Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2021 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
O RelevO, em seu aparente compromisso com a autodesimportância, esconde de seus leitores o esforço de produção para cada edição. Parte desse corre foi relatado no editorial da edição anterior (novembro), longamente dedicado a uma reflexão logística.
Naquele texto, um elogio-desabafo, lembrou-nos que é jornal. Como tal, repete rotinas, consolida processos, assimila práticas. Em suma, cria trabalho pra si. E talvez por isso mesmo não fale disso.
A triagem de uma grande quantidade de colaborações é um exercício de disciplinado interesse pelos outros. É preciso lê-los e arranjá-los num todo coeso a cada mês. E assim repetidamente, nadando numa piscina de pautas frias.
Os colaboradores deveriam retribuir o interesse se fazendo um pouco mais claros.
Qual é o gancho?, como dizíamos na redação.
Pensando o jornal em uma articulação com o mundo, por que este texto deve ser publicado agora? Há uma justificativa na qual eu, o autor, não esteja incluído?
O que eu estou fazendo com o espaço que me foi cedido?
Selo soviético em homenagem a Kim Philby, o traidor (muito) inglês. [WikiCommons]
1. O livro A Spy Among Friends, de Ben Macintyre, vai se tornar uma minissérie estrelada por Guy Pearce (L.A. Confidential; Memento) e Damian Lewis (Billions; Era uma vez em Hollywood).
2. Nunca publicado no Brasil, A Spy Among Friends é um belo livro. Trata do agente duplo Kim Philby (mais sobre ele logo abaixo) e de sua amizade com Nicholas Elliott. Ambos eram espiões do MI6 durante a Guerra Fria. Portanto, a notícia é animadora.
3. Já usamos um trecho de Agente Zigzag, do mesmo autor, na Enclave #78. Este cobre a história de Eddie Chapman, agente duplo durante a Segunda Guerra Mundial – e foi publicado no Brasil pela Record, em 2010. Chapman era um marginal beberrão e picareta extremamente ativo: todas esses traços o transformaram em um grande espião a serviço dos Aliados, enganando o serviço secreto alemão com consistência. Agente Zigzag também é um baita livro de não ficção.
4. Também já tratamos de outro livro de Macintyre na Enclave: Adam Worth: O Napoleão do Crime, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2000. Worth foi um ladrão absoluto – não só o Napoleão, mas também o Pelé do crime. Brilhante, calculista e incrivelmente não violento, ele estendeu seu portfólio de atividades irregulares a diversos países ainda no século 19, inspirando o prof. Moriarty de Arthur Conan Doyle. Detalhamos a trajetória de Adam Worth em duas partes: 1 e 2. Naturalmente, consideramos O Napoleão do Crime outro ótimo livro.
5. Agora sim, de volta a Kim Philby. A sua história é uma das mais espetaculares do século 20, afinal Philby é um dos maiores traidores da história. Também já a detalhamos neste enclave, mais especificamente na edição #15. Com o perdão do autoplágio:
Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.
Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.
Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos.
6. A trajetória de Philby (e dos “Cambridge Five“) exclama por uma adaptação digna. Se a minissérie anunciada dará conta disso, não sabemos; mas o ânimo é justo. Desde que li A Spy Among Friends, torcia para que alguma produtora endinheirada abraçasse a tarefa.
7. Sobre espiões na Guerra Fria, O Espião Inglês (The Courier) foi finalmente lançado este ano, após uma leva de atrasos por conta da pandemia. Dirigido por Dominic Cooke e estrelado por Benedict Cumberbatch, o filme se ancora na história real de Greville Wynne, empresário-tornado-espião que chegou a ser descoberto – e preso – pela KGB. No momento, está disponível no Prime Video. É um belo filme, ao menos para quem se anima com a temática.
8. Curiosamente, O Espião Inglês é o terceiro filme em que Cumberbatch se envolve com espionagem – que eu me lembre. N’O Jogo de Imitação(2014), no qual interpreta Alan Turing, inclusive, há uma mistureba narrativa com os espiões-traidores de Cambridge, nesse caso envolvendo John Cairncross (“mistureba narrativa” porque, ao contrário do que o filme retrata, a relação de Cairncross com os soviéticos só viria a ser descoberta muito depois da Segunda Guerra).
