Atlas Bar, onde gostaríamos de encher a cara

Extraído da edição 76 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Fechamos este texto na sexta-feira à tarde, portanto não estranhem o conteúdo na segunda pela manhã.

Até porque 9h da manhã em Brasília são 20h em Singapura (com s), onde gostaríamos de estar – com ou sem chiclete – neste momento. Mais especificamente no imponente Parkview Square, mais especificamente no Atlas Bar.

Primeiro, o edifício. Inspirado no Chanin Building – este construído no fim da década de 1920 em Nova York –, o Parkview exala uma sofisticação art déco parte Gatsby, parte Gotham City, parte banda de jazz, parte Bioshock, parte possível excesso brega porém saudável.

Com 144 metros de altura, é apenas o 80º prédio mais alto de Singapura, mas certamente um dos mais fascinantes. Fica pertinho (5 minutos de carro, segundo o Google) do megalomaníaco Marina Bay Sands, um complexo difícil de resumir, fácil de enxergar e propício a gastar dinheiro – isto é, se você tem algum. O Parkview Square ficou pronto em 2002.

Nele, brilha o Atlas Bar, mais bem representado por imagens do que por palavras (aliás, mais fotos no Cool Hunter, de onde tiramos a primeira). Ele é, enfim, o bar onde gostaríamos de encher a cara elegantemente.

E é isso aí. A Enclave de hoje é bastante autoexplicativa.

Ok, é claro que dinheiro não traz necessariamente elegância (“a arte de não se fazer notar aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir”, Paul Valéry), o que não significa que ele a impeça. O Atlas Bar é o tipo de ambiente que faz você querer se vestir como um personagem de Mad Men; sua imponência intimida com reverência, não desdém.

E aquele acervo…

O bar dispõe de um dos maiores acervos de gin (com n ou m) do mundo, talvez o maior. É tão grande que os funcionários têm que basicamente voar para pegar certas garrafas (ou tinham, não sei confirmar se essa logística permanece). Entre as raridades, há até champanhe resgatado de naufrágio (e servido no Titanic, mas não resgatado de lá – aliás, eis aqui um belo vídeo do acervo do Atlas).

Mas esses materiais estupidamente caros nos interessam menos. Os apenas muito caros nos cativam mais, então quem dera sentar-se nesse salão espaçoso, sentir-se um espião na Guerra Fria (em plena “Disneylândia com pena de morte“) e saborear um lindo, refrescante e inflacionado whisky sour sob a meia-luz dos desejos – caros demais, distantes demais, inconvenientes demais – materializados.

Ah, segundo o site oficial, é proibido entrar de bermuda e/ou chinelo.

Baú: Sérgio Cabral

Extraído da edição 76 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

(…) Assim, no dia 10 de julho de 1958, João Gilberto estava no estúdio gravando Bim-bom e Chega de saudade. Ou melhor, terminava, finalmente, a gravação, pois os depoimentos do pessoal envolvido no disco só discordavam sobre o número de dias que os músicos tiveram de voltar ao estúdio para que tudo saísse exatamente como João Gilberto queria. Para o baterista Juquinha, a gravação durou um mês. Começou pela insólita (para os padrões da época) exigência de ter um microfone para a voz e outro para o violão. O arranjo de Tom Jobim para Chega de saudade, embora bem mais leve do que o que escrevera para o disco de Elizeth Cardoso (a partir da introdução, com o predomínio da magistral flauta de Copinha), foi “aparado” diariamente por João Gilberto. Vários compassos de violino, viola e celo desapareceram do arranjo. Mas João não ficou satisfeito nem com o pouco que restou: quando entravam as cordas, ele fazia aquela cara típica de quem ouve, por exemplo, o som de uma faca afiada tentando cortar uma pedra. Tudo indicava que se arrepiava todo. Para Tom Jobim foi um exercício de paciência muito importante para as gravações que estavam por vir. Mas, para João Gilberto, o que ficou foi uma lembrança cheia de ternura, como revelaria à revista Veja, logo depois da morte de Tom: “Lembro-me dele na gravação de Chega de saudade. Ele estava na cabine e eu no estúdio. Tom estava olhando. Tinha os olhos emocionados, entusiasmados”.
O disco foi lançado pela Odeon no suplemento de agosto de 1958. Algumas versões do lançamento são bastante conhecidas, como a reação de Osvaldo Guzonni, chefe de vendas de São Paulo, que convocou os demais vendedores para ouvir o disco de maneira pouco ortodoxa: “Ouçam a merda que o Rio de Janeiro nos manda”. Depois da audição, espatifou o disco no chão. O curioso é que foram feitas tentativas para desmentir o fato, mas o próprio Guzonni se encarregou de confirmá-lo inúmeras vezes, sempre rindo muito da gafe que cometera.

