Baú: Marc Fischer

Extraído da edição 82 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Começo de imediato com meu interrogatório:
— Garrincha, por quanto tempo você foi o cozinheiro preferido de João [Gilberto]?
— Pouco mais de cinco anos, mais ou menos.
(…)
— E como era quando João ligava?
— Sempre a mesma coisa. Onze da noite, no Plataforma, o telefone tocava, e João dizia: “Boa noite, Garrincha”. E eu: “Boa noite, João”. Ele: “Como vai, Garrincha?”. “Tudo bem, João.” “E como vai sua esposa, Garrincha?” “Bem também, João.” “E as crianças, como estão?” “Todas bem, João.” “Adriana sarou?” “Sarou, sim. A gripe já passou.” “O que tem hoje no cardápio, Garrincha?” “Acabamos de receber peixe fresco, João. Um bacalhau maravilhoso, servido com legumes e arroz. É muito bom, acabei de experimentar, comi ainda agorinha.” “E o que mais tem, Garrincha?” “O de sempre, João: picanha, churrasco, costelinha, lombo de porco, costeleta de cordeiro, atum, perca, lagosta, peixe-espada.” “O peixe-espada está bom, Garrincha?” “Está excelente, João. Vou mandar grelhar e temperar com uma nova mistura que acabei de inventar. Você vai adorar.” “Vou querer o steak, Garrincha.” “Está bem, João.” Então, entre meia-noite e uma da manhã, o mesmo entregador levava quase sempre o mesmo prato para ele. Deixava o pedido no chão, diante da porta. E, no dia seguinte, a cena toda se repetia.
— Quanto tempo durava a conversa ao telefone?
— Uns quarenta minutos.
— E assim foi durante cinco anos?
— Assim foi durante cinco anos.
— Você nunca viu João pessoalmente?
— Não, nunca vi.
— O entregador chegou a ver ele?
— Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.
— Mas isso é piração, Garrincha.
— Isso é João Gilberto, meu senhor.

***

Depois, [Roberto Menescal] põe de lado o violão e diz:
— Então… Quer dizer que você quer se encontrar com João Gilberto?
— É.
— Pois tome cuidado — avisa Menescal.
— Por quê?
— João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.
— Como assim?
— De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre.
(…)
— Você parece ser imune a ele. Por quê?
— Eu me afastei na hora certa. Contato mesmo, a última vez que tivemos foi em Nova York, em 1962. Na época do concerto no Carnegie Hall.
— E o que aconteceu em Nova York?
— Olha, eu simplesmente me cansei do tipo. Estávamos circulando por Manhattan, porque João queria comprar um chapéu, um daqueles chapéus típicos, com uma pena do lado. Assim sendo, fomos a uma chapelaria. Uma chapelaria muito boa, com paredes de quatro metros de altura e um gigantesco sortimento de chapéus, que os vendedores foram trazendo para João, um atrás do outro. E João dizia: “Este é bonito, mas não tem esse modelo num cinza um pouco mais claro?”. E o vendedor: “Sim, podemos fazer”. João: “Não, não, melhor não. Gosto daquele ali em cima, se bem que… a pena deste aqui é muito mais bonita”. “Podemos trocar”, disse o vendedor, “fazemos o chapéu como o senhor preferir.” João: “Não sei… Não, me traga aquele outro ali, o da prateleira”. Passamos quatro horas naquela chapelaria, sem que ele comprasse o tal chapéu. Assim é João. Como uma criança. E nem vou contar a você quantas vezes ele já me telefonou no meio da noite, pedindo que eu levasse um violão para ele, um violão que nunca devolvia ou dava de presente a alguém, como se fosse dele, sem me agradecer, sem nem mesmo abrir a porta para apanhar o instrumento.
— Ele sempre foi assim ou ficou desse jeito?
— É assim desde que conheço ele.

Marc Fischer, Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto, 2011 (Companhia das Letras).

