Gutemberg Medeiros: Boris Schnaiderman, jornalista

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Algumas editoras lembram o centenário da Revolução Russa com lançamentos de obras literárias e de cunho histórico. Mas há outro centenário a lembrar em relação à cultura russa no Brasil, o de nascimento de Boris Schnaiderman, em 17 de maio de 1917. Nascido em Úman, mas criado na cidade portuária de Odessa, dedicou 74 anos à tradução e divulgação da literatura e cultura russas no Brasil.

A lista de autores que Boris trouxe até nós é extensa. Como Isaac Bábel, Aleksander Blok, Ivan Bunin, Fiódor Dostoiévski, Ilia Ehrenburg, Máximo Górki, Daniil Kharms, Vladimir Maiakóvski, Ossip Mandelstam, Iuri Oliecha, Leon Tolstói, Anton Tchékhov, entre tantos outros. Além de serem expoentes da rica tradição da literatura em língua russa, foram traduzidos por este que é uma das mais originais personalidades da cultura brasileira.

O que pouco se fala sobre Boris é a sua trajetória de jornalista cultural. São mais de 300 artigos publicados na imprensa desde 1956. Ele inicia no antigo suplemento literário de O Estado de São Paulo editado por Décio de Almeida Prado e Antonio Cândido. Foi-lhe oferecido espaço intitulado “Letras Russas”, em paralelo à coluna “Letras Germânicas” de seu amigo e um dos principais críticos de teatro, o berlinense Anatol Rosenfeld.

Formou gerações de leitores, não exclusivamente sobre literatura russa. O seu ensaísmo chega ao tom de diálogo dos mais abertos. Por vezes, vislumbra aspectos da sua memória, desde que relevantes para o fluxo de entendimento. Ele lembra que logo depois que assumiu a coluna no Estadão, fez confidência a Décio. Sentia-se muito mal como comunista em colaborar em um dos principais jornais da direita. O editor sorriu e pediu para olhar para a redação. Assim como em toda a grande imprensa, a maioria dos jornalistas era de esquerda. Logo, tinham de sobreviver de uma forma ou de outra naquele ofício e buscar espaços para veicular algo na contracorrente do jornal.

Em termos de jornalismo cultural, Boris é um exemplo dos mais bem acabados da transição que ocorreu desde os anos de 1950. Como historiografou Russel Jacoby, professor da Universidade da Califórnia, em Os últimos intelectuais (Edusp, 1990), o intelectual que pensava questões emergentes da sociedade na crítica literária ou ensaio sociológico falava ao público o mais amplo possível a partir do jornal diário. Gradativamente, esse segmento migrou para as universidades e fala para determinado leitor iniciado em sua área de pesquisa.

Ele fez a transição para a universidade, ao fundar o Curso de Russo, na USP, em 1960, contribuindo de forma decisiva para a profissionalização da atividade de tradutor no Brasil. Manteve a qualidade de colaborar com jornais e revistas, mesmo com periodicidade variável, mantendo um texto dos mais inclusivos para todo o perfil de leitor, bastasse ser interessado em literatura e cultura russas. Este não foi o primeiro curso do gênero do país de terceiro grau, mas foi o único que sobreviveu à ditadura civil-militar instaurada em 1964. Sob o comando de Boris e com o apoio de colegas e alunos – entre eles Antonio Cândido, Paulo Emilio Salles Gomes, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes – manteve essa trincheira livre de pensamento e prática cotidianas.

Para o leitor ter noção da rica produção jornalística de Boris, há duas coletâneas de textos. A primeira, em catálogo pela Editora Perspectiva intitulada Projeções Rússia/Brasil/Itália (1978), traz textos publicados em jornais e revistas das décadas de 1960 e 1970. Um dos destaques é a revelação de que o poeta Alexander Púchkin foi tradutor para o russo de uma lira do árcade Tomás Antonio Gonzaga a partir de uma edição francesa.

Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (1983, esgotado) é um todo coeso de textos jornalísticos publicados, entre outros, no “Caderno de Sábado”, suplemento semanal de cultura do extinto Jornal da Tarde (do mesmo grupo do Estadão). Livro pioneiro onde se descortina o gradativo descobrimento do pensador russo Mikhail Bakhtin – hoje presente em pesquisas muito além dos campos da linguística e literatura –, cujo introdutor no Brasil foi o próprio Boris. Mais uma vez, em cada texto ele introduz o leitor não especializado ao universo de reflexões de Bakhtin, revelando a sua riqueza e pertinência.