9. O outro filme? Nada menos que O Espião que Sabia Demais(Tinker Tailor Soldier Spy, 2011), uma beleza contemplativa – ou seja, lenta – adaptada do romance homônimo (1974, publicado no Brasil pela Record, 2012) de John le Carré (1931-2020), uma lenda da narrativa de espionagem. Como se sabe, ele próprio foi um agente do MI5 e do MI6 nas décadas de 1950 e 1960. O Espião que Sabia Demais (tanto filme como livro) aborda a espionagem de maneira muito mais realista, característica típica da obra de le Carré.
10. A carreira de John le Carré na espionagem foi destruída por conta da traição de… Kim Philby. A Spy Among Friends deve estrear no segundo semestre de 2022.
Um fato bônus e perifericamente relacionado: encontrei o livro abaixo, de 1946, capa dura, extremamente conservado, por R$ 22,61. W. Somerset Maugham (1874-1965) também trabalhou no serviço secreto inglês, mas ao longo da Primeira Guerra Mundial. O Agente Britânico(Ashenden: Or the British Agent), parcialmente autobiográfico, foi publicado em 1927.
123. Não ser afetado.
Quanto mais talento, menos afetação. Trata-se de um defeito vulgar, que desmerece e é tão maçante aos outros quanto é incômodo a quem a pratica. Faz-nos sofrer de preocupação, pois é um tormento ter de manter as aparências. As maiores qualidades perdem seu mérito por causa da afetação, pois serão julgadas como sendo fruto do artifício em vez de uma graça natural, e o mais agradável do que o artificial [sic]. Os afetados serão tidos como fatos dos talentos que afetam. Quanto melhor você é em algo, mais deve ocultar seus esforços, de modo que a perfeição pareça a ocorrer naturalmente. Não se deve, tampouco, para fugir da afetação fingir não tê-la. O homem prudente não deve nunca demonstrar mais que conhece os próprios méritos; a displicência desperta a atenção dos outros. Duplamente grande é quem tem todas as qualidades, mas nenhuma em sua própria opinião. Percorre seu próprio caminho até chegar ao aplauso.(…)
136. Ir ao âmago das questões.
Tomar logo pulso dos negócios. Muitos se perdem nas árvores mas não atinam com a floresta, ou põem seus esforços a perder, falando sem parar, argumentando inutilmente, sem atingir o cerne da questão. Dão voltas e mais voltas, cansando a si mesmos e os outros, e nunca chegam ao que importa. Têm entendimento confuso, não sabem como desemaranhar. Desperdiçam tempo e paciência naquilo que deveriam deixar de lado, e depois não há mais tempo para o que deveriam fazer.
(…)
138. Não se intrometer.
Principalmente quanto mais agitadas estiverem as ondas do social ou familiar. O convívio humano tem seus tumultos, suas tempestades de vontade; em tais ocasiões é sensato retirar-se para um porto seguro e deixar as ondas se acalmarem. Os remédios muitas vezes pioram os males. Deixe agir a natureza ali, e a moralidade aqui. O médico experiente sabe quando prescrever ou não o medicamento, e às vezes a sabedoria consiste em não aplicar remédios algum. De vez em quando, dar de ombros é uma boa maneira de debelar tormentas vulgares. Dando agora tempo ao tempo, será vencedor depois. Basta um pouco para turvar as águas de um regato, que não voltará a ficar limpo com tentativas, mas deixando-o em paz. Não há remédio melhor para a confusão do que deixá-la seguir seu curso, terminando assim por si mesma.
Baltasar Gracián, A Arte da Prudência, 1647 (Sextante, 2003).
Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2021 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Virar berliner é sinal evidente de decadência para um jornal brasileiro. Deve ser, inclusive, para os tabloides. Comento porque o RelevO está chegando a uma idade em que discussões sobre tamanho físico começam a ganhar relevância.