Sérgio Cabral, Antonio Carlos Jobim: uma biografia, 2008 (Ed. Lazuli; Companhia Editora Nacional).

Sandro Moser: Cartas na rua

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


No começo da carreira convivi com um jornalista da antiga que tinha fama (exagerada) de polemista e vivia em guerra aos leitores que escreviam cartas à redação. “Escrever para um jornal é a pior forma de solidão”, repetia. Sua rotina sadomasoquista começava com desaforos matinais aos críticos até o dia em que desafinou com a pessoa errada (“vá chupar o pau do Felipão”), o que lhe custou o emprego.

Em geral, os leitores são odiados pelas publicações. Em especial, quando cobram erros e posições. Não acontece neste RelevO, que, se pudesse, levava cada um de seus leitores para jantar fora. Aqui, não há a figura do editor que responde as reprimendas com ironia arrogante. A maioria das publicações que precisam de assinantes mantém um.

Em revistas como Mad, Placar e Piauí — para falar de tempos e públicos diferentes —, a voz que confrontava os leitores era uma das mais lidas. No Pasquim, Henfil e Jaguar, estrelas da companhia, faziam este trabalho.

O RelevO terceiriza a função ao seu ombudsman, órgão impessoal e transitório, que deveria fazer a defesa dos interesses dos leitores expressos principalmente em suas cartas, mas hoje falha por inépcia e preguiça. 

Na edição de novembro, porém, uma carta se destaca. A leitora Rosilene Gomes, com a gravidade de sua prosódia lusófona, faz a pergunta fatal: “Boa tarde !! podes me dizer o que é o Relevo ?”

Que grande questão. Existencialismo no Estácio. Não pode ficar sem resposta. 

Em parte, o editorial se ocupa de respondê-la: um jornal literário sem mecenas e que não encosta em dinheiro púbico. E que, portanto, não precisa lamber botas e puxar sacos. Nem se fazer de descolado para agradar ninguém. E que às vezes (pode, por que não?) é paneleiro, desagradável, pornochanchável. Abre páginas para quem não escreveria em nenhum outro lugar e fecha para quem mais queria aparecer. 

É uma amálgama desigual que mistura textos de hierarquia como os de Ranieri Carli, Racuel de Queiroz e do grande Rodrigo Madeira a outras prosas mais juvenis. Assim é que deve ser à “moda do lobo, sem amigos, sem mulher e filhos”. Termino destacando as páginas das duas poetas Julia Raiz e Maria Luiza Artese, que me foram apresentadas aqui e torcendo para que este ano de merda termine sem matar mais amigos meus.

Polvos!

Extraído da edição 75 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


I’d like to be under the sea
In an octopus’ garden in the shade

Quando alguém recomenda um documentário da Netflix, torcemos o nariz. Não é preconceito, é heurística defensiva. A Enclave abriu uma exceção para Professor Polvo (2020) por gostar muito de polvos, embora nunca tenha encostado em um (muito menos comido).

Polvos são animais absolutamente fantásticos. Adaptam-se de maneira inacreditável, pois mudam de forma e de cor; regeneram-se; produzem e soltam tinta; movem-se com elegância (nadando ou caminhando); são discretos e mortais como um espião em plena guerra e dispõem de uma capacidade assustadora de aprendizado.

Em razão de todos esses atributos, nossos cefalópodes favoritos protagonizam fugas extraordinárias: basta fuçar o Youtube. Como o polvo Houdini; o que vai do balde à água; o que sai da garrafa de cerveja e o que surpreendeu os pesquisadores (olha só, existe uma Octolab TV…). Também podemos ver um polvo – a princípio – sonhando.

Tragicamente, polvos vivem muito pouco: machos sobrevivem poucos meses após o acasalamento; fêmeas morrem após os ovos chocarem – são dezenas de milhares, em um processo que leva meses, durante o qual ela se concentra em protegê-los e não se alimenta. Se o conhecimento passasse entre gerações, quem sabe hoje a humanidade louvasse apenas Cthulhu.

Enfim, o documentário. Chegamos atrasados a ele, mas isso não nos incomoda. Professor Polvo, afinal, acompanha um sujeito que ganha a confiança de um polvo, um ser notavelmente antissocial. Melancólico – e, agora, motivado –, Craig Foster passa a mergulhar diariamente na Baía Falsa, próximo à Cidade do Cabo, África do Sul, para visitar a nova amiga.

