Amanda Vital: Ombudswoman 7: como participar de eventos literários

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Olá! Somos a Panelinha Literária Inc., e agradecemos que tenha adquirido um de nossos produtos mais vendidos, a incrível skin de “Escritor Contemporâneo Padrãozinho”, esse último lançamento de grande sucesso entre os círculos literários. Aproveitamos para ofertar uma skin também disponível em versão NFT, bastando digitar o código “NuncaGanheiPrêmio” em nosso site para resgatá-la e ativá-la no metaverso.

Esta skin é composta por:

1. Um microfone com má sonoplastia predefinida, para ler seus poemas geniais (ainda que não eram, agora vão ser — geniais, surrealistas e subestimados!);

2. Cara de bunda (não modificável);

3. Três divórcios (de preferência com meses de distância entre cada um) e uma esposa-troféu (opcional);

4. Um widget chamado “Ego de Escritor Contemporâneo Padrãozinho”, que deve ser inserido pela extremidade final do intestino e inflado manualmente.

Sejam bem-vindos, portanto, ao manual de sua nova skin, que também coincide com o manual de como participar de eventos literários; afinal, o produto não terá efeito se seu primeiro teste não for em um evento.

OBSERVAÇÕES IMPORTANTES ANTES DO USO DO PRODUTO:

1. Para ativar o produto, basta dizer “Foucault, Derrida, Deleuze!”, 3 (três) vezes, com um leve sotaque bêbado e/ou senil. Se ainda não sabe fazer o sotaque organicamente, não se preocupe, basta adquirir a skin “Escritor Contemporâneo Bêbado”. Gesticulações excessivas — com as mãos colidindo em pessoas que estejam portando uma taça de vinho tinto — garantem uma ativação mais rápida do produto.

2. Para mais êxito do produto (sobretudo de seu widget), confira se tem presentes, na sua estante, ao menos 5 (cinco) livros de autores bielorrussos ou de alguma nacionalidade considerada “exótica” para o Brasil. É obrigatório que sejam originais. Se não souber ler em língua estrangeira, pedimos que adquira os livros em sebos, para dar o tom de que estão gastos porque você os leu.

3. A bateria de sua skin vai durar mais se você curtiu, na última hora, ao menos 15 (quinze) poemas no Facebook sem ter lido um único verso, a segundos de sua postagem. Vale também 3 (três) corações em fotos de perfil de autoras mulheres (postadas há meses, para comprovar o stalking e o não-ligar para o trabalho literário delas, é natural).

4. Também para maiores êxitos, é necessário que não tenha recebido nenhum (zero) prêmio literário e tenha escrito ao menos 1 (um) texto passivo-agressivo dizendo que não estava amargurado nem magoado, mas estava, muito. Bônus se tiver dito mal dos vencedores — direta ou indiretamente, mas preferimos indiretamente, com uma “codificação” que só você acha que deu certo — e chorado em posição fetal ao abrir a lista de finalistas.

5. O mestrado em alguma área de Letras é obrigatório. A famosa “carteirada”, como “você sabe com quem está falando?” e humilhações a estagiários(as), sobretudo envolvendo machismo e paternalismo, é um fator preferencial para garantir o bom trabalho de seu novo produto.

6. Esta é uma das perguntas mais frequentes: sim, é preciso que tenha publicado ao menos 1 (um) livro com arte de capa mediana em edição de autor, após longos conflitos com o(a) editor(a) e com o(a) designer de sua editora anterior para que saísse de acordo com a sua concepção estética bastante refinada e superior. Nós acreditamos nisso. Nós acreditamos em você.

PASSO-A-PASSO:

1. DATA. Antes de ativar o produto, tenha em mente — e em seu calendário — o próximo evento literário para participar e, enfim, fazer a estreia de sua skin. Saraus menores e slams não contam, são proporcionalmente muito pequenos e corre-se o risco de uma expulsão. Estamos almejando eventos maiores, como coquetéis de academias literárias, lançamentos de autores relativamente conhecidos e eventos culturais em cidades a mais de 100 (cem) quilômetros de distância de sua residência (excluem-se moradores do eixo Rio-São Paulo).

2. APARÊNCIA. Separe suas roupas mais pseudocult possíveis. Chapéus, sobretudos pretos e castanhos (bônus se o local for quente), mocassins, bolsas a tiracolo — mas em couro legítimo. Corte seu cabelo em franjinha, se for mulher. Óculos escuros, sempre, mesmo à noite. O objetivo é parecer o mais inacessível possível, evitando que plebeus (também chamados “leitores comuns, que não escrevem, só leem, mesmo”) se aproximem de você, frustrando a estreia do produto.

3. MATERIAL. É obrigatório trazer consigo ao menos 3 (três) livros autorais publicados, todos em sua mala de couro (ver tópico 2). Antologias também contam como livros, desde que tenha sua seção marcada com marcador de páginas. Leve seus poemas mais conceituais ou sua prosa poética incompreensível — textos que ninguém entende a não ser você, para poder usufruir da característica de “subestimado” de seu produto.

4. MATERIAL NÃO-FÍSICO. Na bagagem mental, é imprescindível trazer referências e citações — sobretudo citações — com você. Mas nada de literatura ou estudos de cultura. Deixe para trás o Pound, o Benjamin, o Barthes. Psicanálise e teatro é o que está na moda agora entre os literatos, ainda que poetas e estudiosos de poesia. Estamos pensando em Artaud, Lacan, Freud. Não precisa ter lido nenhum deles, não se preocupe.

5. TRANSPORTE. Alguns eventos maiores proporcionam transporte para o local do evento. Aceite sempre, mesmo que isso tire a vaga de alguém que não tenha dinheiro para ir até lá. Pobres? Fora. O transporte é o começo do networking, e isso é mais importante do que qualquer outra circunstância empática. Chegue algumas horas antes, ninguém tem paciência para atrasadinhos. Foda-se se você precisa tomar 3 (três) ônibus para chegar ali. Acorde às 4 (quatro) horas da manhã.

6. NETWORKING. Dizíamos que o transporte é o começo do networking —e é. Faça uma busca detalhada dos participantes do evento antes do dia, para saber a feição e o currículo de cada um. Procure sempre os editores (mas não nos independentes, esses fracassados; queremos de editora média-alta para cima) e os professores universitários, esses podem colocar estagiários para fazer pesquisas sobre seu trabalho literário (e creditar como se fossem deles, claro). Também pode arriscar um caso amoroso com alguma escritora jovem nesse trajeto. O próximo ponto tem uma informação crucial para isso.

7. VINHO. Deixe para trás toda a sua medicação de hipertireoidismo: eventos exigem que você fique bêbado (se esse passo for muito complicado, a skin “Escritor Contemporâneo Bêbado” é a ideal para você) para flertar — também chamado “assediar”, mas não gostamos dessa palavra — com as escritoras jovens e as estudantes universitárias que apareçam por lá. E para poder suportar aquele poeta chato mais velho que fica colando no seu pé toda vez.

8. LEITURAS MISTERIOSAS. Ensaie as suas leituras para o mais dramático possível. A partir do momento em que você pisa nesses eventos, você se transforma em um diseur de poesia. Atue, preferencialmente sem saber atuar. Não precisa decorar o texto; na verdade, as mãos trêmulas segurando o livro ou o papel, ainda após os ensaios, são um fator preferencial.

9. AFTER PARTY. Essa parte é mais importante do que o evento em si. Aqui você encontra o networking mais pesado de todos. É a parte que você consegue o WhatsApp daquele cara famoso que vai divulgar o seu livro. Daquela novinha com daddy issues que romantiza bastante a sua existência boêmia. Você é o diabinho no ombro direito.

10. A DESPEDIDA. Você agora está totalmente sem saco para os abraços e beijinhos de senhoras de meia idade, mas recomponha-se. É preciso ser mais simpático do que quando você chegou. Sorria sem culpa de não ter feito nada. A culpa é da skin.

POSSÍVEIS SEQUELAS APÓS O USO:

1. Uma intimação por assédio sexual (severa). 2. Um linchamento no Facebook (média). 3. Pedidos ignorados de divulgação e promoção de sua obra devido a insistência e chatice pós-bebedeira dos indivíduos que assim prometeram (branda). Faça uso de skins apenas sob indicação. Mas se não quiser, não precisa.

Naturalidades e artifícios

Editorial extraído da edição de julho de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Prompt: Escrever sobre a importância dos leitores que divulgam presencialmente o Jornal, distribuem seus exemplares, presenteiam com assinaturas e nos marcam nas redes sociais, ampliando, assim, a nossa malha de contatos e de circulação.

Resultado: Um mundo de risadas e negócios florescentes: No universo dos clientes divulgadores, o exagero é a moeda corrente e a diversão é o objetivo final. Eles transformam o mundano em uma comédia desenfreada, inspirando outros a seguir seu exemplo. Enquanto empresas colhem os benefícios da divulgação entusiasmada, todos nós desfrutamos de risadas e momentos de leveza em um mundo que muitas vezes é excessivamente sério.

Prompt. Contar aos leitores sobre os nossos planos de aprender a programar (não fazer programa) para compreender melhor as possibilidades de expansão do mundo digital, além de, finalmente, ter uma presença nas redes sociais mais coerente com o potencial todo envolvido.

Resultado: A Importância da Programação de Tecnologia para Escritores: aprender programação de tecnologia pode trazer uma série de benefícios para escritores, ampliando suas habilidades e oportunidades no mundo literário. Além de oferecer uma compreensão mais profunda sobre o funcionamento dos dispositivos e sistemas digitais, a programação pode melhorar a produtividade, permitir a criação de projetos interativos e abrir portas para novas formas de contar histórias

Prompt: Combinar uma citação do Conde de Lautréamont [“Belo como o encontro fortuito entre uma máquina de costura e um guarda-chuva em uma mesa de dissecação”] com outra de André Breton [“O homem que não consegue visualizar um cavalo galopando sobre um tomate é um idiota”]; inserir uma camada do filme A vida de Brian.

Passamos, de fato, do meio do ano. Aqui estamos e permanecemos, entre a planilha e o delírio, movendo um jornal de papel que nada mais faz do que investir nas ligações diferentes de palavras e imagens. Orgânico ou sintético, quem sabe tudo não seja estímulo e resposta.

Uma boa leitura a todos.