Caso este jornal se aventurasse a uma nova medida, primeiro, pareceria profissional, o que poderia afastá-lo de sua vocação primeira, que é estimular a escrita. Depois, interessado em inserir-se – como voz e como tema – em um debate social mais hegemônico, o que sempre faz mal à literatura. O contrato de leitor é sempre o de poucos contra muitos. É o prazer de uma correspondência que escapou a alguns postos de controle.
O autor-colaborador deste periódico tem responsabilidade sobre quem cita. Ele atrai para o círculo de correspondência uma atenção externa, originalmente não-interessada. E para o leitor interessado, agencia a curiosidade.
Entre os veículos alternativos, o RelevO distingue-se por ter uma segunda geração de leitores. São jovens dos primeiros anos de formação intelectual, que ainda tateiam em busca de referências, e cujos cânones ainda estão por ser estabelecidos.
Quem ousa manifestar-se na grande comunidade dos autores deve garantir-se capaz de identificar interlocutores de valor. Escrever é falar com escritores. Comunicar, sobre a cultura, aquilo que lhe é mais verdadeiro. Essa é uma confissão do sábio: orientar, apontar por quais caminhos ele próprio viu.
O artista, também o literário, precisa renunciar a qualquer sistema de valores para além do estético. Todo registro escrito é um desejo de permanência.
Nossa era exige uma certa moral hipertextual. Uma resposta à questão: para quem você está abrindo um link?
Que saudades de ir ao cinema! À minha direita, um sujeito trata o saco de pipoca como se precisasse nocauteá-lo, então a degusta com a ferocidade de um cão a descobrir um novo osso.
À minha esquerda, um bombonière humano com uma relação infinita de chocolates, todos encapsulados em plástico e guardados em outra sacola plástica, na qual é preciso navegar constantemente à procura do próximo doce.
À minha frente, impulsos assassinos controlados, depois distraídos por uma tela gigantesca a anunciar: “Duna, primeira parte“.
Talvez você já tenha cansado de ouvir sobre Duna; talvez lhe falte um último empurrão para ver o filme com os próprios olhos; talvez você não tenha qualquer interesse no assunto. Mas Duna, do franco-canadense Denis Villeneuve, é o principal assunto do cinema hoje, muito por conta da escassez de lançamentos em função da pandemia.
E Duna (1965), o romance de Frank Herbert que lhe serve como base, é um livraço. Enredos, personagens, conceitos: uma miríade de informações parte de Arrakis, o planeta desértico governado pela Casa Atreides, para compor uma verdadeira picadilha galática.
Tecendo a ficção científica com feudalismo, Herbert misturou tecnologia, transcendência e pluralismo cultural de maneira cativante. Não à toa, esse universo, tão grande como amarrado – a criatividade do autor é puramente invejável –, acarretou uma saga de publicações, e estas inspiraram diversas outras franquias.
Com um parâmetro simplificado, podemos dizer que Duna sempre foi o “Star Wars para adultos” (digo isso de maneira não depreciativa). George Lucas certamente bebeu dessa fonte.
Porém, a adaptação de David Lynch, de 1984, é esquisita (digo isso de maneira depreciativa) por vários motivos, alguns dos quais – não todos – fora do controle do diretor (“Meu, ele mistura muito bem essa coisa do inconsciente, abstrato com essa tecnologia estrambólica, polipotética, parafernálica, meu”).
Por sua vez, o Duna de Alejandro Jodorowsky seria o maior, melhor, mais espetacular, mais incrível filme da história, segundo Alejandro Jodorowsky. Contudo, o projeto acabou engavetado, alimentando o mito acerca do título, que seguia à procura de um filme capaz de traduzir sua devida potência.
E assim chegamos ao Duna a que podemos assistir nos cinemas no fim de 2021. Para fazê-lo, por sinal, não li absolutamente nada sobre o filme; nem uma crítica; zero. Acompanhei a produção anos atrás, então procurei me desinteressar para não criar expectativas – mesmo confiando em Villeneuve, ou melhor, “no Dení“.