Uma resenha positiva com a qual compactuamos pode ser lida no Plano Crítico (e uma de espantosa má vontade, no Papo de Cinema). Da primeira, extrairemos este parágrafo:

A impressão que temos ao assistir Professor Polvo é a de que estamos mergulhando junto com ele. Sem cair no sensacionalismo típico das produções documentais voltadas ao desvendar da vida marinha e suas espécies, o documentário é pura poesia e se aproxima muito do trabalho realizado em Oceanos. Não há momentos frenéticos, tampouco ferrões musicais para acompanhar a passagem dos tubarões que ocasionalmente aparecem para os seus rituais de caça. Aqui, a beleza está na observação do polvo, suas estratégias de caça, numa narrativa que busca acompanhar o seu processo ainda ‘minúsculo’ até a fase adulta, com o desfecho de sua vida por causas naturais. Há momentos de tensão, principalmente quando uma espécie de tubarão decide escolher o tentacular animal como parte de sua dieta, mas não é preciso dizer que o nosso ‘protagonista’ sai vivo da situação e se permite ser parte da encenação desta produção audiovisual que é um primor em seus requisitos estéticos.

Entre uma ou outra pieguice (nada abusivo), contemplamos um documentário de imagens belíssimas e cenas tão impactantes que, não tivessem sido capturadas, poderiam soar como história de pescador (e não mergulhador). Além disso, o protagonista é bastante sóbrio. Isto é, o humano. Não posso falar pelo polvo.

O fato de Foster ser diretor de cinema (antes mesmo deste documentário, cuja direção nem é dele, mas de Pippa Ehrlich e James Reed) certamente o ajudou a manejar a câmera em contextos extraordinários. Aliás, ele começou a mergulhar na região em 2010: Professor Polvo levou dez anos para ficar pronto.

Eis um filme, enfim, capaz de aquecer corações machucados e despertar cabeças cansadas.

Aliás, a criatura esplêndida na imagem de abertura deste texto (alta resolução aqui) é um polvo-lençol. Neste vídeo podemos ver um em movimento: apesar da ausência de trilha sonora, ele parece dançar uma valsa de Strauss.

Baú: Nassim N. Taleb

Extraído da edição 75 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há vezes em que gosto de ser enganado pelo acaso. Minha alergia à tolice e à verborragia se dissipa quando se trata de arte e poesia. Por um lado, tento me definir e me comportar oficialmente como uma pessoa hiper-realista e direta esquadrinhando o papel do acaso; por outro, não tenho escrúpulos em condescender com todo tipo de superstição pessoal. Onde traço o limite? A resposta está na estética. Algumas formas estéticas apelam para algo genético em nós, quer se originem ou não de associações aleatórias ou de simples alucinações. Alguma coisa nos genes humanos é profundamente tocada pela nebulosidade e ambiguidade da linguagem; então, por que lutar contra isso?
(…)
Até mesmo os economistas, que em geral encontram meios abstrusos de escapar completamente da realidade, estão começando a compreender que o que nos faz pulsar não é, necessariamente, o contador que temos dentro de nós. Não precisamos ser racionais e científicos quando se trata da vida diária – apenas nas coisas que podem nos causar mal e ameaçar nossa sobrevivência. A vida moderna parece nos convidar a fazer o oposto: nos tornar extremamente realistas e intelectuais quando se trata de assuntos como religião e comportamento pessoal, e tão irracionais quanto possível quando se trata de mercados e assuntos comandados pelo acaso. Tenho encontrado colegas, gente “racional”, direta, que não compreende como adoro a poesia de Baudelaire e Saint-John Perse ou escritores obscuros (e muitas vezes impenetráveis) como Elias Canetti, Borges ou Walter Benjamin. Contudo, ficam vidrados ao ouvir as “análises” de algum guru na televisão, ou ao comprar ações de uma empresa sobre a qual não sabem absolutamente nada, com base em dicas de vizinhos que dirigem carros de luxo. O Círculo de Viena, ao destroçar a filosofia verborrágica estilo Hegel, explicava que do ponto de vista científico era puro lixo, e do ponto de vista artístico era inferior à música. Preciso dizer que acho Baudelaire muito mais agradável do que o noticiário da CNN ou George Will.
Há um ditado iídiche que diz: Se sou forçado a comer porco, que seja da melhor qualidade. Se vou ser enganado pelo acaso, melhor que seja do tipo mais belo (e inofensivo).
Nassim Nicholas Taleb, Iludidos pelo acaso, 2004 (Ed. Objetiva, 2019).

Os hiperlinks de Nabokov

Extraído da edição 74 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Fogo Pálido (1962), de Vladimir Nabokov, é um dos livros favoritos desta newsletter. Sua estrutura pode parecer pouco convidativa, mas sua leitura é proporcionalmente encantadora. Trata-se de um romance dividido em quatro partes: prefácio; poema (“Fogo pálido”) de 999 versos; comentário ao poema e índice remissivo.

