Panetone!

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Se já é quase Natal (!), falemos do panetone. Em uma noite fria do século 15, Ludovico il Moro, duque de Milão, ofertou um banquete de Natal para toda a realeza da região. Porém seu chef responsável exclusivamente pela sobremesa estava tendo um caso com a esposa de um dos convidados nos corredores escondidos do castelo enquanto a sobremesa que preparou queimava no forno. O jovem assistente de cozinha Toni então utilizou os poucos ingredientes que sobraram como açúcar, manteiga, cascas de laranja e passas para misturar à massa que ele havia preparado para levar pra casa e que já descansava havia três dias.

Sem opções, o chef teve que aceitar a sugestão do esforçado garoto e levou ao forno porções arredondadas da mistura para enfim servir a sobremesa do banquete. Temente, o chef logo se retirou do salão após apresentar a receita, mas a recepção foi um sucesso entre a realeza — o duque teve de chamá-lo novamente para agradecer publicamente. O chef, constrangido com os aplausos, confessou o verdadeiro autor da receita e a chamou de pane di Toni (pt: pão do Toni), posteriormente alterado para panetone.

A forma do panetone como conhecemos hoje, no entanto, data apenas da década de 1920, quando imigrantes russos de Milão encomendaram 200 unidades de Kulich (pão tradicional consumido na Páscoa pelos ortodoxos cristãos) a Angelo Motta, fundador da empresa alimentícia Motta. Eles serviram de inspiração para Motta acrescentar nata e moldar os panetones em papel palha para que finalmente se transformassem nestes cogumelos de forno.

Mas se você é um daqueles céticos irredutíveis que desconfia até do próprio parto, certamente não se convenceu com essa historinha pra italiano dormir. Nesse caso, sua ceia de Natal terá o pandoro (pão de ouro), esse sim com “certidão de nascimento”. No dia 14 de outubro de 1894 em Verona, Domenico Melegatti patenteou a receita, a forma e claro, o nome.

Melegatti se inspirou no Pão de Viena para aprimorar a receita do nadalin, essa espécie de colomba pascal em forma de estrela que foi concebido durante o século 13 para comemoração do primeiro Natal em que a família Scala governou Verona. Para obter a forma desejada, Melegatti modificou a receita, aumentando a quantidade de ovos, nata e fermento e retirando todos os ingredientes que impediam a massa de crescer, como cobertura, passas e pinhão. O nome teve como base o costume de cobrir pães com folhas de ouro, esses servidos em banquetes da realeza.

[por Gabriel Mussiat]

MacGuffin

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MacGuffin, MacGuffin, MacGuffin. Eis um termo utilizado a rodo ao se construir uma narrativa, principalmente cinematográfica. Sua maior característica é não ter grandes características a não ser a possibilidade de levar o enredo adiante. Costuma ser um objeto, e um objeto totalmente substituível, que logo perde importância na trama. O termo foi popularizado por Alfred Hitchcock, que se valeu do MacGuffin diversas vezes.

Em Psicose (1960), por exemplo, o enredo avança por conta de um furto que permite a personagem Marion fugir. O dinheiro em si logo abandona qualquer relevância, e assim o filme se move. A quantia poderia ser um cheque, cédulas, barras de ouro; ao invés de dinheiro, poderíamos ver um amuleto, uma safira, uma declaração importante.

Se ampliamos a definição, atribuímos uma importância maior ao MacGuffin. Isto é, ao contrário de um objeto substituível, sem efeito algum na narrativa (além do próprio efeito na narrativa), teríamos também elementos poderosos, que interferem na trama. Como o anel de Tolkien.

Nas palavras – e na voz – do próprio Hitchcock, um MacGuffin é comumente encontrado em filmes de espiões. “É a coisa de que os espiões estão atrás”. Elaborando anedoticamente, ele o exemplifica com o cenário de dois homens em um trem que se dirige à Escócia.

— O que é esse pacote sobre sua cabeça?
— É um MacGuffin.
— E o que é um MacGuffin?
— É um aparato para caçar leões nas Terras Altas escocesas.
— Mas não há leões nas Terras Altas escocesas.
— Então não há MacGuffin.

