Sobre comprar, acumular e abandonar livros

Extraído da edição 120 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


(via Stable Diffusion)

Mantemos relações bastantes distintas com livros.

Alguns conservam grandes acervos de itens lidos e/ou não lidos. Outros compram apenas o que leem, então repassam. Alguns preferem a praticidade e a versatilidade da leitura digital. Outros – os mais cafonas em um mundo já dominado pela breguice – compram livros apenas para decoração. Essas estratégias não são autoexcludentes, muito menos definitivas para toda uma vida.

Da mesma forma, a leitura em si é um ato cuja ordem proporciona múltiplas decisões. Isto é, alguns mantêm listas fechadas para os próximos 76 anos; outros são mais espontâneos; alguns caçam por métodos próprios, outros confiam em recomendações de confiança.

Por fim, outra grande variável no que tange à leitura é o abandono dos livros. Podemos demonstrar graus muito variados de resistência, a depender da nossa expectativa, do desprazer e do orgulho envolvido1.

Com isso em mente, vamos partir de três perguntas:

  • Qual é a sua lógica para comprar livros? (Aliás, físicos ou digitais?)
  • Você tem uma ordem de leitura predefinida? (O que te faz furar a fila?)
  • Quão persistente você é diante de um livro que não te agrada? (O que te leva a abandonar um livro?)

Nesta Enclave, tentaremos dissertar sobre alguns métodos e lógicas pessoais, apenas pela diversão do relato. Para tanto, contamos com o auxílio de dois grandes colaboradores do RelevO: Marceli M. (Burocrata Carimbos) e Bolívar Escobar (Cartas do Bolívar). Escolhemos esses dois indivíduos porque, além de leitores experientes e indivíduos atentos ao mercado editorial, porque… porque… bom, porque a essa altura eles são nossos únicos amigos…

Sobre (anti)bibliotecas

Aqui, vamos partir de um trecho de Nassim Taleb, em referência a Umberto Eco, n’A Lógica do Cisne Negro (2007):

O escritor Umberto Eco pertence àquela classe restrita de acadêmicos que são enciclopédicos, perceptivos e nada entediantes. Ele é dono de uma vasta biblioteca pessoal (que contém cerca de 30 mil livros) e divide os visitantes em duas categorias: os que reagem com: “Uau! Signore professore dottore Eco, que biblioteca o senhor tem! Quantos desses livros o senhor já leu?”, e os outros — uma minoria muito pequena — que entendem que uma biblioteca particular não é um apêndice para elevar o próprio ego, e sim uma ferramenta de pesquisa. Livros lidos são muito menos valiosos que os não lidos. A biblioteca deve conter tanto das coisas que você não sabe quanto seus recursos financeiros, taxas hipotecárias e o atualmente restrito mercado de imóveis lhe permitam colocar nela. Você acumulará mais conhecimento e mais livros à medida que for envelhecendo, e o número crescente de livros não lidos nas prateleiras olhará para você ameaçadoramente. Na verdade, quanto mais você souber, maiores serão as pilhas de livros não lidos. Vamos chamar essa coleção de livros não lidos de antibiblioteca.

Usamos o trecho em questão como ponto de partida porque obedecemos (isto é, este editor, especificamente, obedece) a uma lógica semelhante. Afinal, não consigo atender à ideia de comprar apenas o que tenho certeza de que lerei – ou ao menos no curto e médio prazos.

Inclusive, isso tende a trazer problemas, uma vez que podemos entender o ato de comprar livros como estressante a partir de dois (ou três) vieses:

  1. Financeiro: bom, comprar – livros ou qualquer outra coisa – custa dinheiro. Se seu dinheiro é finito, como acreditamos que seja, é preciso fazer escolhas.
  2. Espacial: livros demandam capacidade de armazenamento e, a partir do momento que você não a tem, qualquer aquisição se torna estressante. Se seu espaço também é finito, como também acreditamos que seja, é preciso fazer mais escolhas.
  3. Metafísico (bônus!): se você compra um livro e não o lê, sua consciência pode arder ao cruzar o olhar com uma lombada nunca aberta, um plástico nunca removido, e assim por diante. Pode haver um rebote dos outros dois problemas: se não li, por que diabos gastei dinheiro e espaço?