O personagem John Francis Shade assina a obra poética; o personagem Charles Kinbote, as outras. Acontece que Shade foi assassinado logo antes de completar o milésimo e derradeiro verso de “Fogo Pálido”. Kinbote, seu autointitulado “amigo íntimo, consultor, editor e comentador literário”, responsabiliza-se por analisar a obra.

A partir disso, testemunhamos a epítome do narrador pouco confiável, uma constante carta na manga de Nabokov (vide O olho e A verdadeira vida de Sebastian Knight).

Afinal, Kinbote é um comentador histriônico. Oriundo da fictícia Zembla, ele enxerga no poema – apesar de “deliberadamente e drasticamente escoimado de minhas contribuições” – referências claras à sua terra natal, convicto de ter convencido um entediado Shade a incluí-las.

Esses elementos compõem as dores e delícias de Fogo Pálido, livro capaz de fornecer mais dúvidas do que certezas. Engraçado, trágico e cheio de detalhes (o índice remissivo não deve ser ignorado), o romance nos lega outra dúvida: como lê-lo? Afinal, versos levam a notas, que levam a outros versos ou notas, que etc. Dispomos de vários caminhos!

Fogo Pálido não é simplesmente “não linear” – o curso tradicional de leitura não é necessariamente menor que qualquer outra abordagem. Como bem definiu Espen Aarseth, o livro é muito mais multicursal – a exemplo da (hipertextual) navegação na internet.

Não por acaso, Ted Nelson, criador do termo “hipertexto”, tentou adaptar Fogo Pálido a um formato de hiperlinks em 1969, na busca por fornecer uma demonstração do fenômeno que ele havia registrado em 1965: “permita-me apresentar a palavra ‘hipertexto’ para significar um corpo de materiais escritos ou pictóricos interconectado em uma maneira tão complexa que não poderia ser convenientemente apresentada ou representada em papel”.

Hoje, existem pelo menos seis versões hipertextuais de Fogo Pálido, de acordo com Simon Rowberry, professor da Universidade de Stirling. Páginas na internet permitem navegar por meio de cliques entre as notas fornecidas por Nabokov (aqui um exemplo).

Rowberry também é responsável pelo gráfico na abertura deste texto (em alta resolução aqui), que salienta as conexões internas do romance. Segundo ele, há 504 referências explícitas na obra: 37% delas levam ao poema; 63%, a outras notas.

Nabokov costurou Fogo Pálido com engenhosidade abismal. Isso por si só não transformaria o romance em uma obra-prima: é necessário conteúdo para corresponder a essa forma. Mas este lado – que malemal pincelamos – ficará para outro dia. Adiantamos que, sem dúvidas, trata-se de uma obra-prima.

Baú: Nelson Gonçalves

Extraído da edição 74 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

PLAYBOY – Mas foi em São Paulo que você foi preso.
NELSON – Foi, mas a intenção era parar. Fui, primeiro, para um hotel. Depois, comprei uma casa no Parque Continental, em Osasco. Em seguida, comprei uma casa no Brooklin. Fui preso nessa casa, em 1965.
PLAYBOY – Como aconteceu?
NELSON – A pessoa de quem eu comprava o pó me denunciou. Deixei de comprar dele e ele então foi à polícia, dizendo que eu tinha um quilo de cocaína em casa e que estava vendendo, o que era mentira. Os policiais arrombaram minha porta e me algemaram. Fiquei uma noite na delegacia e no dia seguinte fui para o Presídio Tiradentes. Um ou dois meses depois fui a julgamento e ficou esclarecida a história. Pude provar que não era traficante. De lá fui fazer tratamento numa casa de saúde e depois fui para casa, onde fiquei me recuperando.
(…)
Aluguei uma casa na Rua João Moura, em Pinheiros, me tranquei no quarto e joguei a chave pra minha mulher. Recebia a comida por baixo da porta. Se não fosse assim, ia cheirar de novo. Com acompanhamento médico, ficava o tempo todo dopado, para o meu organismo reagir à abstinência da droga. Amarguei o inferno durante seis meses. Dormia, no máximo, uns 20 minutos por noite, e ainda assim sentado. Até que um dia comecei a melhorar. Cheguei a dormir três horas seguidas. Comuniquei ao médico, que veio em casa e me receitou outros calmantes. Aí dormi bem, pela primeira vez em muito tempo. Acordei umas 6 da manhã, fui até o quintal e vi um padeiro entregando o leite, uma mulher varrendo a calçada. Foi a visão mais linda que eu já tive. Comecei a chorar. Pensei: “A vida está aqui”. Ganhei uma alma nova. Passei a fazer uns 20 shows por mês. A música foi minha terapia.
Nelson Gonçalves, entrevista à revista Playboy, 1998.

