Morgana Rech: Screen

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um mês depois de levantar o acampamento no consultório, seguir à risca as normas de isolamento social, várias sessões on-line, RelevO e eu estamos entrando numa espécie de alta, mesmo que esse termo seja muito discutível na psicanálise.

Nosso problema não é financeiro, principalmente agora que o paciente-jornal tem até investido mais em nossa relação, me oferecendo obras maravilhosas em .jpg por e-mail, “capturando” o meu momento clínico para além dele. É maravilhoso como o narcisismo se engrandece na análise – não no sentido inflamado, que esconde um machucado terrível e maltratado por baixo –, mas esse narcisismo que, lá pelas tantas, pode ver o analista de igual para igual como pessoa, que entende o inexprimível do terapeuta, dá algo que ele precisa, mesmo sem que lhe tenha dito o que era.

Bem, nosso problema também não é falta de tempo, muito embora o RelevO esteja trabalhando dobrado para dar conta de manter as edições vivas e respirando nessa fase quarentênica, o que é muito compreensível. Tampouco podemos dizer que nosso problema é de lonjuras, porque agora estamos todos bem perto, vivendo nesse universo pandêmico simultaneamente com e sem fronteiras.

Talvez nem tenhamos um problema, na verdade. Freud mesmo dizia que existem análises termináveis e análises intermináveis. O RelevO é tão criativo e elabora tão bem seus conflitos, edição após edição, que ele quase anda mais rápido do que eu consigo compreender. Quem caminha perto assim da arte costuma se deslocar mais entre o desejo e a necessidade, inclusive o de ouvir e ser ouvido. Artistas têm mais cacife para fazer várias análises curtas ao longo da vida; estão sempre se reconhecendo em cada obra.

Freud, por exemplo, um dos artistas menos compreendidos do século passado[1], foi seu próprio analista durante muitos anos.

Remendou sua própria análise na sua própria criação e na sua própria vida, e assim criou o método que está em transformação até hoje, principalmente agora, transferidos que estamos para o screen. Vejo o RelevO pelo screen e mal posso acreditar que a pulsão de vida se infiltra tão bem num jornal de literatura, em plena pandemia mundial, e que torna sua criatividade soberana justo num momento em que quase nada circula neste mundo com tão pouco movimento.

 

[1] Digo isso com base nos meus estudos sobre a relação de Freud com a arte, mas ele nunca se denominou artista e raramente é visto assim pela comunidade científica.

Morgana Rech: O vídeo é o nosso senhor e o sabão não faltará

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Desde a semana passada, retirei o meu corpo do consultório para ingressar no isolamento social e nas sessões on-line. A relação transferencial entre RelevO e eu se virtualizou. Nunca imaginei que meu espaço físico, o ar que respiro, a mão que cumprimenta ou segura o jornal, se tornaria tamanha ameaça para o outro. Centenas de colegas fazem o mesmo e saem com suas trouxas de trabalho embaixo do braço: o lenço de chorar, o relógio que dá as horas de início e fim, a agenda, os cadernos, as Obras Completas, nossos objetos de estar lá. Alguns levam para casa seus RelevO´s impressos, presença forte em nossas salas de espera.

Levamos um pontapé na bunda dado por uma civilização de litros e mais litros de álcool que agora nos exige a desocupação das ruas e a ocupação de espaços internos. É um vírus, ok, mas eu não o vejo; o que vejo são garrafas de desinfetantes e roupas de astronauta. Duas promessas de liberdade, quem diria. Estamos rendidos, limpos e toda a nossa teoria de trabalho está temporariamente sob custódia, assim como está o rumo dos jornais independentes de literatura. Nos identificamos neste ponto.

Freud não falou nada sobre Skype, muito menos sobre Corona. Falou, isso sim, de como a miséria humana e o adoecimento narcísico pediriam uma atualização da técnica de analisar. Ele não disse que faríamos isso tão abruptamente, e que teríamos que lidar com nossa própria vulnerabilidade, que surge com a saudade do nosso local de trabalho e dos objetos familiares à manutenção de nossos lugares. Bem, os poetas também sempre disseram que a miséria humana e o adoecimento narcísico pediriam uma atualização da linguagem. A bem da verdade, na ficção o atual já existia.

O analista sempre trabalha com a ideia de que uma tela o separa do paciente. A diferença é que ela, agora, não é uma metáfora. É real e por tempo indeterminado, af! O atendimento on-line, como estamos fazendo aqui, deixou de ser exceção e se tornou regra, e quando a exceção vira regra, a teoria começa a girar em torno dela, rudimentar e única: ficar em casa. Talvez Freud tenha se visto numa situação parecida quando viu aqueles pacientes traumatizados pela guerra, tanto é que mudou sua tática. O mundo, agora, voltou a ficar tão monotemático, mas tão monotemático, que já apareceram até os agentes de vigilância nos dizendo o que podemos e o que não podemos fazer do nosso mundo interno durante o isolamento. Dizem, alguns, que não podemos romantizar a quarentena. Bem, se entendermos isso no sentido romântico mesmo do termo, romantizar a quarentena me parece uma atitude bem interessante até mesmo para manter a psicanálise — e a literatura — em pé, já que romantizar equivale à ação do pensamento de recusar tanto a razão pura como a magia pura. Ficar entre elas: espaço analítico por excelência. Possível chance de ficar imune à cegueira. Romantizar a quarentena e refazer contratos sociais me parecem ações que vivem na mesma ilha, se não quisermos que ela seja sonífera. O RelevO está liberado para romantizar o que bem entender, mesmo porque, no mundo da ficção (o atual, rs), as coisas podem até andar mais a nosso favor do que antes. Enquanto estou revisando minhas técnicas e condições de trabalho, o jornal literário tem, pois sempre teve, uma das funções mais importantes para o cenário de trincheira em que estamos. Tento encorajá-lo nisso, do mesmo modo que ele me encorajará a remontar o meu setting. Vínhamos bem, afinal de contas, com aquela história do RelevO se despersonalizar e assumir a sua dupla identidade, naquele rompante falocêntrico de ser um jornal automobilístico. Eu diria que, por um lado, podemos nos aliviar juntos desse fardo, unidos no desamparo favorável à criação. Por outro lado, o “ricaço” que, dizia o RelevO, faz falta para injetar um ânimo na publicação pode, quem sabe, ser reencontrado ou refeito no coração da coletividade.