Minha lógica de compra e acúmulo de livros é mais ou menos a seguinte: ajo ao mesmo tempo como um olheiro e diretor de clube de futebol, se livros fossem jogadores, se o tamanho do elenco não fosse um problema e, por fim, se jogadores não envelhecessem nem fossem únicos (isto é, se houvesse toda uma tiragem de Haalands no mundo e tanto o clube Eu como o clube Você pudéssemos ter um ou vários Haalands e Mbappés no elenco).

Essa explicação certamente não ajuda muito, a não ser uma óptica bastante específica e talvez deturpada de funcionamento de mundo. Mas o ponto é – não, pera lá, os pontos são:

  1. Expandir constantemente a lista de “livros de interesse”, isto é, aqueles que pretendo [acredito que vou] ler algum dia.
  2. Monitorar preços (listas em Amazon, Estante Virtual e sebos específicos, basicamente).
  3. Comprar diante de preços abaixo da média ou oportunidades raras (edições antigas que, se esgotarem, já era, ou ao menos vão encarecer a ponto de inviabilizar).
  4. Furar a fila diante de grandes descobertas ou urgências de interesse (“isso eu preciso ler agora”).

Em suma, se em algum momento sei (ou acredito com alguma convicção) que vou ler X, mas neste momento X se encontra em um ótimo preço (ou parece realmente próximo de esgotar, afinal a quantidade de Haalands, mesmo maior que no futebol, ainda é finita), compro sem dó. Nem que leve anos para eu abri-lo – já passei da fase de dor na consciência. Aqui não tem metafísica alguma.

  • Um exemplo recente: comprei Heat 2, de Michael Mann e Meg Gardiner, continuação do filme que tanto adoro. Quando vou ler? Sei lá, mas o preço em algum momento diminuiu e sei que eventualmente vou ler.
  • Sob a mesma lógica, não hesitei nem por um segundo quando encontrei, ano passado, NA LIXEIRA DA GARAGEM, a coleção COMPLETA (50 volumes!), capa dura, de Imortais da Literatura Universal da Abril Cultural. Precisei reorganizar a estante, mas não tenho dúvidas de que valeu a pena. Se até o momento li 10% deles, pouco importa. A assimetria é muito favorável – trata-se de clássicos, afinal, então tenho o efeito Lindy a meu favor –, principalmente levando em conta o custo zero.
No lixo! No lixo!!!

Vejamos as constatações de nossos amigos:

Qual é a sua lógica para comprar livros? (Aliás, físicos ou digitais?)

Marceli: Em geral, vou pela autoria (quero ler alguém e aí procuro a obra que seja mais representativa) e, em alguns casos, pela editora (por exemplo, confio na linha editorial da Todavia porque costumo gostar de tudo que leio deles, aí compro mesmo que desconheça o autor); mas também acontece de seguir indicações de amigos (normalmente, as situações em que furo a fila, a depender de quão efusiva seja a recomendação ou de quanto eu confie na pessoa). É comum também ler o livro baixado no Kindle e mesmo assim querer ter a cópia física e comprá-la depois (também posso comprar um livro principalmente porque ele é bonito, ou tem uma capa bonita).

Bolívar: Acho importante diferenciar as motivações para comprar e para ler. O que mais me motiva a ler um livro é quando pessoas de grupos diferentes de amigos me recomendam o mesmo título. É quase um sistema: se um livro marca três pontos, então é porque preciso ler. Já para comprar, acho que a principal motivação é conhecer o(a) autor(a) e querer fortalecer a iniciativa. Ocasiões especialíssimas são os livros desses dois universos se encontrando.

(via Stable Diffusion)

Listas, ordem, progressão linear

Assim, adentramos em outro tópico: como organizar a ordem de leitura? Do lado de cá, essa lógica é bem mais variável, uma vez que está sempre sujeita a descobertas acidentais. É como jazz, exceto por não envolver técnica ou talento. Em cima de um tema, vario conforme acidentes do dia a dia (ter lido, escutado ou assistido alguma coisa que despertou interesse em outro assunto), então viro a chave completamente, num processo helicoidal que eventualmente volta ao ponto de onde partiu.