Mais que um excelente filme, Duna é uma experiência cinematográfica incrível. Ideal para grudar os olhos em uma tela gigante, ficar meio surdo e esquecer o indivíduo nefasto amassando uma sacola plástica ao seu lado.
Protagonizada por um monte de ator famoso mais um monte de famoso ator, a obra é expositiva o suficiente para dar conta da parcela do romance a que se propõe. Ainda assim, flui bem o bastante para entregar pancadaria, belas cores, belos cenários, belos trajes e um capricho sonoro capaz de tensionar seus músculos na cadeira.
Duna, finalmente, tem um espetáculo digno de Duna – o melhor blockbuster possível diante de seu texto fonte. Nem fãs nem curiosos se decepcionarão. A segunda parte já foi confirmada para 2023.
Em certos dias, ir de carro para Santa Monica era como ter alucinações sem se dar a todo o trabalho de adquirir e depois ingerir uma droga qualquer, embora em certos dias, sem sobra de dúvida, qualquer droga fosse melhor que ir de carro para Santa Monica.
Hoje, depois de uma volta enganosamente ensolarada e monótona pelas propriedades da Companhia Hughes – uma espécie de smörgasbord de zonas de combate americanas em potencial, espécimes de tipos de terrenos que iam de montanhas e desertos a pântanos e florestas e coisa e tal, todos ali, segundo a lógica da paranoia, para servir à regulagem fina de sistemas de radar de combate – passando por Westchester e a Marina até Venice, Doc chegou à via de entrada de Santa Monica, onde começou o seu mais recente exercício mental. De repente ele estava em algum planeta onde o vento pode soprar simultaneamente em duas direções, trazendo neblina do oceano e areia do deserto ao mesmo tempo, obrigando o motorista incauto a reduzir a marcha assim que entrava nessa atmosfera alienígena, com a luz do sol obscurecida, a visibilidade reduzida a meio quarteirão, e todas as cores, inclusive as dos sinais de trânsito, desviadas radicalmente para outro ponto do espectro.
Thomas Pynchon, Vício Inerente, 2009 (Companhia das Letras, trad.
Esta é a edição #100 da Enclave, a newsletter que completa, oras, 100 edições.
Começamos em março de 2015 e, desde então, passamos por algumas interrupções, bem como evoluções de formato (quem diria que escrever textos diferentes, semanalmente, tomaria muito tempo). Desde a edição #49, em março de 2020, não paramos.
A Enclave, como um… enclave, localiza-se inteiramente dentro do Jornal RelevO, mas é conduzida por conta própria. Buscamos tornar o RelevO mais presente no cotidiano digital.
Nenhum de nós (isto é, eu, Mateus; e o editor do RelevO, Daniel Zanella) tem o menor interesse, traquejo ou competência para participar da dinâmica de conquista de mercado digital, o que ora dificulta a expansão do RelevO, ora consolida nossa linha discreta de atuação.
Dessa forma, tentamos nos limitar a nosso já limitado círculo de competência. Nosso site é limpo e oferece todas as informações essenciais a quem procurá-las; nossa newsletter é um mero apanhado de observações sobre a estética em geral; nossas redes sociais prezam por não poluir.
Nos últimos anos, depois de muita prática – e de grandes ensinamentos de grandes amigos –, sentimos ter finalmente encontrado uma dinâmica que não nos toma um tempo exagerado (afinal não vivemos disso), não nos traz a sensação de ridículo e, ao mesmo tempo, gera conteúdo suficiente para manter o RelevO vivo para além de sua distribuição física.
Além da Enclave (gratuita), temos a Latitudes (exclusiva para assinantes do RelevO), editada pela jornalista Amanda Andrade, e as circulares mensais do próprio Zanella, enviadas diretamente aos assinantes. Nas redes sociais, fazemos o mínimo possível publicamente, mas estamos sempre lá, respondendo a perguntas e a qualquer coisa que nos enviam.
Reitero que a assinatura do RelevO custa R$ 60 por ano. Não por mês. Por ano. Hoje, pagamos a todos os colaboradores: ilustradores, escritores, diagramador, mídias sociais etc. Se você bobear, o RelevO está te pagando por alguma tarefa.