Amanda Vital: Ombudswoman 6: estou farta do lirismo dos metidos

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o

cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Car_s leitor_s, vocês não estão exaust_s da vida burguesa que tem aparecido nos romances, nos poemas, nos contos? É tão estranho pegar num livro e se deparar com um jantar com comida flambada e espumante, a combinação de uma viagem pra Paris na mesma semana com umas amigas (como se não tivesse todo o rolê de ter que combinar com todo mundo, ver que dia fulana pode, marcar folga, fazer uma pesquisa de preço mais barato e marcar pra dali a uns 6 ou 7 meses, ou algo assim), uma corrida na orla da praia logo de manhã sem um sustinho— nem falo de assalto, poderia ser uma topada numa pedra, sabe? —, um galã chamado Pierre Albuquerque ou Brad Alcântara, do nada, no Brasil… Já é tão comum que chega a ser estranho. Porque é tudo falado com uma naturalidade, imagina! É normalíssimo a dona Cindy Bittencourt dar de presente uns bombons de licor de cereja da Indonésia oxidada e conservada a frio com chocolate suíço 70% cacau orgânico biológico e hidropônico para a sua mãe, “que ela gosta tanto, são seus favoritos”! Romance de vida de herdeiro (infelizmente — e sobretudo — de herdeirA), sem boleto pra pagar, sem mercado pra fazer, que não chora pela alta do preço dos tomates, que freta um jatinho em 5 minutos. Que não é fudido. O máximo que pode acontecer nessas histórias é talvez não ter pão integral para comer no lanche. Descobrir que um gostosão rico que a protagonista conheceu numa balada (de rico, novamente), cujo mapa astral suuuuper bate com o dela — inclusive, ela fez ali mesmo, no meio da boate, e o rapaz nem fugiu, vê só! —, tem uma ex que ele não supera. São uns problemas ridículos apresentados como se fossem problemões. Eu só consigo imaginar que quem escreve isso não precisa sair para trabalhar, mesmo. O romance de herdeiro não fica só no romance, é literalmente escrito por quem não precisa acordar às 5h40 pra pegar condução. Pede almoço e jantar pelo aplicativo. Paga “mocinho” para ir ao correio por si. Tem um gato bengal. Não dá bom dia para a faxineira do prédio. Engraçado é que a gente consegue “ler” isso nos personagens que a pessoa cria, porque também é tudo um bando de gente chata e entojada, com diálogo medíocre, que acha que a vida gira em torno do próprio umbigo. Não sei se cheguei a mencionar por aqui a classe do rico que paga pessoas (literalmente paga) para estar no meio literário, oferece jantares em restaurantes chiques, elabora eventos inteiros com um nome bem pseudocult para uma galera que ninguém conhece, faz seu networking safado para caber bem grandão na rodinha, suuuuper aclamado e respeitado em seu terninho feito sob medida, enquanto escreve, sei lá, num estilo meio Cesário Verde meets escritório do papai para o rapazinho no ócio leite com pera e iogurte dietético.

Acho que quase todos os textos do RelevO da edição anterior se ligam por essa linha mágica que é a vida real, a vida acontecendo. E isso não é necessariamente chato, vamos parar com essa teoriazinha, também, né? “Ah, não quero ler nada que me lembre a minha vida, que já é tão enfadonha”, poxa… O problema não é da literatura ser “do cotidiano”, é seu. Tem gente tão, mas tão chata que não aguenta ler um “asfalto”, um “cocô” num poema, costumam ser os mesmos que criticam poesia descritiva/narrativa porque “não é poesia, é prosa poética”; bando de gente que não superou que as caretices são minoria agora, a trupe dos agarradinhos ao mundo mágico do lirismo pretensioso dos que nunca lavaram um copo na vida porque a esposa faz tudo em casa. Nem tudo o que é distante da nossa vida cotidiana é legal; na verdade, acontece muito o contrário (e isso também pode ser lido por “nem toda literatura fantástica é legal”, muita não é, só imita o Tolkien e vem de uma galera que passa os dias no WattPad lendo adolescentes tristes e iludidos para pegar inspiração), a coisa ser tão desconexa da realidade que chega a ser um saco. E nem todos os cotidianos são os nossos. Porque também não é todo dia que a gente tromba, pessoalmente, com a poetinha arrogante de bairro que escreve uns poemas ridículos de tão senso comum que são — e com uma sacanagem merecida (olha o guilty pleasure e a sedezinha de vingança aí!) com ela —, com as clientes-sinhás-nossas-senhoras da manicure, com as vizinhas adúlteras de meia-idade se confessando ao padre, com o Alzheimer da dona Linda. Tem que vir alguém contar isso e mandar para o nosso querido jornal. Contar da perspectiva do fudido, mesmo. Nem toda literatura é para fugir, para salvar, para ir longe. Muita é pra geral ficar puto, sair com dor de cabeça, ler como se fosse o desabafo de alguém que tá farto, assim como quem a lê. “Mas até tem rico que sabe escrever”, é verdade. Ainda mais antigamente; eram os que mais publicavam, tinham o dinheiro e os contatos certos, e o talento — boas vezes — também; tinham a escolaridade certa, o tempo de leitura certo, o “modo de ver o(s) mundo(s) que não o seu próprio” também, e isso tem lá a sua graça. Atualmente também tem. Isso não é um manifesto contra os ricos, é contra os bestas, mesmo.

A edição passada foi muito, muito boa, apesar de ter pouca poesia originalmente em português, mais tradução, mas as traduções também estão excelentes. Tivemos o conto “A Poeta”, de João Alexandre (acredito que esse protagonista tenha vingado todos aqueles que gostariam de tentar mostrar alguma farsa por trás dos poemas curtinhos e suas autorias — eu estive em alguns grupos desses poetas dos “curtinhos” na minha adolescência e olha, o plágio, a apropriação de ditados amplamente conhecidos e populares para si, como se fossem de autoria del_s, com assinatura estilizada e tudo; a mania de superioridade d’A Poeta em questão são reais, bem reais, e agem como se estivessem escrevendo o suprassumo da literatura contemporânea, e são só coisas que ouviram na rua —, mas aqui deixo um adendo, porque vi alguns desses poetas crescerem, e apesar do início ter sido meio duvidoso, evoluíram bem em suas respectivas literaturas. Nem tudo é amargura, né?); “Maria do Rosário”, de Iara Sydenstricker (muito bom, fez um cruzamento bem legal entre denúncia e beleza, e teve um ótimo fechamento); Audre Lorde, traduzida por Rafael de Arruda Sobral (que traduz bem até a forma, ele é um ótimo tradutor; há trabalhos dele em revistas como Mallarmargens e Escamandro, pra quem quiser ler mais); “A beata”, de João Paulo de Barros (aquela dose genial de exposição da hipocrisia das beatas católicas, sempre bem vinda, e uma escrita boa, gostosa demais de ler); Friedrich Holderlin, esse querido atemporal que meu-deus-do-céu como o homem escrevia bem, traduzido por João Paulo Andrade; uma seleção de poemas de Ivan Junqueira por Lucas Silos (muito boa curadoria); e o conto (ou crônica, pode-se considerar, também) “Helena, sharmuta”, por Jennifer Cabral. Também contamos com o projeto gráfico muito bom do André, com ilustrações de um puta bom gosto.

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora

de si mesmo

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário

do amante exemplar com cem modelos de cartas

e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

Porque não tem graça nenhuma o lirismo que não seja libertação, tem? Car_s leitor_s, nos vemos no próximo texto. Sejamos livres! Mas se não quiser, não precisa.

Dívidas, juros, dividendos, música

Editorial extraído da edição de junho de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O Jornal RelevO, em um esforço quase acima de suas capacidades papelísticas, não mencionará, em seu texto-apertura de junho, as causas e os efeitos de nossas dificuldades financeiras. Falaremos de música.

Quando fundamos o Jornal, em agosto de 2010, desejávamos ser um periódico de cultura, sobretudo de literatura, principalmente pela relação (tóxica) do editor com a escrita, mas também queríamos publicar textos sobre música, cinema, teatro, ensaios, aleatoriedades (essa palavra boba…) divertidas para quem estivesse em busca de um texto saboroso.

Criando crônicas, perfis e obituários, o editor ocupava com regularidade um espaço que podia ser destinado a outros escritores e escritoras, usuários melhores da língua portuguesa. Felizmente, o hábito de preencher obrigatoriamente as páginas com o próprio nome foi abandonado com o tempo (ou com a maturidade). Aí já estávamos em 2014 e começamos a abrir espaço para o humor nas páginas centrais, sem precisar destacar quem escreveu, RG, CPF, se estudou na USP. Talvez tenha começado nesta época a nossa aversão a bios e a nossa busca por diversão sem pedigree.

Reparamos também, ao longo desses quase 13 anos, que sempre publicamos muitos textos com relação direta com a música, de relatos de festivais a trechos de canções na contracapa. Nunca assumimos essa faceta como um de nossos norteadores editoriais. Não sabemos dizer bem o porquê, mas sentimos que este é o momento de nos entendermos melhor com o passado e o futuro de nossos desejos, aprofundando nossa relação entre música e literatura.

A música sempre fez parte do Jornal como uma espécie de região sem fronteiras, aberta às experiências, uma ferramenta de conexão. Recentemente, em abril, publicamos um especial de quatro páginas sobre o Skank escrito pela Marceli Mengarda, responsável pela Burocrata Carimbos e projetista gráfica da página impressa da Enclave – que, aliás, trata de música com apuro (não confundir com apuração) e regularidade.

Queremos abrir, portanto, mais espaço em nossas páginas para relatos peculiares, quem sabe em um reencontro entre texto e ritmo. Notamos, ainda, uma notória falta de cobertura musical um pouco menos… como podemos dizer… caça-clique. (Não podemos esquecer o nosso peculiar projeto, o sensacional Brazilliance, descontinuado – por ora – para descanso do alemão.)

Nesta edição, trazemos um relato de quatro páginas sobre a nossa cobertura do C6 Fest, que aconteceu em São Paulo entre 19 e 21 de maio. O evento teve Kraftwerk e Underworld como os líderes da programação. De modo geral, gostamos muito de música, gostamos de música eletrônica e acreditamos que os relatos de quem estava lá podem proporcionar experiências interessantes para os nossos leitores. Esperamos que se divirtam.

Uma boa leitura a todos.

Amanda Vital: Ombudswoman 5: escrever como Fulan_ e o plágio que tem pressa

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Car_s leitor_s, vou aproveitar a coluna de hoje – e tentar esconder o fato de que não deu tempo de meditar sobre os textos da edição anterior do jornal (tive 30 dias mega conturbados), e a gente não deve falar de coisas que não leu, por honestidade intelectual, esse princípio tão pouco cumprido nos networkings atuais – para falar de duas pautas bem pouco importantes, por acaso, mas que também por acaso têm cercado alguns debates que tenho acompanhado muito (e participado nada, por não ter nenhum arcabouço pessoal a acrescentar, já que a vivência tem contado bastante para a propriedade de fala no debate contemporâneo; o que não é uma crítica, só um apontamento, mesmo). O título que utilizei para o texto é autoexplicativo: quero falar do problema da escrita que quer alcançar uma espécie de “nirvana de autor_s”, se é que posso chamar assim, escrita essa que em si é um problema, mas que seu público leitor também contribui bastante para essas comparações e a autenticidade não dá a cara nesse rolê; e ainda do “plágio de estilo”, o que está do outro lado dessa moeda, ou seja, d_ autor_ que sente que foi plagiad_ porque vê alguém escrevendo “em um estilo semelhante ao da escrita del_” depois de lidos uns três ou quatro versinhos (aí é que entra o “tem pressa”: para apontar o dedo) e tudo se torna uma grande e cíclica batalha de ego, frequentemente com ambos os lados fazendo as pazes no final, e seus exércitos partidários com uma cara de tacho ridícula uns aos outros. Isso quando não se enganam, a outra pessoa sai cancelada e ninguém mais fala nela. Vamos a essa doçura de papinho?