Isso acontece organicamente. Um exemplo real: entre idas e vindas, Hong Kong é por si só um tema de interesse. Procurei narrativas que se passam lá, vasculhei e comprei – gradativamente, não ao mesmo tempo – tantos livros relacionados. Li alguns, abandonei outros, não abri os demais. Recentemente, me interessei de novo pelo tema e comecei Tai-Pan (1967), de James Clavell (por sinal, fantástico). Daqui a pouco, naturalmente, por cansaço ou pelo despertar/relembrar de algum outro tópico, o interesse retorna para “Guerra Fria”, “detetives dos anos 1940”, “ficção científica”, “Brasil colonial” etc., e assim a roda vai girando.

Nesse aspecto, nossa lógica e a de nossos amigos parece convergir:

Você tem uma ordem de leitura predefinida? (O que te faz furar a fila?)

Marceli: Tenho sempre uma pilha de livros que pretendo ler, mas não tenho muito sistema com eles – pode acontecer de ele ficar ali na estante por anos e pegá-lo aleatoriamente pra ler (ou, menos aleatoriamente e mais por uma vibe inexplicável, tipo sentir que chegou a hora de ler tal coisa). Mas se tem um lançamento legal ou se eu comprei algo, é comum furar a fila e mesmo pausar algo que eu esteja lendo pra passar o outro na frente. Acho que, nos últimos anos, engajar num livro e não ter vontade de olhar o celular é tão raro que, quando acontece, eu me emociono muito e quero aproveitar a onda. E também rola de eu começar a ler algum autor e empolgar e emendar dois ou três outros livros dele.

Bolívar: A vida acadêmica faz a gente se embrenhar em leituras muito mais por obrigação do que por liberdade de escolha. Tenho uma lista ancestral de livros no GoodReads que gostaria de ler algum dia, mas que nunca volto pra consultar. No geral, o que acontece é receber alguma recomendação e já, sem pensar muito, começar a leitura. Tenho alguns autores de interesse também cujos livros vou deixando no radar para começar quando sobrar tempo. Ou quando a vergonha na cara atingir níveis muito altos. Em resumo, é um sistema bastante volátil, aleatório e pouco previsível.

Largar ou não?

Abandonar um livro traz uma culpa moral, uma sensação de farsa. A presunção “o problema só pode ser eu” banhada na estranha sacralidade da palavra escrita ou da consagração do(a) autor(a). Além da dúvida: se abandonei um livro de 500 páginas na centésima delas, posso dizer que eu o li? Vaidade de vaidades!2

Pois livros devem ser abandonados sem dó. O famoso “cagar ou sair da moita”. Não vale se arrastar. Nunca. Isto é, a partir de uma tentativa honesta – e apenas o leitor, em sua prática, saberá discernir o que é uma tentativa honesta. Só no segundo semestre, abandonei A Identidade Bourne (Robert Ludlum); Kowloon Tong (Paul Theroux); Da Rússia, Com Amor (Ian Fleming); e O Alfaiate do Panamá (John le Carré). Somente o último trouxe algum peso na consciência, por gostar do autor e por não ter considerado o romance propriamente ruim, apenas desinteressante para mim, no momento, diante de outro problema seríssimo, e na verdade ponto nevrálgico do abandono de livros: nosso tempo é escasso.

A vida é muito curta para não gostar dos livros que se lê, uma vez que há um universo gigantesco (na prática, infinito) de opções que nos tragam prazer (nem que um prazer desconfortável, angustiante, mas que, enfim, valide a atividade da leitura). Simplesmente não vale a pena. (Inclusive, se eu não tivesse decidido largar sem dó alguns dos romances mencionados, não teria iniciado Tai-Pan a tempo de levá-lo para uma viagem de 18 dias, o que literalmente faria minha vida pior).

Tenho certeza de que li Stanley Kubrick defender o abandono veloz de livros que não cativaram o leitor. Acredito com alguma convicção que essa fala consta no Conversas com Kubrick (que não abandonei), de Michel Ciment, mas, ironicamente, não o tenho em mãos, porque este ficou na casa dos meus pais desde que saí de lá, há uns bons anos, a fim de poupar espaço.3

Curiosamente, nossa amiga Marceli Burocrata não concorda com essa lógica: “nunca desgosto a ponto de querer abandonar de vez; sempre dou chance até o final mesmo que seja para falar mal depois”. Marceli está errada. Não se deve dar chances até o final: é preciso falar mal do livro antes. Inclusive, em alguns casos, antes mesmo de abrir! Quem dera eu nunca tivesse lido [dois terços de] Da Rússia, Com Amor

Já Bolívar, que abandonou Graça Infinita, afirma que precisa “começar a abandonar mais livros para ver se algum padrão pode ser detectado”, portanto sua resposta não ajudou em nada. Brincadeira. Ambas as respostas foram mais complexas que o recorte sujo da mídia enclávica:

Quão persistente você é diante de um livro que não te agrada? (O que te leva a abandonar um livro?)