Sandro Moser: Só dói quando eu rio

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma das prerrogativas da minha função neste RelevO é ler todas as letras publicadas em suas 24 páginas de papel-jornal. Uma espécie de tara, manifesta na infância, me faz começar sempre pela última. A edição de outubro, portanto, “abre” com o lindo rondó de Paulo Cesar Pinheiro, musicado por Breno Ruiz. Já vale o ingresso. E me lembrou de um episódio com o poeta há algumas encarnações. 

No fervor dos vinte anos, esperando a hora de embarcar em algum dos grandes aeroportos do país, avistei o PCP. Na época, sua música fazia a minha cabeça — e confesso que ainda hoje faz. Com a coragem do tigre moço (e bêbado), anunciei-lhe, grave: “Poeta, estou indo a Cuba me integrar à revolução”. Ele entrou na brincadeira e respondeu: “Vá, mas volte. Pois o Brasil ainda está por fazer”. 

Desde então, este sentimento me persegue. De que tudo ainda está por fazer e a gente nem começou. Como quando a mudança desce da Kombi. Seria a hora de descansar, mas ainda é o momento do trabalho pesado. Enfim, só o jornal de papel proporciona estes momentos proustianos. O fato de o RelevO seguir de pé, depois do tiroteio de agosto e setembro, é sinal que algo está sendo feito. Mas vamos lá!  

Um leitor (Luiz Cláudio Lins) reclama da qualidade do projeto gráfico, demasiado amadora para seu gosto. Concordo em partes. Em algumas momentos, a diagramação é brilhante. Em outros, claramente apressada e desleixada. Imagino que colaboradores amorais como eu, que retardam o fechamento da edição até o último segundo, sejam uma das causas. De resto, o caos não me incomoda, mas entendo o desconforto do leitor. 

Na página 6, há um oportuno perfil do grande Adão Iturrusgaray ilustrado por seu genial material. Ótimo gancho com a questão do Abaporu. Texto bem feito, nas regras da arte. Faz sentido a presença de um humorista de escol, pois notei que o periódico está cada vez mais aberto ao humor. Vocês também flagraram esta “pasquinização”? Ou sempre foi assim e eu que ando meio desatento? 

Mesmo que na última linha do editorial o jornal diga que “está difícil rir de 2020”, com a paciência do corno contei quase 30% da edição ocupada com textos satíricos. Não é pouca coisa em um jornal que, até onde me lembro, se orgulhava de seus ensaios literários e de publicar ficção e poesia. 

Quem sabe, nosso editores estejam usando a lógica invertida do grande Nelson Sargento que diz que o “samba é triste para que a gente não seja”. De resto, são merecidos os elogios dos leitores à Enclave, que está redondíssima. Me despeço dizendo que vale a pena procurar o material do Algum Lucas na internet e que queria ler mais poemas lúbricos de Jess Carvalho.

Brasília, poema sinfônico

Extraído da edição 73 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Ainda encantado com a música brasileira, deparei com um evento até então desconhecido para meu limitado repertório. Diante de minha surpresa, consultei alguns amigos para averiguar se fui o último no planeta a conhecer Brasília: Sinfonia da Alvorada (1959). Concluí que a descoberta, mesmo longe de obscura, é suficientemente esquecida para justificar meu espanto.

A obra, pois, consiste em um poema sinfônico escrito por Vinicius de Moraes e composto por Tom Jobim. A criação foi incentivada (mas, tecnicamente, não encomendada) por Juscelino Kubitschek – em razão da inauguração de Brasília (DF), em 1960. Ela é dividida em cinco movimentos: I. O planalto deserto; II. O homem; III. A chegada dos candangos; IV. O trabalho e a construção; V. Coral.

O LP, gravado em 1960 e lançado em 1961, teve encarte de Oscar Niemeyer, que já havia trabalhado no cenário da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius (a mesma que virou filme, teve trilha sonora de Jobim e cujo longa-metragem inspirou Bong Joon-ho). Na gravação, a voz que declama é do próprio Vinicius.

Curiosamente, a sinfonia só foi apresentada ao público em 1966, na TV Excelsior. Em Brasília, isso aconteceu apenas em 1986 – seis anos após a morte do Poetinha. Para contextualizar a criação, passo a palavra ao próprio Vinicius de Moraes, em relato disposto no encarte da obra. (Quem quiser ir mais a fundo pode ler esta dissertação).