Muito além do diretor inglês, que, por sinal, atribuiu a seu colega roteirista Angus MacPhail o nome e o aperfeiçoamento do MacGuffin, a ideia era similarmente utilizada nos filmes mudos com a atriz Pearl White, no início do século passado (vide o pôster de The Perils of Pauline, 1914, no início deste texto).

Neles, os personagens costumavam perseguir algum ornamento, definido por White como weenie. O termo ainda retoma o mito grego de Jasão e os Argonautas, que navegaram em uma nau em busca do velo de ouro, a lã dourada de Crisómalo, um carneiro alado. A árdua perseguição ao velo é um baita MacGuffin, cuja origem cabe provavelmente ao poeta Simônides de Ceos.

Duquesa Feia

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A Duquesa Feia (~1513), ou Idosa Grotesca, do holandês Quentin Matsys, é uma alegoria sobre luta contra passagem do tempo e o desencontro com os hábitos de sua época. Uma senhora de idade posa adornada com vestimentas da juventude – já fora de moda –, um pitoresco chapéu e seios tão voluptuosos quanto enrugados à mostra, sugerindo uma vaidade talvez excessiva.

Essa temática aparece também no ensaio Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, publicado dois anos antes do quadro. No livro, Erasmo se refere a senhoras que “não conseguem sair de perto do espelho” e “não hesitam em expor seus repulsivos seios”.

O que mais chama a atenção é o contraste da indumentária da personagem com o seu rosto grotesco. Por muito tempo, a origem dessas feições aberrantes foi objeto de debate, até a clamorosa sugestão de que a modelo, na verdade, sofria da Doença de Paget, a qual só seria descrita trezentos anos mais tarde. Essa condição envolve um crescimento desenfreado de alguns ossos. Tal crescimento provoca deformações como as da pintura.

Por séculos, pensava-se que Matsys havia copiado uma gravura de Leonardo Da Vinci. Recentemente, no entanto, ficou esclarecido como foi Leonardo, ou alguém de seu ateliê, quem copiou o holandês, já que ambos os pintores trocavam correspondências e desenhos. A “duquesa grotesca” se tornou, inclusive, inspiração principal para o ilustrador John Tenniel desenhar a duquesa do livro Alice no País das Maravilhas:
Por sinal, o asteroide 9569 Quintenmatsijs recebeu esse nome em homenagem ao pintor, um dos fundadores da prolífica escola da Antuérpia.

Anna Coleman Ladd

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Argila e massa de modelar eram os principais materiais utilizados por Anna Coleman Ladd na tentativa de restaurar rostos desfigurados na Primeira Guerra Mundial. A escultora, nascida nos Estados Unidos e educada na Europa, usava seu estúdio em Paris para reconstruir as faces de quem havia sido injuriado em combate. A partir dos moldes de argila e massa, Ladd criava uma prótese de cobre galvanizado e a pintava conforme a pele do atendido.

Antes da guerra, Anna Coleman já havia se envolvido com fotografia, dramaturgia e literatura, além das próprias peças que esculpia – geralmente aplicadas na decoração de fontes. O casamento com Maynard Ladd, médico da Cruz Vermelha, ajudou a conectar seu enorme talento com uma causa interessantíssima. Em Paris, cada máscara levava cerca de um mês para ficar pronta, tendo vida útil de alguns anos. Estima-se que Ladd tenha produzido mais de 185 peças.

Todas as informações foram extraídas desta matéria na Smithsonian, ainda mais recomendada pela galeria de fotos. Interessados também podem assistir a este curto vídeo do estúdio, que oferece uma dimensão maior do trabalho de Ladd.

Pátio Belvedere

Extraído da edição 21 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Pátio Belvedere, nos museus do Vaticano, abriga algumas das esculturas mais importantes da história da arte ocidental. O Torso Belvedere, o Apollo Belvedere e o grupo Laocoon são exemplos notáveis de obras da antiguidade que foras redescobertas durante a renascença, momento no qual os artistas estavam especialmente dispostos a beber da fonte greco-romana.

Comecemos pelo espetacular Laocoon: esse grupo mostra um pai e seus dois filhos sendo atacados por serpentes enviadas pelos deuses, em cena derivada de um episódio da Guerra de Troia. Redescoberta em 1506, a obra teve grande impacto na arte da época pelo seu dinamismo e tratamento intenso e dramático dos rostos do personagens em sofrimento, além da rendição perfeita da anatomia humana.