Marceli: Em geral, é quando outro livro fura a fila mesmo; mas procuro voltar e terminar, não gosto muito de deixar livro abandonado (e acho que tem a questão também de eu sempre pegar livros que me interessam pra ler, aí nunca desgosto a ponto de querer abandonar de vez, sempre dou chance até o final mesmo que seja para falar mal depois).

Bolívar: Não sinto como se eu tivesse um “gatilho” ou coisa do tipo que me faça desistir de livros. Quando acontece é por uma convergência de motivos. Por exemplo, comecei a ler Graça Infinita, o tijolão do D.F.W. em 2015 e está lá parado na página 200 até hoje. A sensação foi que eu estava começando uma leitura para a qual não estava preparado. A mesma coisa com O Pêndulo de Foucault, do Eco. Teve outros casos, mas não lembro agora. Preciso começar a abandonar mais livros para ver se algum padrão pode ser detectado.

Essas foram as nossas considerações sobre comprar, acumular e abandonar livros. Entre galhofas e modelos mentais possivelmente replicáveis, também queremos saber a sua opinião, principalmente se você for um metódica compulsivo, uma acumuladora caótica ou um absoluto desapegado.

Retornamos em dezembro!

(via Stable Diffusion)

 

 

Baú: Carlo M. Cipolla

Extraído da edição 120 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


Não é surpresa que as pessoas vulneráveis […] não reconheçam o quanto pessoas estúpidas são perigosas. Essa falha é apenas uma expressão de sua vulnerabilidade. O fato realmente impressionante, entretanto, é que pessoas inteligentes e bandidos também costumam não reconhecer o poder de causar danos inerente à estupidez. É extremamente difícil explicar por que isso acontece, e é possível apenas observar que, quando confrontados com indivíduos estúpidos, pessoas inteligentes, assim como bandidos, costumam cometer o erro de se permitirem ter sentimentos de complacência e desdém, em vez de secretar quantidades adequadas de adrenalina e erguer defesas imediatamente.

Fica-se tentado a acreditar que um homem estúpido só vai causar mal a si mesmo, mas isso é confundir estupidez com vulnerabilidade. De vez em quando, alguém pode cair na tentação de se associar a um indivíduo estúpido para utilizá-lo em seus próprios esquemas. Tal manobra só pode ter efeitos desastrosos, porque a) ela se baseia em uma incompreensão absoluta da natureza essencial da estupidez e b) dá à pessoa estúpida um escopo aumentado para o exercício de seus dons. É possível ter esperanças de tirar proveito do estúpido, e, até certo ponto, é realmente possível fazer isso. Mas devido ao comportamento instável do estúpido, não se pode prever todas as suas ações e reações, e em pouco tempo a pessoa vai ser pulverizada pelos movimentos imprevisíveis do parceiro e estúpido.

Isso fica claramente resumido na Quarta Lei Fundamental, que afirma que:

“Pessoas não estúpidas sempre subestimam o poder de causar danos dos indivíduos estúpidos. Em particular, pessoas não estúpidas se esquecem constantemente de que em todo momento e lugar, e sob qualquer circunstância, lidar e/ou se associar com pessoas estúpidas resulta infalivelmente em um erro altamente custoso”.

Ao longo dos séculos e milênios, tanto na vida pública quanto na vida privada, inúmeros indivíduos deixaram de levar em conta a Quarta Lei Fundamental, e essa falha acarretou perdas incalculáveis para a humanidade.

Carlo M. Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, 1976 (Ed. Planeta, 2020).

Amanda Vital: Ombudswoman 11: “The Chocolate Agenda” — o que a grande mídia não quer que você saiba!

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.