O problema da escrita que pretende alcançar autor_s – geralmente já consagrad_s, ou com alguma relevância maiorzinha – tende a ser por base apenas um, que pode se bifurcar e bifurcar as bifurcações, mas é esse: ela se esvazia. Se esvazia de todo o conteúdo que poderia ser trabalhado, com a vivência e o olhar ao mundo da própria pessoa, e é apenas forma; algum trabalho com a linguagem, sim, mas geralmente marcada pelo uso excessivo de repetições de palavras, de estilos de versos, de modos de dizer, de mancha gráfica diferentona. Enquanto leitora, me pergunto se realmente aconteceu um ímpeto para que aquela criação acontecesse, porque não me diz absolutamente nada (a gente parece que sabe, que sente quando vem de um lugar de “querer alcançar o outro”, lê-se a agonia, o desespero, a pressa em querer ser o/a X contemporâneo/a; e se X for ele/a mesmo/a contemporâneo/a, o/a X novíssimo/a ultra high tech premium version na versão 1.7.1.2023b). Se essa escrita teve alguma razão de ser, de existir, de vir ao universo literário que não a equiparação, seja ela intencional ou não. Se incomodou, chacoalhou, tirou a pessoa da cama, da reunião, do jantar em família; se ela teve de alcançar algum papelzinho para anotar a ideia quando veio o clique; se ela se sentou e discorreu a partir de uma coisa que bateu nela – que ela sinta que tenha batido nela, ainda que tenha ricocheteado em vári_s autor_s primeiro; se ela lapidou ou deixou cru (se isso foi importante para ela, porque é assim como ela escreve, ela não leu uma rotina de criação, um “Como eu escrevo” de Fulan_ de Tal para fazer igualzinho); se ela pediu opinião a colegas ou só publicou no Instagram com uma fotografia a preto e branco escolhida por ela; se ela fechou um livro às pressas e foi escrever, porque sim, porque precisava. Se escreveu porque precisou escrever. Porque se não tiver sido assim, não tem graça nenhuma, tem? Tem tanta graça assim ser um_ X contemporâne_? Ter a sua escrita na crítica apenas em forma comparada, não estudada de forma única, específica, focada? Ter leitor_s tecendo elogios puxados sempre, sempre, sempre para esse campo? Ter seu nome atrelado àquela pessoa durante toda a sua jornada literária? Essa questão é bastante similar a_s discípul_s de cert_s autor_s, protégées que vivem constantemente à sombra daquelas pessoas que “descobriram” sua literatura e decidiram batizá-la como uma extensão da sua. Mas nesse caso, é a própria pessoa se atirando aos leões. Ou seu público leitor fazendo isso por ela – e nesse caso, duvido muito que seja intencional, ao menos em um primeiro momento; pode ser algo a ser explorado depois que a pessoa viu o hype que dá ser como Fulan_, e os likes são tão gostosos… Será que é um caminho legal? Se sim, é legal porque a cópia geralmente incomoda? É proposital desde o primeiro verso? É consciente? (É ingênuo achar que não seja consciente?) É masoquista? A prática batiza uma nova escola literária? Ou é só um exercício, sempre um exercício de escrita, que nem deveria ser pauta nesse jornal?

No caso, a pessoa que pretende ser “o/a novo/a X” segue um caminho tortuoso, sim, mas ao menos tem a honestidade de não se apropriar e dizê-lo logo. Deixar a referência em cima da mesa e não tomar quase nada como seu (porque pouco é). Até porque existe o lado de quem “é plagiado”. (Mas será que é, mesmo?) Uma nova onda de autor_s que vêm apontando o que chamam de “plágio de estilo”. Há patentes de estilo em literatura e não se sabe: a prosa poética, o verso quebrado pseudoconcretista, a caixa de texto, o soneto em 2023 – e as formas fixas com oralidade bem definida por escrito, com marcas de fonética, coisa e tal –, os hífens, os temas da mulher, do urbano, do imigrante, a referência àquele poeta guatemalteco “que só eu conheço, poxa, como assim Fulan_ está referenciando ele na poesia também?”; em suma, tudo o que se produz e é visto também na escrita do outro é motivo para erguer o dedo do alto de seu privilégio – geralmente são branc_s de classe média, mesmo –, porque mamãe não me ensinou a dividir pipocas, para dizer: “isso é meu, ué. Eu escrevo assim, desse jeitinho aí. Tenho um poema quase igualzinho (adendo: mostra o poema e não tem nada de mais ali, é tudo do ego da pessoa). Eu criei esse estilo que você usa, para fazer esses versinhos seus aí”. E não criou patavina alguma, que a escrita é uma costura de um monte de outros discursos, de outras literaturas; se fosse assim, todo mundo plagia todo mundo. Melhor: todo mundo plagia O mundo. Não tem um cidadão inocente para contar história. O que cargas d’água é um plágio de estilo? Existe “patente” para uma forma de se escrever no universo literário contemporâneo? Patentes deveriam realmente existir em arte, em literatura, em cultura? Devemos pensar em abrir franquias para versos livres? Você, leitor_, tem domínio da sua escrita a ponto de saber quando alguém está “imitando seu estilo”? Eu uso tênis all star com meia soquete, aquelas que o tênis engole, e vejo várias pessoas assim na rua, será que devo me preocupar em ir atrás dessa gente toda?

E percebem como vira algo complexo, galerinha? Porque o primeiro caso também poderia ser tratado como um “plágio de estilo”, porque trata-se de uma pessoa escrevendo “como outra”. Mas acontece que, no primeiro caso, quando já não está clara a fonte bebida (geralmente está), essa outra pode não confirmar, mas não nega se inspirar em X. No segundo, quando você é o/a próprio/a X, é você acusando primeiro. Você lança a primeira pedra. Percebe o tom de “diva” da coisa, em acusar o outro que você nem sabe se conhece o que você produz ou não? Se conhece, como comprovar que sua criação é baseada em copiar você? Porque para justificar, você vai fazer uma listagem de um monte de coisas que um monte de outras pessoas também usa, também usou antes de você pensar em existir. Ficou confuso? Eu também. Mas acho que já expliquei o que queria pontuar e dar minha colherzinha de pitaco em tudo isso, porque é muito cansativo não ser aquela amiga que dá uma cutucadinha de leve na pessoa naquele evento maroto e dizer “amig_? Desapegue um pouquinho, vá?”. E as pessoas que têm essa oportunidade não usam e vão falar sobre isso só pelas costas. É mole?

Leiam jornais antes de escrever textos. Mas se não quiser, não precisa. Mas meio que precisa. Nesse caso, precisava, mesmo.

Procedimentos

Editorial extraído da edição de maio de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


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Para um periódico de papel e de literatura, o Substack é uma ferramenta espantosamente prática. Permite que dividamos os bastidores da nossa cozinha editorial, recuperemos conteúdos esquecidos no porão da nossa memória, informemos aos leitores as oportunidades do meio cultural (via Latitudes, voltada a concursos e afins) e sigamos na miscelânea divertida da Enclave, nossa newsletter de… nada específico. Sobretudo, facilita nossa regularidade, algo que já replicamos na edição impressa e que, acreditamos, estreita a relação com a nossa base de leitores.

Em pouco mais de seis meses, notamos um crescimento de seguidores digitais em todas as frentes, das redes sociais ao próprio cadastro disponibilizado pelo site. O que isso representa? Mais share, mais assinantes no jornal físico. Em suma: quanto mais o conteúdo anda, independentemente do caminho, mais assinantes conseguimos para o impresso, que é quem paga a conta, ao menos diante do que oferecemos hoje. Assim, interessa-nos – e muito – como encontrar o tom ideal entre conteúdo gratuito e remunerado. Basicamente, a proporção entre quem curte descompromissadamente o que produzimos e quem assina e anuncia conosco.

Ainda nessa direção, de tempos em tempos, estamos recebendo menos votos de extinção e de solidariedade. O famoso “por que não ser apenas digital?”. Notamos, com certa naturalidade, um cansaço progressivo com a experiência digital por parte de usuários. Bem, nos chamam de usuários. Cada vez mais, as pessoas estão buscando estratégias de melhor uso de seu tempo de qualidade, até para gastar menos com remédio e mais com vícios lúdicos, como bebida, aposta e jornal de literatura. Ao mesmo tempo, não aspiramos a um universo pré-internet. Pode surpreender a alguns, mas não somos saudosistas (che serà, serà).

Assim, pensamos em ferramentas que (1) facilitem nosso trabalho, pois ainda tratamos a existência digital como fardo; (2) aumentem a nossa base de leitores; (3) melhorem a comunicação com a base atual de assinantes e curiosos. Aos poucos, encontramos o nosso ritmo de forma a equilibrar constância com qualidade (ao menos a mesma qualidade destas páginas). O cansaço generalizado das redes sociais, que reinavam absolutas até pouco tempo, favorece o trabalho regular, repetitivo e pouco Pavloviano do RelevO. Também nos anima observar o nascimento de alternativas a esse sistema primal de estímulo e resposta com que nos acostumamos. O Substack – que não nos paga nada e, ao contrário, poderá receber de nós a partir do momento que estruturarmos conteúdos pagos lá – é uma delas, e reforçamos o convite para nos acompanharem por lá [jornalrelevo.substack.com].

Uma boa leitura a todos.

amanda vital: Ombudswoman 4: porque ficar nos bastidores faz parte

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Sim, car_s leitor_s, é difícil. Já virou clichê afirmar que o nosso tão querido e mui belicoso meio literário tem muitas panelinhas, muitos gatekeepings, muita curadoria de caráter duvidoso, muita crítica literária “do bem” pra puxar sardinha de amig_s, muita rodinha fechada, muito clubismo e coletivo falsamente aberto, mas que não aceita toda a gente que eles dizem aceitar, muita não-democratização da literatura, muito paternalismo, muita picaretagem, muita exaltação do medíocre e do mediano, muito oportunismo — em seus diversos artifícios, não apenas o que todo mundo culpa, esse “surfar na onda da representatividade”, sendo que há camadas muito mais graves e, vamos ser sinceros?, mais concretamente plausíveis e verdadeiras — facilmente comprável. E é frustrante. Eu sei, eu sei. A dificuldade na divulgação é real, a tristeza pela recusa é totalmente compreensível, a falta de oportunidade que algumas pessoas encontram para apresentar seu trabalho por não terem um networking bacanérrimo é concreta. E a gente precisa falar sobre isso e sobre seus muitos pontos de fuga também.

Eu comecei a rascunhar esta coluna pensando em ficar apenas em uma mesma ideia: a de que nem sempre os holofotes são possíveis e está tudo certo em ver outras pessoas brilharem sem necessariamente você também estar lá. Que o meio literário tem que ter vozes, sim, mas também ouvidos. Leitor_s. Pessoas para prestigiar, vaiar, aplaudir, jogar tomates; ler, enfim, mas ler de verdade, não só falar que leu. Que a literatura não precisa ser feita só de uma praça com um monte de gente berrando versos em megafones e ninguém ouvindo ninguém. Que _s escritor_s não precisam aparecer o tempo todo, e que uma recusa não significa a verdade universal de que você escreve mal, mas que os espaços que temos a nosso alcance não são capazes de abranger tudo ao mesmo tempo agora. Que há suportes e suportes, e o suporte que publica X não vai publicar Y tão cedo (ao menos não com esse corpo editorial, não com essa curadoria — e é preciso percebê-la direitinho para não se frustrar com uma recusa depois). Que, se calhar, seu texto só não foi publicado porque não foi enviado no formato certo, no tempo certo, com a “concorrência” (?) certa, com o refinamento certo, com o cuidado certo com o texto. E que nem sempre o espaço onde cabe um, cabe o outro. E é verdade.