Esboçado o plano da obra, partimos para Brasília a fim de estruturar temas e poemas em contato humano  com  a  cidade.  Hóspedes  do  “Catetinho”,  hoje  tombado  como  monumento  histórico,  olhávamos  de  nossa  sala-de-trabalho  –  a  mesma  em  que  o  Presidente  Kubitschek  assinou  seus  primeiros  atos  na  nova  capital  –  a  silhueta  quase  sobrenatural  da  cidade  na  linha  extrema  do  horizonte,  recortada  contra  auroras  e  poentes  de  indizível  beleza.  De  madrugada,  enquanto  víamos congelar-se no ar frio o jato ascencional do Boeing-707, escutávamos também o piar das perdizes  e  dos  jaós,  entre  as  surdas  rajadas  intermitentes  do  vento  do  altiplano.Havia  em  nós  essa  tristeza  que  nasce  da  beleza,  e  pavilhávamos  os  capões  de  mato  com  a  sensação  do  irremediável do tempo. Jobim, caçador experimentado e velho piador de pássaros, arremetia mais longe  do  que  eu.  Eu  voltava,  a  partir  do  lindo  ôlho  dágua  do  pequeno  bosque,  para  os  meus  intermináveis passeios na alpendrada do “Catetinho”, onde ficava a pensar o texto da Sinfonia e a esperar a comida simples e gostosa que nos dava “a patrôa” de Luciano, o caseiro: o mais antigo funcionário  de  Brasília.  Apraz-me  dizer  nunca  ouvi,  ao  longo  das  horas  em  que  Antonio  Carlos  Jobim mergulhava no mato, um só tiro perturbar o silêncio das velhas planuras. É minha impressão que o músico perdeu a coragem de chumbar seus coleguinhas alados, mesmo quando constituam ótimo comestível, como é o caso das perdizes.
(…)
Dez  dias  ficamos  assim  no  “Catetinho”,  nesse  dolce  far  niente  de  fazer  uma  Sinfonia,  com  sentinela à porta, pois a princípio os numerosos turistas punham sempre o nariz na vidraça para constatar  como  íamos  de  trabalho. (…)
Falei em piano. É fato. João Milton Prates providenciou-nos um piano que veio de Goiânia. Ajudados por Luciano e três candangos, nós o subimos a braço para o “Catetinho”, com mais mêdo de que seus degraus cedessem ao pêso do que de um enfarte do miocárdio. Naturalmente, pois o “Catetinho” é hoje um monumento histórico, e a estátua do Fundador de Brasília parecia apreensiva, sôbre o seu pedestal no terreiro em frente, com os resultados de nossa operação.

O assunto ressurgiu em entrevista de Tom Jobim a Jô Soares, em 1993 (um ano antes de o músico morrer). Jobim respondeu sobre Brasília: Sinfonia da Alvorada:

“Eu nunca escuto. Mas quando escuto, parece uma piada. Diante do que está lá… Aquele sonho do Vinicius [de Moraes], Juscelino [Kubitschek], Oscar Niemeyer; a gente acreditando, querendo o Brasil e coisa e tal… A gente fez aquilo tudo com um amor danado. Fala no planalto deserto, na chegada do homem, naqueles campos bonitos do senhor; a gente brincando nos campos do senhor. E era muito bonito. Hoje em dia, quando vejo Brasília, fico um pouco nostálgico, entristecido.”

Brasília: Sinfonia da Alvorada está disponível no Spotify e no YouTube: I, II, III, IV e V.

Oscar Niemeyer, Vinicius de Moraes, Lila Bôscoli e Tom Jobim nos bastidores da peça Orfeu da Conceição.

Baú: Michael Lewis

Extraído da edição 73 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Greg Lippmann imaginou o mercado hipotecário subprime como um grande cabo de guerra financeiro: em uma ponta estava a máquina de Wall Street provendo os empréstimos, empacotando os títulos e reempacotando os piores títulos em CDOs. Quando ficou sem empréstimos, essa máquina criou falsos títulos do nada. Na outra ponta, seu nobre exército de vendedores a descoberto apostou contra os empréstimos. Os otimistas versus os pessimistas. Os fantasiosos versus os realistas. os vendedores de CDSs versus os compradores. Os errados versus os certos. A metáfora estava certa até certo ponto: este ponto. Agora, a metáfora era de dois homens amarrados dentro de um barco, lutando até a morte. Um homem mata o outro, empurra seu corpo inerte lançando-o ao mar – somente para descobrir que ele mesmo foi puxado para fora. “Operar vendido em 2007 e ganhar dinheiro com isso foi divertido, porque éramos os ‘vendidos bandidos‘”, disse Steve Eisman. “Em 2008, era o sistema financeiro inteiro que estava em risco. Ainda operávamos vendido. Mas você não quer que o sistema quebre. É como se o dilúvio estivesse prestes a acontecer e você fosse Noé. Você está na arca. Sim, você está bem. Mas não está feliz olhando para o dilúvio. Este não é um momento feliz para Noé”.