“Tabacaria”, Álvaro de Campos (sim, este é do Álvaro, maltinha, Álvaro que tem o mesmo focinho do Pessoa, mas nãaaao atribuam ao Pessoa, é Ál-va-ro, tá-se bem?)

Car_s leitor_s, a coluna desse mês vai ser totalmente voltada para denunciar o propagandismo da curadoria do RelevO da edição passada para a venda de seu novo produto, o Chocolate RelevO, lançado no mês passado. Tenho provas o suficiente para mostrar que todos — sim, absolutamente todos — os textos foram selecionados a dedo para incentivar a venda casada, que, aliás, é crime no Brasil. Fazendo um trabalho de trincheiras, busquei o que a grande mídia não mostra, o fio de cabelo em ovo, o conspirac-, quer dizer, os “olhos de ver”, acordados e muito bem acordados. Vamos a isso.

Começo por “Questão de vestibular”, literatura-múltipla-escolha de Marco Aurélio de Souza, pulando a seção de carta dos leitores, que é claro que não deixou de publicar uma quantidade absurda de comentários relacionados à venda do chocolate. O que múltipla escolha nos lembra? Enem, é claro. Vestibular, para ser mais precisa, e para ornar com o título atribuído ao texto. O que levamos para a prova de vestibular? Caneta preta, sim. RG, total. Uma garrafinha d’água? Convém. Mais mais do que isso: levamos chocolate. Há uma psicologia do consumidor (e do consumo — do chocolate, claro) atirada para os leitores logo à primeira vista, preparando o ambiente para o que mais vem por aí. Isso é jogada de mestre, vamos concordar, né? E começamos jovens, vestibulandos, acabadinhos de sair das fraldas. No começo do vício.

Depois entra “O amor”, de Maurício Porto. Ora, novamente a curadoria entra na mente de quem lê. O amor também pode ser f*dido. Com isso, recorremos a todas as benditas desgraças, para nos desgraçarmos ainda mais; entre elas, o álcool. E a menção a whiskies, que vão bem com chocolate, faz com que o leitor fique predisposto a buscar um acompanhamento rápido para um bom conto. Uma caixa de bombons com uma boa garrafa de destilado? Não há melhor. Na fossa, então…

A crônica da Maria Eugênia Moreira segue a mesma coisa: a autora traz à tona a questão dos supermercados da rede Oxxo, estilo Dia, que é onde costumamos fazer compras pequenas; dentre elas? Sim, o chocolate. A nossa mente vai quase de maneira automática no corredor dos doces e batatinhas, sentimos a mão alcançando, entre aquelas barras quebradas de chocolate barato e duvidoso, alguma que esteja minimamente inteira. O cenário trash da crônica descreve e ambienta super bem essa procura. E o estômago ronca, estranhamente ronca.

“Novíssimos paraísos artificiais” é a reportagem especial do RelevO do mês passado, que, é claro, como todo bom vendedor, veste-se da causa ambientalista apenas para fingir que o produto é sério e preocupado com os rumos que o planeta está tomando, deixando a publicidade bem nas entrelinhas. O “Novíssimos paraísos artificiais” é o blue money da imagem boazinha e limpa, anti-monstros-capitalistas, de quem acaba de lançar um chocolate ao mercado e não quer ser confundido com charlatães. Mas sendo.

E sobrou até para a própria Enclave, mãe do céu, uma coluna tão séria, tão perfeitamente bem escrita sempre… Precisava mesmo mencionar alguma parte do trabalho de Fischer na busca de João Gilberto, algum recorte que seja, voltado apenas para aguçar o apetite? E foi logo de um diálogo com Garrincha, garçom do restaurante preferido. Ora, o que se come depois de um bom prato? João Gilberto não pedia sobremesa, mas você pode pedir!

Agora, qual não é a minha surpresa quando viro a página e, tcharam!: além d’O Grito, mais um texto sobre supermercados… Pois é. Dessa vez maior e mais esmiuçado, com deliberações (bem interessantes) sobre a organização dos corredores e do carrinho de compras, chegando ao fim do jornal e fazendo aquela última tentativa de despertar o apetite e levar as mãos à carteira para comprar besteiras. Percebem a sutileza? É uma linearidade do mal essa. Do senhorzinho gordinho de suspensórios e bigodudo que te quer vender o seguro de um carro que você não tem!

