Trench coat

Extraído da edição 46 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

A relação entre guerra e moda é muitíssimo forte – nós até já providenciamos alguns exemplos na Enclave 42, e também já tratamos do fraque. Um dos exemplos mais clássicos da convergência entre esses dois campos cabe ao trench coat, aquele casacão belíssimo visto em pessoas elegantes no inverno. E em detetives sombrios, mas chegaremos lá.

trench coat (casaco de trincheira, ao pé da letra) é facilmente reconhecido: um agasalho extenso, do tamanho de um sobretudo, com duas lapelas largas, botões e um cinto que afunila a cintura de quem o veste. Tradicionalmente na cor cáqui, hoje é produzido em outras colorações (entre as alternativas mais comuns, cinza e preto).

Inicialmente concebido no início do século passado pelas marcas Burberry e Aquascutum, ambas britânicas e ambas careiras, o trench coat nasceu como item opcional do Exército Britânico. Era uma alternativa mais leve em relação ao sobretudo. Seu tecido – a gabardina – havia sido inventado por Thomas Burberry no final do século 19. Na Primeira Guerra Mundial, já foi presença constante entre os soldados britânicos.

Impermeável e provido com vários bolsos e fivelas, caiu nas graças dos soldados, que não o abandonavam após voltar das batalhas. Durante a Segunda Guerra, estava estabelecido – outros países já haviam confeccionado seus trench coats.

Sua popularização entre civis se deu por meio do cinemaHumphrey Bogart em Casablanca (1942) e Peter Sellers nos filmes d’A Pantera Cor de Rosa popularizaram de vez o item, que na década de 1960 já caía no gosto de moderninhos em geral. Você pode comprar um trench coat igual ao de Bogart na própria Aquascutum por R$4.715, por que não? Na Burberry, um modelo feminino está à venda por R$ 14.540.

A essa altura, as telonas também já haviam solidificado o gênero noir: detetives alcoólatras, art déco, femmes fatales, traições perversas. Humphrey Bogart, sempre ele, havia auxiliado na montagem do arquétipo, vide as adaptações de Falcão Maltês (1941) e The Big Sleep (1946). Passado o tempo, o trench coat se consolidou como um clichê do noir. Basta equipá-lo com um fedora, um maço de cigarros e bastante mal-humor para você se pagar de Philip Marlowe por aí.

Síndrome ACHOO

Extraído da edição 46 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Sabe aquela sabedoria popular de olhar para o Sol quando alguém não consegue espirrar? Isso realmente funciona para algumas pessoas, e essas pessoas provavelmente são portadoras da Síndrome ACHOO, acrônimo de Autosomal-Dominant Compelling Helio-Opthalmic Outburst (Síndrome Autossômica Dominante do Espirro Provocado por Exposição ao Sol), ou simplesmente Reflexo do Espirro Solar.

Essa síndrome é caracterizada por um formigamento no nariz e uma vontade incontrolável de espirrar ao olhar para uma fonte de luz muito intensa, normalmente o Sol. É uma condição genética de herança dominante, ou seja, se você tem é porque um dos seus pais também a tem. Ela vem de uma mutação no cromossomo 2. Embora não seja uma entidade clínica muito comentada, estima-se que afete por volta de um quarto da população mundial.

Essa condição já é conhecida há milhares de anos: Aristóteles, provavelmente por ser portador da ACHOO, questionava por que o Sol poderia provocar espirros. Sua teoria era que, com o calor, as narinas suavam e o espirro seria uma maneira de limpá-las. Muitos séculos depois, o físico Francis Bacon, um conhecido “espirrador solar”, desmentiu o filósofo grego ao não espirrar enquanto ficava no Sol. Sua explicação foi que o problema estava nos olhos: eles lacrimejariam ao olhar o Sol e escorreriam até o nariz, causando o espirro. O problema é que o lacrimejamento e a passagem da lágrima até o nariz são muito mais lentos do que o espirro nessas condições.