Mas terminei o rascunho com algo na cabeça: esse recado precisava ser, sobretudo, uma mensagem de afeto para aquel_s que se vão realmente abaixo com a rejeição. Que ficam genuinamente tristes, com aquela sensação pesada de derrota. Que não sentem inveja d_ coleguinha que está sendo premiad_ (como muita gente fica, e ess_s têm um caminho de desapego de egocentrismo um bocado longo para trilhar, mas que temos que estar aqui por el_s também), que não queriam estar em lugares onde outras pessoas estão. Que não saem por aí inventando plágios que não existem. Que nem passa pela cabeça patentear um estilo de escrita que nem é patenteável, porque é costurado por muitos outros discursos, muitas outras literaturas e que a gente, que lê, até as visualiza em seus textos (quem plagiou quem, então, mesmo?). Pessoas que só querem apresentar seu trabalho, mais nada. Que não se sentem gênios (não estou falando de donos da bola que saem sapateando embirradinhos porque suas obras-primas foram rejeitadas), só escrevem. Que sofrem por não ocuparem cargos importantes na literatura e sentem que por isso não são ninguém por aqui. Que qualquer mão estendida “por caridade” já é uma oportunidade brutalíssima e não enxergam maldade nisso. Esse é um abraço para vocês. Para _s que engavetam livros inteiros (e ótimos, às vezes) por falta de comunicação, de retorno, de leitor_s, de oportunidade. Esse é um abraço forte com um incentivo para continuarem tentando. Para descobrirem espaços onde se encaixem melhor do que aqueles onde dão com a cara na porta toda vez, por alguma leitura equivocada de que poderiam estar lá, mas que produzem coisas que acabam não se encaixando por puro choque de curadoria de estilo, mesmo, e mais nada. Para que tenham iniciativas bem-sucedidas para alavancarem as suas próprias oportunidades de serem escutados, as que não foram estendidas durante tanto tempo por motivos banais, por boicotagem, sei lá por quê. Para perceberem o que foi rejeitado por boicotagem ou porque a linha editorial era outra. Para continuarem escrevendo e continuarem lendo muito. Escrevendo um pouco de tudo. E lendo muito de tudo.

E um pedido: que leiam tudo com carinho. Sem ranço de suportes porque não te publicaram. Leiam o RelevO com carinho: mês passado, teve um texto muito bom sobre a picaretagem da pseudociência e o perigo anticiência que tem sido a astrologia atualmente (que bom que finalmente estão falando sobre isso em literatura, tem gente que tá danando a saúde física e mental pra caramba por causa disso), do Bolívar Escobar, a quem parabenizo a escrita bastante acessível, dada a certa complexidade que o tema pede; um conto ótimo da Mônica Silva, “O eucalipto”, fazendo todo um ciclo da glória, da beleza e da utilidade de um eucalipto, passando pela tragédia de uma derrubada oportunista, até o papel querendo ser árvore novamente (esse resumo não alcança o que a escrita da Mônica atingiu, um conto muito bem escrito, com trabalho e com ternura); alguns poemas do Tesla, livro excelente do Alexandre Guarnieri pela Patuá (com uma poesia genial e inventiva que ele tem feito, misturando a forma do poema e a mancha gráfica ao conteúdo, desafiando o papel, discutindo com outros autores e outras literaturas, sempre com centelhas de futurismo, de Revolução Industrial; é um livraço, de fato, e a colagem que acompanha a seleção é uma das que estão presentes no livro também); a RelevO Drinks, minicrônicas que renderam muita risada gostosa, essa tiração de sarro de bebidinhas gourmetizadas que a gente adora (a tiração de sarro, não as bebidinhas); um ótimo trecho do livro de Jonathan Crary, nos lembrando da necessidade de reflexão sobre como o ultracapitalismo e o perigo do excesso da reprodutibilidade de tudo (não só arte) afeta nossa qualidade de vida e nossa percepção calma e atenta sobre o mundo; dialogando — ainda que indiretamente (e não-intencionalmente) — com o poema de Finuala Downling (creio que seja do arquivo Escamandro), que tece um looping e aponta o que, de verdade, permanece, no fim de tudo: a arte, o sensível, a Polonaise; o poema de Valentina Chakr faz um efeito cascata com looping também do final para o começo, com um paralelismo entre lhamas e a pressão estética que sofremos no cotidiano — quando na vida leríamos um poema fazendo um comparativo como esse?; o Yuri Araújo teve um texto bacana sobre os vários tipos de amores e desamores, bem leve e despretensioso, leitura bem gostosa para o final de um suplemento literário. Queria que o trecho do poema de Carmen Bruna, da contracapa, fosse com um recorte um bocadinho maior — vejo potência e beleza ali, mas o recorte não alcançou. Acho que em poesia, no geral, ficou um gostinho de “quero mais”.

E ao$ piore$ picareta$ da literatura (lembram quando falei dos casos graves?), aqueles de quem quase ninguém fala por medo, os ricaços que compram amigos no meio literário, que compram validação literária (e às vezes até aval de crítica), fazem mecenato com suas heranças e rendas duvidosas para eventos e antologias, e são aplaudidos efusivamente por “generosidade aos pobrezinhos” só por quererem comprar um lugar no céu, e continuam a escrever de modo mediano para medíocre, com uma literatura totalmente defasada da realidade e sem trabalho algum, mas que é aplaudida efusivamente por quem quer um tequinho de vocês: tô de olho nos senhores. Vocês é que deveriam estar na mira, não a moçada do que chamam “panfletário”, não os autores engajados, não os poetas de poesia descritiva hibridizada com prosa… enfim.

Sejamos céticos e sejamos afetuosos. Sempre. E quem não quiser um, tem o outro.

Música para ouvir no trabalho

Editorial extraído da edição de abril de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


De maneira quase iconoclasta, o editorial do Jornal RelevO de abril não falará de dinheiro, nem reclamará da falta de dinheiro, apesar de, apesar de. De fato, o Jornal RelevO gosta de música. Muito. Mais do que literatura? Talvez. Ao longo da nossa trajetória, certamente nos envolvemos mais em coberturas de shows do que estivemos em festivais literários, e realmente gastamos mais do que ganhamos, solapando o mais básico dos conselhos econômicos. Ao menos, nos mantemos longe das apostas e não acumulamos bens dignos de serem confiscados.

Temos alguma experiência com festivais não literários: cobrimos o Dekmantel 2017, o DGTL 2018, o Dekmantel 2018, a TribalTech 2018 e a Gop Tun 2022. Em todos, produzimos relatos nas páginas centrais – as de maior destaque do periódico. Todos os envolvidos com o RelevO já escreveram sobre música em outras frentes; e aguardamos, ansiosos, por escritores e escritoras que nos digam: “Topam uma pauta sobre o festival de tamborim invertido de Sertão de Camanducaia?”. Acreditamos que escrever sobre a música calha de juntar duas boas formas de expressão e divertimento.

Nossa newsletter de generalidades, a Enclave, também se aventura regularmente a falar de música, de Debussy a Skank – banda que, nesta edição impressa, surge com uma cobertura de quatro páginas. É provável que, a cada dois meses, seu editor se sinta obrigado a tecer comentários sobre algum lenço que serviu de inspiração para determinado clássico do Tom Jobim, ou qual fruta David Bowie comeu no terceiro dia da mixagem de Low [nenhuma].

Nossas centrais também trataram de música muitas vezes, como na edição de fevereiro de 2021, com o Acústicos RelevO: grandes encontros para ideias medianas ou o contrário (recentemente resgatada no nosso Substack). De “Alanis Lorenzetti” a “Noel Rosa por Noel Gallagher”, nos orgulha especialmente o trecho “DJ Marlboro apresenta ‘Águas de maço’”. Também nos deixou muito felizes o projeto Excursão: Aparefrita do Norte para gente sem norte, da edição de março de 2021, o que talvez até comprove nossa tendência à repetição (outra vez saturada com C_D_Sky, nosso DJ de eutanásia das centrais de outubro de 2019). O Jornal RelevO evita bares com voz & violão – inclusive já publicamos o Mapa da Violância nas centrais de novembro de 2019.

“Nele [Mapa da Violência], expomos os estabelecimentos com maior perigo de ocorrência de voz & violão de sua cidade – qualquer cidade, pois a voz & violão é imanente, pervasiva e destrutiva. Nosso intuito é claro: queremos que o cidadão digno se proteja. Não queremos que você seja convidado para um aniversário do seu amigo que é, na verdade, uma apresentação de voz & violão do seu amigo – a 10 reais de entrada! Fuja dos tocadores de violão. Não seja amigo de tocadores de violão. Não consuma voz & violão.” (RELEVO, novembro de 2019, páginas centrais).

“SOBRE O BUSLOOP

Família, silêncio, paz e harmonia com a natureza: nada disso faz o menor sentido para o BusLoop, que se projeta para o desgraçamento mental mais violento da sociedade desde as Cruzadas. Visando à completa deterioração do corpo, da cabeça e da alma, a excursão promete uma viagem só de ida para os pesadelos individuais com os melhores beats e synths e drops de qualquer imaginação impulsionada por enteógenos” (RELEVO, março de 2021, páginas centrais).

“Ninguém precisava de um DJ de eutanásia até eu soltar uma virada cabulosa nos segundos derradeiros de Alessandra Pierini Domingues, vítima de uma raríssima doença crônica degenerativa. Foi sinistro. E não só porque a avó dela, aos prantos, berrava ‘por que isso tá acontecendo, pelo amor de Deus?!’. Foi realmente sinistro. Na moralzinha. A véia ficou ali urrando qualquer coisa abafada pelas minhas caixas Pure Groove.” (RELEVO, setembro de 2019, páginas centrais).

Diferentemente da curadoria de textos, que busca estabelecer critérios de diversidade de estilos e de autores – senão teríamos um jornal inteiro de trocadilhos como “Pato Fu Fighters” e “Yamancu Bosta” –, nossa cobertura musical é aleatoriamente consistente: apenas seguimos alguns instintos primitivos de diversão e som torando. Não somos muito diferentes da estudante de Jornalismo que idolatra Harry Styles.

Uma boa leitura a todos.

Amanda Vital: Ombudswoman 3: não faz mal, limpa com jornal

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Jingle bell, jingle bell

Acabou o papel

Não faz mal, não faz mal

Limpa com jornal

Autor desconhecido

Com a diferença de que o jornal definitivamente não está caro pra chuchu. Setentinha por um ano de literatura de qualidade, pô?! Mas aviso aos navegantes, sedentos por uma boa discórdia, isso não é para definir qualquer tipo de supremacia do físico sobre o digital — essa é uma guerra longa, não cabe em 8000 caracteres. É que nessa guerra, existe uma trincheira cortando dois campos. De um lado, os defensores do “apenas digital” são os defensores de uma democratização maior e mais ampla da literatura, já que e-books e plataformas digitais podem ser acessadas em qualquer lugar do mundo, tornando conexões e intercâmbios ainda mais possíveis. Do outro, os defensores do “apenas físico” são os defensores de algo que já funciona historicamente falando (para ser um bocado mais precisa, o primeiro livro impresso do mundo começou a ser produzido na década de 1450; o primeiro jornal impresso em gráfica, em 1605) e que, caso aconteça alguma pane geral nos sistemas informáticos, o físico que já existe não deixa de existir, nem fica inacessível. E há a trincheira, de onde falo, colaborando em meios impressos e virtuais. Só defende, não ataca, observando todas as discussões, as demandas, os problemas, as qualidades, as bombas e as alfinetadas. É um nome chique para “em cima do muro”? Não, porque é uma trincheira.