Baú: Vladimir Nabokov

Extraído da edição 81 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em qualquer era que Sebastian tivesse nascido, ele ficaria igualmente divertido e infeliz, alegre e apreensivo, como uma criança numa pantomima de vez em quando pensa no dentista de amanhã. E a razão de seu desconforto não era que ele fosse moral numa era imoral, ou imoral numa era moral, nem era a sensação paralisante de sua juventude não florir com a naturalidade suficiente num mundo que era uma sucessão muito rápida de funerais e fogos de artifício; era simplesmente a sua consciência de que o ritmo de seu ser interior era tão mais rico do que o de outras algumas. Mesmo então, bem no final de seu período em Cambridge, e talvez antes também, ele sabia que seu menor pensamento ou sensação tinha sempre pelo menos uma dimensão a mais do que os de seus vizinhos. Ele podia ter se vangloriado disso se houvesse qualquer coisa melodramática em sua natureza. Como não havia, só lhe restava sentir a estranheza de ser um cristal entre vidros, uma esfera entre círculos (mas tudo isso não era nada comparado ao que ele experimentou ao finalmente mergulhar em sua tarefa literária).

Vladimir Nabokov, A verdadeira vida de Sebastian Knight, 1941 (Ed. Alfaguara, 2010).

Baú: Toquinho

Extraído da edição 80 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Todo músico tem a sua ‘Aquarela’. Essa música não tem muita explicação porque ela é uma antimúsica. É uma música grande, tem uma letra enorme, não tem refrão e fala de uma maneira fatalista que tudo vai acabar. Tudo vai se descolorir. O mundo vai acabar. E virou uma música infantil porque as crianças detectaram nela um começo lúdico. “Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo”… Mas, na segunda parte dela, ela fala da morte. Então é uma música que não tinha que fazer sucesso. E ela fez sucesso no mundo inteiro e em várias línguas que eu gravei. Ela tem 37 anos de vida e hoje é tocada. ‘Aquarela’ tem um carisma inexplicável para mim. Canções como essas ficam maiores do que seus compositores. Ela já não pertence a mim. É assim que é a vida. Você faz a música e a joga para o mundo, que nem um filho. E depois que está no mundo, a vida dele já não te pertence. São filhos que estão aí mundo afora e às vezes voltam para te ver.

Toquinho, 2020.

Baú: Fernando Schüler

Extraído da edição 79 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Sempre desconfiei dos que atribuem coerência demais à trajetória dos atores políticos. O jogo do poder frequentemente adquire uma lógica própria, há o erro, há o desvio, o exagero e, por fim, há sempre muita teoria disponível para interpretar e ajustar a realidade. O fato é que [Carlos] Lacerda fez do “golpismo democrático” a marca maior de sua personalidade política. Aquela que produziu o “lacerdismo”, uma arte, um pecado da política brasileira, que consiste em pôr em xeque as instituições da República quando interessa. Uma arte sem ideologia, frequentemente feita de bons argumentos. Pecado que ninguém mais, felizmente, soube cometer como Lacerda.

Quem sabe o lacerdismo tivesse um componente estético. Lacerda foi, na definição de Rodrigo [Lacerda], alguém com a “trágica incapacidade de aceitar o mais ou menos, na terra do mais ou menos”. O ponto é que a democracia vive, em boa medida, do mais ou menos. Do acordo, da procura pelo consenso. A vida de Lacerda foi a recusa permanente do acordo. Talvez tenha sido seu personagem: o moralista da República. Atores políticos elegem seus personagens. Juscelino escolheu ser o otimista, o democrata, o “sonhador do Brasil”; Tancredo escolheu ser a tradução discreta do bom-senso. Lacerda fez sua escolha. Nunca pareceu arrependido, mesmo na derrota.

Fernando Schüler, 2014.

Baú: Howard Marks

Extraído da edição 78 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Ouvimos muito a respeito de projeções do “pior cenário”, mas elas muitas vezes acabam não sendo suficientemente negativas. Conto uma história do meu pai sobre o apostador que perdia regularmente. Um dia, o apostador escutou sobre uma corrida com apenas um cavalo, então ele apostou o dinheiro do aluguel. No meio da pista, o cavalo pulou a cerca e fugiu. Invariavelmente, as coisas podem ficar piores do que as pessoas esperam. Talvez “pior cenário” signifique “o pior que vimos no passado”. Mas isso não significa que as coisas não podem ficar piores no futuro. Em 2007, muitos “piores cenários” foram extrapolados.

Howards Marks, The Most Important Thing, 2013. Tradução nossa.