Ainda não há consenso quanto à explicação, mas hoje acredita-se que o reflexo do espirro solar seja causado por uma hiperexcitabilidade do córtex visual, a parte do cérebro responsável por processar imagens, aliado a uma ativação cruzada do nervo trigêmeo, que inerva tanto a região dos olhos quanto o nariz e a boca. Apesar de sua fisiopatologia complexa, a síndrome ACHOO é relativamente benigna, afinal, espirrar às vezes não é lá um incômodo muito grande.

O problema existe quando o espirrador solar tem alguma ocupação de risco, como cirurgião, motorista ou piloto de caça, em que um espirro pode acarretar uma MORTE. Nesse caso, como para os outros pacientes com esse reflexo, recomenda-se o uso de chapéu e óculos escuros em caso de exposição ao Sol ou a luzes fortes.

Antonio Sant’Elia

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Algumas pessoas, projetos ou fenômenos acumulam reconhecimento não somente pelo que foram, mas também pelo que poderiam ter sido. Como nas despedidas prematuras do Duna de Jodorowsky, do craque Dener e do humorista Douglas Kenney, a arquitetura – e o imaginário do século 20 como um todo – pode enxergar a morte precoce de Antonio Sant’Elia com uma lamentação bastante fundamentada.

Nascido em Como (Born in Eat), Sant’Elia estudou arquitetura em Milão. Lá, conheceu figuras como Carlo Carrà, Umberto Boccioni e Luigi Russolo, concluindo a formação de professor de desenho arquitetônico. Trabalhou como empreiteiro nas obras de um canal e passou a ter contato mais direto com questões urbanísticas, sobre as quais nunca deixou de pensar.

Com demais artistas nacionalistas e falastrões, aderiu ao Futurismo e criou o manifesto de arquitetura do movimento (1914), cujas ideias defendeu até o fim da vida. O que, na verdade, foi pouco depois disso, pois Sant’Elia morreu em 1916, aos 28 anos. Ele servia voluntariamente ao Exército Italiano e lutou contra o Império Austro-Húngaro em meio à Batalha de Isonzo, durante a Primeira Guerra Mundial.

Mas Sant’Elia é um arquiteto de legado atípico: apenas um de seus projetos foi construído Villa Elisi, 1912), o qual nem caracterizaria um one-hit wonder, pois Villa Elisi sequer dispõe de alguma notoriedade. A grande contribuição de Antonio Sant’Elia ressoa nos cenários futuristas que até hoje emulam vários de seus traços. Não à toa, Sant’Elia ficou conhecido como o arquiteto que inspirou Metropolis e Blade Runner, não por acaso entre os filmes visualmente mais influentes da história. (Estamos há zero edição sem falar em Blade Runner).

Suas contribuições mais vívidas provêm de 1913, quando passou a representar a utopia moderna com  que sonhava. Com uma delas iniciamos o texto; com algumas outras o encerramos. Interessados podem conferir todos os desenhos (sobreviventes) de Antonio Sant’Elia na página dedicada à obra deste arquiteto e no WikiCommons. É uma pena que ele não tenha vivido tempo suficiente para contribuir ainda mais com nosso imaginário de futuro.

Lista: personagem de Cavaleiros do Zodíaco ou DJ gringo que já tocou no Brasil?

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1. Apparat
2. Antal
3. Calisto
4. Earheart
5. Hito
6. Shaka
7. Kobosil
8. Kanon
9. Midgard
10. Midland
11. Nastia
12. Natassia
13. Vril
14. Parasole
15. Paracelsus
16. Paradox
17. Rhadoo
18. Radamanthys
19. Rodhad
20. Zafiri
21. Niobe de Deep

 

Personagens: 3, 4, 6, 8, 9, 12, 15, 16, 18, 20, 21 (!).
DJs: 1, 2, 5, 7, 10, 11, 13, 14, 17, 19.

Baú: Jack London

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Quando olho pra trás, vejo que amizade peculiar era aquela. Em primeiro lugar, lá estava Lloyd Inwood, alto, esguio, bem vestido, nervoso e moreno. E depois Paul Tichlorne, alto, esguio, bem vestido, nervoso e louro. Um era a réplica do outro em tudo, exceto na cor. Os olhos de Lloyd eram negros; os de Paul eram azuis. Em momentos de estresse ou de excitação o sangue que subia deixava a pele do rosto de Lloyd azeitonada, a de Paul ficava escarlate. Mas deixando de lado essa questão das cores, eles eram como um par de vasos. Ambos eram facilmente irritáveis, determinados, propensos a muito nervosismo e viviam em constante tensão. Mas essa amizade tão notável era um trio, e o terceiro era baixo, gordo, corpulento, preguiçoso e, sinto dizer, esse era eu.