Não temos nenhum órgão, empresa, concurso, edital, absolutamente nada por trás. Também não temos família rica. Apenas tentamos ser estúpidos de forma séria e, com esse modelo leve, conseguimos sobreviver e, curiosamente, carregar (sentindo na própria pele) a bandeira da profissionalização em um meio tarado pelo favor.
Ainda temos muito a melhorar, mas gostamos do que fazemos e, mais do que isso, continuamos a fazê-lo. Se você já conduziu qualquer projeto de qualquer esfera, sabe como essa é a parte mais difícil.
No fim de junho, Quentin Tarantino publicou Era uma vez em Hollywood, novelização de seu filme homônimo (2019).
Assisti a Era uma vez em Hollywood no cinema, o que já parece há uma eternidade, tratando-se de 2019. Lembro de ter gostado, mas com algum estranhamento. A sensação de não saber exatamente o que agradou, o que desagradou; a confusão que requer nada além de tempo para indicar direções.
Passados alguns dias, o filme não saía da minha cabeça. Mas não necessariamente o que acontecia nele, em termos de eventos e movimentos, e sim cenários, transições; Clith (Brad Pitt) dirigindo; Sharon Tate (Margot Robbie) dirigindo.
Isso bastou para abraçar aquele universo – Los Angeles, fevereiro de 1969 – (re)criado por Tarantino com enorme afeto. Quando o livro do diretor foi anunciado, soube que daria uma chance de braços abertos. Principalmente após ouvir Quentin Tarantino falar sobre a própria obra: é difícil não se convencer pela paixão irrestrita com que ele, como uma criança na sorveteria – já cheia de açúcar –, trata o próprio trabalho.
Em suma (e sem spoilers), o diretor se deu conta de que tinha personagens cativantes em mãos, interpretados por grandes atores. A partir disso, ele não precisaria construir uma grande história para além de um dia comum na vida de três personagens centrais: os fictícios Rick (Leonardo DiCaprio) e Cliff e a realíssima Sharon Tate, cujo assassinato traumatizou uma era.
Assistir ao filme com essa premissa em mente (e sem esperar, digamos, Cães de Aluguel) permite uma catarse deliciosa, o mero deixar-se levar por um universo construído com um carinho visivelmente pessoal.
Era uma vez em Hollywood, o livro, é uma extensão disso.
De início, portanto, Tarantino sequer trata a obra como um romance propriamente dito. Tal qual o longa-metragem, é um apanhado de momentos (às vezes cotidianos, banais) de seus personagens, os quais, por sinal, ele não se propõe a desenvolver. O livro é um filme com cenas estendidas, cenas extras e mais contexto (por sinal, haverá um extended cut).
Era uma vez em Hollywood, tanto o filme como o livro, é repleto de metalinguagem, mas não por ela mesma – nem como muleta crítica –, e sim simplesmente como um mecanismo para Tarantino desenvolver uma fan fiction do período desejado e se perder nele sem as chaves.
No romance, com ares de pulp fiction (o gênero, não o filme), Tarantino transita entre a história do cinema, opiniões sobre filmes (terceirizadas em personagens), eventos fictícios de personagens reais e demais eventos de personagens fictícios.
Ironicamente – e com absoluta consciência –, a maior narrativa do livro diz respeito à série Lancer, escrutinada pelo autor como um conto e temperada pela fluidez natural dos obsessivos.
Aqueles convencidos pelo filme têm muito a ganhar com Era uma vez em Hollywood, literatura despreocupada e rústica, mas totalmente ciente de seus objetivos – e com uma voz bem definida. Não se trata de “narrativa transmidiática”, malemal de narrativa. São momentos espalhados de personagens espalhados.
Por fim, testemunhamos um sujeito talentoso compartilhando conosco um período mágico (para ele) e traduzindo isso em duas mídias (portanto, linguagens) diferentes. Quentin Tarantino se perde, no melhor dos sentidos, em seu universo, abrindo a porta para nos emprestar um pouco desse encanto. O que mais podemos pedir?