Michelangelo foi um dos primeiros a fazer referência à escultura em seu trabalho: os escravos talhados para a tumba do papa Júlio II, a figura do crucificado Hamã e vários ignudi na Capela Sistina, são alguns exemplos. Laocoon também aparece na obra de Rafael, como o cego Homero no afresco Parnaso, nessa caricatura feita por Ticiano, nessa tela de El Greco, enfim, em muitos lugares.

Várias cópias do grupo foram encomendadas desde o século 16 e hoje figuram em sítios como os museus Uffizi, em Florença, e o Louvre, em Paris; no jardim de Versalhes e na ilha de Rodes, para citar alguns.

O Torso Belvedere é um fragmento de nu masculino que impressiona pela robustez. A figura representava Ajax – ou Héracles. Ou Hércules, Polifemo ou Marsias, ninguém sabe ao certo – sentado sobre um couro de animal ponderando sobre seu suicídio (ok, essa é apenas uma de tantas teorias).

A posição das pernas e os grandes traços musculosos foram grandes inspirações para – adivinha – Michelangelo, que deles se utilizou para montar boa parte das figuras do teto da Capela Sistina, incluindo São Bartolomeu, Jesus e os ignudi que emolduram as cenas principais. Pigalle, representante do Rococó francês, cita o torso em seu Mercurio.

Finalmente chegamos ao Apollo Belvedere, ou o Apollo Arqueiro. Com seus traços doces, contrapposto sutil e postura heroica, esse rapaz foi considerado a epítome da beleza ideal segundo os neoclacissistas. É interessante notar as diferenças entre ele e os dois outros exemplos acima citados.

Apollo faz parte da escultura antiga clássica: mais sóbria, estática e “magra”, enquanto os outros dois são esculturas helenísticas, algo como um barroco antigo, que valoriza o movimento e a instensidade dramática dos seus temas.

Desde a sua redescoberta, no final do século 15, foram muitos os que se inspiraram no Apollo: Albrecht Dürer o usou como modelo para seu Adão, Antonio Canova fez de seu Perseu e de seu Napoleão como Marte homenagens diretas à pose do arqueiro, e até a NASA prestou seu tributo, incluindo a estátua na insígnia da missão lunar Apollo 17.

Peter Jansz. Saenredam

Extraído da edição 20 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Peter Jansz. Saenredam – esse ponto no meio do nome não está errado –, foi um artista competentíssimo. Suas pinturas, via de regra interiores de igrejas, sobrevivem com fôlego desde o século 17, em boa parte graças à incrível perspectiva que o holandês conseguia ilustrar. Contribuem para a beleza de suas obras a redução das figuras humanas, meros figurantes de estruturas colossais, e a própria nudez de algumas igrejas já reorganizadas pelo protestantismo.

Filho de artista – as obras bíblicas de seu pai em nada se assemelham às de Pieter –, Saenredam vingou em Haarlem, onde estudou e desenvolveu sua aptidão arquitetônica na aquarela. (Em Assendelft, cidade natal, ele até pintou uma igreja com o túmulo do pai). Em seus quadros, nota-se uma exposição do espaço tão peculiar quanto encantadora: é possível se ver sentado ali, outro coadjuvante vivendo discretamente.

Dessa forma, torna-se um interessante exercício de comparação colocá-lo ao lado do conterrâneo Emanuel de Witte, cujas pinturas de interiores, também belíssimas, expressam (na luz, nas cores, nas pessoas) uma força totalmente diferente daquela demonstrada por Peter Jansz. Saenredam.

Para mais obras de Saenredam, clique aqui, ou aqui, ou aqui.