Jack London, “A sombra e o raio”, 1903 (em Mil mortes e outras histórias, Penalux, 2018).

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Ricardo Lísias: Até logo!

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma ou duas colunas antes dessa, defendi a impossibilidade de um professor de literatura afirmar que um aluno estaria “lendo” um texto literário erradamente. Como disse, cada um constrói um sentido conforme muitos fatores diferentes, alguns bastante pessoais. Todo mundo, por exemplo, acaba transportando sua história de vida para a interpretação de um poema. Aceitar uma leitura, mas não outra seria, dessa forma, dizer que experiências são mais ou menos válidas. Não é possível.

Na minha opinião, pode-se corrigir apenas a redação de um aluno. Muitas vezes ele não consegue se expressar com clareza. Com algum esforço – em alguns casos com muito esforço –, o professor pode sugerir novas maneiras de escrever, sanar vícios e oferecer estruturas argumentativas mais eficazes. 

Não tenho dúvidas disso. No entanto, acabei achando meu texto incompleto. Recebi algumas mensagens com perguntas. Uma delas me deixou bastante pensativo: e se um aluno, durante uma determinada interpretação, aparecer com uma interpretação racista? O professor terá ou não legitimidade para contestá-lo?

Acredito que sim. É perfeitamente razoável a discussão sobre o uso de textos discriminatórios em sala de aula de um autor como Monteiro Lobato. Entendo os grupos que acreditam que textos dessa natureza não deveriam ser usados. Eu não os usaria em uma aula do Ensino Fundamental, por exemplo. De uma forma ou de outra, se um professor optar por levar aos estudantes um texto racista, parece claro que o assunto deve ser a priori discutido.

Mas não era disso que eu estava falando. Um aluno talvez revele sentimentos racistas ao interpretar um poema. Nesse caso, o professor pode e deve intervir, no sentido óbvio de garantir a preponderância dos direitos humanos diante de quaisquer outras questões. Aqui a construção do conhecimento se dá sempre a partir do universo prévio de cada um dos alunos. Sem dúvida, para muitos leitores desse texto já deve ter aparecido o nome de Paulo Freire.

É isso. As ideias do nosso maior intelectual não se aplicam apenas à alfabetização. Todo o processo escolar, nos seus mais diferentes graus, precisa partir do universo do próprio estudante. Dele em diante, com certeza pode haver não apenas a formação de leitores aptos a expressar seus próprios sentidos, mas para construir um mundo mais próximo do que preconiza a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Esse é meu último texto como ombudsman. Agradeço a leitura de todos. Foi divertido e instrutivo. Quanto ao ataque histérico do secretário do cardeal Ratzinger na página ao lado, acho que vou deixar passar. Segundo ele, as coisas vão começar a dar errado para mim. Aguardo ansioso esse dia. O coroinha está mal informado, mas me deixou com medo: buuuuuuuuuuuuu.

Irmãos Hitchens

Extraído da edição 45 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Christopher Hitchens

Christopher Hitchens é o grande arquétipo de intelectual moderno, um modelo de forma e conteúdo a que tantos aspiram sem sucesso. Iconoclasta, genuinamente sarcástico, independente – enfureceu direita e esquerda conforme lhe pareceu justo –, compunha sua persona com bebedeira e, principalmente, com seu sotaque inglês proferido num inconfundível barítono.

Ao longo da vida, Hitchens se destacou escrevendo para a Vanity Fair, na qual publicou perfis de personalidades como Madre TeresaPrincesa Diana e Mel Gibson. Travou por décadas uma batalha contra religiões, instituições religiosas e religiosidades em geral. Padeceu por conta de um câncer no esôfago, e suas memórias da doença formam o excelente Últimas Palavras (2012). Aleatoriamente, ele também foi babá de Olivia Wilde – os pais dela são jornalistas renomados com quem Christopher mantinha amizade.