Na construção de uma memória coletiva, igualmente função do bom jornalismo, uma das obras em que Boris melhor soube abordar importantes passagens de sua vida está em seu volume de ensaios Tradução: ato desmedido (Perspectiva, 2011), onde narra como se deu o envolvimento com a língua russa em situações diferentes ao de tradutor. Como todos, nem sempre tem dimensão exata do que viveu. Isso se torna evidente quando narra os meses em que foi “secretário” do correspondente da Agência Telegráfica da URSS (Tass), Iúri Kalúguin, entre 1945 e 1947.

Ao ler a descrição, como jornalista, não pude concordar que Boris fosse apenas secretário e fui eliminar essa dúvida. Ele manteve a versão reiteradamente. Então, pedi para descrever seu cotidiano. Boris chegava à casa do russo e lia jornais, revistas e escolhia as notícias que poderiam interessar aos leitores da Tass. Feita essa triagem, lia em russo o que estava em português para Kalúguin. O jornalista escrevia a matéria e Boris revisava os dados. Eventualmente, o “secretário” somava ao texto aspectos que estivessem em pressuposição ao leitor brasileiro, mas não ao russo. Após a definição de quais sugestões de Boris seriam aceitas, providenciava-se o texto final ainda com uma última leitura deste. Expliquei a Boris que ele exerceu funções específicas de um jornalista: pré-pauta, pauta, redação, pré-edição e edição. Ele me olhou espantado e reconheceu o seu engano.

Boris partiu no ano passado, aos 99 anos. Mas o seu acervo está aí e pode gerar várias coletâneas de seus textos jornalísticos, a exemplo do que ocorre há anos com a produção de Anatol Rosenfeld. Enquanto isso, as suas traduções estão em catálogo pela Editora 34, que há pouco relançou O processo do tenente Ieláguin de Ivan Bunin e promete relançar a prosa Inveja, de Iuri Oliesha, uma das principais da literatura russa e publicada originalmente em 1927.

Gutemberg Medeiros: Corpo-a-corpo com a vida

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em 1993, participei como ouvinte de congresso sobre os rumos do jornalismo cultural no Brasil e na Alemanha, no Instituto Goethe paulistano e com a presença de editores dos mais importantes jornais de ambos os países. Ainda na era pré-Internet, já se falava abertamente da crise no setor que resultou na presente exiguidade – para sermos econômicos ante quadro tão devastado. Entre os editores que entrevistei, estava um dos mais destacados e longevos em atividade na Alemanha, a frente do suplemento semanal do Frankfurter Allgemeine Zeitung. No mesmo posto, o escritor e pesquisador Siegfried Kracauer fez história e parte da sua preciosa produção jornalística pode ser lida em O ornamento da massa (Cosac Naify).

Após abordar as questões relativas ao congresso, perguntei o que estava sendo trabalhado – direta ou indiretamente – na Alemanha após a queda do muro de Berlim e a reunificação do país. Ele me dirigiu um olhar gélido e perguntou se algum escritor trabalharia com isso. Respondi que dialogar com os rumos de seu país era normal na literatura mundial e, especialmente, na literatura alemã. E enumerei nomes representativos, como Goethe, Novalis, Thomas Mann, Brecht e Peter Handke. O editor me cortou ao ouvir este último nome, declarando ser austríaco e não alemão. Despediu-se secamente. Além de tudo, era ligado a uma tradição ultrapassada da crítica, ao priorizar o local de nascimento e não a língua de expressão original.

Venho abordar este aspecto por sentir um tanto falta desse diálogo explícito ou implícito da literatura atual com o importante momento vivido por todos nós no Brasil, pelo menos desde 2013. Digo isto pensando especialmente na produção dos autores que colaboram com o RelevO.

Não estou dizendo para fazer proselitismo defendendo um lado ou outro da polaridade que nos assola. Nada disso. Mas considerando como a literatura é também um espaço possível para expressar o demasiadamente humano de nosso tempo e espaço, partindo de determinadas vozes do passado e se projetando ao futuro, para lembrar o pensador russo Mikhail Bakhtin.