7. Jamais estima algo como vantajoso a ti, se vier a te obrigar algum dia a violar tua fé, a abrir mão do respeito que tens por ti, a odiar alguém, levantar suspeita, lançar maldições, ser hipócrita, desejar algo que exige paredes e tapeçarias. Com efeito, aquele que preferiu a sua própria inteligência, a sua divindade tutelar e o culto religioso em razão desta dignidade, não atuará em nenhuma tragédia, não se porá a lamentar e dispensará o isolamento e a presença maciça das pessoas; e, sobretudo, não viverá nem se apegando à vida, nem fugindo dela. Não o preocupa que sua alma permaneça por um intervalo maior ou menor de tempo tendo um corpo por invólucro; se, com efeito, for necessário desde já que ele o abandone, estará pronto para isso e partirá sem qualquer embaraço, como o faria em relação a outras atividades que pudesse executar reservada e decentemente. Por toda a vida, seu único cuidado é manter seu pensamento ocupado com o que é próprio a um ser vivo racional e social.
8. No pensamento daquele que foi contido pela moderação e purificado, não podes descobrir nada de purulento, imundo nem que prossegue supurando internamente. Nem o destino o pega com sua vida incompleta, como se diz de um ator trágico que se afasta antes de encerrar a peça e completar seu papel. Ademais, nele não verás servilismo, nem afetação, nem demasiado apego, nem demasiado desapego, nem sujeição a um ajuste de contas nem dissimulação.
9. Honra a faculdade de pensar e conceber opinião. Tudo se encontra nela, pois não há na tua faculdade condutora um pensamento que não esteja de acordo com a natureza e a constituição de um animal racional. Ela nos prescreve a não precipitação, a boa administração das relações com os seres humanos e a obediência dos deuses.
10. Então, descartando tudo o mais, retém apenas esses poucos princípios, lembrando, ao mesmo tempo, que cada um se limita a viver o presente, que tem duração muito curta; quanto ao restante, é incerto ou impenetrável. Efêmera, portanto, é a vida de cada um e pequeno é o cantinho em que vive; efêmero, inclusive, é o mais duradouro dos renomes oferecidos pela posteridade, e até isso segundo uma sucessão de pessoas medíocres que não tardarão a morrer, que nem sequer conhecem a si mesmas, muito menos aquelas que morreram há muito tempo.
Marco Aurélio (121-180 d.C.), Meditações, Livro III (Edipro, trad. Edson Bini, 2019).
Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2021 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Todos os meses, antes de sentar para escrever esse texto, tento cavoucar as páginas em busca de algo ainda não devidamente observado. Essa é a jornada do ombudsman de jornal literário: ser um acupunturista das pretensões alheias. Desta vez, me detive com curiosidade na página 2, aba Publique. O quadrinho cinzento diz que este jornal recebe textos de todos os gêneros, ilustrações, narrativas visuais e fotográficas.
É um convite à pluralidade de gêneros, mas poderia ser compreendido — de forma aprofundada — como a superação destes.
O mercado editorial está em crise (novidade!). Esta, porém, parece um pouco mais ampla, pois se estende também à plataforma. Muito se lamentou o fechamento dos cinemas na pandemia, pouco o das bibliotecas. A discussão sobre a perenidade do livro é longa e complexa, e não me cabe. Mas lembro dela para refletir sobre o norte estético que compositores de letras podem buscar.
Poderíamos, sim, especular sobre a vitalidade do romance, ou de um determinado tipo de prosa estrutura em descrições, diálogos, cenas. Este ainda é, de fato, o gênero nobre e altivo da literatura, recheador de estantes da classe média medianamente ilustrada, ou apenas o último cadáver da modernidade que, tal como os de Antares, hesitam em desocupar a praça? Por que ainda se tenta escrevê-los? Por que ainda se busca demonstrar possuir fôlego e técnica para tal?
Os textos enviados ao RelevO se enquadram com alguma facilidade em algum gênero consolidado. São, primeiramente, uma homenagem a estes. Eu diria até que a prosa longa é a visão majoritária, quase comum. É natural que se comece em terreno conhecido, porque, convenhamos, esse papo de transgressão sempre soa bem pedante. Porém, penso que um autor deva buscar ser novo, antes de ser velho.