Deposição de Cristo, Pontormo

Extraído da edição 18 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

A Deposição de Cristo, de Pontormo, sem dúvida figura entre as pinturas mais importantes do Cinquecento Italiano. Finalizada em 1528, ela apresenta basicamente tudo que uma pintura maneirista deve ter:

  • Corpos flutuantes. As leis da física não interessam aos maneiristas. A Renascença teve seu pico na virada do século com Da Vinci — a natureza já havia sido domada, estudada, reproduzida e o celestial volta a ter seu lugar. Poses e cenas impossíveis são o charme da obra. O que dizer do moço segurando Jesus enquanto se apoia em três dedos do pé?
  • Emoção, intensidade. Após a serenidade da Alta Renascença, há um movimento em direção a cenas mais dramáticas. Os rostos são altamente detalhados e os olhares de cada personagem encaminham a visão para uma foco distinto.
  • Cores. A liberdade artística também se traduz em cores mais experimentais. Tons de rosa, verde e azul são usados quase como uma segunda pele, com um objetivo mais decorativo que descritivo. Mesmo em quadros mais formais, pode-se observar um protagonismo de cores fortes, ou simplesmente fora do padrão.
  • Corpos retorcidos (e distorcidos). Mesmo caso do primeiro item. A beleza é mais importante que a precisão. Com isso vêm os pescoços e dedos compridos, as colunas tortas, os corpos alongados e a confusão de mãos da Deposição.
  • Organização. Apesar de o Maneirismo ser um movimento de quebra, algo da formalidade das composições foi mantido. Analisando a Deposição, é fácil se perder em meio a tanto movimento e tantos personagens, mas ainda assim é possível identificar um triângulo, formado pelos rostos da Virgem e dos dois seres que levantam Jesus. Além de enquadrar o personagem principal, essa disposição traz equilíbrio e rigor à tela. Outro exemplo – do mesmo Pontormo – é a Ceia em Emmaus.
  • Por último, mas não menos importante: um Jesus ruivo.

Brazil, por Terry Gilliam

Extraído da edição 16 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Para entendermos por completo essa peculiar página, vale a pena contextualizá-la. Conforme anuncia a assinatura, seu autor é Terry Gilliam, consagrado como membro do Monty Python.

Enquanto integrante do grupo de comédia, ele também codirigiu o filme Monty Python: Em Busca do Cálice Sagrado (1975) com Terry Jones. No começo de 1985, pois, Gilliam lançou seu filme Brazil na Europa. Não à toa, o filme é altamente inspirado por 1984, de George Orwell.

Quem já assistiu à obra, cujo elenco reúne Jonathan Pryce, Robert De Niro e até Michael Palin, tem ideia de que o final da película é no mínimo atípico. Somado ao fato de conter mais de 140 minutos de duração, seu desfecho não agradou nada aos distribuidores norte-americanos da Universal, que atrasaram o lançamento de Brazil.

Sid Sheinberg, diretor da companhia, queria revisar o longa-metragem até que esse totalizasse 90 minutos e oferecesse um final mais positivo.

Sendo assim, Terry Gilliam, com seu trabalho já rodando a Europa e sem previsão de lançamento nos EUA – mais de um semestre havia se passado –, desafiou a Universal de duas maneiras. Primeiramente, questionou Sheinberg por meio da página acima, um anúncio comprado na revista Variety.

A resposta do ricaço, claro, não foi nada positiva: “se o filme é tão bom em sua forma atual, arranje outra pessoa para comprá-lo”. Ele considerava a película totalmente desprovida de potencial comercial.

E então, para enfrentar os distribuidores na prática, Gilliam simplesmente exibiu o longa-metragem diretamente para a associação de críticos de Los Angeles, sem autorização alguma para tal. E o filme começou a ser premiado. Reiteramos: sem ter sido lançado.

A Universal se rendeu diante do contexto bizarro, liberando uma edição de 132 minutos supervisionada por Gilliam. E o lançamento, aliás, de fato conquistou um prejuízo de milhões nos Estados Unidos.

(O título Brazil remete à ‘Aquarela do Brasil‘, de Ary Barroso. A música, regravada por Geoff Muldaur, conduz o longa-metragem em vários momentos.)

Brando!

Extraído da edição 14 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando Al Pacino recusou o papel de protagonista em Apocalypse Now (1979), sua justificativa para o diretor Francis Ford Coppola foi bastante simples: “já sei como vai ser. Você vai subir em um helicóptero e me falar o que fazer, enquanto eu estarei lá embaixo, num pântano, por cinco meses”.