Estamos de volta ao grau zero de leitura e de escrita. Lembraremos, fisiologicamente, da sua importância. Psicanalistas e artistas são, mais do que antes, colegas, como eram Freud e seus amigos gênios. Poetas, editores, ilustradores e quadrinistas: todos numa função mais ou menos analítica de oferecer ponte e alívio. Que o inconsciente saiba: na arte se continua vivendo. Que o jornal saiba: no seu espaço é onde contaremos essa história.

Morgana Rech: O duplo nunca morre

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Parece que, para uma primeira sessão, fomos bem. Bastante comum: em início de análise, um primeiro movimento de despersonalização é feito pelo paciente-jornal. No caso do RelevO, ele aparece com essa dupla versão de si, metido a jornal automobilístico-guia-fálico-de-tunagem. Mostra toda a potência do seu motor editorial, talvez com o objetivo de ditar a velocidade e o trajeto da nossa estrada transferencial.

Típico, porém, genial, já que não resta mesmo outra opção a um jornal literário, impresso, resistente como esse, senão jogar limpo com as suas tendências falocêntricas. Suportar o tamanho do desamparo que é fazer literatura sob a proteção, no caso desse fenômeno duplicador que observamos aqui, de cavalos e cilindros. A análise do Gol Bola, se é que entendi bem, 1994, denuncia: o RelevO não vai se rebaixar tão facilmente. Não vai cair nessa de confundir freio com pedal de aceleração. Vai conseguir fazer humor, acima de tudo e em alta velocidade.

A cara sacana do duplo vem, às vezes, só confundir o próprio autor para, depois, fazê-lo acreditar mais forte nele mesmo. Isso é o bonito da literatura, afinal de contas. Uma forma de uma verdade desmentida se tornar uma nova verdade, fazendo da antiga uma mentira e, portanto, se refazendo como mentira. É isso mesmo? E o jornal pergunta, no fim: sacou? Eu devolvo a pergunta, é lógico. Estamos em análise, RelevO. Eu acredito em você.

O duro é acreditar no falocentrismo quando o joelho treme diante de uma narrativa como a do Rodrigo Menezes de Melo, em que “a gente quase sempre se sente melhor quando finge que é bom”; ou quando Elisa Dot conta sobre o brilho dos vagalumes que aumenta quando os olhos transbordam de “lágrimas não solicitadas”; ou quando imaginamos a personagem de Marta Neves completamente saída de si naquele bar insuportável; ou no duplo de Afrânio, que morre de tanto ignorar o que está diante dos seus olhos, no texto do Evandson Sousa.

Fim de sessão e o próprio jornal restitui sua própria imagem, ao incentivar o mantra “sou a reencarnação daqueles que ainda não morreram”. É lógico que ainda não morreram, porque o duplo nunca morre quando a arte e o humor são bons. O paciente-jornal se engrandece ao longo do tempo e, justamente por isso, fico no maior orgulho e me despeço: nos vemos no mês que vem.

Morgana Rech: Transferências e o paciente-jornal

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Talvez por ser a primeira ombudsman psicanalista, já vou começar sem entender direito por que é que o RelevO precisa tanto dessa figura para abrir o jornal. Vou criticar o RelevO para ajudar o RelevO. Vou dizer que o editor convida alguém que proteja os seus leitores para garantir uma faixa de neutralidade em suas relações editoriais. Se eu fosse analista do jornal, investigaria junto com ele os motivos, os verdadeiros motivos pelos quais ele acha que precisa dessa defesa. Defender os leitores para, no fundo, defender o jornal. Eu faria o possível para sair do lugar de escudo. Eu diria para o RelevO se virar sozinho, pela primeira vez na vida.

Fico imaginando: o consultório sendo frequentado por editores de jornais e revistas literárias. Apresentando suas queixas sobre a função de seus veículos no espaço editorial. O irrelevante ou o megalomaníaco papel que eles acreditam que exercem no conjunto das publicações. A voz do RelevO, muito provavelmente, seria aquela mais agradável de escutar. A que colabora com o processo, que está a fim da análise. E aí eu ficaria sabendo desse negócio de ombudsman, a história deles todos. Pensaríamos sobre isso, a minha atenção flutuante daria um salto. Eu ouviria histórias de ombudsman que machucaram o jornal e ele nem ligou. Tentaríamos ver por outro lado, fazer outras leituras dessas páginas.