Provocador afiado, Hitchens não fugia de debates, principalmente daqueles com temática espinhosa. Em 2008, discutiu Deus, religião, Guerra no Iraque et cetera, diante de 1.400 pessoas, com um de seus maiores oponentes, um sujeito de opiniões simetricamente opostas, contra quem já havia duelado verbalmente – e talvez até fisicamente – diversas vezes. No caso, Peter Hitchens… seu irmão mais novo.

Peter: “alguns de vocês devem saber que tenho um irmão, Christopher, que discorda de mim em quase tudo. Alguns dos que leem seus livros e artigos também sabem que eu existo, embora eles geralmente desgostem de mim quando o fazem. Mas em geral nós habitamos mundos separados – em diversos níveis. Ele é da esquerda, mora nos Estados Unidos e recentemente se tornou um cidadão americano. Eu sou da direita e, após alguns anos na Rússia e nos Estados Unidos, moro no coração da Inglaterra. Ocasionalmente nós nos enfrentamos em público“. Um bom contexto inicial.

Peter Hitchens

Hitchens vs Hitchens, irmãos Gallagher da biblioteca, é um caso que traria diversão e dor de cabeça a um psicólogo, ou a vários deles. Filhos de um oficial da Marinha Real Britânica que lutou na Segunda Guerra, ambos – ateus e socialistas na juventude – chegaram a se filiar ao Labour Party inglês. Os dois também seguiram o caminho do Jornalismo.

Peter reavaliou sua ideologia (e sua descrença) após viajar o mundo em cobertura para o Daily Express. As experiências na Tchecoslováquia, na Romênia e em Moscou o alteraram. Ele viria a abraçar a crença em Deus e defender a cultura cristã. “Um clichê de descoberta tão óbvio e universal, e também tão profundo, privado e único para ser discutido com estranhos”. Pouco flexíveis e bastante expressivos, suas desavenças duraram décadas.

“Acho que Peter e eu tivemos azar de ele nascer perto demais de mim [3 anos] para ser um irmão mais novo que precisasse de proteção, mas perto o bastante para ser um rival, esperto e duro. Certamente lembro de dizer que ele era adotado, com uma chance razoável de ele ter acreditado”, contou Christopher.

A divergência entre eles cresceu após o 11 de setembro de 2001, momento a partir do qual Christopher passou a defender a invasão americana no Iraque – o que surpreendeu a opinião pública, tendo em vista suas décadas de atuação à esquerda da discussão política. Peter levantou o assunto no Spectator, endereçando-o diretamente a Christopher. A tensão só se expandiu desde aquele momento – no debate mencionado anteriormente, em 2008, eles talvez estivessem em um pico de discórdias.

(Peter se referiria àquele encontro como um dos piores momentos de sua vida: “só me dei conta quando caminhei pelo hall e, pela primeira vez, vi mil pessoas que me odiavam. Elas não me odiavam por quem eu era; me odiavam porque para elas Christopher era uma megaestrela no filme principal, e eles tinham que sentar e me aguentar como antigamente se sentava ao longo de um filme B no cinema, antes do filme real”.)

A relação entre os irmãos Hitchens é extraordinária, ao menos para quem não participou dela. Um correspondia ao oposto do outro. Ao mesmo tempo, eles eram tão incrivelmente parecidos – isto é, não só pelos traços ou pela voz grossa, mas sim pela condição de ambos se tornarem comentadores culturais notáveis, sempre munidos por um repertório artístico extenso.

O final dessa história, na verdade, é mais bonito do que se poderia imaginar de dois cabeças-duras de alto funcionamento. Após o diagnóstico de câncer de Christopher – e do tratamento amplamente documentado por ele mesmo –, os irmãos se reconciliaram, ou ao menos conseguiram se encontrar e conviver pacificamente. Eles ainda debateriam em público em 2010, um ano antes da morte de Christopher (o que, em uma grande coincidência cósmica, ocorreu três dias antes do fim da Guerra do Iraque). O tom foi definitivamente mais amistoso naquela ocasião.

“Nós nos demos surpreendentemente bem nos últimos meses, melhor do que por cerca de 50 anos”, constatou Peter após perder o irmão mais velho.