Mal sabia ele, muito menos Coppola, que as gravações durariam dezesseis meses. Esse é apenas um dos famosos problemas que perseguiram a criação da película, cujas infinitas tretas são devidamente relatadas no documentário Hearts of Darkness 1991 — o filme, pois, adaptou o romance Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad, ao contexto da Guerra no Vietnã).

Visto que sequer teríamos tempo para relatar muitos perrengues – que vão de incêndio a ataque cardíaco –, destaquemos Marlon Brando, sobre quem já escrevemos na Enclave #6 (especialmente diagramada aqui, p. 14). Brando, afinal, não participou dos 16 meses de filmagem de Apocalypse Now. Para o astro, foram reservadas apenas seis semanas no set construído nas Filipinas, de 2 de setembro a a 11 de outubro de 1976.

Se sua obrigação era chegar em forma, com a leitura de Coração das Trevas realizada e suas falas na ponta da língua, o Corleone sênior encontrou Coppola já surpreendentemente gordo, sem ter lido o romance de Conrad e tampouco o roteiro — isso segundo o diretor.

No papel do Coronel Kurtz, enigmático personagem que o protagonista tanto persegue, Marlon Brando dá as caras em apenas 15 dos 153 minutos de filme. O que não evitou problemas. Ah, não mesmo. Ele, que havia recebido um milhão de dólares antecipadamente, negou-se a seguir o roteiro, ameaçou deixar a produção e ficar com o dinheiro.

No fim das contas, improvisou boa parte de seu diálogo, além de um falatório magistral de dezoito minutos, dois dos quais sobreviveram à versão final. Coppola estava tão farto de lidar com a situação que entregou as cenas do ator a Jerry Ziesmer, assistente de direção. Brando também detestava Dennis Hopper, rejeitando compartilhar o set com o colega em questão.

As “brandices” geraram outras consequências técnicas: para não expor sua forma física distante do que se imaginaria para Coronel Kurtz, Marlon Brando foi filmado no escuro, escondido entre sombras, raras partes de seu corpo à mostra. Sua recusa ao sobrenome Kurtz – “não soa americano” – fez com que o personagem tivesse o nome alterado.

Essa recusa, porém, foi reconsiderada por ele mesmo após finalmente ler Coração das Trevas. Entretanto, menções ao personagem já haviam sido gravadas por outros atores, o que exigiu redublagem na pós-produção. (Isso pode ser verificado claramente na cena em que Harrison Ford interage com Martin Sheen, ainda no início da película).

No fim das contas, todas as cenas com o ator são inegavelmente marcantes, e se tornam ainda mais curiosas quando sabemos de todos os problemas que as circundam. Mas recentemente, como um Deus ex machina, acrescentamos que Susan Mizruchi, autora de uma biografia sobre Brando, defende como as afirmações de Coppola sobre o descompromisso de Marlon Brando são redondamente falsas.

Segundo ela, as cartas entre diretor e astro deixam claro como Brando não só foi às Filipinas completamente preparado como ajudou no roteiro por pura dedicação à sua arte.

Palais Idéal du Facteur Cheval

Extraído da edição 13 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Enquanto percorria sua rota diária em uma tarde de abril de 1879, o carteiro Ferdinand Cheval tropeçou em uma pedra de aspecto curioso e se encantou por sua beleza. Decidiu levá-la para casa, mesmo sem ter muita ideia do que faria com ela.

A partir do dia seguinte, ele passou a notar no seu caminho as diversas rochas e formas esculpidas pela natureza, decidindo coletar o que lhe chamasse a atenção para construir, no terreno ao lado de sua casa, no sudeste da França, um palácio: o Palais Idéal du Facteur Cheval.

Idealizado primeiro como um templo à natureza, depois como seu local de sepultura, a obra é o resultado de 33 anos – 10 mil dias – de trabalho quase cotidiano e de aperfeiçoamento contínuo. É, segundo o próprio artista, o “Panteão de um herói obscuro”.

Embora alguns desenhos tenham sido idealizados, não há um projeto definido. A expansão da construção acontecia de forma desordenada e orgânica, seguindo a imaginação de seu criador e os diferentes materiais encontrados a cada dia.

O simbolismo e as referências das esculturas e estruturas vêm da Bíblia (da qual Cheval era leitor ávido), das tradições hindu e egípcia e dos numerosos cartões postais e revistas aos quais ele tinha acesso por sua profissão de carteiro.