Baú: Clarice Lispector

Extraído da edição 78 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando eu me comunico com criança, é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com adulto, na verdade estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil… O adulto é triste e solitário. A criança tem a fantasia muito solta.

Clarice Lispector, 1977.

Baú: Chico Lopes

Extraído da edição 78 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há algo de adolescente masturbador, sexualmente virginal ou travado e bobo nas maiores fantasias de Lovecraft, para ficar só nele, pai espiritual de toda essa gente. Livros (e filmes, claro) de terror, na verdade, impressionam mais, quando se os olha friamente, pela força que as superstições, as paranoias sexuais, os atavismos, as criações familiares rígidas e puritanas, as infantilidades persistentes, podem ter. A gente fica com a impressão de que esses autores simplesmente exorcizam, indefinidamente, infâncias povoadas por monstros que, se abertos o armário, se dissipariam, ou por criaturas demoníacas (sic) que, se o criador delas fosse mais sincero e mais audacioso ou menos indulgente com os próprios medos e hesitações, se dissolveriam depressa num ato sexual bem praticado, com o devido prazer e com o devido conhecimento de genitais que, em fantasias paranoicas, assumem até tentáculos e antenas e tecem enormes fantasias de grotesco com secreções, viscosidades, etc. O filme de terror típico sempre traz algum jovem crédulo ou tecnicamente ignorante (porque o gênero ficou decididamente adolescente) que tateia diante de uma realidade assustadora, punitiva, ligada à repressão sexual ou a algum terror racista ou xenofóbico, que lhe foi inculcado por uma educação torta, com base na excessiva correção WASP. Seus pais reais, com seus preconceitos, rigores e fanatismos (basta lembrar a mãe de Carrie, a Estranha) são muito mais horrendos e talvez sejam os únicos verdadeiros horrores a produzir outros tantos, de fantasia. A puerilidade desses livros e produções, que se prolonga e rende muito dinheiro, dá o que pensar. Para ficar apenas nos filmes que adaptam obras de Lovecraft, como são ruins! Quanto mais pomposo e “ciclópico” (é outro dos adjetivos constantes do autor) o horror, mais a tendência a ficar ridículo, risível, na tela. Só se assustam os pouco sofisticados.
Chico Lopes, Revista Germina, 2014.

Baú: Ben Macintyre

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Antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a Abwehr (que literalmente significa “defesa”) tinha reputação de ser o mais eficiente serviço de inteligência da Europa. Uma primeira avaliação do MI5, o serviço de segurança que controlava a contraespionagem no Reino Unido e em todo o império britânico, descreveu a Abwehr como “organização de primeira classe em treinamento e em pessoal”. Essa estimativa era claramente lisonjeira. Um dos aspectos mais importantes do serviços da inteligência nos países era como cada lado sabia pouco sobre o outro. Em 1939, o SIS, serviço secreto de inteligência britânico (também conhecido como MI6 e que opera em todas as áreas fora do território britânico), não sabia como o serviço de inteligência militar alemão se chamava e nem quem o dirigia. Em uma autoavaliação franca, escrita depois do fim da Segunda Guerra, o MI5 reconheceu que “na época da queda da França, a organização do serviço de segurança como um todo estava num estado que pode ser descrito apenas como caótico (…) tentando desenvolver meios de detectar agentes inimigos sem qualquer conhecimento interno de organização alemã”.

A Abwehr se encontrava igualmente mal preparada. Hitler não havia esperado ou desejado entrar em guerra com a Inglaterra, e a maioria das operações de inteligência dos nazistas era dirigida para o leste. A rede de espionagem da Abwehr na Inglaterra era virtualmente inexistente. Quando os dois países se enquadraram para o conflito, uma estranha dança de sombras se iniciou entre os serviços de inteligência rivais: ambos começaram a construir freneticamente redes de espiões, quase que do zero, para uso imediato. Cada um atribuía ao outro extrema eficiência e preparativos bem adiantados, e ambos estavam errados.

Ben Macintyre, Agente Zigzag, 2007 (Ed. Record, 2010).

Baú: hippies em Woodstock (Ayn Rand)

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Antimaterialistas declarados cuja única manifestação de rebelião e individualismo toma a forma material das roupas que escolhem vestir são um espetáculo ridículo. De todo tipo de inconformismo, esse é o mais fácil de praticar – e o mais seguro.