Christopher and Peter Hitchens

Latrinas romanas

Extraído da edição 45 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Latrina romana

Você reconhece a estrutura da imagem acima? Consegue identificar o ambiente? Imagina o período a que pertence? Vejamos mais de perto.

Latrina romana

E agora, visualizou algo? Talvez algum objeto a ser encaixado, ou então algo a se puxar. Seria uma prisão, um estábulo ou algum tipo de parque? E se inseríssemos alguns personagens…

Latrina romana

Pronto. Talvez você tenha percebido de imediato, talvez você não identificasse de modo algum. Fato é que as duas primeiras fotografias dizem respeito a banheiros públicos da Roma Antiga, onde a privacidade não era lá uma grande demanda, ao menos não nesse recinto, ao menos nesse período – para um ponto de referência, pensemos em algumas décadas antes de Cristo (ou 1976 + algumas décadas antes de Francesco Totti).

Não por acaso, “latrina” deriva do latim lavatrina. Em uma cidade com quase um milhão de habitantes, pouquíssimos dispunham de banheiros privados. Além das fossas em que se despejava a urina – sobre a qual havia um imposto, afinal, dinheiro não tem cheiro –, essas latrinas públicas estavam à disposição de homens, mulheres e crianças (ao mesmo tempo!) e, mais do que ponto de alívio, serviam como espaço para conversa.

O conteúdo desprendido pelos habitantes em seus assentos de madeira caía diretamente na água. Essa água corria em direção à Cloaca Maxima, isto é, ao sistema de saneamento da Roma Antiga que tinha, ou melhor, tem seu fim no Rio Tibre. Uma imagem melhor do funcionamento pode ser conferida neste link.

E como eles se limpavam? Se você prestou atenção na terceira imagem deste quadro, viu que os sujeitos sentados carregam uma espécie de vareta. Na ponta da vareta em questão, havia uma esponja, ou então algum tecido. Isso podia ser lavado na água corrente, que se vê ao centro da imagem. Não pense, porém, que cada um tinha a sua: o uso da vareta esponjosa era compartilhado.

Em todo o caso, sempre se podia usar as mãos…

Mission Hill

Extraído da edição 45 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Mission Hill
Mission Hill: tão legal que não foi pra frente. Ou legal porque não foi pra frente?

Mission Hill foi uma animação produzida pela Warner Bros entre 1999 e 2000 por Bill Oakley e Josh Weinstein (não aquele Weinstein…), ambos promissores roteiristas de Os Simpsons à época. A série retratava o cotidiano de um grupo de amigos num bairro de uma metrópole norte-americana indefinida – uma mistura de Nova York, Boston, Portland e San Francisco. Lá, rejeitados sociais, figuras caricatas e esquisitos em geral vivem em relativa harmonia.

Os protagonistas são Andy, um jovem cartunista frustrado e despreocupado que passa seus dias bebendo, trabalhando num emprego sem perspectiva numa loja de colchões e recebendo cartas de rejeição de revistas por seus quadrinhos. Kevin é seu irmão mais novo, um gênio completamente caxias que se muda para a cidade para viver com seu irmão e sonha em entrar nas melhores universidades do país enquanto termina seus estudos numa escola onde ninguém, nem os professores, se importa com nada.

A casa onde moram ainda conta com Jim, amigo de Andy, tão doidão e folgado quanto ele, com a diferença de ter um emprego promissor enquanto jovem cool em uma empresa de publicidade. Além dele, lá vivem Posey, a amiga esotérica de yoga, massagem e vegetais orgânicos (Phoebe Buffay?) e Stogie, cachorro de infância dos dois irmãos, sequelado após anos lambendo cervejas e cigarros caídos no chão. Na vizinhança do prédio estão um casal judaico-latino de artistas ativistas com seu bebê e um casal gay tão adorável quanto briguento, dono de uma lanchonete local.