Alguém que estava afinado com essa proposta – não, corrijo, mais do que isso, um ofício de vida – foi o escritor João Antônio. Ele chegou a cunhar uma expressão das mais ricas, o seu constante “corpo-a-corpo com a vida”. Em crônica intitulada “Eu mesmo” e publicada em 9 de marco de 1976 no extinto jornal diário Última Hora, escreveu: “Estou aqui, atrás da minha máquina, para um corpo-a-corpo com a vida, com vocês e com a cidade”. Logo adiante, no mesmo texto, “Se fosse para fazer pirueta mental e procurar brilharecos de fácil conquista, acho que não estaria aqui, agora, atrás da minha máquina”.

Algum incauto apressado poderia dizer que João Antônio falava isso por ser mais jornalista do que escritor, pois o mais importante nas artes – especialmente na literatura – seria a forma, o cinzelamento do texto ou coisa parecida. Apesar do que muitos pensam, nem os Formalistas Russos do começo do século – entre eles Chklovski, Jakobson e Tinianóv – chegaram a defender tal posicionamento. Inclusive, eles se comprometiam com a vida emergente pré e pós-1917, tendo entre seus principais parceiros de vida Eisenstein e Maiakovski, entre outros das vanguardas russas.

A literatura brasileira está repleta de escritores que praticaram esse corpo-a-corpo com a vida. A exemplo de Lima Barreto, sobre o qual falamos na coluna anterior. Talvez um dos momentos mais contundentes neste sentido seja o poema dedicado a Stalingrado, de Carlos Drummond de Andrade (A rosa do povo, 1945), ao cantar a resistência heroica ao cerco desta cidade pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Além da admiração do poeta a esta resistência, acompanhada pelos telegramas de Moscou (“A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, diz em um de seus versos), Drummond também ecoava sobre a resistência a outra ditadura não estampada na nossa imprensa, a de Getúlio Vargas, de moldes fascistas. Ninguém pode alegar em sã consciência que o poeta colocava a ética acima da estética.

Uma escritora das mais importantes entre nós é Hilda Hilst, cuja poesia completa acabou de ser lançada pela Companhia das Letras. Muitos a chamavam de esteta vazia, a viver numa torre de marfim. O tempo provou o contrário em sua vasta obra que compreende poesia, teatro, prosa poética e crônica jornalística, nas quais, direta ou indiretamente, discute as agruras de seu tempo.

Para ficar apenas no mais explícito, todo o seu teatro está pejado desse diálogo. Especialmente a peça “O Verdugo” (vencedor do Prêmio Anchieta de revelação no teatro paulista de 1968), que aborda discussões de fundo ético a partir das reflexões de um carrasco em plena ditadura civil-militar. Ou a série ”Poemas aos Homens de nosso tempo”, 1974). Em determinado momento, emergem os versos: “LÍDERES, o povo/ Não é paisagem/Nem mansa geografia/ Para a voragem/Do vosso olho./POVO. POLVO./UM DIA).

Por isso, peço aos criadores de RelevO que ousem mais em entrar nesse corpo-a-corpo com a vida. Pois quem tece palavras com os fios do tempo presente pode compor memória e tocar o essencial do humano. Como nos atualíssimos versos de Hilda Hilst.

Gutemberg Medeiros: Lima Barreto e o mito

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em 2013, houve um movimento em redes sociais propondo Lima Barreto para ser o homenageado da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Logo surgiram manifestações, algumas violentas, contra essa proposta, pois seria sujar a memória do escritor. As alegações eram de que ele era o maldito em sua época, uma espécie de outsider assumido sempre a lutar contra os espaços legitimados nas esferas literárias e jornalísticas.

Na época, manifestei-me contra esse tipo de coisa, parte dos mitos criados em torno de Lima – e tanto há quem goste de tecer para outros como Patrícia Galvão, Nelson Rodrigues e Hilda Hilst. Não precisa ser “especialista” em Lima para saber o que é mito ou não. Para tanto, basta recorrer à biografia do escritor realizada por Francisco de Assis Barbosa, publicada em 1952, e ainda uma das referências sobre o autor de “Clara dos Anjos”.