Eu lhe diria então que, bem, não dá para deixar de apanhar sem perder a identidade, não é mesmo? O RelevO sairia dessa sessão meio puto comigo. Pediria para trocar o horário da semana que vem. Esqueceria o dinheiro. Sairia se vendendo por aí, em vez de vir. Faria uma edição melhor, iria mais longe. E depois nos daríamos conta de que os melhores sacos de pancada são aqueles que acabam por fascinar o agressor até que a pancada se transforme em homenagem. O jornal me homenagearia e eu homenagearia o jornal, porque é assim que a banda toca na relação transferencial que acabo de inventar entre mim, ombudsman, e meu paciente-jornal a quem, no fundo, me dirijo.

Sempre li dos ombudsmans — e confirmaríamos isso ao longo das sessões, RelevO e eu — que eles aprendem muito com essa função. Que, no fim, o jornal é que lhes dá a verdadeira lição. Eu me agarraria a esse fato para tentar virar o jogo a favor do analisando. Uma análise serve também para descobrir as forças que ainda não tinha aparecido em lugar nenhum. Difícil: ser ombudsman, receber as críticas e elogios dos leitores, ao mesmo tempo chacoalhando os mecanismos de defesas do jornal. Elogiar o jornal, sobretudo, merecido que é.

Para o fim desta análise, das duas uma: ou me expulsam logo (tipo mês que vem), ou me deixam fazer umas interpretações sobre isso que o RelevO vem provocando em seus leitores e vice-versa, para que possam também discordar de mim. Vamos fazer da relação leitor-ombudsman-jornal um verdadeiro seminário literário-clínico, porque também quero mudar, e espero que para melhor.

Caio Túlio Costa: Diretrizes para ombudsman

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Trecho de OMBUDSMAN:

O relógio de Pascal, Geração

Editorial, 2006

 

Nem só de alimento para a alma, como o psicodrama de Williamsburg, são recheados os encontros dos ombudsmen. Num desses, em 1982, em Washington, foram aprovadas as “Guidelines for Ombudsmen”, as diretrizes para os jornalistas e jornais adeptos do advogado do leitor. Cabem numa única página. Não custa reproduzir as Diretrizes para Ombudsmen de Imprensa:

  • Os objetivos de um ombudsman de jornal devem ser:
  1. Aperfeiçoar a equidade, exatidão e responsabilidade do jornal.
  2. Aumentar sua credibilidade.
  3. Investigar todas as queixas e recomendar ação corretiva quando for o caso.
  4. Alertar o diretor de Redação sobre todas as queixas.
  5. Fazer conferências ou escrever para o público sobre as linhas, as posições e as atividades do jornal.
  6. Defender o jornal, publicamente ou em particular, quando for o caso.
  • Alguns dos meios de que o ombudsman dispõe para chegar a seus objetivos e cumprir suas tarefas incluem:
  1. Uma coluna.
  2. Memorandos internos.
  3. Reuniões com as equipes.
  4. Questionários.
  5. Conferências.
  • O ombudsman deve ser independente e esta independência deve ser real. Ele deve responder apenas à pessoa com mais alta autoridade na Redação.

 

Nota da redação:

A partir de fevereiro, a coluna passa a ser mantida por Morgana Rech, escritora e editora da Revista Subversa, também doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2019), mestre em Teoria da Literatura pela Universidade do Porto (2013) e graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010).

Cipriano Barata: O ombudsman é, antes de tudo, um chato

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Esta é a 51ª e derradeira coluna dominical que escrevo como ombudsman da Folha. Assumi em 5 de abril de 2007, e o meu mandato se encerrou anteontem. Embora o estatuto autorize a renovação por mais dois períodos, não houve acordo com a direção do jornal para a continuidade. A Folha condicionou minha permanência ao fim da circulação na internet das críticas diárias do ombudsman. A reivindicação me foi apresentada há meses. Não concordei. Diante do impasse, deixo o posto. Oitavo jornalista a ocupar a função, torno-me o segundo a não prosseguir por mais um ano. Todos foram convidados a ficar. Sou o primeiro a ter como exigência, para renovar, o retrocesso na transparência do seu trabalho.”

Mário Magalhães, em 6 de abril de 2008.

 

Nunca tive uma vírgula das minhas colunas alteradas por quem quer que seja. Afinal de contas, eu não estava fazendo mais do que cumprir à risca o trabalho para o qual havia sido contratado. Em essência, todos nós sabíamos que ter um ombudsman sério e renitente agrega credibilidade ao jornal. E é justamente disso, credibilidade, que os jornais vivem.

Lira Neto, ex-ombudsman de O Povo, em A herança de Sísifo: Da arte de carregar pedras como ombudsman na imprensa, 2000.

 

O ombudsman é, antes de tudo, um chato

Ufa, ainda bem que o ombudsman Cezar Tridapalli sai! Cheguei a ensaiar uma resposta pra ele uma vez, mas não conclui. Espero que pessoalmente ele não seja chato como era como ombudsman! O título provisório era “ombudsman do ombudsman”, mas meu gato ficou doente e nunca mais retomei: “O sertanejo é antes de tudo um forte”, vaticinou Euclides da Cunha, enquanto Fernando Pessoa não quis ir tão longe e, mergulhado em seus eus, cravou que “o poeta é um fingidor, que finge tão bem, que finge ser dor a dor que deveras sente”.