Fugir dos gêneros consolidados e, por consequência, criar um novo é para raríssimos, evidentemente. Mas usar a linguagem literária de forma ampla e híbrida para comunicar com densidade é possível para um público letrado mais amplo, minimamente inspirado e pouco impressionável com fardões de academias.
Não se pode chamar de subestimado, afinal se trata de um filme de Sergio Leone, mas Era Uma Vez na América (1984) decerto é menos lembrado que outras grandes obras do diretor italiano – e menos lembrado do que merece.
Talvez porque o filme não seja um western, gênero ao qual Leone ficou tão associado.
Talvez porque seja seu último longa-metragem, com grande distância em relação ao anterior (13 anos para Giù la testa/Duck, You Sucker!).
Talvez por conta de seu lançamento confuso, com uma versão reduzida nos Estados Unidos, capaz de prejudicar a recepção imediata da película (e sua arrecadação).
Talvez porque sua versão consagrada tenha 229 minutos (3 horas e 49 minutos), o que intimida um tanto – mas vale cada segundo.
Era Uma Vez na América é um pináculo do cinema, sem mais nem menos. Ao longo de suas quase quatro horas, acompanhamos a trajetória de Noodles (Roberto De Niro) e Max (James Woods) representada de forma hipnotizante. A dupla lidera uma gangue juvenil cujo contexto tem a Lei Seca dos Estados Unidos (1920-1933) como ponto central.
A partir disso, assistimos a uma narrativa que desenvolve esses personagens por décadas, de 1918 até o fim da década de 1960, fragmentando a história de forma não linear e pincelando-a por cenas de um capricho etéreo.
Testemunhamos a ação do tempo, a degradação e a amargura através de cenários oníricos e transições de cenas coreografadas por um gênio, pois tamanha clarividência e tamanha técnica pertencem apenas ao gênio. Era Uma Vez na América redimensiona o que essa arte é capaz de proporcionar.
O filme é brutal e delicado; singelo e complexo; claro e ambíguo. Muitos adjetivos (que nada dizem), infelizmente, mas Sergio Leone criou algo digno de tal êxtase – com mais uma trilha sonora primorosa de Ennio Morricone e cinematografia de Tonino Delli Colli.
Há cenas que espectador algum esquece – quem viu sabe exatamente quais –, mas tratar delas pode atrapalhar a experiência de curiosos. Nosso maior intuito é incentivar o contato com essa obra-prima de densidade narrativa, psicológica, visual e sonora. Por hoje é só: reassistindo, seguimos pasmos.
Ao fechamento desta edição, Era Uma Vez na América está disponível no Prime Video, que não financiou este texto.
Uma possibilidade é dividir o filme em dois, assistindo à primeira parte, até 2h40min; depois disso, até o fim (cerca de 1h10min). Outra é serializá-la em seis partes. Segue sugestão: 1 (até 38 min); 2 (até 1h29min); 3 (até 2h03min); 4 (até 2h40min); 5 (até 3h12min) e 6 (até o fim).
No geral, considera-se que a máfia privilegia certas técnicas de homicídio em relação a outras. É um erro. Ela sempre escolhe a forma mais rápida e menos arriscada. Esta é a sua única regra. Não há nenhuma preferência ou feticha por uma técnica ou por outra.
O melhor método continua sendo a lupara bianca, a morte pura e simples da vítima escolhida, sem deixar traços do cadáver e nenhum sangue. É uma realidade que deixa estupefato qualquer um que tenha visto um filme sobre a máfia, no qual não economizam rios de sangue. Repito, quando pode, a máfia prefere as operações discretas, que não chamam a atenção. Eis a razão pela qual o estrangulamento se afirmou como a principal técnica de homicídio da Cosa Nostra. Nada de tiros, nada de barulho. Depois de estrangulada, a vítima é dissolvida em um barril de ácido, em seguida esvaziado num poço, num canal de escoamento, ou num lixo qualquer.