Entre os elementos mais marcantes estão Os Três Gigantes (simbolizando Arquimedes, Júlio César e o líder militar gaulês Vercingetorix); a Mesquita; o Pecado Original e o Templo Egípcio, inicialmente previsto como o local de seu enterro.

O palácio sempre chamou a atenção do público. Já nos primeiros anos de trabalho, vizinhos visitavam Cheval e achavam graça da ideia maluca de construir de pedregulhos e argamassa. Mas isso apenas o deixou mais motivado e certo de que sua obra era única.

Entre seus admiradores, figuravam os surrealistas André Breton e Max Ernst (que pintou o quadro O Carteiro Cheval em 1932), além de Picasso e, claro, os milhares de turistas que vão todos os anos à cidade de Hauterives para testemunhar esse exemplo único de Arte Bruta e arquitetura Naïve.

Neuromancer: o game não realizado

Extraído da edição 10 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

No rol de grandes projetos que nunca saíram do papel, um game chama atenção. Trata-se de uma adaptação do romance Neuromancer cheia de peculiaridades, a primeira delas cabendo ao envolvimento de Timothy Leary, psicólogo famoso por pesquisar potenciais efeitos do LSD. Professor em Harvard, Leary foi um dos responsáveis pelo experimento que possibilitou um grupo de controle a utilizar psilocibina (dos cogumelos alucinógenos) em uma capela, visando à resposta para a possibilidade de enteógenos favorecerem experiências religiosas (aparentemente… Sim).

Pioneiro em estudos de cibernética, trans-humanismo, experiências místicas e podendo influenciar diretamente de Aldous Huxley a John Lennon, o gênio-doidão já se aventurava no terreno da criação de games nos anos 1980, tendo desenvolvido o curioso Mind Mirror em 1985. Com os direitos de Neuromancer comprados, sua adaptação contaria com a ajuda de nada menos que William S. Burroughs para o roteiro.

Além dele, Keith Haring se responsabilizaria pela parte visual, enquanto a banda Devo, famosa por suas ideias ousadas no pós-punk, cuidaria da trilha sonora. Por sua vez, Helmut Newton contribuiria com a fotografia. Diz-se ainda que haveria várias participações especiais, como a de David Byrne, retratado na imagem de abertura, uma das poucas desenvolvidas.

O projeto, descoberto tão somente após os arquivos de Leary serem abertos, poucos anos atrás, tinha tudo para se encaixar com o romance de William Gibson, obra responsável pela introdução do cyberpunk na cultura popular (e inspiração inegável para um colosso de derivadas, vide Matrix). Sem sair do papel, o game possibilitaria caminhos diferentes em sua narrativa. Eventualmente, Leary repassaria os direitos para a Interplay, que de fato lançou um jogo inspirado no livro, no final da década de 80. As semelhanças, no entanto, limitam-se à trilha sonora do Devo – esse você pode jogar clicando aqui.

A Paixão de Joana D’Arc

Extraído da edição 8 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O filme A Paixão de Joana D’Arc (1928) – como você pode imaginar – conta a história do julgamento e condenação pela inquisição inglesa da francesa, sob acusação de heresia.

Usando os registros originais do processo, o diretor, Carl Theodor Dreyer, recria os últimos momentos da vida da jovem que ouvia vozes e inspirou seu exército a numerosas vitórias na Guerra dos Cem Anos com uma crueza perturbadora.

Primeiro porque as falas seguem os documentos do tribunal, o que confere um tom hiper-realista à composição, mas sobretudo pelos elementos cênicos e estéticos: reducionista, o cineasta dinamarquês se livra de diversas convenções e se limita ao essencial para contar a história. Seus close-ups são extremos, e seus ângulos, vertiginosos; o cenário e figurino são os mais simples quanto possível e os atores não usam maquiagem, algo inédito no cinema mudo.

A isso, soma-se a performance impecável – considerada uma das mais importantes e icônicas da história do cinema – de Renée Jeanne Falconetti, em seu primeiro e único papel nas películas.