Mas mesmo nessa questão, existe um componente psicológico especial: observe as roupas dos hippies. Não têm o objetivo de deixá-los atraentes, mas sim grotescos. Não têm o objetivo de despertar admiração, mas sim escárnio e pena. Ninguém se faz parecer uma caricatura a não ser que queira que sua aparência implore: “por favor, não me leve a sério”.

(…)

Seus encantamentos histéricos de adoração do “agora” eram sinceros: o momento imediato é tudo o que existe para a mentalidade de nível perceptivo, vinculada ao concreto, animalesca: compreender “amanhã” é uma enorme abstração, uma façanha intelectual disponível apenas ao nível conceitual (ou seja, racional) da consciência.

Ayn Rand, palestra “Apolo e Dionísio”, 1969. Tradução nossa.

Baú: economia budista (E.F. Schumacher)

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Enquanto o materialista está fundamentalmente interessado em bens, o budista está interessado em liberação. Mas o budismo é “caminho do meio”, portanto de maneira nenhuma antagônico ao bem-estar físico. Não é a riqueza que se antepõe à liberação, e sim o apego à riqueza; não a fruição das coisas agradáveis, e sim a “fissura” por elas. A chave da economia budista, portanto, é a simplicidade e a não violência. De uma perspectiva econômica, a maravilha do modo budista de viver é a racionalidade última do seu padrão – o agradavelmente menor levando a resultados extraordinariamente satisfatórios.

Para um economista moderno isso é uma coisa muito difícil de entender. Ele está acostumado a medir o “padrão de vida” por quantidades de consumo anual, tendo como certeza indiscutível que o homem que consome mais “é superior” ao homem que consome menos. Um economista budista consideraria esse enfoque excessivamente irracional: desde que o consumo é apenas um meio para o bem-estar do ser humano, o objetivo deveria ser obter o máximo de bem-estar com o mínimo de consumo. Portanto, se o propósito da roupa é obter uma certa quantidade de calor e uma aparência atraente, o desafio é conseguir isto com o mínimo de esforço possível, isto é, com a menor destruição anual de roupas possível e com o auxílio de um design que envolva a menor destruição possível. Quanto menos destruição tiver provocado, mais está liberado para o esforço da criatividade artística. (…) O que acaba de ser dito sobre roupas se aplica igualmente a qualquer uma das necessidades humanas. A propriedade e o consumo de bens são um meio para atingir um fim específico, e a economia budista é o estudo sistemático de como atingir determinados fins com a menor utilização de recursos. O agradavelmente menor levando a resultados extraordinariamente satisfatórios.

A economia moderna, por sua vez, considera o consumo como o único e válido objetivo de toda a atividade econômica, tomando os fatores de produção – terra, capital e trabalho – como meros meios. A primeira, em resumo, tenta maximizar as satisfações humanas pelo padrão ótimo de consumo, enquanto a última tenta maximizar o consumo pelo padrão ótimo do esforço produtivo. É fácil perceber que o esforço necessário para sustentar um modo de vida que busca atingir o padrão ótimo de esforço produtivo é obviamente muito menor do que aquele dispendido para sustentar um sistema que quer atingir o máximo de consumo. Não devemos ficar surpresos, pois, que a pressão e a tensão da vida sejam muito menores, digamos, em Burma do que nos USA, a despeito do fato de que a quantidade de máquinas poupadoras de trabalho usadas no primeiro país seja infinitamente menor do que no segundo.

Simplicidade e não violência estão obviamente ligadas bem de perto. O padrão ótimo de esforço produtivo, que é produzir um alto grau de satisfação humana com uma taxa relativamente baixa de consumo, permite às pessoas viver sem grandes pressões e tensões, e as possibilita preencher a injunção básica do ensinamento budista: “pare de fazer infernizações, tente fazer o bom”. Uma vez que os recursos naturais são limitados em todas as partes do mundo, as pessoas usando esses recursos para satisfazer suas necessidades de forma modesta com certeza estarão menos propensas a agarrar as gargantas uns dos outros do que aquelas que dependem de uma maior taxa de utilização desses recursos. Igualmente, as pessoas que vivem em comunidades locais altamente suficientes estão muito menos propensas a se meter em violência em larga escala do que aquelas pessoas cuja existência depende de sistemas mundiais de comércio.