E para não dizerem que aqui é só amargura, rancor e acidez, deixo aqui uma pequena lista do bem — sei que vocês adoram listas — das qualidades de cada um dos lados, observadas daqui, desse lado T (de trincheira, hehe. Sacou?):

No físico: 1. Como eu já mencionei, não corre-se o risco de, com uma possível pane nos computadores (que não, não é teoria da conspiração, calminha aí com o ceticismo, porque já existem panes informáticas em sistemas aeroportuários, governamentais…, para afetar o uso pessoal é um saltinho), os materiais se destruam — o acervo físico está sempre aí;

2. A experiência de leitura é, de fato, mais agradável como um todo — não precisa nem adicionar fontes para isso, acho, né? — porque mexe com sentidos para além dos olhos, e isso é uma experiência muito rica, sim;

3. A depender do armazenamento do acervo (biblioteca pessoal, pública, livraria, sebo…), o papel pode demorar centenas de anos para se deteriorar — ao contrário de alguns sistemas, que tornam-se obsoletos com o passar do tempo e “envelhecem mal”, com problemas de armazenamento, de memória, atualizações e essas coisas todas;

4. É sempre uma mãozinha a mais para que gráficas, tipografias e imprensas não caiam na obsolescência também — gráficas vão sempre imprimir cartões de visita, cartazes, camisetas, agendas…, mas não se restringiria apenas a esse material (e ainda há as quase totalmente especialistas em livros);

5. O impresso é democrático e agregador, muito coletivo e com possibilidade de leituras em grupo, acessível a regiões e a indivíduos com dificuldades de acesso à informática, quanto mais à internet;

6. Não seria buscado apenas por quem está procurando algo específico (um jornal sobre uma mesa de café pode ser lido por pessoas que não buscaram por aquilo — ao contrário de tablets, raramente deixados em mesas de café, ainda bem para seus donos);

7. O impresso também atravessa oceanos, tal como o virtual, e não se restringe apenas ao ambiente nacional, como fazem parecer (o RelevO, mesmo, viaja mais que nós todos juntos);

8. Mantém a história de acervos e bibliotecas sempre ativa, preservando histórias e mantendo ativo o trabalho físico também dos bibliotecários;

9. O físico tem qualquer coisa de fixo, de imutável, de perpetuar-se — isso em si já é poético, e aqui falamos de sensibilidades também;

10. Papel não acaba a bateria, nem ter de colocar para carregar, nem tem notificações pipocando ao redor (vai enganar bobo quem diz que desliga notificações e vibrações, tá? Eu vejo vocês online!), nem precisa de suportes específicos para isso, fazendo lucrar monopólios.

No digital: 1. Em um viés de qualidade de vida individual — não digo do coletivo porque as tecnologias para isso ainda estão em andamento —, organizar a biblioteca pessoal é prático (para quem sabe mexer nisso, claro), então não há estante, não há grande peso, cabe tudo na mochila, bem prático, fofo e minimalista, de fazer Marie Kondo salivar de regozijo;

2. A disponibilização de conteúdos é mais rápida, não precisa esperar por uma impressão;

3. Quaisquer correções que sejam necessárias, é só editar, corrigir e já está editado (não é uma vantagem a 100%, porque isso acaba dando margem a alguma corrupção de conteúdo pós-publicação, mas vários portais deixam uma data de edição e até alguma errata “à moda antiga”, o que é legal);

4. Pode-se manipular o texto com alguma facilidade e comodidade: fazer marcações, copiar e colar, comparar, postar aquela legendinha marota no Instagram, pegar aquela citação excelente para a epígrafe do seu livro, enfim, se rabiscar, não é fixo;

5. Tende a ser econômico, porque não tem a conta da gráfica e do envio, só da edição;

6. Essa deveria ter sido a primeira da lista logo, porque é das mais importantes: é mais acessível a pessoas cegas, com possibilidade de texto transposto para áudio;

7. Alguns suportes de leitura são à prova d’água: você pode ler na chuva!;

8. É possível aumentar a fonte para uma leitura mais cômoda;

9. Um material publicado na América Latina pode ser lido na China quase instantaneamente;

10. Das coisas mais óbvias, mas: é sustentável e bom para a preservação do meio ambiente.

Em suma, se você está num periódico impresso, vão te cobrá-lo em arquivo digital; se você trabalha em uma revista virtual, vão te cobrar a versão física dela (como já nos aconteceu muitas vezes na Mallarmargens). No primeiro, a pessoa quer um teste, uma amostra grátis para experimentar, já que “procura e não acha uma digitalizaçãozinha disso sequer, eu não sei cumé quié!”. Na segunda, não aceita que o portal tenha alguma credibilidade só por não funcionar impresso. Sempre tem alguém que não está satisfeito, nem vê como possível a coexistência das duas coisas. “Ah, eu só leio no papel, isso aí nem deve ter ISSN”. “Ah, eu só leio se tiver como favoritar, minha vida é muito corrida gerindo os imóveis que alugo a estudantes universitários falidos por 900 paus”. E muita cobrança no lombo do editor.

E para os que leem até aqui, mês passado tivemos muita coisa boa cá por essas bandas, com destaque para a arte e o trabalho de fotografia & colagem incrível de Noah Mancini; de toda a poesia publicada, o poema curto da Enilda Pacheco foi uma boa escolha de curadoria, a poesia jogando com o verbete de dicionário, que é algo atemporal e bom quando bem feito, com originalidade, sem cair no óbvio — o que acredito que aconteceu, com contraste, ritmo de quebra de versos e enjambement, contraste, tudo em três versos!; o trabalho de tradução do Degrazia é muito especial, por ser um ótimo poeta também, ele aplicou um ritmo um pouco diferente do original, fugindo da tradução literal e indo por um caminho inventivo, mas na medida, numa boa medida, só um bocadinho aqui e acolá para a transposição de sentido para português; e de prosa, o texto que mais me ficou foi “Biscoito?”, de Silva — uma esquete literária deliciosa, com os elementos do exagero e do absurdo bem-humorados e com essa comunicação mais familiar e cotidiana, que permite que a gente prossiga legal na leitura, sem se encolher na poltrona com algum cringe (em suma, texto que fala como a gente fala); com menção honrosíssima para o trecho da Tatiana Lazzarotto, que faz algo parecido, mas não com diálogo, com descrição; e para o conto de Carolina Fellet, outro que passa pelo coloquial, mas com elementos de prosa poética.

Boa ressaca de carnaval a tod_s. Sejam impressos! Mas se não quiser, não precisa.

O papel do papel, o ChatGPT, os escreventes

Editorial extraído da edição de março de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


A presente edição do RelevO, de março de 2023, não foi escrita por inteligência artificial (IA), mas teve o auxílio dela. Tal qual a aparição de um craque na base de um clube decadente, o surgimento do ChatGPT no fim de 2022 trouxe à tona uma série de reflexões sobre o fazer artístico —a nossa edição especial da Copa do Mundo teve capa de IA, por exemplo. E ficou ótima. Será o fim do artista? No plano prático, diversas revistas e concursos literários espalhados pelo mundo passam pelo desafio de avaliar ou excluir textos enviados com auxílio de tais ferramentas. Logo será a nossa vez de lidar com isso.

Estamos vivendo o início do fim dos escritores e dos artistas? Certamente que não. Certamente que sim. Quem já se aventurou no ChatGPT e saiu emulando estilos de autores e autoras consagradas pôde verificar que a fluência e a beleza textual ainda são de uma carruagem no asfalto. Contudo, sabemos que a IA irá melhorar, o que nos traz outro questionamento: e os escritores? Permanecerão cada vez mais distantes das transformações do mundo e descrevendo árvores por três páginas? Lógico que exageramos. O argumento, inclusive, acabaria com Marcel Proust. Mas só tivemos um Marcel Proust…

Longe de nós querer transferir aos escritores a tarefa de avançar junto das AIs. É impossível, tanto por processamento quanto por aprendizado. O que nos interessa, na condição de veículo de curadoria de um segmento cultural, é pensar em como os escritores lidarão com ferramentas que podem escrever melhor que eles. Ou melhor do melhor: que podem ser medíocres com muito mais qualidade.

Daqui do nosso cercadinho de muitas incertezas e na continuidade de procedimentos, enxergamos com bons olhos a chegada de uma ferramenta que tensione a nossa existência. Poderá, em breve, uma IA selecionar os textos enviados para a nossa caixa de entrada apenas pelos padrões de escolha dos editores ao longo de 13 anos? Poderá a IA descartar automaticamente do processo de avaliação textos que tenham erros crassos (e involuntários) de língua portuguesa? Gostaríamos.

Diferentemente de uma IA, o ser humano é escravo e senhor de sua temporalidade – e não avança apenas com atualizações. Como medir as transformações internas de uma pessoa que teve um filho pela primeira vez? É possível quantificar (ou realmente descrever) em algoritmos a experiência do primeiro amor? E a sensação de receber uma encomenda pelos Correios? Ainda somos nós, ainda somos nós. E nunca fomos mais humanos.

Entre infinitas razões, criamos para também nos questionar sobre a nossa própria existência — e por utilidade, valor sempre em confronto com o mundo exterior. Pedimos ao ChatGPT que escrevesse um editorial que refletisse sobre a utilidade de um jornal de literatura no mundo contemporâneo. O comando foi simplório, já que poderíamos dialogar em perspectivas bem mais profundas. A resposta foi didática:

Um jornal de literatura pode ter várias utilidades no mundo contemporâneo, mesmo com o avanço da tecnologia e das redes sociais. Algumas das principais utilidades são:

  1. Promover a literatura: Um jornal de literatura pode ser uma excelente plataforma para promover a literatura, tanto nacional quanto internacional. Ele pode destacar obras e autores relevantes, estimular a leitura e ajudar a formar novos leitores.
  2. Fornecer análises críticas: Um jornal de literatura pode fornecer análises críticas de livros, oferecendo aos leitores uma visão mais aprofundada e reflexiva sobre as obras. Isso ajuda a enriquecer o debate literário e a estimular a produção de obras cada vez melhores.
  3. Divulgar eventos literários: Um jornal de literatura pode divulgar eventos literários, como lançamentos de livros, feiras de livros e encontros com autores. Isso ajuda a aproximar os leitores dos escritores e a fomentar o diálogo entre eles.
  4. Fortalecer a comunidade literária: Um jornal de literatura pode ajudar a fortalecer a comunidade literária, criando um espaço para a troca de ideias e experiências entre autores, leitores, editores e outros profissionais do mundo literário.
  5. Preservar a cultura: Um jornal de literatura pode ajudar a preservar a cultura, registrando a produção literária de uma época e documentando os eventos e acontecimentos importantes do mundo literário. Isso é importante para a posteridade e para que as próximas gerações tenham acesso às obras e ao legado dos escritores.