Há algo que me atrai nesse tipo de frase vaticinante, paralisante (lacrante, dirão os da geração MMA/Tuíter), que encerra a questão e aponta logo a cova para onde deve ser mandado o glorioso morto. Parece simples — afinal, soltar uma frase assim é fácil —, mas para ela ganhar esse poder todo, capaz de encerrar uma discussão — ou iniciá-la —, de ser repetida todos os anos por professores de literatura ávidos pela hora do almoço que não chega, para ganhar esse peso todo é preciso algo mais. Faço ideia nenhuma do que seja. Já me aventurei várias vezes por essa senda, sempre sem sucesso. Tento aqui novamente: “O ombudsman é acima de tudo um chato.” Está aí, redonda e definitiva — ao menos em pretensão. Ao que acrescento: no caso de RelevO, o ombudsman, além de chato, é prolixo. Não entenda o leitor, a leitora, e o próprio ombudsman, aqui qualquer ranço pessoal com Cezar Tridapalli, mas fique à vontade para ver um pingo de inveja, despeito.

Pois, desde que descobri essa função — na época em que Folha de São Paulo tinha resquícios de Jornalismo e não era pura publicidade travestida de jornalismo de segunda —, achei que tinha a minha cara, e muito me esforcei para estar à altura do cargo no momento oportuno. Segui um par de anos assim, até que meus amigos mais próximos me avisaram (foi numa discussão sobre o Japão e sua cultura, quatro horas da manhã): “dalmoro, você está muito chato, ô, caralho!”.

Estando pronto para o cargo, mas sem nenhum convite para exercê-lo, comecei a cogitar que deveria abrir mão do duvidoso e garantir as amizades certeiras. Isso virou convicção (não a made in Curitiba, até porque abomino Power Point desde o Windows 3.11) quando o poeta Cassio Correa me apresentou seu projeto de “Ombudsman do mundo”. Achei a ideia fantástica, tudo o que sempre sonhei (como canta Pullovers), e vi que havia mesmo ficado para trás. Fui ser guache na vida — resignadamente banal, sem peso de óleo ou leveza de aquarela, sem me chamar Carlos, nem rimar como João.

Enfim, o ombudsman de RelevO. Recém comecei a acompanhar o jornal, de modo que não sei o quanto concordo com tri-ombudsman — me centro mesmo na forma. Hei de convir, antes de mais nada, que faz seu papel, e ataca o jornal sem concessões — diferentemente dos últimos da Folha que acompanhei, mais de meia década atrás, que exerciam a função de “ombudsman de defesa”, apontando as falhas dos leitores. Mas talvez devesse ceder um pouco e desenhar uma crítica um pouco menos em seus juízos de valor. Sim, há vários pontos que eu não “concordo”, por não coadunar com meu senso estético, às vezes em suas filigranas. Mas meu senso estético, se consegue se basear em certo repertório erudito e premissas racionalizáveis, não deixa de ser questão de gosto.

 

Da redação:

A partir de agosto, habemus novo ombudsman. É Robson Vilalba, artista gráfico, vencedor, em 2014, do Prêmio Vladimir Herzog pela série Pátria Armada Brasil. O material sobre o golpe militar de 1964 gerou a graphic novel Notas de um Tempo Silenciado, lançado pela BesouroBox em 2015.

Acreditamos que o cargo de ombudsman é de suma importância para o jornalismo literário que propomos. Buscamos transparência, humor, compromisso com o texto e tocar um periódico destituído de amarras senão aquelas que prometemos a cada assinante, de entregar mensalmente um jornal divertido e um tanto inconsequente.

Cezar Tridapalli: Despedida

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Acho curiosa a ênfase que o RelevO dá a suas entradas e saídas financeiras, como se fosse um órgão público financiado com dinheiro público. Esse rigor assíduo das lamentações me faz suspeitar que o jornal quer manter e ampliar a base de assinantes despertando piedades, convocando o altruísmo de quem fala “nossa, coitados, não recebem nada pra fazer isso”. Gostemos ou não, o jornal está dentro da mais lisa e límpida lógica capitalista: vai ter assinante enquanto tiver gente disposta a pagar uns dinheiros para receber uma experiência de leitura impressa. Se, somando e subtraindo as contas mensais de cada um, a experiência valer esses dinheiros, o jornal terá assinantes.

Pode ser nobre abrir as contas e mostrar pudor ao dizer que a equipe cogita receber pelo trabalho. Na prática, não há qualquer necessidade disso. O assinante paga pelo conteúdo do jornal, o anunciante paga para aparecer com um destaque que julgue compatível com o investimento. O que o jornal faz com o dinheiro de assinatura e anúncio não deveria ter nenhum interesse, tal informação no máximo alimenta a fofoca e o imaginário. Qualquer gasto do eventual lucro somente diz respeito a quem o gasta, não a quem paga, pois quem paga, paga pelo jornal e não para saber se a equipe vive mal ou bem. Quer um conteúdo significativo, quer que sua marca apareça decentemente. Ninguém pode chegar falando “ôrra, galera tá ficando rica às minhas custas”, “dia desses vi o editor tomando cerveja artesanal de 14 real”. Resumindo: leitor assinante paga para receber e ler, anunciante paga para aparecer. Equipe do RelevO: faz um jornal que cause desejo e demanda, e envia corretamente. O que liga leitor, anunciante e editor é o jornal, o papel em sua forma e conteúdo. Não de onde assinantes e anunciantes tiram seu dinheiro e nem para onde esse dinheiro vai quando entra na conta da equipe. Não precisa gastar editoriais inteiros para angariar compaixão.