Mission Hillera diferente por representar e escarniar a contracultura e tratar com franqueza de assuntos pouco abordados em outras animações, especialmente Os Simpsons. Na maioria dos desenhos, os problemas aparecem, se desenvolvem e são resolvidos no espaço de 30 minutos, enquanto em Mission Hill os personagens se encontram em cenários sem solução clara, com angústias típicas dessa fase de transição entre a escola/faculdade e a vida adulta. Temáticas “reais demais” para os Simpsons, por exemplo.

Outro detalhe é que na animação de Matt Groening não havia personagens com idade entre crianças e adultos, e os poucos adolescentes (Jimbo e seus amigos) raramente tinham importância no enredo das histórias. Mission Hill falava a língua dos jovens esquisitos e dos descolados – e tirava onda com hipsters antes disso se tornar a thing. Continha referências diversas e sutis – de Beck a Kafka ao Plano 9 do Espaço Sideral –, além de ser visualmente muito bonita. A trilha de abertura era da banda Cake.

Mission Hill
Esteticamente, a série também fugia do padrão, com uma paleta de cores fluorescentes e contornos maldefinidos.

Mesmo com tudo isso, a série não durou nem um ano, sendo cancelada antes mesmo de completar uma temporada. Então o que deu errado? Os produtores Oakley e Weinstein culpam a Warner: na época, o canal ainda buscava uma identidade e, na tentativa de brigar com os concorrentes, colocou Mission Hill no horário nobre, junto de programas como The Jamie Foxx Show e The Steve Harvey Show, que em nada se assemelhavam ao humor absurdo e melancólico da animação.

Com audiência péssima para o horário, foi rápida e completamente descartada: a série foi cancelada antes de terminar a produção de sua primeira temporada, e antes mesmo de serem exibidos todos os episódios que haviam sido produzidos. (À Firefly!

Todos queriam ter seu próprio Simpsons, e com isso a Warner Bros ignorou a proposta de Mission Hill de ser uma alternativa à família amarela, e não um competidor. A série só voltou à TV anos depois, com o bloco de desenhos-que-não-são-para-crianças Adult Swim, onde de fato se encaixava. No Brasil, foi transmitida no Adult Swim pelo Cartoon Network entre 2005 e 2008, junto de outras animações excêntricas como OblongsClone HighHarvey, O Advogado e Os Universitários.

Atualmente, é fácil encontrar todos os 13 episódios no Youtube – aqui ou aqui –, e assim Mission Hill sobrevive com seu pequeno culto de seguidores. Legal, honesto, diferente demais para seu tempo, uma joia que não teve sua chance de brilhar, mas que permanece ainda mais especial por conta disso.

Lista: som ambiente com temática Blade Runner para ouvir no fone de ouvido enquanto trabalha

Extraído da edição 45 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

1. Blade Runner Ambience Sounds Of The City 2019 (By Curtis8516)
2. Blade Runner Blues | Balcony Ambience
3. Blade Runner Meditative Ambience with City Sounds
4Space Ambient – Blade Runner – Rachel’s Song 800% Slower
5. Blade Runner Ambient Deckard’s Apartment Sound for 12 Hours
6. 3 HOURS BLADE RUNNER 2017 RAIN THUNDER & MUSIC with BLACKSCREEN
7.  The Future of 2049 – Space Ambient – Blade Runner 2049 Unofficial OST
8. Blade Runner – Sounds of the city (AMBIENCE)
9. Bladerunner City Downtown ASMR Ambience
10Haloed – Off-World (Full Album) [Blade Runner Soundtrack Remix Album]
11. “Memories of Green” from Blade Runner (1982) by Vangelis – 800% Slower
12. White noise, rain, city ambiance – Cyberpunk cityscape (1 hour)
13. 1 hour of Blade Runner Main Titles (2300% slower)
14. Blade Runner, Rain, and Police Scanner – Dystopian Dream Sounds for Sleep – 2 hours
15. Futurescape – 1hr Ambience, Inspired by Blade Runner & Cyberpunk 
16. Blade Runner 2049 – Tears In The Rain Slowed Extended
17. Yukon Hotel – 1 Hour Blade Runner Ambience – ASMR
18. “Fading Away” from Blade Runner (1982) by Vangelis – 800% Slower
19. Brown noise, cold rattle, train, oscillating fan – Cyberpunk cityscape (1 hour)
20. Vangelis – Love Theme from Blade Runner (Time-stretched x8)

Ou vá direto à playlist!