Para nós, não se trata de uma resposta vazia, afinal ela captura um bom tanto das identidades possíveis de nosso periódico, o que muitas vezes frustra os leitores em busca de um norteamento claro. Mas também é fria, protocolar, semelhante a um editorial cansado. Em suma, será divertido acompanhar o rumo disso tudo. Certamente continuaremos nos divertindo, aspecto básico de nossa existência (chatbots sonham com risadas elétricas?).

Uma boa leitura a todos.

Amanda Vital: Ombudswoman 2: é preciso ter estilo

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


es·ti·lo (latim stilus, -i, instrumento com haste pontiaguda, instrumento para escrever nas tábuas enceradas)

“estilo”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021

Car_s leitor_s, tem uma coisa que me pega aos pouquinhos — cada vez um pouco mais — lendo a seção de cartas do Jornal. É um argumento-questionamento que vem aparecendo intermitentemente já há algum tempo, e não me lembro se os ombudsmen/women anteriores falaram sobre isso. Se sim, venho endossar o coro. Falo desse argumento que une tanto o possível leitor que não quer assinar o Jornal (e precisa dar uma justificativa qualquer) até o autor que foi rejeitado e quer cancelar a assinatura (e não quer ver o editor nem pintado de ouro): “ah, é que o RelevO não faz muito meu estilo”. Eu não queria deixar isso passar na minha curta estadia por aqui — e ainda vou falar de rejeição de textos e sobre jornal impresso, numa outra altura, que também queria poder dar um pitaco ou dois. Mas já agora, pergunto: o que é, na realidade de um jornal literário generalista, ter um estilo? Como ele é alcançado? O que é preciso fazer para receber um rótulo de estilo? Ter esse rótulo é necessariamente saudável e bom?

Minha reflexão vale o que vale. Mas penso que a partir do momento em que um veículo de literatura define sua curadoria, e aqui simplifico bastante por ter muitas outras subjetividades embaixo disso, em 1. o material ter um traço de qualidade marcante; e 2. todos são bem-vindos, renomados ou não, cabe uma pluralidade de estilos dentro dessas duas premissas. Do soneto ao verso livre, da prosa contemporânea experimental ao fragmento de romance tradicional com ares mais clássicos, do tradutor literal ao inventivo, do ensaio acadêmico catedrático ao literário mais híbrido.

E fujamos das formas, também, e digamos do conteúdo — do esporrado que sai daquele conto erótico do escritor frequentador de sarau temporão em taberninhas (aquele que geralmente pega o microfone pra ler um Bukowski, uma Hilda Hilst ou um beat norte-americano), do poeta escrito a partir de slam de uma feminista de rua intervencionista (muitos dizem “panfletário” para tentar diminuir essa possibilidade de existência da poesia, porque “ai, meu Deus, feministas não-acadêmicas querendo espaço aqui no templo sagrado da poesia, falando de liberdade sexual, de igualdade de direitos e de pelos nas axilas, assim, como se não fosse nada de mais, isso é um absurdo”), das diferentes formas de beber de fontes — e todas as fontes são potáveis e próprias para consumo.

No veículo generalista, a literatura é viva e vai sendo universal em seu melhor, abrangente mas sem cirandinha, porque aquela premissa 1 é, no fundo, seu próprio estilo editorial. E é um passo mais à frente após décadas de suplementos literários feitos apenas por convite, restritos a elites literárias, privilegiando amigos, políticos e familiares. E que, vamos ser sinceros, esses é que publicavam sempre mais do mesmo: a seleção de textos não circulava muito, reclusa a algumas dezenas de autores.

Por isso, o conceito de “jornal generalista” me aparece em mente: porque vejo esses jornais e revistas, físicos ou digitais, como veículos amplamente democráticos e abertos a todos os públicos, que não querem ser especializados num determinado recorte (ex: publicar só autores modernistas, só autores concretistas, só autores contemporâneos, só sonetos de amor, etc), sim, mas isso tudo faz sentido em termos de estilo mesmo assim. Porque existe o fator curadoria que não deixa tudo virar farofa da Gkay, com a seleção de bons textos que as pessoas podem gostar de descobrir (e é saudável e bom descobrir coisas novas), porque são e estão fazendo o presente na literatura. Porque a curadoria editorial é e está fazendo o presente da crítica literária no país. Essa crítica que “anda tão sumida, cadê ela?”, e segue assim, nos bastidores. Esse estilo que rabisca as tábuas enceradas e vai grafando fragmentos da história da literatura.

A Camila Passatuto, excelente poeta, aparece na última edição com um ensaio — que não quero dizer “sobre a obra de”, mas que “parte da obra de” Lucas Verzola, para a dissertação, entre as diversas provocações da obra, do “consumir-produzir literatura”, da produção entre empecilhos do contemporâneo. E deu muito certo. A transição entre estilos é o necessário para canalizar um ímpeto que seria para um canal já atravessado com alguma frequência, na escrita e na reflexão, em um outro exercício que pega emprestado o traquejo do trajeto anterior. Lúcido, esclarecedor e com uma abertura bonita que a Camila tem sobre a literatura em ação.

O delicioso “brincadeirinhas”, de Camila Lourenço, é a justa medida entre a denúncia da disparidade de visão da sociedade sobre meninas e meninos da mesma idade e o alívio de uma brincadeirinha consensual das primeiras experiências — chegamos a um ponto em que se é consensual, é um alívio —, que também anda lado a lado com isso. O “eu acho que senti o arrepio primeiro”, a experiência amorosa do início da juventude descrita sem maldade, sem exagero e sem condenação (sem, no fundo, a “mão invisível” do conservadorismo enraizado), da perspectiva da menina, do domínio. Que mais meninas (acredito que o texto também possa ser lido por jovens, sem problema algum) tenham mais exemplos como esse texto, com literatura “a sério” e não só os mesmos livros de autoajuda e montagens rápidas de Instagram para alcançarmos um controle cada vez maior sobre o nosso corpo, as nossas vontades, os nossos sentimentos.

Outra decisão crítica super acertada foi a poesia da Carolina Bataier, que parece ter sido escolhida a dedo para dar mais um sacode gostoso em quem não conseguiria, por exemplo, lendo “O que fazer com um poema guardado”, enxergar ritmo (que há), originalidade (também) e trabalho (igualmente). Quantos vão passar por esse poema sem perceber o sarcasmo, a denúncia, sem se questionar “por que será que o encadeamento dessas sequências, dessas imagens entre um e outro verso, foi feito dessa forma?”. Ah, porque é quase poema-recorte atrelado à oralidade, “é tudo feito ao calhas”, como diriam em terras lusitanas. Mas Carolina pegou nas situações mais inusitadas para se depositar-ler-publicar-botar para fora um poema. Apanha-o como um boneco de papel, manipula as palavras a sua maneira. Ali, o poema disserta (ui, o perigo do poema descritivo destruidor da nobreza poética!), propõe, tira sarro. Manda na autoria, manda em tudo. E tudo, absolutamente tudo é válido, menos deixá-lo na gaveta. A metapoesia feita sem precisar de palavras mirabolantes.

Ainda em poesia, Davi Koteck — que tem uma produção excelente em poesia e em edição, com a ótima revista Rusga (se ainda não está em circulação, que isto aqui seja um incentivo para retomá-la) — flerta com o realismo mágico e o nonsense, construindo camadas para construir um ciclo que volta ao início (“Não tenho mais vontade de ser feliz”/“na minha cabeça parece que eu não mando”) nessa vivência do contemporâneo que é ora apática, ora com faíscas de qualquer coisa nova, fora do comum, que nos puxe um bocadinho mais para o estado de euforia.

Para a contracapa, foi selecionado o centenário português Eugénio de Andrade, com “Canção” (que, salvo engano, acredito que parte dele tenha virado mesmo uma canção de uma banda portuguesa), de seu livro Primeiros poemas, encerrando a edição com essa reminiscência curtinha tão bonita, uma gota dum orvalho feito de metades proporcionais entre a metáfora-imagem e o cotidiano-oralidade.

O que quero com tudo isso? Além do costumeiro costumer service, apenas provocar com algumas centelhas de birra contra o tradicionalismo excessivo e a favor do caminho bonito que a literatura tem alcançado de ora equilibrar o novo e o velho, ora mandar tudo à merda para fazer estilos do zero. Mas o que eu quero, mesmo, é desejar uma boa continuidade de começo de ano para todo mundo. E por falar em estilo, sejamos um bocadinho mais rebeldes. Mas se não quiser, não precisa.

Jornal de papel como experiência coletiva

Editorial extraído da edição de fevereiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Tivemos quase 170 edições para observar e comprovar: um jornal impresso de papel e de literatura não existiria sem uma comunidade. Ao longo de quase 13 anos, passamos por diversas intempéries da vida: jornal com ares de jornal de faculdade, jornal de um desempregado pós-faculdade, jornal com ambições nacionais, jornal que se organiza como o esquema tático de um clube emergente, mas de pouca torcida— sabendo que briga primeiro contra a ZR e depois se estabiliza na busca por vaga em competições intermediárias. Lidamos com o aumento de custos de tudo, com uma pandemia que matou quase 700 mil brasileiros (inclusive colaboradores e assinantes), com a diminuição de nossa arrecadação, enfim: passamos por diversos ciclos que nos trouxeram alguns padrões comportamentais, por assim dizer, e que, sobretudo, nos trouxeram até aqui.

O RelevO não arrisca mais do que é capaz de manter. Temos dificuldades, mas você certamente nunca ouviu um “o RelevO não pode acabar”. Não queremos acabar; no entanto, também não queremos que o assinante pense que estamos prestes a acabar (muito menos que o país precisa de nós). Assim, estruturamos uma operação para tentar controlar o controlável: o tal Risco Brasil. Com operação enxuta, prestação pública de contas e uma possível retomada econômica — que podemos até constatar como certo otimismo para 2023 —, voltamos a expandir nossa circulação, o que resultou em dois meses de prejuízos (com o qual já contávamos). Aumentou nosso custo, ainda não aumentou nossa receita, porém isso era esperado.

Desde o começo de dezembro, voltamos a entrar em contato com livrarias, cafeterias e pontos culturais para fazer o envio gratuito do Jornal. Gratuito em partes: quem financia o envio são os assinantes que adquirem os planos especiais de apoio à nossa distribuição. Antes da pandemia, disparávamos o RelevO para mais de 300 pontos, algo sem dúvida acima da nossa capacidade logística de absorção. Não à toa, com a pandemia, interrompemos a circulação em pontos físicos e conseguimos, por outro lado, finalmente remunerar todas as pessoas que trabalham em nossa estrutura, da distribuição aos autores e autoras. Pagamos pouco, mas pagamos — em um meio encharcado de trocas de favores e cobranças para publicar (“todo dia um malandro e um otário…”).

A pandemia de dois anos apertou o cerco logístico e o financeiro. Tivemos queda de 20% de nosso faturamento. Ao mesmo tempo, aqui estamos, com novos planos e com aquilo que, sem dúvida, foi o que nos trouxe até fevereiro de 2023: a nossa comunidade. Atualmente, enviamos o jornal a 120 pontos espalhados pelo Brasil todo, além de 150 bibliotecas comunitárias. Nossa meta para 2023 é audaciosa: chegar a 600 pontos, mandando exemplares para todos os estados e, principalmente, para espaços fora dos grandes centros urbanos.