Essa atuação intensa foi resultado de muito escrutínio do diretor, que regravava cenas numerosas vezes para conseguir exatamente as expressões que procurava na atriz. A expressividade de Falconetti é sinergicamente amplificada pelo enquadramento fechado e a mise-en-scène minimalista.

A influência de Dreyer no cinema pode ser vista até hoje em diversos cantos da sétima arte, mas quem mais diretamente bebeu de sua fonte foi o movimento Dogma 95, de Lars Von Trier e Thomas Vinterberg.

Fã confesso, Von Trier é adepto desse estilo autolimitador, visto pelas numerosas regras autoimpostas em seus filmes – notadamente em Dogville (2003), que, sem cenário, desenvolve muitos dos temas explorados primeiramente pelo dinamarquês.

Detetive Conan Doyle

Extraído da edição 8 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Conhecido por criar Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle acumula fatos curiosos para mais de uma vida. (Por sinal, “Doyle” é seu único sobrenome – “Conan” é apenas um nome do meio). Além de ter se envolvido com a popularização do ski e com a crença na existência de fadas, Sir Arthur também influenciou diretamente duas absolvições criminais de seu tempo.

Em uma delas, o advogado George Edalji foi condenado à prisão por supostamente mutilar animais – cavalos, especificamente. Cartas anônimas enviadas à polícia foram atribuídas a Edalji, que, contando com o empurrãozinho de preconceito alheio em relação à sua origem indiana, não teve escapatória quando um pônei foi encontrado em más condições no vilarejo de Great Wyrley, onde morava.

Perseguido desde a infância por cartas anônimas de ódio, não tardou para que Edalji conseguisse um mandato de sete anos de prisão, isso em 1904.

Houve, no entanto, uma campanha de apoio à absolvição de Edalji, e Conan Doyle foi um de seus maiores porta-vozes. O escritor chegou a visitar a cena do crime e estudar todos os depoimentos relacionados ao caso, emulando sua criação mais famosa.

George Edalji, segundo Conan Doyle, não teria condições de maltratar animais à noite e ainda fugir da polícia, dadas as suas claras limitações visuais (um argumento não utilizado por Edalji em sua defesa, tamanha a descrença de que ele seria de fato condenado).

As cartas e as mutilações a animais continuaram mesmo com o advogado já preso, o que contribuiu para a verificação do caso. Em 1907, Edalji foi solto. Essa narrativa inspirou o romance Arthur & George, de Julian Barnes, e uma subsequente série de televisão.

Utermohlen: representação do Alzheimer

Extraído da edição 7 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Durante sua vida, o artista William Utermohlen (1933-2007) não foi genial. Suas telas não estão nos maiores museus do mundo e seu nome não tem grande relevância para historiadores de arte. Há uma situação singular, no entanto, que fez com que ele produzisse alguns dos trabalhos mais chocantes da arte contemporânea.

Aos 61 anos, o americano foi diagnosticado com Doença de Alzheimer, a demência mais frequente em todo o mundo. Seu sintoma mais conhecido e precoce é a perda de memória. Com o agravamento da doença, porém, o paciente pode sofrer de alucinações visuais, agressividade, perda de coordenação motora, além do constante declínio cognitivo.

Certamente, não se trata de um prospecto agradável, mas infelizmente ainda não há cura ou tratamento efetivo para conter sua evolução. Diante do diagnóstico, o artista iniciou uma série de autorretratos que viriam a ser sua janela para o mundo, um insight da sua cada vez mais distante consciência.

O primeiro quadro da nova série, de 1995, mostra o pintor sentado, segurando firme a mesa à sua frente, como se tentasse se ancorar no meio do espaço vazio que o circunda. As obras seguintes se tornam gradativamente mais abstratas e sombrias, atestando a progressão de sua condição médica e nos levando a esse ambiente misterioso, efêmero, desconfortável e perturbador que é a demência.

O último autorretrato, já em 2000, é o mais devastador. No meio do vazio paira uma cabeça – ou o que era pra ser uma cabeça – sem olhos, orelha, boca ou nariz definidos; até mesmo o olhar, algo que estava sempre presente em suas telas encontra-se perdido. Não há sentido ou contato com o mundo externo.

Pouco tempo depois de realizar sua última obra, Utermohlen foi internado em um asilo, onde morreu em 2007.