Pode ser cinismo meu, uma coisa muito “gestão empresarial e pragmática” para um jornal que é, veja bem, de literatura, que lida com subjetividades, mas desde o início imaginei que uma das minhas funções fosse estabelecer contrapontos. Exercício de ombudsman lida o tempo todo com a questão do duplo, a gente se desdobra para construir outras lógicas e trazer à tona um olhar novo que, como tal, pretende colocar na cabeça de leitores e editores sempre um “é mesmo!”. Muitas vezes falhamos miseravelmente (que clichê gostoso), mas a gente tenta, é nossa linha do horizonte, a utopia que faz o ombudsman caminhar: provocar um “é mesmo!”. Ou pelo menos testar convicções.

 

**

 

Quando fui convidado pelo editor-chefe deste RelevO, foi-me proposto trabalhar de três a nove edições. Encerro minha participação na quinta. Pode parecer pouco, mas achei sufi ciente. Além de questões pessoais (sempre importante ser ombudsman de si mesmo), percebi que deixei o meu recado, fiz a minha avaliação dos pontos que julguei mais importantes. O periódico tem esse formato de compilação de textos e isso não vai mudar. É diferente de um veículo diário de imprensa com seus vários cadernos e notícias aos montes, que a todo o momento está sujeito a escorregar numa tomada de posição, subestimar alguma pauta fundamental, ser francamente tendencioso em relação a temas que mereceriam ter dois ou mais lados contemplados. Nesses casos, cabe perfeitamente a figura de um ombudsman que fique um ou dois anos. No caso do RelevO, desde que achem mesmo importante manter essa figura – que não seja mero fetiche jornalístico –, temporadas curtas são a meu ver o melhor caminho. Depois de entender o mecanismo de funcionamento do jornal, de apontar pontos fortes e fracos, de perceber que alguns padrões não vão mudar, o que resta?

Tirar o time de campo e dar a vez a outros olhares.

A curta experiência não deixou de ser intrigante para perceber o quanto esse verbo, “perceber”, entra na rede de representações que as pessoas têm dentro de si, recombina o que está lá dentro e gera reações muito diferentes. Leitores me acharam cruel, outros me criticaram por ter puxado o freio nas edições seguintes. Ombudsman não é – ao menos não necessariamente – a figura que chega “para falar mal”. É alguém que compõe o conjunto de olhares sobre uma publicação e que, como qualquer leitor, pode escrever elogiando ou descendo a lenha. A vantagem é que a gente ganha um espaço maior e tem certeza de que será publicado.

Enfim, agradeço o convite e o espaço que ganhei durante cinco meses. Aprendi mais do que ensinei, em que pese a retórica meio demagógica dessa afirmação.

Cezar Tridapalli: Muros e demolições

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O RelevO de abril está afiado. Depois de minha apresentação em janeiro e minhas críticas duras em fevereiro e março, apontadas pelos leitores – uns gostando, outros não –, creio ser o momento de pensar o jornal com uma lente diversa. O jornal não me comprou, até porque, sabemos bem, dinheiro não é o forte da publicação e o choro a esse respeito tem cadeira cativa a cada número.

O que me move hoje é pensar um tema que – desde que recomecei a ler o jornal todos os meses, e texto a texto – tenho percebido como importante para os leitores. Das últimas edições (e eleições) de 2018 até esse abril de 2019, sempre há alguém falando sobre a postura política e ideológica do jornal, cobrando ou avalizando o modo como o RelevO se comporta.

Assumir um lado do espectro político, seja esquerda ou direita, liberal ou conservador, capitalista ou comunista, é fácil, é simples. Elegem-se temas e textos, que elegem também o público: uma das alas da relação dualista cai fora, a outra abraça a ideia. É assim que se cria mais um instrumento para o júbilo dos amigos e a fúria ou a indiferença dos inimigos. Em um país marcado por uma polaridade tão flagrante, cujo diálogo foi cortado, não entendo que pular para um dos lados do muro e ficar nele seja desejável para um jornal de literatura. Portanto, minhas críticas anteriores falavam mais era da falta de jeito de selecionar os textos e de arremessá-los nas páginas. Que um jornal de arte e literatura não deva querer ser enfeite, isso é muito bom, mas também não pode ser um aglomerado qualquer e se rotular como artístico “porque arte é isso mesmo, essa coisa muito lôka”. Ser louco e ser artista/jornalista que usa a eventual potência da loucura são coisas diferentes.

Retomo agora a primeira afirmação que fiz, lá no primeiro parágrafo: o RelevO de abril está afiado. E não é para selecionar o público, não é para dividir seus leitores entre rivais e amigos, entre aqueles que concordam e aqueles que discordam. É porque o RelevO está sim fazendo política e está sendo ideológico. Como não sê-lo? Mesmo se publicasse receitas de bolo, com o país em frangalhos vexaminosos, seria ideológico, estaria tomando o partido da indiferença e da aceitação. Mas o RelevO não faz isso quando escolhe, por exemplo, publicar uma entrevista sobre histórias em quadrinho que pretendem recontar a História (“A rainha-cadáver do mundo ibérico”), ou um relato pessoal da escritora Natalia Borges Polesso (“Eu escritora, eu lésbica”. O poema da página 11, aliás, é dela?), ou ainda quando satiriza frases-feitas, a autoajuda melosa que em meio ao abandono da educação e da cultura anda tendo, cof, cof, caráter formativo (adorei o José Viral, 17, que teve a grande sacada da vida quando leu no Facebook “Não importa o que você decida, importa o que te faz feliz”), entre tantos outros exemplos e escolhas da edição de abril. Isso é ser afiado sem conversa fiada. É ser afiado quando se consegue espetar o gume em gregos e troianos, na carne que sentir a pontada. Ou alguém aí, filiado a gregos ou troianos, se acha livre de defeitos? Deixar-se cortar pode ser sábia decisão. Deixar a lâmina aguçada do texto abrir uns talhos em nosso mundo simbólico instituído é o que nos faz mudar. Só a fissura no concreto armado das nossas convicções pode nos demover, comover, mover. Só fazemos travessia, ou seja, só saímos de onde estamos se algo nos desequilibrar e nos obrigar a buscar equilíbrio em outros portos, até uma nova travessia. O próprio ato de andar pede de nós desequilíbrio para reequilibrarmo-nos.