E.F. Schumacher, Economia budista, 1966. Tradução: Luiz de Rezende Puech, 2006.

Baú: H.P. Lovecraft por Houellebecq

Extraído da edição 77 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Incapaz de deixar uma carta sem resposta, [H.P. Lovecraft] evitava seus devedores quando seus trabalhos de revisão literária não lhe eram pagos. Subestimando sistematicamente sua contribuição a novelas que, sem ele, nem sequer teriam sido publicadas, Lovecraft se comportará durante toda a sua vida como um autêntico gentleman.

De certo ele gostaria de se tornar escritor. Mas não se além a isso. Em 1925, num momento de desânimo, ele observa: “Estou quase decidido a não escrever mais contos, mas simplesmente sonhar quando estiver disposto a isso, sem me ater a uma coisa tão vulgar como transcrever meu sonho para um público de porcos. Concluí que a literatura não é um objetivo conveniente para um cavalheiro; e que a escrita deve sempre ser considerada uma arte elegante à qual devemos nos dedicar sem regularidade e com discernimento.”

Felizmente, ele continuará seus escritos, e seus melhores contos são posteriores a essa carta. Mas, até o fim, continuará sendo sobretudo um “velho gentleman benevolente, nativo de Providence (Rhode Island)”. E jamais, em tempo algum, escritor profissional.

Michel Houellebecq, H.P. Lovecraft: contra o mundo, contra a vida, 1991 (Ed. Nova Fronteira, 2020).

Baú: Sérgio Cabral

Extraído da edição 76 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

(…) Assim, no dia 10 de julho de 1958, João Gilberto estava no estúdio gravando Bim-bom e Chega de saudade. Ou melhor, terminava, finalmente, a gravação, pois os depoimentos do pessoal envolvido no disco só discordavam sobre o número de dias que os músicos tiveram de voltar ao estúdio para que tudo saísse exatamente como João Gilberto queria. Para o baterista Juquinha, a gravação durou um mês. Começou pela insólita (para os padrões da época) exigência de ter um microfone para a voz e outro para o violão. O arranjo de Tom Jobim para Chega de saudade, embora bem mais leve do que o que escrevera para o disco de Elizeth Cardoso (a partir da introdução, com o predomínio da magistral flauta de Copinha), foi “aparado” diariamente por João Gilberto. Vários compassos de violino, viola e celo desapareceram do arranjo. Mas João não ficou satisfeito nem com o pouco que restou: quando entravam as cordas, ele fazia aquela cara típica de quem ouve, por exemplo, o som de uma faca afiada tentando cortar uma pedra. Tudo indicava que se arrepiava todo. Para Tom Jobim foi um exercício de paciência muito importante para as gravações que estavam por vir. Mas, para João Gilberto, o que ficou foi uma lembrança cheia de ternura, como revelaria à revista Veja, logo depois da morte de Tom: “Lembro-me dele na gravação de Chega de saudade. Ele estava na cabine e eu no estúdio. Tom estava olhando. Tinha os olhos emocionados, entusiasmados”.
O disco foi lançado pela Odeon no suplemento de agosto de 1958. Algumas versões do lançamento são bastante conhecidas, como a reação de Osvaldo Guzonni, chefe de vendas de São Paulo, que convocou os demais vendedores para ouvir o disco de maneira pouco ortodoxa: “Ouçam a merda que o Rio de Janeiro nos manda”. Depois da audição, espatifou o disco no chão. O curioso é que foram feitas tentativas para desmentir o fato, mas o próprio Guzonni se encarregou de confirmá-lo inúmeras vezes, sempre rindo muito da gafe que cometera.

Sérgio Cabral, Antonio Carlos Jobim: uma biografia, 2008 (Ed. Lazuli; Companhia Editora Nacional).