Até a crônica tão leve de Rodrigo Madeira tem sua porção de culpa no cartório. Primeiro porque é um texto doce, docinho. Segundo, porque de tão leve, mas tão leve, cria pequenas perninhas de palitos de pirulito e vai caminhando pela cidade qual flâneur. E o leitor também cria suas perninhas e fica achando que está não só leve, mas doce, docinho. Acho que não preciso falar mais nada, né?

Mas sabem que com poesia a coisa fica um pouco mais complicada, que esses poetas são qualquer coisa de enigmáticos, hieroglíficos, ai, são tão pseudo! Mas consigo ver, no poema de Liana Timm, dois elementos: o sexo (que sim, pode exigir um chocolatinho em cima do travesseiro) e o pós-sexo (que sim, pode exigir um chocolatinho embaixo do travesseiro).

O mesmo com a tradução de Bernardo Antônio Beledeli Perin de “The woman who could not live with her faulty heart”, de Margaret Atwood. Ora, bate na minha cara com esse trecho: “Mas a maioria deles diz quero, quero, quero”. Vê se não cheira a propaganda. Tem cheiro de agenda. Tem ar de propaganda do Baton dos anos 80. Tem tom de letrinha miúda.

Por fim, logo o texto antes da página publicitária em si, a página final, que fecha todo esse grande complô, é um poema de Guímel Bilac. Não vou dizer da menção às cervejas, porque não combina, não. É da gana do leitor terminar querendo mais. E é claro que a venda casada se concretiza aí: o poema nos é apresentado como “que intrigante, quero ler mais dessa pessoa”, e pimba! Toma-lhe página publicitária do chocolate. Meu amigo. Se isso não é venda casada 101, eu não sei mais o que é.

E coitada da Ana C., que ficou na contracapa. “Costa com costa” com a propaganda e não tem nada a ver com isso.

Uma curiosidade, já agora no fim, que fui verificar: a palavra “chocolate” foi repetida 17 vezes no RelevO da edição passada. 17 ocorrências. Provavelmente, só nesse texto, também há 17 ocorrências. Mas isso não vem ao caso, ou vem?

Mas olha que essa coisa toda e eu não levava nada a mal que um certo editor mui nobremente me mandasse uma barrinha do chocolate novo. Na verdade, esse texto todo é só para pedir que me mande uma.

*

No mais, car_s leitor_s: comam chocolates, pequen_s, comam chocolates. Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates! Mas se não quiser, não precisa.

Fora do centro, fora do clube

Editorial extraído da edição de novembro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Jacarezinho (PR) — O RelevO nunca foi um periódico curitibano. Nem araucariense, relembrando os anos todos do publisher nesta intrigante cidade da Região Metropolitana de Curitiba, pouco reconhecida por seus aparelhos culturais e mais lembrada por ter uma sede da Petrobras e por seus prefeitos, digamos, singulares. Não somos um jornal brasileiro, que defende a importância da literatura do País. Em suma, não existimos para exaltar uma cidade, um povo, um grupo, uma associação. Talvez o Totti.

Como você pode imaginar, não abraçar um clube tem suas vantagens, como independência editorial, falta de elogios públicos a autores medíocres, ausência em eventos aborrecedores apenas pela política de boa frequência entre pares. Por outro lado, também são evidentes as desvantagens. Nos eventos de representação do que é o meio literário local, como festivais e feiras, por exemplo, o RelevO não existe — não é chamado sequer para ser plateia. Não temos amigos no meio.

Tais constatações nos trazem certa serenidade ou alívio. Verificamos o nosso trabalho melhor fora da aldeia do que no nosso centro, pegando o referencial de o centro ser onde estamos, não necessariamente o que nos gera pertencimento. Em eventos fora de Curitiba, o RelevO se materializa mais como aquilo que realmente pretende ser: um periódico múltiplo, com um pezinho simbólico no anarquismo, descompromissado com os feirantes, ofensivo porém carinhoso. Fora de nosso habitat, somos quem almejamos ser.

Não é novidade intelectual que as avaliações entre pares são dadas à corrupção, e isso vale para honrarias diversas. Ganhar o prêmio de Filho do Ano por parte da própria mãe não é mais que obrigação. Ser lido e estudado em uma obscura universidade da Finlândia, por outro lado, é muito mais interessante porque podemos notar ali, quem sabe, a não existência de amarras dos jogos entre pares. Por que esses japoneses de Glasgow estão lendo a literatura negra brasileira do Cariri? Isso sim é elogio.