De tempos para cá, também percebo a menção do jornal ao caos. Só no editorial de abril, o caos apareceu três vezes. Já falei nas edições anteriores do caos-bagunça, sem a proposição de uma nova ordem, o que é lamentável. Mas há um caos necessário, que revolve a ordem instituída – com a qual, desconfio, não estamos contentes – e pode (deve?) provocar divergência e diversão (falei mais longamente sobre a di-versão na edição de março). A demolição de uma ordem social pode se dar na marra, com a organização de grupos que cheguem quebrando tudo, ou podem se dar – mais lento, mas mais consistente – com a leitura, tendo a palavra uma grande capacidade de tornar as nossas barreiras mais permeáveis, mais porosas, recombinando sua matéria ou mesmo erodindo-a.

A figura do isentão é malvista. O isentão fecha os olhos, ou talvez os abaixe para ver melhor o umbigo. Mas a ideia de estar em cima do muro sempre me foi sedutora, acho a imagem bem rica. De cima do muro pode-se olhar para os dois lados e para as linhas do horizonte, descobrir a comédia humana em ação, assistir à miséria humana em ato. Porque quem está só em um dos lados não vê o outro, vê um muro e atira pedras sem saber direito em quem acerta.

Ficar em cima do muro – entendam, é uma imagem retórica, pois sabemos que descemos dele muitas vezes – é ter ponto de vista privilegiado, mesmo que sejamos alvos fáceis de pauladas e pedradas.

Enfim, lâmina afiada e caos resumem a cadeia significante que propus para a avaliação do RelevO de abril. A lâmina revolve, busca fazer do caos uma outra ordem possível e oculta. Pode machucar, mas desperta todo o mundo que não está anestesiado. E espero que não estejamos.

Cezar Tridapalli: Troquem minha assinatura para Palhaço Tico-Tico

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Da edição de fevereiro para a de março deste RelevO, observei uma melhora sensível em dois aspectos: o da diagramação e o da qualidade da impressão do jornal. Dos latifúndios de espaço branco, feitos de terra improdutiva e opressiva, por mim referidos na edição passada, agora vejo uma distribuição mais racional, mais lógica. Os espaços em branco estão lá, mas de fato como respiro, um mindfulness no meio da densidade de muitos textos. Textos, espaço publicitário e espaço em branco agora parecem fazer parte da mesma festa, o que já dá, de cara, uma costura à edição. A qualidade de impressão dispensou a lupa que eu sugeri em fevereiro.

Entendo que a função do ombudsman não seja a do cliente chato que acredita ter o direito de ver o produto consumido tomando a todo o custo a forma de seus gostos pessoais. A editoria pode ler, incomodar-se, ignorar, promover ou não mudanças. E, pelo jeito, rir também do que o crítico convidado para lhe encher a paciência percebeu como defeitos, sejam eles objetivos ou subjetivos, passíveis de discussão. Se na edição passada critiquei o vale-tudo de textos e imagens aceitos pelo jornal (disse que se vale tudo a crítica não vale nada), agora fiquei um pouco “meme John Travolta” (olá, Mateus Senna!) com o editorial que assume reiteradamente que ao RelevO interessa rir. Embora rir e se divertir (o editorial também fala em diversão) tenham ligação íntima, não significam a mesma coisa. Di-versão tem função nobre, podemos dizer até subversiva – e a literatura é subversiva – porque está preocupada em cindir a versão monolítica, em quebrar a expectativa apresentando versões diferentes da esperada. Isso é fugir dos clichês. O clichê, a frase feita, o lugar comum, tudo isso apresenta a versão previsível que a diversão deve quebrar, di-vergir, sub-verter (fazer verter uma versão nova, portanto). Nesse sentido, dizer que “somos até um pouco caóticos”, como o editorial de março afirma, é ótima notícia, desde que se entenda o caos como uma outra ordem possível, que justamente diverge da ordem imperante. Isso é sim diversão. Outra coisa é juntar textos aleatórios e salpicá-los a esmo nas páginas, não propondo ordem alguma, como percebi na edição de fevereiro.

Mas “rir de tudo, rir de todos” já carrega outros sentidos. Graças às preposições, é diferente rir de alguém e rir para alguém ou rir com alguém. Rir para alguém e rir com alguém trazem um convite embutido no sorriso, tipo embarque com a gente nessa risada, no nosso desconcerto do mundo. Rir de alguém é escárnio presente nas piores comédias. Repito: se vale tudo, a crítica não vale nada. Da mesma forma, se é para rir de tudo, para que serve a crítica, por exemplo, de um ombudsman? Troquem minha assinatura para “Palhaço Tico-Tico”.