Tudo bem, em 1907, Lima lança com amigos e escritores a revista Floreal e durou apenas quatro números, mas o autor já era um homem marcado, pelo menos incompatibilizado com grande número de influentes jornalistas e escritores. Como se não bastasse a ácida leitura do mundo jornalístico em “Memórias do escrivão Isaías Caminha”. Mas isso por uma parcela desse universo, não pela maioria dos seus colegas. Inclusive, fazia ponto na Confeitaria Colombo na mesma mesa de Olavo Bilac, já considerado o Príncipe dos Poetas e cronista dos mais valorados.

Lima passou por variedade extensa de revistas e jornais, recomendado por amigos de profissão. Desde menores como ABC até a Gazeta de Notícias, um dos mais importantes jornais diários da 1ª República. Poderia ter publicado mais e não o fez, basicamente, por dois aspectos de sua vida pessoal. Primeiro, enquanto trabalhou no então Ministério da Guerra. Como arrimo de família, não poderia se arriscar a ser exonerado por algum artigo ou crônica ácida. Cedo se aposentou. O outro fator a atrapalhar a sua produção foi o alcoolismo. Tão considerado era a ponto de ter sido convidado a participar como colaborador da primeira revista modernista nacional, a Klaxon, e se recusou por julgar Mário de Andrade e companhia um bando nada sério de seguidores do futurismo italiano.

Por outro lado, buscou se integrar ao meio literário, como ingressar na Academia dos Novos (1911) e na Sociedade dos Homens de Letras (1914). Como se não bastasse, Lima quase se candidatou à Academia Brasileira de Letras em três ocasiões – em 1918, 1919 e 1922, ano de sua morte, na vaga de João do Rio, quando formalizou o pedido de inscrição, mas acabou desistindo. Logo, pode-se garantir que ficaria muito feliz se fosse convidado para a FLIP. Finalmente sua hora chegou em um evento cuja importância é inquestionável e todo e qualquer reconhecimento de sua obra é fundamental, pois continua tendo o destino de outros grandes autores, como Dostoiévski: muito citado e pouco lido. Pois que se descubra o continente Lima Barreto.

Ainda na questão de ser “maldito”, isso só é verdade em parte, no que diz respeito às poucas vezes que obras suas ganharam a chamada perenidade do livro. A maioria só foi publicada na década de 1950 pela Editora Brasiliense e graças, novamente, aos esforços de Francisco de Assis Barbosa. Porém, foi jornalista dos mais reconhecidos em seu tempo. Como outros escritores e jornalistas brasileiros, exerceu forte e frequente crítica aos rumos da imprensa. O que chamo de metajornalismo, quando a imprensa vira pauta de si mesma. Ou seja, espécie de ombudsman antes dessa categoria ter sido criada. Para ficar apenas em seus contemporâneos, João do Rio e Medeiros de Albuquerque também ocuparam esse lugar de crítica.

Tomara que, a partir da FLIP, a sua produção no geral, e a jornalística em especial, seja retomada. Um exemplo dos mais felizes foi publicado ano passado com a coletânea de inéditos em livro “Sátiras e subversões”, organizada por Felipe Botelho Corrêa (Penguin & Companhia das Letras). Na seleta, textos publicados nas revistas ilustradas mais renomadas do princípio do século no Rio de Janeiro, Careta e Fon-Fon. Um estudo revelador sobre o escritor é João Antônio, leitor de Lima Barreto, de Clara Ávila Ornellas (Edusp), especialmente ao provar com densa pesquisa como ambos seguiram na trilha do pensamento articulado por Leon Tolstói.

Manuel Bandeira escreveu que Lima traz o gosto da nossa vida, muitas vezes amargo, mas ainda vital para melhor nos compreendermos. Em tempo: Evoé!, caro professor Silvio Demétrio.

 

Nota do editor:

Esta é a primeira coluna de Gutemberg Medeiros. Ele é jornalista e pesquisador. Cursou Mestrado e Doutorado na RCA/ USP e cursa pós-doutoramento em Comunicação e Semiótica na PUCSP. Foi indicado pelo ombudsman antecessor, Silvio Demétrio, e tem mandato de três a nove meses. O editor não interfere no texto acima, exceto em casos de correção ortográfica.  Cabe ao ombudsman repercutir erros do jornal, questões internas e, quiçá, escrever sobre o que bem entender no âmbito da críticas das mídias.