Evidentemente, não somos o Filho do Ano, tampouco fazemos boas viagens internacionais. Ninguém estuda o Jornal — provavelmente. Nosso mood é embarcar em ônibus às 23h55 de sexta-feira para chegar num Encontro de Editores às 7h de um sábado de fechamento de edição. E como isso impacta você, leitor ou escritor?

Por não fazermos parte de nenhuma seita, conluio de herdeiros ou vestiário masculino com sobrenomes imponentes, publicamos aquilo de que realmente gostamos. Não conhecemos pessoalmente 90% dos autores e autoras publicadas em nossas páginas e, via de regra, não temos esse interesse (das nossas orientações para publicação: “Não há necessidade de enviar minibiografias [ou biografias inteiras]. Queremos saber o mínimo possível sobre o autor e/ou suas titulações.”). Se você está em Jacarezinho (PR) ou São Paulo (SP) escrevendo uma crônica banal, o que importa para nós é como uma palavra está conectada à outra. Não nos interessa a alcunha do escritor local, e sim o indivíduo que escreve em seu local.

O RelevO tem, acredite, um DNA de oposição aos grupos. Nossa equipe – praticamente inalterada desde 2018 – não passa de seis pessoas. Gostamos de ser assim, da paz da solidão, de conhecer pessoas sem necessidades de contrapartidas. Portanto, escreva para nós, assine nosso periódico… antes que façamos uma edição especial Maravilhas de Quatro Barras (mas lá é bonito mesmo).

Uma boa leitura a todos.

Amanda Vital: Ombudswoman 10: otimismo

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


De: julia_escritoriodeadvogadocomsobrenomeitaliano@hotmail.com

Para: claudia_editoradenomemuitocool@gmail.com

Assunto: Um favorzinho de amiga! rs

Oi, Claudinhaaaaa! Tudo bem, meu amor?

Aqui é a Júlia, lembra de mim? A galera me chamava de “Julinha Melancia”, estudei com você no Ensino Médio! Eu gostava demais de você, sempre admirei muito sua inteligência e dedicação! Fiquei sabendo que você é editora de livros agora, muito chique, viu? Imagina só, a menina que nunca ia nos churras no Terceirão para ficar em casa estudando, floresceu e virou editora! Eu fiquei surpresa que você não virou diplomata, achei que ia ver minha amiga Claudinha em uma embaixada hoje em dia! Mas a vida tem dessas coisas, né? Fico feliz que você tenha se descoberto na sua área! Nada é por acaso!

Bom, agora vamos às minhas novidades: eu fui para o Direito mesmo, descobri que a advocacia é minha paixão! Trabalho no escritório do meu pai, você chegou a conhecer ele, né? Eu levava muitas meninas lá da sala pra casa depois da aula, certezaaaa que você tava nesse meio também!!! rsrsrs, segui os passos da família, tenho um legado para manter por ser filha única, né? Mas claro, sempre com muito suor e muuuito trabalho! Nunca foi fácil, sempre foi Deus, a gente sabe como é árdua a caminhada, né?

Claudinha, adivinha só… me descobri poetisa! Acredita que um amigo meu do escritório leu os textos de motivação que eu publico no meu Insta e me falou que eu dava jeito para a escrita também? Imagina, logo eu que odiava literatura e redação! rsrs Aí ele me encorajou a mandar algumas poesias para publicar e eu lembrei da minha amiga tão querida que trabalha na área! Tenho que comprar alguns livros da sua editora, eu li alguns livros, mas são mais best-seller mesmo, confesso que não sou grande leitora, você lembra, né? Mas agora que ele plantou essa sementinha na minha cabeça, eu preciso regar, né? Se não não floresce, você que é empreendedora acima de editora, sabe como é!

Linda, então eu estou te mandando o meu livro lindo, meu orgulho! Batizei o meu filhote de Flores da Julinha, achei o nome muito delicado! Minhas poesias são mais positivas, para dar um tom de otimismo entre os livros que eu vi que você tem publicado, que são um pouquinho mais pro sombrio e pro triste, né? Fiquei até um pouco preocupada e quis juntar o útil ao agradável, pensei que eu poderia trazer uma gotinha de felicidade e otimismo para minha querida amiga Claudinha! Pra trabalhar com um sorriso no rosto! Você vai gostar muito do meu livro!