Como disse lá em cima, há críticas objetivas (o objeto RelevO estava mal impresso em fevereiro) e subjetivas (a disposição, sequência e critérios de seleção de textos). É de se prever, portanto, que haja leitores elogiando justamente o que critiquei (“Gostei principalmente das poesias ‘soltas’ ao longo do periódico”, diz Marcus Serra, que também diz que o jornal “cria uma identidade”). Se o Umberto Eco afirma, em Seis passeios pelos bosques da ficção, que o texto literário é uma máquina preguiçosa e é bom que seja assim, já que o leitor não recebe tudo escrito e interpretado – pois é obrigado a preencher lacunas com o seu universo pessoal –, talvez o RelevO aposte nisso, conscientemente ou não: vamos colocar uns retalhos e o leitor que venha com agulha e linha costurando seu modo de entender e dar unidade ao jornal. Há quem possa pensar que um jornal não precise de unidade, mas, ora, por que reunir tudo em um jornal então? Basta uma navegadinha pelo Google para descobrir toneladas de textos ensaísticos, poéticos, narrativos, de autores sem apresentação, já com publicidade e tudo.

Outra aposta do jornal é essa de não apresentar os escritores. Em épocas de despersonalização (eu havia falado da desterritorialização na edição passada, pois não sabemos de onde os leitores e autores falam), entendo a opção do jornal, mas levanto este questionamento. Talvez o jornal queira nos fazer pensar a partir do texto e só do texto, ou seja, do que o texto tem a me dizer, não importando se eu sei que o Pepetela é já escritor consagrado e o seu vizinho de página talvez não seja. Essa ausência de informação pode nos deixar mais livres para escolher os textos que nos tocam mais, desobrigando-nos de um respeito pela autoridade do nome. É decisão legítima, claro, mas então por que a seção “publique” do site pede para que o autor “informe sua cidade e alguma referência pessoal para que eventuais leitores o localizem”?

Quase a totalidade de cartas dos leitores é feita de elogios, muitos apaixonados. Fico feliz, mas como minha função é encontrar brechas, feridinhas para meter o dedo, destaco e amplifico duas cartas que apontam problemas: a primeira vem do Felipe Gomes, que, gentil, fala de um troca de letra em seu poema, publicado em fevereiro, e que gerou mudança de sentido. O original dizia: “No fundo / gosto / do que me faz mau” e acabou “corrigido” e publicado assim: “No fundo / gosto / do que me faz mal”. Certamente essa diferença modificou sensivelmente a continuidade semântica do poema (“Aquilo que machuca / endurece / meu pau”). Sem exagero, pode-se dizer que outro poema nasceu aí, à revelia das intenções do autor. A resposta a esse deslize (que, claro, acontece), culpando a “ortografia padrão reacionária”, é desprovida de sentido, ainda que quisesse fazer rir. A troca em nada tem a ver com ortografia padrão.

Outra carta, de Joaquim Bispo, reclama da falta de resposta do jornal aos autores que submetem trabalhos para avaliação. Autores mandam textos, não recebem retornos nem de que o texto chegou, ainda menos sobre o aceite ou não para publicação. A resposta do jornal, entre outras explicações: “Por questões de saúde, também não temos qualquer condição de acusar recebimento”. Ora, o próprio Gmail já sugere uma resposta padrão do tipo “ok, recebido”. A não ser que sejam milhões de textos enviados, acusar o recebimento de, vamos chutar, duzentos textos levaria menos de dez minutos. É um problema inclusive das grandes editoras, muitas delas recebem originais e nunca mais dizem nada. Outra possibilidade é ter um texto pronto para, no melhor modo “copia e cola”, avisar que o texto foi recebido e se não houver resposta em até, digamos, 60 dias, o texto está automaticamente descartado. Isso evitaria a espera de Telêmaco, que olha para o mar todos os dias aguardando o pai, Ulisses, voltar da guerra. 

Cezar Tridapalli: Procissão de textos sem conexão

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Eu acompanhei o surgimento do RelevO e tenho memórias que, se não são o retrato fiel de um tempo, formaram na minha cabeça uma verdade subjetiva: o jornal nascia independente, irreverente e, digamos, meio inconsequente. Ríamos da novidade, uma risada franca que nada tinha de deboche; ao contrário, era uma risada que condensava o que-legal, que-necessário, que-divertido, que-iconoclasta, que-modernista, que-naïf.

Não sei se é uma tese generalizável ou que acontece com poucos – comigo sim: a tendência a ser complacente com novidades que nos agradam, que preenchem uma falta nossa e da cultura. Mas o tempo passa, algumas estratégias envelhecem, a relação cai no costume e aquilo que encantava corre riscos de virar indiferença ou irritação. O tempo passa e, agora ombudsman, pego de novo o papel, folheio o jornal e não consigo recuperar o frescor, o olhar inaugural se foi, resta na mão um objeto frio. O que então falar desse objeto frio? O jornal esfriou ou fui eu?

A irreverência que já me fez rir muito continua lá (eu estava pronto para dizer que humor bom prescinde de “kkkkkks”, mas a edição de fevereiro foi lá e enfiou kkkkkk, e numa piada das mais manjadas, em que o editor ri de sua classe profissional). Pode ser ainda que o meu humor venha fácil demais, mas acho sim engraçado quando o editorial, ao explicar seus critérios de seleção, diz receber de tudo, até ameaça.

Mas sabe aquela capa de disco que virou meme? O Chico Buarque aparece rindo e, logo depois, fica sério. Aconteceu comigo. Sim, porque eu ri da piada, haha, aceitam de tudo, até ameaça, mas logo estaquei. O jornal está admitindo que os – cof, cof – critérios de publicação são um vale-tudo. Isso joga fora a própria noção de critério e camufla sob a boa piada uma falta de direcionamento. Dizer que vale-tudo é afirmar que uma crítica a isso não vale nada. Mesmo se não valer nada, vou deixá-la aqui em forma de pergunta: o negócio é ir recolhendo texto suficiente para uma edição e dizer depois que isso é ser plural?