Baú: Nassim N. Taleb

Extraído da edição 75 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há vezes em que gosto de ser enganado pelo acaso. Minha alergia à tolice e à verborragia se dissipa quando se trata de arte e poesia. Por um lado, tento me definir e me comportar oficialmente como uma pessoa hiper-realista e direta esquadrinhando o papel do acaso; por outro, não tenho escrúpulos em condescender com todo tipo de superstição pessoal. Onde traço o limite? A resposta está na estética. Algumas formas estéticas apelam para algo genético em nós, quer se originem ou não de associações aleatórias ou de simples alucinações. Alguma coisa nos genes humanos é profundamente tocada pela nebulosidade e ambiguidade da linguagem; então, por que lutar contra isso?
(…)
Até mesmo os economistas, que em geral encontram meios abstrusos de escapar completamente da realidade, estão começando a compreender que o que nos faz pulsar não é, necessariamente, o contador que temos dentro de nós. Não precisamos ser racionais e científicos quando se trata da vida diária – apenas nas coisas que podem nos causar mal e ameaçar nossa sobrevivência. A vida moderna parece nos convidar a fazer o oposto: nos tornar extremamente realistas e intelectuais quando se trata de assuntos como religião e comportamento pessoal, e tão irracionais quanto possível quando se trata de mercados e assuntos comandados pelo acaso. Tenho encontrado colegas, gente “racional”, direta, que não compreende como adoro a poesia de Baudelaire e Saint-John Perse ou escritores obscuros (e muitas vezes impenetráveis) como Elias Canetti, Borges ou Walter Benjamin. Contudo, ficam vidrados ao ouvir as “análises” de algum guru na televisão, ou ao comprar ações de uma empresa sobre a qual não sabem absolutamente nada, com base em dicas de vizinhos que dirigem carros de luxo. O Círculo de Viena, ao destroçar a filosofia verborrágica estilo Hegel, explicava que do ponto de vista científico era puro lixo, e do ponto de vista artístico era inferior à música. Preciso dizer que acho Baudelaire muito mais agradável do que o noticiário da CNN ou George Will.
Há um ditado iídiche que diz: Se sou forçado a comer porco, que seja da melhor qualidade. Se vou ser enganado pelo acaso, melhor que seja do tipo mais belo (e inofensivo).
Nassim Nicholas Taleb, Iludidos pelo acaso, 2004 (Ed. Objetiva, 2019).

Baú: Nelson Gonçalves

Extraído da edição 74 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

PLAYBOY – Mas foi em São Paulo que você foi preso.
NELSON – Foi, mas a intenção era parar. Fui, primeiro, para um hotel. Depois, comprei uma casa no Parque Continental, em Osasco. Em seguida, comprei uma casa no Brooklin. Fui preso nessa casa, em 1965.
PLAYBOY – Como aconteceu?
NELSON – A pessoa de quem eu comprava o pó me denunciou. Deixei de comprar dele e ele então foi à polícia, dizendo que eu tinha um quilo de cocaína em casa e que estava vendendo, o que era mentira. Os policiais arrombaram minha porta e me algemaram. Fiquei uma noite na delegacia e no dia seguinte fui para o Presídio Tiradentes. Um ou dois meses depois fui a julgamento e ficou esclarecida a história. Pude provar que não era traficante. De lá fui fazer tratamento numa casa de saúde e depois fui para casa, onde fiquei me recuperando.
(…)
Aluguei uma casa na Rua João Moura, em Pinheiros, me tranquei no quarto e joguei a chave pra minha mulher. Recebia a comida por baixo da porta. Se não fosse assim, ia cheirar de novo. Com acompanhamento médico, ficava o tempo todo dopado, para o meu organismo reagir à abstinência da droga. Amarguei o inferno durante seis meses. Dormia, no máximo, uns 20 minutos por noite, e ainda assim sentado. Até que um dia comecei a melhorar. Cheguei a dormir três horas seguidas. Comuniquei ao médico, que veio em casa e me receitou outros calmantes. Aí dormi bem, pela primeira vez em muito tempo. Acordei umas 6 da manhã, fui até o quintal e vi um padeiro entregando o leite, uma mulher varrendo a calçada. Foi a visão mais linda que eu já tive. Comecei a chorar. Pensei: “A vida está aqui”. Ganhei uma alma nova. Passei a fazer uns 20 shows por mês. A música foi minha terapia.
Nelson Gonçalves, entrevista à revista Playboy, 1998.