Michael Lewis, A Jogada do Século (The Big Short), 2010. Ed. Best Seller, 2011.

Syd Mead, futurista visual

Extraído da edição 72 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando o ilustrador Syd Mead morreu, em 30 de dezembro do ano passado, a Enclave estava parada. Do contrário, não teríamos deixado passar.

Mead é, direta ou indiretamente, um dos grandes arquitetos do imaginário popular do século passado. Sua influência reverbera interminavelmente, e muito do que vemos na ficção científica – por si só fonte contínua de inspiração para arquitetura, design e moda – partiu desse artista.

Americano, serviu ao exército logo após a Guerra da Coreia. Depois de retornar, graduou-se na Art Center School em Los Angeles (1959), então ingressou na Ford, onde permaneceu por dois anos. Passou as décadas seguintes prestando serviços de ilustração, design e renderização para diversas empresas do mundo inteiro.

Sua consagração no imaginário popular veio com Blade Runner e Tron, ambos lançados em 1982. Tratamos da construção do universo do primeiro na Enclave 58.

Já respeitado como designer industrial, Mead foi chamado pelos respectivos diretores (Ridley Scott e Steven Lisberger) para auxiliar com objetos (incluindo veículos) e cenários das duas narrativas futuristas. Ele já havia trabalhado em Star Trek: The Motion Picture (1979).

Como os filmes foram lançados praticamente ao mesmo tempo – 25 de junho (BR) e 9 de julho (Tron) – não sabemos em qual produção Mead trabalhou primeiro, ou se houve alguma influência direta entre um serviço e outro. Os spinners (carros voadores) de Blade Runner e as motocicletas futuristas de Tron são fruto da imaginação e dos traços do ilustrador.

Mas esses são apenas exemplos pinçados. Basta bater o olho em alguma de suas obras (recomendamos este link) para compreender a grande beleza de seus cenários, sempre envolventes em cores e detalhes. Em uma tela nítida, identificamos todo um universo vivo – e quem se inspirou nele.

Mead ainda trabalharia em diversos títulos, como Aliens, Strange Days, 2010, Elysium e Blade Runner 2049. Sua ligação com o cinema foi compilada no belíssimo livro The movie art of Syd Mead (2017), com prefácio de Denis Villeneuve.

O artista morreu aos 86 anos, em razão de um linfoma. Ele deixou um marido, Roger Servick, com quem havia se casado em 2016. Guardamos seu legado com muito carinho.

Baú: John Milton

Extraído da edição 72 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

É esta a região, o solo, o clima,
Disse o arcanjo perdido, o assento
A trocar pelo Céu, as trevas tristes
Pela celeste luz? Seja, já que ele
Que agora é soberano usa e manda
O que entende; à parte está melhor
Quem lhe igualou razão, força fez súpera
Acima dos seus pares. Adeus campos
Que o gozo sempre habita, ave horrores,
Mundo Infernal, e tu profundo Inferno
Recebe o novo dono, o que traz
Mente por tempo ou espaço não trocável.
A mente é em si mesma o seu lugar,
Faz do inferno Céu, faz do Céu inferno.
Que importa onde se eu mesmo o for,
Ou o que seja, logo que não seja
Inferior ao que deu fama ao trovão?
Aqui seremos livres; o magnânimo
Não alçou cá a inveja, nem daqui
Nos levará. A salvo reinaremos,
Que é digna ambição mesmo se no inferno:
Melhor reinar no inferno que no Céu
Servir. Mas por que deixarmos amigos,
Os sócios e parceiros da falência,
No lago do letargo aturdidos,
E não os chamar a dividir parte
Nesta infeliz mansão; ou uma vez
Sãos os braços malsãos, tentar ainda
O Céu reaver, ou mais perder no inferno?

John Milton (Paraíso Perdido, 1674, Livro 1; trad. Daniel Jonas, Editora 34, 2016).

Gang of Four e a morte discreta de Andy Gill

Extraído da edição 71 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

(Photo by Ebet Roberts/Redferns)

Semana passada, tratamos da música brasileira na primeira metade dos anos 1970 (na verdade, nos primeiros seis anos, antes que alguém nos corrija…). Hoje, lembramos um personagem da geração diretamente influenciada por aquele período musical brasileiro.

Andy Gill (1956-2020) foi guitarrista do Gang of Four, banda ícone do pós-punk, gênero/movimento em que jovens universitários descobriram sons de origem latina e/ou africana. Basta ouvir meio disco dos Talking Heads para compreender o que estou apontando (e melhor do que a minha explicação atenciosa possibilitaria).