(…)
Além da crueldade gratuita da Cosa Nostra, eu gostaria de esclarecer outro lugar-comum, muito divulgado e até mesmo exaltado por certo tipo de literatura. Trata-se dos chamados rituais de morte. É comum pensar que existe uma espécie de hierarquia das punições com base na gravidade das faltas cometidas, e uma classificação da violência segundo o nível de periculosidade que a futura vítima apresenta. É um erro.
Não há dúvida, por exemplo, de que um mafioso, quando quer intimidar uma construtora, começa fazendo ir pelos ares uma escavadeira. Sendo uma empresa de limpeza urbana, tocará fogo num caminhão. Mas, se depois de discutido com o capo di famiglia for preciso eliminar alguém – um inimigo, um rival, um concorrente – o mafioso terá diante de si somente uma possibilidade. Se tiver condições de se aproximar da vítima – amigo ou conhecido –, o golpeará de surpresa, fazendo o cadáver desaparecer em seguida (a melhor solução, porque deixará dúvida sobre o autor do assassinato e o destino da vítima). Se, ao contrário, não tiver como se aproximar da vítima, caberá a ele encontrar a melhor maneira para eliminá-la, expondo-se ao menor risco possível. O camicase não é um modelo em voga entre membros da Cosa Nostra. Um homem de honra deve fazer seu trabalho sem se arriscar ou colocar em risco a sua famiglia; o fascínio mórbido pelo suicídio ou pelo próprio sacrifício não faz parte da sua bagagem cultural.
Como eu disse, o principal problema para quem recebe ordem para matar ou sinal verde, em certo sentido, é colocar-se em contato, aproximar-se da vítima. Não é fácil: nos sicilianos, e ainda mais os mafiosos, o perigo sempre iminente aguça sua percepção; são desconfiados por natureza.
(…)
Outros homicídios famosos demonstram o extraordinário pragmatismo e a capacidade de adaptação da Cosa Nostra, e confirmam, mais uma vez, que não existem categorias predeterminadas de reação aos diversos tipos de crime. Nem para os consumados internamente, nem para os externos.
Salvatore Inzerillo, valoroso capo della famiglia palermitana de Uditore, foi morto por uma rajada de Kalashnikov, em 1981, enquanto entrava no seu carro blindado. O comissário Ninni Cassarà, em 1985, foi cortado por uma rajada de metralhadoras enquanto subia os degraus que separavam seu carro blindado do portão de sua casa. Em 1983, o juiz Rocco Chinnici foi pelos ares com a explosão de um carro recheado de dinamite, estacionado em frente a sua casa. Em 1985, o comissário Beppe Montana morreu com um único tiro de pistola, disparado quando voltava de um passeio de barco. Estava desarmado.
Cada um foi atingido num momento do dia e num local em que pareciam mais vulneráveis. Somente considerações estratégicas e técnicas determinam o tipo de homicídio e de arma a serem empregados. Com uma pessoa que se locomove usando carro blindado, como Rocco Chinnici, é comum se recorrer a métodos espetaculares.
Sobre esse escrito foi escrito: “Eles o eliminaram à libanesa para aterrorizar Palermo.” Na realidade, eles o mataram da única forma possível, causando cinco mortes e destruindo uma dezena de automóveis, porque Chinnici era muito prudente e atento quando se tratava da sua segurança pessoal. Aprendemos a refletir de modo sereno e laico sobre os métodos da Cosa Nostra: antes de atacar, a organização sempre realiza um estudo sério e aprofundado. Por isso, é muito difícil pegar um mafioso com a mão na massa. Contam-se nos dedos de uma das mãos os que foram presos em flagrante delito: Agostino Badalamenti, por exemplo, surpreendido com uma pistola nas mãos, por algum tempo conseguiu fazer-se passar por pouco, antes de ser condenado, já que sua mente era perfeitamente sã.
Giovanni Falcone* (com Marcelle Padovani), Coisas da Cosa Nostra, 1991 (ed. Rocco, 2012).
* Morto pela Cosa Nostra por meio de explosivos detonados na estrada. Com ele, a esposa e três policiais que faziam a escolta.
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