Entendemos que esse plano vai ao encontro de pilares institucionais muito caros para nós, como a descentralização e o acesso a quem não tem condições de nos assinar. Acreditamos que, com mais 200 assinantes, consigamos sustentar essa distribuição mensalmente — também estamos estudando a criação de uma associação de apoio à distribuição do RelevO, formada por contribuintes que sejam algo como o patrocinador master do Jornal. Em valores absolutos, precisamos de R$ 5 mil a mais para cobrir o Brasil todo com o nosso periódico.

O RelevO não é obra de um gênio, de um abnegado, de um filantropo, de um rico entediado, de quem faz cavadinha na hora de bater pênalti. Somos a soma de procedimentos com uma comunidade. Não somos uma experiência individual e não praticamos a arte do consenso, bastando verificar nossas cartas e os nossos ombudsmanatos. Acreditamos muito em produções e construções que agreguem o esforço de um grupo sem que isso represente a perda de uma suposta identidade. O grupo que representamos é o de nossos assinantes. Acreditamos que são vocês que nos escolhem, por R$ 70 ao ano ou mais, para ler um periódico de papel por mês. E agora queremos que isso chegue para mais pessoas — simples assim.

Uma boa leitura a todos.

Amanda Vital: Ombudswoman: que reajam os mercados!

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Car_s leitor_s, é com uma confusão enorme e um cagaço maior ainda que dou início a esse cargo gostoso e mui belicoso do RelevO, o de ombudsman – no caso, ombudswoman (ou, se preferirem, palpiteira, pitaqueira, enxerida, “a mocinha ali”), por causa de uma pira do Nuno Rau de ter recomendado meu nome aos editores para a sucessão do cargo, que é rotativo. Ainda não sei o que deu na cabeça dele, mas vou tentar dar início a esse novo bom ciclo junto de vocês pelos próximos meses. Aproveito para agradecer imensamente a ele [Nuno] e aos editores deste espaço tão querido por nós, apesar de já ter deixado pagos uns cafés com pastéis de nata aqui no café local, a mais de 7 mil quilômetros de distância deles. E eles estão sabendo só agora. Mas vale o que vale, que esse tipo de coisa a gente não oferece a qualquer um.

Esse início é também muito simbólico politicamente falando: escrevo no primeiro número do Jornal desse ano de Lula, com uma nova e boa era se abrindo e o fogo da esperança aceso novamente, depois de um furacão perto de destruidor, no mínimo. Vivemos um período de alívio depois desses últimos quatro anos complicadíssimos com um fascista da qualidade de Bolsonaro no governo. É uma alegria, depois disso tudo, dizer que nosso presidente é Lula de novo. Mas muito se tem falado sobre o mercado reagir mal a isso, e a galera do neoliberalismo (que super funciona, confia) está alvoroçada com a ameaça do país em reduzir as desigualdades sociais, ter pobre almoçando e jantando de novo, essas frivolidades que ninguém quer saber. Olha, convido esses a rezar para os pneus a ver se o mercado ressuscita na forma de Jesus na goiabeira e abençoa a bolsa de vocês, capitalista como ele era. Por aqui, seguimos relativamente tranquilos. Mancando, porque uma pessoa vai comprar pão e tropeça em cinco pedindo intervenção militar, oito pedindo intervenção federal, três pedindo intervenção alienígena, uma Cássia Kis, dois lendo fake news num microfone abafado de acústica horrorosa e tosca… mas mancamos tranquilos. Relativamente.

E por acaso, em uma segunda boa sorte, me calhou uma edição bastante interessante para dissertar sobre, então vai ser meio difícil ser malvadona logo de cara (e o RelevO em si deixa a gente numa posição difícil de shibari, há sempre aquele traço de qualidade no que é publicado por cá). Começando pela capa excelente, uma espécie de Abaporu contemporânea construída com camadas de ícones. Alguns lembram ícones de programas de PC e de celular, por exemplo, de wi-fi, meteorologia… A arte na contracapa faz uma mistura d’O Grito de Van Gogh com o Desespero ou Autorretrato de Coubert, também numa versão contemporânea cheia de formas, curvas, preto no branco, em releituras e reconfigurações frescas e geniais. Tudo dialoga com muito do conteúdo igualmente fresco do número, que abre com biografias tinderescas encontradas no webnamoroverso, angariadas pelo Yuri Araújo, que fez uma curadoria de primeira. Até dá uma pontinha de saudade da juventude orkuteira, igualmente galanteadora e amostradinha, com aquelas biografias manhosas: “Naõ soou peerfeeita, neiim doona da veerdadee. Maaiis, soouu doona dee miim <3, doona dass miinhas voontaadees”. Ah, não faz essa cara, vai! A sua sobrinha usava uma igualzinha a essa!

E por falar em cortejo, a linguiça (blumenau) do Dédallo Neves é uma delícia. Excelente crônica curta, simples e boa, que retrata uma simples linguicinha como um guilty pleasure do narrador – e que acaba sendo nosso guilty pleasure também durante a leitura. O mix de nojo e desejo funcionou muito bem, em doses bem medidas, nada em excesso (nada contra os excessos, aliás), com o equilíbrio do jogo entre culpa e prazer, descrições de objetos e de sensações muito boas e originais. Ainda nos prazeres gastronômicos, o número conta com uma ótima matéria sobre o “chef” Michel Lämb – o requisitado que ninguém requisitou – e fiquei curiosa para saber se Michel é inspiração para alguém existente, dessas mentes mirabolantes da cozinha minimalista e meio nojenta. Não resisto a uma boa tirada de onda dessas gourmetizações, enquanto moradora de um concelho em gentrificação constante, que tem abandonado os prédios centenários onde funcionavam cafés e tasquinhas e, agora, desmontam tudo, pintam a fachada de turquesa e adicionam logotipos de acrílico desenhados no Canva para seus restaurantes mexicanos e japoneses (de empresários que são tudo menos mexicanos e japoneses, nem sabem nada de coisa alguma), lojinhas de presentes inúteis e superfaturados ou espaços de coworking que cobram metade do seu rendimento mensal para uma semana de poltronas ovais, lustres coloridos, mesas de sinuca e cactos.

De volta à literatura – por amor da santa – , o poema da Ana Vilalta também me ganhou um bom bocado. O diálogo com Margaret Atwood é um bom exemplo de como o ritmo na poesia (da pontuação ou falta dela, das estruturas de frase/fala e das quebras de verso) é o diferencial entre prosa e poesia em uma linguagem mais discursiva usada nos dias de hoje. Não concordo com as críticas dos meus queridos colegas de que a poesia desce em qualidade quando cruzada com a prosa. Poesia discursiva, descritiva, em diálogos informais e feita em uma linguagem e um contexto atrelados ao cotidiano, “pé no chão”, pode, sim, ser excelente e um espanto de autenticidade e de novo. Pode, sim, conter as ferramentas ditas “essenciais” da poesia – não só ritmo, mas melodia, conteúdo, beleza, dança (Nuno foi quem me ensinou que não existem formas fixas, as palavras dançam). E pode emocionar, espantar, ter o que falar sobre. É que os semideuses se esquecem de que vivemos em um mundo coletivo e transversal. E gente falando da própria vivência – e da vivência dos seus – na literatura. E, ainda, gente falando de estupro, de sexualidade (ou assexualidade), da falta de comida no prato, da seca, da bebedeira, da bipolaridade, da pedofilia, da falta de políticas públicas… A louvação do belo e o esculpir da palavra são coisas muito bonitas, é inegável. Mas as outras possibilidades não podem ficar no ar ou se esconder dos críticos empoeirados de casacos de cabedal. Até porque, ao mesmo tempo, o poema do Eleazar tem uma proposta diferente e também é excelente, e justamente nele, o que me chama atenção é algo diferente: o jogo de sons bem feito (poema bom para se ler em voz alta, se fortalecendo na oralidade), de rimas (escura/rua, segundo/fecundo, reaparece/prece, até as rimas ocorridas internamente, como bar/ar), e os -s sibilando um pouco ou bastante, como se emulasse um espectro, a Coisa perambulante, vagante, perto e longe da gente. O poema torna essa Coisa uma imagem móvel não só através do que se diz sobre ela, mas sobre como o conjunto da fonética corrobora para isso. E olha que bonita essa outra perspectiva: falando em imagens, o poema da Rosa Lobato de Faria também se ilumina pelas construções de imagens; agora, pela forma como ela descreve o amor em cruzamento com o corpo: olhos, boca, pele, mãos, e como o amor acontece através de cada uma dessas partes; o que quebra a pieguice esperada do tema “amor” é que, pelo meio, são entrecortadas essas imagens moventes no caos, algumas surrealistas até (somos bons em surrealismo), “pomba assustada do coração”, “espelho doido dos olhos”, “todos os gritos (…) debaixo da roupa”. Já o poema da Goliarda Sapienza (com tradução de Valentina Cantori) reúne um pouco disso tudo: a beleza, o inesperado, o ritmo, o cotidiano – e o teatral, que ela salpicou também, a originalidade das imagens, o surreal.

Gastei os caracteres quase todos e quase não falei de prosa, mas deixo uma menção honrosa ao texto “O Filme”, do Andrey Derzette (essa palestra empreendedoresca pré-filme, super do nosso tempo, mas de leitura imersiva e cativante, ao mesmo tempo em que dá vontade de deitar o diretor na porrada). No mais, fico por aqui e desejo um começo de ano gostoso para todo mundo. Bebam muito, mas não façam merda. E sejam amigos (mas se não quiser, não precisa).

2023: um tônico e um euforizante

Editorial extraído da edição de janeiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


A edição de janeiro do RelevO chega com duas novidades. A primeira é a apresentação da nova ombudsman – ou ombudswoman. Depois do ciclo do poeta, arquiteto e professor de história da arte Nuno Rau por quase todo o ano de 2022, Amanda Vital é a nova detentora do cargo, um dos mais importantes do nosso Jornal. Ela é a 15° ocupante do cargo, podendo ficar de 3 a 9 meses na função.

Neste espaço, o ombudsman escreve sobre o RelevO, agindo como mediador entre o leitor e o jornal, apontando aspectos positivos ou negativos do veículo, considerando críticas, sugestões e reclamações ou, ainda, trazendo ponderações sobre o conteúdo publicado. Ao lado da Folha de S.Paulo e d’O Povo, de Fortaleza, somos os únicos jornais do Brasil com o serviço.

A coluna – enviada mensalmente por volta do dia 25 – não pode ser editada pela publicação, cabendo aos revisores apenas o apontamento e a possível correção de erros não intencionais. Amanda Vital é assistente editorial da editora Patuá e co-editora da revista Mallarmargens, além de mestra em Edição de Texto e autora do livro Passagem (Patuá, 2018).

A atual titular foi uma indicação do ombudsman anterior, que pode sugerir até três nomes para substituí-lo. Acreditamos que o olhar de Amanda Vital, insider do meio literário e agente em diversas frentes deste mesmo mercado, possa trazer discussões importantes sobre o Jornal, abrangendo as recepções de leitura e o contexto todo em que estamos inseridos.