Não à toa, David Byrne (Talking Heads) foi responsável direto pela propagação de músicos brasileiros (e não só) para grandes centros – Tom Zé talvez como o caso mais emblemático. A história pormenorizada do pós-punk foi costurada por Simon Reynolds no livro Rip it up and start again.

Mas voltando ao Gang of Four. A banda de Leeds (Inglaterra) lançou Entertainment!, seu álbum de estreia, em 1979. Esse debut é tranquilamente um dos discos mais influentes da história, ou então entre pessoas que usam guitarras, ou no mínimo entre indivíduos que compram e discutem a perenidade de discos.

Lembro perfeitamente meu primeiro contato com Gang of Four. Foi por meio de um CD gravado por um tio (e espécie de farol estético). Portanto, ainda quando se gravavam CDs. Eu tinha 14, 15 anos. Naquele CD-R havia uma espécie de guia do que eu deveria escutar ou já deveria ter escutado.

Da banda, constavam “Natural’s not in it” e “At home he’s a tourist”, e ambas me marcaram. O Gang of Four dispunha de verve, angústia política e originalidade estética. Em Entertainment!, tudo é conscientemente rústico e encaixado: trata-se de um trabalho tão próximo do disco como da poesia – isso apenas com a formação tradicional de quarteto (voz, guitarra, baixo, bateria).

Entertainment! é, acima de qualquer letra crítica ao capital, dançante; o protagonismo do baixo na estrutura de suas músicas – uma refrescante marca do pós-punk – atestava isso. E Andy Gill, de quem ainda falaremos, conseguiu desdobrar sua guitarra brilhantemente a partir disso.

A magia se repetiu – com menos efeito, mas ainda inegável qualidade (e talvez alguma inflação por parte da crítica) – em Solid Gold (1981), segundo álbum.

Conforme o tempo passava, no entanto, a banda perdia a capacidade de unir forma e conteúdo. Por fim, os discos posteriores aos dois primeiros passaram a soar cada vez mais datados, esquecíveis – e não há lista de Pitchfork que redima o mediano Songs of the free (1982), terceiro do catálogo. Seus membros pouco a pouco se dispersavam.

Com o julgamento distante, o Gang of Four parece um atacante que, depois de uma temporada extraordinária em time médio, nunca conseguiu se impor em palcos maiores (nesse caso, literalmente; que tal essa metáfora dentro de uma analogia?).

Em que pese o letramento dos integrantes, sua angústia política – a começar pelo nome, alusão à Camarilha dos Quatro da Revolução Cultural Chinesa – não se sobressaiu para além de uma revolta no mínimo mal aproveitada. (Essa é a interpretação bondosa; a maldosa veria a banda como críticos de DCE cuja fachada escondia um notável vazio.)

Então chegamos em Andy Gill. Ele chegou a produzir o primeiro álbum do Red Hot Chili Peppers ainda em 1984, e longe de mim agradecê-lo(s) por isso. Entre outras produções, reuniu-se com Jon King, vocalista original do Gang of Four, para uma retomada no início da última década.

Em 2011, lançaram um disco; em 2015, já sozinho novamente, Gill lançou outro. Finalmente, 2019 marcou seu último álbum. São todos discos decentes, e não há por que não reconhecer o mérito banhado em alívio daquilo que poderia ter sido muito pior (e, novamente, talvez tenha havido certa inflação por parte da crítica, provavelmente por gratidão, visto que o crítico musical padrão cresceu tarado por Gang of Four).

Em maio, escrevemos sobre as mortes de Aldir Blanc, Tony Allen e Florian Schneider. E simplesmente não sabíamos, àquela altura, que Andy Gill havia morrido. Com ele, o Gang of Four – em definitivo.

Oficialmente, Gill, 64, morreu de pneumonia e falência múltipla dos órgãos. O problema: ele esteve na China em novembro e começou a apresentar sintomas hoje associados à Covid-19 em dezembro. Sua esposa, a jornalista Catherine Mayer, escreveu um relato detalhado a respeito da situação. Também é possível escutá-la falar sobre o doloroso desfecho à BBC.

Os sintomas acompanharam o círculo imediato do casal e da banda – a ponto de o gerente de turnê ser internado com crise respiratória logo após retornar à Inglaterra –, porém antes de a Europa identificar esses problemas como algo novo. “É possível que nunca saibamos se a Covid-19 matou Andy, mas eu sempre saberei, em detalhes indeléveis, como ele morreu”, registrou Meyer.

Tardiamente, registramos nossa homenagem ao responsável direto por no mínimo um dos melhores discos de um período interessantíssimo da música no século 20. Muita coisa aconteceu e ainda acontece a partir do Gang of Four, cuja verve inicial transforma qualquer cínico no adolescente que abre um CD gravável pela primeira vez e, sem saber o que lhe espera, reage estupefato.