertei o gatilho. O fino raio violeta era frio como o gelo ao atingir os montes cor de ferrugem. Os Brylls se reduziram ao tamanho de meia polegada e eu me apressei a pisoteá-los com o poltex. Mas não foi o suficiente. Um clarão súbito me envolveu e a Quarta Lua acabava de nascer. Eu tinha exatamente quatro segundos para deixar no ponto o desintegrador mas o Google tinha me avisado que não era o bastante. Ele tinha razão.

Pagam dinheiro vivo por essa porcaria?

Raymond Chandler, carta a seu agente literário, 1953. Tradução de Bráulio Tavares.
Mais informações – inclusive sobre o uso do termo “Google” em 1953 – neste link.

Baú: Jared Dillian

Extraído da edição 92 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em 1999, quando o mundo era só otimismo, quando havia táxis roxos do Yahoo! patrulhando as ruas de São Francisco, eu era funcionário do pregão de opções da Pacific Coast Options Exchange. Foi lá que aprendi como os mercadores financeiro funcionavam. Eu passava grande parte do tempo de pé nos fundos do nicho da Intel-Oracle com os outros funcionários e corretores; ou seja, a área onde os corretores de opções da Intel e Oracle se reuniam.

Havia um corretor ali chamado Jack Taylor. Jack tinha 1,90 metro, 110 quilos e nenhuma noção de espaço pessoal. Passava metade do dia em um mercado particular acelerado, como se tivesse fumado crack, negociando tudo que aparecia: “COMPRE POSIÇÃO, JAN 30 COMPRA, 20 LOTE! VENDA POSIÇÕES, DEZ 25 VENDA! SAGEOLA! SAGEAROONI!” Jack se remexia todo, sacudindo seus relatórios de risco amassados, esbarrando em outros corretores no nicho, comendo lagosta e burritos de filé, peidando no resto da turma e saindo para fazer sexo com uma das funcionárias da bolsa atrás da caçamba de lixo.

Eu queria ser como Jack.

Queria ser como Jack porque ele parecia ser uma das mais simples e belas criações de Deus. Ganhar dinheiro, bom. Perder dinheiro, ruim. Burrito, bom. Ressaca, ruim. Minha vida parecia terrivelmente complicada, e se eu pudesse reduzir minha existência a esse nível primordial, seria uma experiência libertadora.

Mas eu estava errado. A personalidade selvagem de Jack era uma cortina de fumaça, um mecanismo de defesa que ele criara para convencer os outros (e talvez também a si mesmo) de que sua vida era simples assim. Ele não era um cara simples, era bastante complicado. Um garoto inteligente que se formara em uma universidade de ponta, que fizera escolhas deliberadas e racionais em relação ao que fazer da vida e que naquele momento experimentava dúvidas. A encenação era seu modo de lidar com isso, seu modo de se distrair da realidade de que os mercados financeiros são um modo cruel de ganhar a vida.

Hoje em dia Jack tem uma loja de sanduíches em Chicago: Jack’s Sandos.

Jared Dillian, Surtando em Wall Street, 2011 [ed. Zahar, 2014].