Silvio Demétrio: Evoé

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em meio à turbulência desse ano furioso que foi 2016, eis que me surgiu um momento de liberdade daqueles que se vive só por forca do sonho: Ben-Hur Demeneck me convida para assumir a função de ombudsman do RelevO. Apesar do risco disto soar como cabotino, é uma grande sorte ser professor.

Porque no horizonte da filosofia está sempre o “philo”, o amigo. Ganha-se sempre menos do que caberia por direito e responsabilidade, mas como compensação vamos construindo grandes amizades. E tenho a sorte de sempre receber provas disso. Minha experiência como ombudsman deste periódico foi nutrida por essa espécie de “philia”. Uma amizade que amplia nossa força de ação no mundo.

E lá se foi um ano e agora meu mandato chega ao fim. só poderia agradecer pela paciência e fé inabalável do Zanella, editor do RelevO, bem como de toda a equipe e assim como, e principalmente, de cada leitor que por algum momento me concedeu alguma atenção aos meus textos. Enquanto houver literatura ainda permanece alguma esperança no devir. Toda leitura é um ato de compaixão, de simpatia (sim – prefixo que significa “com” e pathos, “paixão” = compaixão): permitir-se a experiência segundo a condição do outro – colocar-se no lugar de alguém.

É porque é necessário, pois ainda falta compaixão. Falta amizade. Falta conforto. Falta. A falta e tanta que às vezes se desacredita nas palavras, como naquela Carta a Lorde Chandos – obra de Hugo Von Hoffmansthal. É só pela literatura que se pode recuperar algo nesse sentido. O zelo pelo dizer. Esse vapor que se dissipa facilmente e que transforma as palavras no testemunho de uma passagem: o estilo. Nada é mais frágil e, no entanto, nada também pode ser mais instigante do que aquilo que derrota a própria morte do homem e o transforma num autor. O estilo, a singularidade que projeta a vida de alguém para dentro das palavras. Algo que insiste, que resta, que fica. A mais sutil de todas as matérias.

Mas falando assim corre-se também o risco de acrescentar alguma inflexão de tristeza, e todas as matizes da bile negra só fazem é imobilizar. Muito ao contrário, de tudo o que vi e li por aqui fica uma grande satisfação pela alegria do movimento e de uma força de expansão que jamais se permite a tristeza. Acho que já estou sentindo saudades.

Quem assume a cadeira de ombudsman no RelevO a partir da próxima edição é Gutemberg Medeiros. Um dos espíritos mais prospectivos que já conheci quando o assunto é literatura e jornalismo. É com um fôlego de geólogo que suas pesquisas vão em busca do cerne da modernidade de Lima Barreto e da intersecção dos universos literojornalisticos de Nelson Rodrigues e Fiodor Dostoievski. Gutemberg constrói em sua jornada como pesquisador um conceito que acredito ser fundamental para a leitura crítica do RelevO: o “metajornalismo” – na convivência anfíbia entre as duas áreas, literatura e jornalismo, não é difícil encontrar momentos nos quais um literato-jornalista coloca-se a pensar e elaborar algo sobre o próprio oficio. A escrita como uma dobra que sela esses campos para sempre geminados.

Ganham os leitores, o periódico, a literatura e o jornalismo. De toda essa crise na área, algum elemento catalisador como força histórica deve definir melhor os contornos de um novo mapa a ser percorrido. Sei que é imprudente, arriscado e impulsivo lançar qualquer afirmação assim, mas talvez, acredito, não cabe mais noticiar. Para isso existe toda uma geração de profissionais que lembram aquele personagem da MTV nos anos 90, Max Headroom – um âncora apresentador cibernético que dispensaria a necessidade de um profissional “humano”. Cabe aos jornalistas que ainda resistem, reportar, contar histórias, e, por que não, estórias também. A imaginação no poder, mais uma vez.

O texto sobre a textura da página: um relevo sutil que se percorre com os dedos e com os olhos. Vida longa a todos nós. Que a nossa alegria continue para sempre invencível. Obrigado, Zanella. Obrigado, Ben-Hur. Obrigado, Gutemberg. Obrigado, leitores.