Baú: Harry G. Frankfurt

Extraído da edição 45 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Mentir e blefar são formas de embuste ou de logro. Assim, o conceito mais fundamental que caracteriza uma mentira é o de falsidade: o mentiroso é, em essência, alguém que divulga de propósito uma falsidade. O blefe, também, transmite uma coisa falsa. Entretanto, de forma diferente da mentira pura e simples, ele é mais um caso de tapeação que de falsidade. Isso é o que o torna próximo do falar merda. Pois a essência de falar merda não é algo falso, mas adulterado. De forma a avaliar essa distinção, deve-se reconhecer que um embuste ou uma adulteração não precisam ser, de modo algum (à parte a autenticidade em si), inferiores à coisa verdadeira. Aquilo que não é genuíno não precisa ser defeituoso por causa disso. Pode ser, apesar de tudo, uma cópia exata. O problema de uma imitação não é a aparência, mas o modo como foi feita. Isso aponta para um aspecto similar e fundamental da natureza intrínseca de falar merda: embora se origine sem preocupação com a verdade, não precisa ser algo falso. O falador de merda está camuflando as coisas. Porém, isso não significa que ele as entenda erradamente.

Harry Gordon FrankfurtSobre falar merda (On Bullshit)2005.

Ricardo Lísias: A polícia da literatura e as polícias

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Outro dia recebi um comentário feito no Twitter sobre uma das minhas últimas colunas para o RelevO. Para indicar constrangimento ou um certo desespero cafona, a pessoa reproduzia sem aspas algo que eu teria dito aqui. Embaixo colocava a imagem de uma mulher com o rosto em desespero, as mãos na cabeça e um cigarro entre os dedos e o cabelo, quase colocando fogo no loiro oxigenado. É uma estética dos anos 1980. O espanto se dá porque eu teria dito que o “cânone literário é só reflexo do poder da classe privilegiada”. As aspas agora são minhas e indicam o que o tuiteiro afirma que eu afirmei. 

Enfim, se colocada no contexto da coluna, minha afirmação não tem absolutamente nada demais. Ela apenas ecoa as discussões de uma crítica que vai de Walter Benjamin a Jacques Derrida, passa por Silviano Santiago e Roberto Schwarz, Richard Rorty e seja lá qual outro nome o leitor quiser. Trata-se de uma das principais discussões das últimas décadas não apenas na teoria literária como em todo o pensamento de ciências humanas. Eu afirmei uma banalidade.

Como se pode ver, a figura não tem noção de coisa alguma. Trata-se de um fenômeno muito comum no mundo contemporâneo: sem nenhum conhecimento, fulano vai a uma rede social, diz qualquer negócio e logo uma manada o segue, engrossando o caldo do besteirol. Meu exemplo é singelo e na verdade serve apenas para mostrar que comportamentos como o de espalhar que uma militante de direitos humanos tinha ligação com o Comando Vermelho e uma exposição de arte promove pedofilia estão muito mais próximos da gente do que às vezes parece. E do mesmo jeito, a figura que acha estar defendendo algum tipo de tradição que jamais existiu para além de sua empáfia está bem mais perto do fascismo, como dizem Umberto Eco e Timothy Snider, do que às vezes parece.

No início de março, estive em um debate de lançamento de uma revista sobre a ditadura militar brasileira. Conversamos eu, o MC Leonardo, responsável por grandes movimentos culturais em algumas comunidades cariocas, e Rick Goodwin, jornalista que participou da equipe que criou e fez o Pasquim, um dos nossos últimos espaços de resistência verdadeira à barbárie na imprensa. Dois dias depois, enquanto esperava a esposa em uma estação de trem, Goodwin foi espancado pela polícia carioca e perdeu dois dentes. Até agora ninguém sabe os motivos da agressão. 

O que dá força e motivação para a polícia fazer isso e coisas ainda piores, como as contínuas chacinas e o genocídio da população negra e pobre do Brasil, são os micropoliciamentos que as pessoas realizam por aí. É um clichê, eu sei, mas às vezes eles servem muito bem: primeiro, é a gente que tem que mudar.