O RelevO de fevereiro traduziu poemas do russo e em seguida falou, em entrevista, de demarcação indígena, aí caiu na zoeira com o – tá, bem engraçado – RelevO camping, depois apresentou resenha longuíssima e acadêmica com direito a referências bibliográficas, e jogou no fim umas meditações de John Donne, tudo salpicado por poemas e crônicas e contos caídos sem paraquedas no meio das páginas. Aqui poupo os autores, os textos são bons, mas se eu pegar um nariz bonito aqui, a boca sedutora ali, orelhas elegantes acolá, olhos profundos alhures, e juntar tudo isso, eu não tenho nenhuma garantia de que o resultado será a beleza estarrecedora, ou ao menos harmônica, ao menos coerente, ao menos não frankensteiniana. Alguma costura marcada por seções explícitas ou mesmo por linhas imaginárias poderia fazer com que mapa e território se entendessem.

“Ah, se for escrito ou desenhado tá valendo” não é critério; passa, quando muito, por mais uma piada encobridora, que teria mais efeito se o leitor soubesse que a brincadeira do vale-tudo não passa de uma mise-en-scène e que o jornal sabe o que está fazendo. Que aceite a diversidade, tudo bem, mas selecione os textos e disponha-os ao longo das edições dentro de alguma lógica de aproximação que dê liga. Nem sempre bons jogadores formam bons times, é preciso organizar a esquadra.

Claro, é possível fazer só a piada e deixar a crítica pra lá, tipo “cara, nós somos anárquicos mesmo, somos marginais mesmo, independentes mesmo, profissionais em deixar a coisa amadora, você não entendeu nada, não nos enquadre, não nos institucionalize”. Ainda assim deixo a sugestão: talvez o jornal devesse costurar melhor suas vozes, carimbar seu timbre de um jeito mais personalizado. Ou falar do que quiser é a marca? Ou não ter marca é a marca? Vai que. Só acho que tal amadorismo bem humorado tem seu valor iconoclasta, mas pode também ser uma defesa, um escudo atrás do qual justifica falta de critérios na escolha de conteúdo e, vamos lá, de forma também. Acredito ainda que tudo isso tangencia a questão de uma suposta neutralidade apontada – como problema – por alguns leitores. Não há costura formal, nem temática, nem de posicionamento político. Tenho dificuldades de ver o que mantém as páginas do jornal unidas.

Por falar em dificuldades de ver, arrisco aqui a dar uma de criança ingênua e dizer que o Rei/RelevO está nu em termos formais, de diagramação, de arte-finalização, essas coisas todas.

Acompanhamos a triste saga financeira do periódico, mas as despesas devem aumentar, pois sugiro que a edição de março distribua lupas para os assinantes. Eu, que sou apenas míope, me gabo de enxergar de perto. Tudo tem limite, porém. Se tento ler no papel alguns anúncios ou a lista de cidades e livrarias que recebem o jornal, mal consigo. Se vou para o on-line e amplio a fonte, a definição se perde. Pra quem, como o RelevO, quer valorizar “o papel do papel” no Jornalismo, acaba fazendo gol contra. Espalmar um poema de 6 versos e deixá-lo perdido na página, pendurado ao nome de um autor envergonhado, sem ninguém para apresentá-lo, meio sozinho na festa, acompanhado apenas de um anúncio espremido e ilegível devido ao tamanho da fonte e à qualidade da impressão, tudo ao lado de um latifúndio de espaço em branco, é proposital?

Falo da página 22 da edição de fevereiro. O que me diz um retângulo com três retângulos dentro, sendo o primeiro talvez uma capa de livro, o segundo uma silhueta humana escura e o terceiro talvez mais uma capa de livro? Pobre autor de Prisão dos dias, agora na p. 14, de quem não dá pra ler quase nada a respeito. É alguma estratégia jornalística deixar aqueles espaços enormes em branco (um respiro?) e comprimir anúncios até deixá-los ininteligíveis? É mais uma intenção transgressora? Texto cortando o meio da página no miolo, sem problemas, mas experimente ler isso no on-line e verá que não dá.

É uma possibilidade séria, que de nenhum modo descarto: estaria eu muito colonizado pelas publicações que organizam minimamente suas seções, costurando-as e formando um todo apreensível? Preciso me desconstruir?

“Jornal estranho e interessante”, diz um leitor (aliás, em tempos de desterritorialização e de busca por um lugar de fala, que tal dizer de onde são os tantos leitores que escrevem ao jornal, geralmente para elogiá-lo? Poderia funcionar melhor do que enfiar a maçaroca de lugares que recebem o RelevO, página 4, que, se não são ilegíveis, são no mínimo pouco convidativos para a leitura). Por que não apresentar também os autores? De onde veio a escalação, quem é a poeta, o cronista, a contista, o resenhista, a tradutora etc.?

Quando entramos, por exemplo, numa igreja barroca, ou clássica, ou gótica, não conseguimos – e nem deveríamos tentar – dizer o que é forma, o que é conteúdo. Há uma unidade mesmo na diversidade. No RelevO de fevereiro, o mérito isolado de cada texto foi atrapalhado pela falta de critérios na composição do todo. Autores que não sabemos de onde vêm surgem de repente, mudam de assunto em relação aos que vieram antes, terminam o que têm a dizer e saem rápido porque a procissão de textos sem conexão de qualquer ordem – temática, formal, política – precisa prosseguir.