Silvio Demétrio: Elegia à deserção

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Todos nós erramos. E erramos feio. E a verdade por detrás disso é uma só. Não há retorno possível. Não há reparação. Um movimento completo em sua duração, indivisível. Algo que só se experimenta como vertigem. O erro é o destino de cada um. Absoluto. O erro é a sina cega. O cansaço. A canga do trágico destino que se desconhece. Humano porque trágico.

Uma espécie singular de ilusão e delírio: toda e qualquer forma de convicção. De certeza. De moral. Quanto mais se deseja a verdade mais se erra. E que erro considerar isso um equívoco. Aqui o erro é o movimento da errância. Deriva. Os desvios que constroem o trajeto do riacho do tempo. Aquilo que se passa entre um instante e outro. Móvel. Fugidio. Aquilo que foge. Escapa. Aquilo que é livre. Inumano. Potencia inorgânica.

E se não há outro destino que não o erro, por que não cantar a única atitude verdadeiramente válida? Só há sentido na deserção. Desertar vem de “dirigir-se ao deserto”. Tornar o deserto uma ação. Evadir-se em direção ao que não está demarcado. Terra de ninguém. O deserto é o que sobra para além de qualquer fronteira. Lugar nenhum. Utopia. Não lugar.

A solidão é a nação dos que não se enquadram. O afeto do único, do singular, da diferença. O mais corajoso de todos os desertores: o outsider. O bicho esquisito. Aquela presença estranha e incomoda. Indomável. Assimétrica. Sustenida. Santa. Todos os grandes heróis são desertores.

A suprema coragem de dizer não para não se colocar a serviço da morte. Do sarcasmo que assassina as possibilidades de um dia mais leve. Da falta de respeito que faz sangrar. Do desprezo de toda espécie. Da arrogância que envenena. De toda e qualquer militância. De toda burrice. De toda insensibilidade.

Desertar como ato de celebração da vida em sua potência de alegria simples. Todas as crianças são desertoras. Nascem no deserto para depois serem povoadas por monstros como a escola, as doutrinas, os credos e as certezas. Sempre elas. Assustadoras, as certezas se traduzem numa normalidade vazia que faz da vida uma espera pela morte.

Que todos nós que nos reunimos em torno do RelevO possamos viver de forma mais intensa o erro. Como ombudsman de um jornal de literatura, acredito que só possa articular essa proposição como uma tentativa de crítica depois de um ano marcado por uma intensidade tão obscura como foi 2016. Escrevo isso ainda dentro dele e apostando todas as fichas que, nesse momento no qual você lê isso, esse nefasto tempo já tenha se esgotado.

Saudações a todos os que erram. Errar é estar a caminho da surpresa. A nós a poesia — essa deserção do lugar comum para a vida da linguagem como festa. Um brinde a todos os que já desertaram e os que ainda se deixarão as certezas para embarcar nos ventos do encanto. “Só a beleza nos salvara”.

Evoé!

Silvio Demétrio: Luto pela poesia

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Este resto de epílogo de um ano cruel e tortuoso parece demonstrar um esgotamento do sentido em todos os níveis. Para muito além de qualquer polarização política ou partidária, todos se sentem traídos: seja pelo destino ou pelo acaso com a exorbitante tragédia que solapou as vidas de quem estava a bordo daquela aeronave que levava a equipe da Chapecoense (não há como não falar disso), seja pela decadência exposta de todos os parâmetros aceitáveis para a política em condições democráticas que se demonstrou com as manobras torpes, tanto do Senado com a aprovação da “PEC da morte”, quanto nas “10 medidas para acabar com a corrupção”, que o Congresso transformou a seu bel prazer e conveniências. Daqui em diante são vinte anos de inércia. Uma glaciação tropical. Não há bálsamo para uma ferida assim, especialmente quando o jornalismo é instrumentalizado como dispositivo que arranha a carne exposta do real, pervertendo a dor e a comoção nacional numa passividade bovina da população que se esquece de Brasília, do Brasil e de si mesma. A repetição até a exaustão para que o sentido entre em colapso também.