A segunda novidade é mais discreta, mas igualmente importante. Reformulamos o nosso Conselho Editorial, adicionando novos nomes. Em 2022, perdemos a bibliotecária Jacqueline Carteri, uma das nossas maiores entusiastas em mais de 12 anos de Jornal. Jacqueline morreu precocemente e deixa um espaço que jamais será preenchido. Atualmente, oito pessoas compõem o grupo, que contempla desde apoiadores muito próximos ao Jornal a ex-ombudsmans que trouxeram colaborações fundamentais ao nosso processo de existir.

Para 2023, ambicionamos reunir presencialmente este Conselho para discutirmos aspectos sempre delicados do RelevO, como as relações entre a política editorial e o departamento financeiro, as dinâmicas do Jornal com os autores recusados para publicação e as naturais complicações de ser um veículo impresso de literatura em um país sempre à beira da convulsão (ou de virar um istmo e sair flutuando pelo mundo).

De modo geral, desejamos que o novo ano seja um pouco mais… equilibrado. Não procuramos a cura que Comte-Sponville menciona em A felicidade, desesperadamente: a pílula da felicidade. “Uma pilulazinha azul, cor-de-rosa ou verde, que bastaria tomar todas as manhãs para se sentir permanentemente (sem nenhum efeito secundário, sem viciar, sem dependência) num estado de completo bem-estar, de completa felicidade”. Apenas queremos continuar com o nosso trabalho, nos divertindo entre a transcendência e a vulgaridade, com menos cambalhotas financeiras para fechar a edição no azul.

Uma boa leitura a todos.

Nuno Rau: Ombudsman na pista pra negócio [ou: o fim pode não ser o fim]

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A realidade é dura, car_s leitor_s, e eis que me encontrarei, depois do fechamento da presente edição, demitido de minha tão amada função de ombudsman do RelevO. E não me adianta vociferar contra os editores, brandir com virulência frases de efeito sobre as cruéis leis de mercado, a insensibilidade do capitalismo neoliberal: nada disso seria verdade. Eis que me encontro demitido porque essa é a beleza da função de ombudsman no RelevO: ela é rotativa, e no mês que vem outra cabeça virá dialogar com as páginas do jornal, suas qualidades, eventuais fragilidades, idiossincrasias, bem como com a voz de leitor_s que, pela natureza da mensagem, reclamam (e merecem) diálogo. As linhas acima, com certo quê dramático, são apenas pra ressaltar o gosto com que desempenhei essa função, aderindo ao projeto editorial com amor, e tendo percebido mais ainda, de dentro, a sua inteireza, seu compromisso, sua ética.

No entanto, a função de ombudsman também implicou no diálogo com o presente: o texto da edição de novembro foi escrito sob uma atmosfera carregada de angústia, às vésperas do segundo turno das eleições mais dramaticamente decisivas desde a redemocratização, todos nós atravessados por certo desespero diante do claro avanço do fascismo sobre nossas instituições, com apoio do mercado e das classes médias, essas em que vamos imersos. Provisoriamente vencemos, uma vitória por menos votos do que se esperava, até porque, pelo que soube no contato direto com diversos pontos de meu Rio de Janeiro — que continua lindo e selvagem —, o voto de cabresto foi ostensivamente remixado ao arrepio dos tribunais eleitorais, e de modo tão competente, capilarizado, fragmentado, que nos faz entender o motivo da decepção do candidato fascista e dos milicianos mais próximos a ele: as estratégias espúrias por pouco não deram certo, e eles esperavam realmente ganhar. Não fosse o Nordeste, teriam logrado êxito.

Emergimos do outro lado do túnel nutrindo grandes esperanças, e eis que escrevo esta última coluna sob o céu de Paraty, pedaço de território em que agora se movem escritor_s, poetas, editor_s, leitor_s e outr_s louc_s de plantão em meio a muitos exemplares das classes médias que vêm espargir seu brilho fátuo e fake, edulcorado pelo que capturam por osmose ao discurso da propaganda, enquanto provavelmente sentem um frisson percorrendo a espinha toda vez que os telejornais ou outros veículos mencionam a palavra “mercado”, posto que seus prazeres são profundamente integrados a ele, chegando a emular suas leis mesmo quando não haveria motivo razoável para que isso ocorresse. O pior: esse quadro inclui as parcelas há bem pouco tempo despauperizadas. As classes médias são um fenômeno complexo. Sempre que penso nelas me lembro, entre o riso e a tristeza, de uma reunião entre o centro acadêmico e a direção do IFCS — Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, onde puxei algumas disciplinas, por interesse pessoal (meu curso era Arquitetura), no começo dos anos 1980. No embate político que se dava, a imagem que um amigo empregou para representar os corpos discente e docente do IFCS foi simplesmente genial, pelo poder de síntese de sua metáfora, pelo aspecto inusitado e escatológico, alcançando grande impacto por força do choque (estamos falando de um momento em que a ditadura civil-militar ainda vigia, por mais que estertorasse), e para mim sempre representou também uma imagem fiel das classes médias, onde quer que elas vivam. Nas palavras dele, que tento escavar na memória, “nós somos como aquela parte da merda que, quando bate na água do fundo, espirra e se gruda pelo meio do vaso, e aí ficamos contentes de não estarmos no fundo, mas quando derem a descarga, nosso destino é o mesmo”. Este é o sentimento que guia as classes médias, e faz com que sejam aderentes aos fascismos de toda cepa, e é dessa parcela da sociedade que saem os intelectuais que, em percentual não desprezível — utilizando aqui a terminologia de Gramsci —, agem como prepostos do grupo dominante, comprometidos que estão em garantir que a visão de mundo e as práticas sociais do povo estivessem afinadas com o desenvolvimento da estrutura econômica daquele grupo. Foram intelectuais dessa espécie que emitiram, quase em uníssono, a frase “o mercado reagiu negativamente” quando Lula reafirmou seu maior compromisso de campanha que acabar com a fome é mais importante que respeitar o teto de gastos (que deveria ser entendido como teto de investimentos no bem-estar social). Para combater esse estado de coisas, temos outros intelectuais, dos quais Chico Science fez outra brilhante síntese: “E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ Que eu me organizando posso desorganizar/ Que eu desorganizando posso me organizar”. Desorganizar a visão de mundo dominante, desorganizar as bases do capitalismo, que, em sua forma mais estrita, recende a fascismo.

A última edição é toda dedicada à Copa, ao futebol, à literatura dos países que estão na competição, e já vamos quase pela metade do texto sem nada falar sobre a relação entre a pelota e a pena. Pois aqui vamos, então, auxiliados por Pasolini, que, em texto descoberto por meio do livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik, fala do futebol como algo que oscila entre a poesia e a prosa. Pasolini acabara de ver o mundial de 1970, e estabeleceu uma relação entre o futebol-prosa da seleção italiana (alheio ao drible por preferir a “prosa coletiva” da construção da jogada ensaiada, o gol nasceria como a conclusão de um raciocínio tornado visível pela organização coletiva), e o futebol-poesia do escrete brasileiro (o drible, o toque de efeito, a alegria gratuita). Na verdade, levei o equivalente a duas odisseias (em tempo, sem dúvida, e parcialmente em atribulações) até começar a ver o futebol sem preconceito. Não estou muito mal acompanhado, tenho a meu lado Lima Barreto, “que viu na adoção do esporte inglês no Brasil a degradação da cultura intelectual, a afirmação de um poder tiranizador e truculento, e uma sobre carga racista que a abolição havia atenuado”, como nos relata Wisnik. Se o velho Lima não estava completamente equivocado, também não acertou em cheio, porque não supôs o que nossa permanente vocação antropófaga faria com o esporte bretão nos campinhos de várzea, de onde surgiram deuses como Didi “Folha Seca”, Garrincha, Tostão, Pelé e talvez o jovem Richarlison, de quem sei pouco mais do que ter vindo do Espírito Santo, e demonstrar uma ética bastante precisa sobre questões sociais. Na contracorrente da visão do futebol que levei anos pra construir, como uma realidade mais complexa e não redutível ao bordão “esporte-alienação”, a percepção de que o mercado (sempre o mercado) atua como um vírus se combinando com as entranhas do esporte, catapultando meninos despreparados ao patamar de milionários em geral deslumbrados que não têm nada a oferecer como modelos para meninos do futuro além da habilidade de seus corpos em campo — não falo aqui do futebol das mulheres porque segue, ainda, outras lógicas, espelho que é das estruturas da sociedade: mulheres executam as mesmas funções ganhando menos, e com menos visibilidade, mesmo apresentando, não raro, maior profissionalismo, desempenho, dedicação, talento.

Como nada é simples, o futebol é também um campo privilegiado de observação do social, reproduz suas grandezas, suas mazelas, as paixões, exclusões, e na literatura, assim como na canção popular, no cinema, nas telenovelas, e em todas as demais manifestações da arte e da indústria cultural, funciona como motor de obras fundamentais — o painel traçado por RelevO é um testemunho disso. Entre os 32 textos selecionados para a edição de novembro, alguns são a representação da complexidade que se move sobre o idioma de cada povo, e a espessura com que certos poemas e trechos de prosa capturam esses movimentos complexos sob os códigos da linguagem nos atinge como um dardo. Os poemas de Elke Erb, Ghazi Al-Gosaibi, Kim Chun-Soo, Akiko Yosano, Irit Amiel, sem falar no poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, sua permanente investigação sobre o mar e a alma humana, e nos versos de Dylan Thomas, sobre seu/nosso ofício ou arte amarga, essa que nos traz aqui para indagar nos versos de tantos lugares do mundo a forma de nosso rosto.

Ao longo desses 12 meses penso não ter feito outra coisa senão perscrutar o que de nosso rosto fragmentário estava posto em cada página do RelevO, o quanto de nossa seiva comum percorria as fibras de celulose das páginas do jornal, imantadas pela tinta negra. O desenho desse rosto será cada vez mais importante como guia para fora do labirinto para onde nos vimos conduzidos, um pouco anestesiados que estávamos, talvez inebriados com as conquistas do campo progressista, parcas ainda, mas conquistas, relativas, mas conquistas, incompletas, mas conquistas distensionando relações, redimensionando estruturas, reelaborando percursos. Houve um lado positivo nesse habitar o labirinto: ao longo da dolorida estadia pudemos contemplar, ao menos parcialmente, a profundidade do abismo que existe quase em todo o entorno, como um fosso, e mesmo que ainda dentro dele conseguimos agora entrever a estreita passagem de volta, como um nada fácil contorno que teremos que cumprir até retomar o empuxo anterior, agora com certeza — sim, esperemos isso — com um sólido princípio de realidade. Queria deixar nessas palavras finais uma provocação aos editores do RelevO, e também a editor_s de todas os veículos de literatura, a escritor_s, poetas, leitor_s: que ações concretas podemos fazer, com ou sem apoio do Estado, para nos afastarmos cada vez mais do labirinto e do abismo que é seu entorno imediato? De que modos podemos sair em campo, mais ainda que antes, com mais força, mais assertividade, mais atenção e fúria, para fazer da literatura um instrumento ainda mais concreto e efetivo de transformação social, sulcando mais fundo a realidade desse presente conturbado?

Por fim, meu muito obrigado aos editores do Jornal pela parceria incondicional, a tod_s _s leitor_s pela interação possível, e que esta edição, que vocês têm em mãos agora, seja um sinal do novo tempo que devemos fazer com nossos corações, nossas mentes, nossas mãos, nossos corpos.