É aí que se percebe o momento ideal para avaliar o quanto existe de valoroso num jornal que se define pela “linguagem como notícia”. Um jornal de poesia e literatura. Um jornal como ágora estética — encontro de poéticas. Algaravia. Murmúrio do mundo. Glossolalia. É só assim, quando acontece na página uma epifania, que se revela a perspectiva do tempo como via de restauração do sentido. A poesia assim como toda a arte é uma forma de cura. É pelo engenho das palavras que se recupera a fé num mundo, seja ele qual for. Existem vários e eles não se excluem uns dos outros.

O RelevO acerta quando apresenta uma salada dos miolos dessa diversidade. E isto acontece de maneira constante. As páginas da publicação são pluralistas, sempre dando espaço para uma pletora de talentos de diferentes origens, estéticas e recursos de expressão. O periódico não é uma aventura paroquial e incestuosa. Mesmo quando regional, é recomendável a um jornal sempre ser cosmopolita. Mesmo que encrustado na mais febril das províncias. E o RelevO é um cidadão do mundo nesse sentido, basta percorrer suas páginas. A edição de setembro, por exemplo, acertou ao ir do chorinho ao heavy metal. Os textos de Luís Pellanda, Flavio Jacobsen e Karen Debértolis numa mesma edição faz lembrar, e isso é inevitável, os melhores momentos do saudoso Nicolau. Uma publicação de Curitiba para o mundo.

Na edição de outubro um grande acerto foi a publicação do texto do jornalista Diego Antonelli sobre um Paraná que não é nem um pouco pacato. A história da Revolução Federalista e o Cerco da Lapa nos mostram que, tal como no mundo inteiro, por detrás do silêncio de uma paisagem bucólica sempre há o grito sufocado de quem pagou com o próprio sangue o preço da história. E é necessário desmistificar o Paraná. Especialmente quando se cria uma aberração ideológica como a “República de Curitiba”.

Em alguns momentos de vulnerabilidade, o jornal pode pecar talvez por essa vocação paroquial que não é sua, mas do próprio Paraná. Estamos todos imersos no mesmo espírito do tempo e acabamos por contrair suas contradições. Talvez seja hora de expandir o alcance não só da circulação, mas também da abrangência do que se mostra em suas páginas. Existe toda uma cultura subterrânea para além do Paraná e que está ávida para encontrar espaço de expressão. O RelevO pode se tornar essa bússola continental. Encontrar interlocução com uma literatura e uma poesia que são estrangeiras dentro do próprio país, como a verve crua e cortante do maranhense Nauro Machado. O trabalho valoroso do editor Gabriel Cohn com sua Azougue no Rio de Janeiro, assim como a Editora Sete Letras e, porque não, até a Revista Cult. Não existe concorrência nesse meio, senão confluência. Vamos nos juntando até nos tornarmos atlânticos.

Escrevo esse texto para exorcizar as sombras desse mórbido fim de novembro na história do jornalismo e do esporte, assim como na política brasileira. Precisamos nos reinventar. Sempre. Não dá para esperar vinte anos. O avião pode cair a qualquer momento. Do luto, lutemos.

Silvio Demétrio: Krig-ha, Bandolo!

A primeira vez que tive de explicar o que era um ombudsman foi numa prova de proficiência em inglês. Foi na ECA em São Paulo, meados da década de 1990. A prova apresentava um texto sobre a legislação sueca referente à função do “ouvidor” em um jornal. Na época isso era uma novidade relativamente recente no jornalismo brasileiro. A Folha de São Paulo havia começado há algum tempo com a coluna que mantém até hoje. O primeiro ombudsman foi o jornalista Caio Túlio Costa, que foi o primeiro também a lançar um livro explicando o que era um ouvidor dos leitores de um jornal.

Quando me convidaram para assumir essa função no RelevO considerei interessante o desafio, uma vez que essa função é tradicionalmente vinculada ao jornalismo diário, o que se chama popularmente de “hard News”. Um ombudsman traça um arco crítico sobre a cobertura que um jornal realiza. Transpor isso para o contexto de um jornal de poesia e literatura requereria algum engenho. Foi aí que encontrei o desafio que me motivou.

É que desconheço algum exemplo de ombudsman que tenha trabalhado com um material estético e não noticioso.

O RelevO inovou ao implantar os mandatos dos que me antecederam. Em conversas com o editor do jornal, Daniel Zanella me explicou que cada um seguiu uma linha própria, independente, dando-me total liberdade para desenvolver meu trabalho. Parti, então, dos seguintes referenciais como modelo crítico: o ensaio Forma É Poder, que Paulo Leminski publicou no saudoso Folhetim publicado pela Folha de São Paulo em 1982, a concepção do que é uma teoria crítica segundo Max Horkheimer e de uma noção que é cara à linha da Semiótica da Cultura, a intertextualidade, muitas vezes atribuída à Bakhtin, mas que na verdade é desenvolvida de fato por Julia Kristeva.

De Leminski extraio as seguintes afirmações: “Uma prática do texto criativo, coletivamente engajada, tem a função de desautomatizar. De produzir estranhamento. Distanciamento. É desmistificação da “objetividade”inscrita no discurso naturalista. Essa objetividade é falsa. Ela apenas reflete a visão do mundo de dada classe social, de determinada civilização. Sua pretensão a “discurso absoluto” é totalitária”. Essa era sua concepção de uma linguagem crítica dentro do jornalismo cultural. Não há, portanto, segundo esse parâmetro, como ser “objetivo” no jornalismo cultural, a menos que não se queira ser acrítico (coisa que se vê em larga escala nesse modelo de jornalismo cultural como “prestação de serviço”, agenda, que vigora nas mazelas do mercado).

Ainda do poeta paranaense sigo o raciocínio do aforismo seguinte de seu ensaio: “Violação. Ruptura. Contravenção. INFRATURA. A poesia diz “eu acuso”. E denuncia a estrutura. A estrutura do Poder, emblematizada na “normalidade” da linguagem”. Poesia, portanto, é caso de exceção. Aquilo que foge às normas. Uma linguagem fluxo. Descodificação. Desterritorialização. Esse “eu acuso” de Leminski brilhantemente embutindo no enunciado a referência ao famoso Caso Dreyfus que marcou a história do jornalismo europeu a partir da leitura que Emile Zola fez dele.

Como a poesia realiza essa tarefa, então? Na minha concepção, exatamente pela dinâmica da intertextualidade, o terceiro parâmetro de nosso modelo crítico aqui para o RelevO. Intertextualidade é conversa entre textos culturais.

Nada que se escreve e publica é independente. Nada nesse sentido nasce de uma tábula rasa. Um grau zero da escrita, como diria Barthes. Existe toda uma rede de enunciados sobre o mesmo tema e de outros referentes afins que precede o corte que será feito pelo enunciado que antecipa e reage com este último. Aquilo que se pode chamar seguramente de historicidade.

É daí que entra a concepção de Horkheimer do que vem a ser uma teoria crítica. Em seu célebre texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica, o filósofo alemão explica, entre outras coisas, que o que caracteriza uma teorização crítica é a possibilidade de se infletir uma perspectiva histórica sobre o objeto da crítica. Fazer crítica é, sobretudo, percorrer os agenciamentos do objeto em suas relações dadas pela perspectiva histórica. Aquilo que se percebe do objeto tal como ele se apresenta no quadro histórico no qual ele emerge e as linhas de derivação pelas quais esse objeto se desloca no devir do tempo.

Meu objeto é o RelevO como um todo. Não me sinto autorizado para realizar alguma crítica sobre a poética dos textos aqui publicados. Não poderia analisá-los como se notícia o fossem. Afinal, um ombudsman não faz crítica literária, senão uma espécie de media criticismo. Como tal, penso que minha função é colocar o que se constitui como publicação em relação à historicidade. Jamais eleger minhas convicções políticas como verdades, uma vez que não acredito ter convicção nenhuma sobre nada. Convicção só tem quem já parou de pensar.

Quero agradecer aqui, no corpo do texto mesmo, pelas observações do leitor Alexandre Cunha, especialmente a comparação com Gregório Duvivier. É isto que nos enche não de convicções, mas de um afeto que nos indica que estamos no caminho certo. Agora com relação ao fato de algum comentário sobrepor-se ao campo político, vamos pensar assim: desde que o oxigênio é uma necessidade comum a todo ser humano e não humano também, o próprio ato de respirar é um ato político. Só não existe política onde não existe mais vida. Xô, uruca!