Ah, aí entra a parte do favorzinho: eu tô totalmente lisaaaa no momento! rs Será que você pode cogitar a publicação gratuita? Sei que muitas editoras fazem isso, então por favoooor! Quebra essa pra gente? Vou ficar te aguardando!

Um beijo grandeee, minha flor, podíamos combinar alguma coisinha, né? Eu gosto muito de ir pro Villa Mix! Podíamos combinar uma baladinha um dia desses, imagina eu ver a minha amigona Claudinha de vestido e salto pela primeira vez! Hahaha, babadoooo!

Anexos:

original-floresdajulinha.docx

foto-eu-linda-na-praia.jpg

orelha-do-meu-unico-amigo-minimamente-intelectual.docx

imagem-horrenda-e-minúscula-toda-pixelizada-para-colocar-na-capa.jpg

Enviado do meu iPhone

__________________

De: claudia_editoradenomemuitocool@gmail.com

Para: julia_escritoriodeadvogadocomsobrenomeitaliano@hotmail.com

Assunto: RE: Um favorzinho de amiga! Rs

Oi, Júlia, tudo bem?

Que surpresa em ter você escrevendo para mim, na verdade… Acho que a última recordação que eu tenho é de você sabotando o meu caderno. Mas bom saber que está tudo bem.

Peço imensas desculpas, mas depois de uma leitura cuidadosa e atenta, não vai ser possível publicar o seu original. Seu livro tem uma proposta diferente do que a gente costuma publicar e pode não funcionar com o nosso catálogo, com a nossa linha editorial e com o nosso círculo de leitores mais fieis.

Mas estou à disposição para sugerir outras editoras — ou até mesmo uma gráfica, para você fazer alguma edição do autor, se for da sua vontade.

Tudo de bom para você e para o seu livro.

Atenciosamente,

Cláudia

__________________

De: julia_escritoriodeadvogadocomsobrenomeitaliano@hotmail.com

Para: claudia_editoradenomemuitocool@gmail.com

Assunto: RE: RE: Um favorzinho de amiga! rs

Nossa, Claudinha!!! Inacreditável a grosseria da sua resposta! Te escrevi uma mensagem toda atenciosa e você me veio com essa? Você se tornou uma pessoa muito amarga e tá puxando sua editora pro buraco junto com você, viu??? Grossa, mesmo!!!

Ah, querida!!! rs Sinto muito dizer, mas você perdeu uma excelente oportunidade de publicar uma poetisa promissora! Quando eu for internacionalmente conhecida (e vou ser, porque sou uma pessoa muito focada, e guardo rancor, viu? rsrs), você vai se arrepender de ter recusado meu livro por motivos pessoais que só existem na sua cabeça!!! Eu e as meninas éramos pessoas sempre super abertas para amizades, você é que se excluía quando a gente fazia uma piadinha ou outra totalmente inofensiva! Era divertido, você é que não ria com a gente!

Agora era só o que faltava! rs Deitar a lenha nas minhas poesias! Sabe quantos seguidores eu tenho no Insta??? Eu tava te fazendo um FAVOR, te proporcionando materiais ótimos para você publicar coisas mais bonitas nessa editorazinha mequetrefe que só publica autores que ninguém nunca ouviu falar, rs! E eu achando que eu é que estava te pedindo um favor, descobri que você publica os livros de graça! E a capa, poxa, eu mandei praticamente pronta para você, a imagem estava anexa, era só apagar a marca d’água, colocar na capa e mandar imprimir!!! Não tem trabalho mais fácil do que o seu!

Eu sou uma possível cliente que ia te dar livros novos todo o ano, ENORMES inclusive, e é assim que você me trata? Ridícula! Espero que vá a falência!

Enviado do meu iPhone __________________

De: claudia_editoradenomemuitocool@gmail.com

Para: julia_escritoriodeadvogadocomsobrenomeitaliano@hotmail.com

Assunto: RE: RE: RE: Um favorzinho de amiga! Rs Júlia, por favor, não me escreva novamente. Atenciosamente, Cláudia

Sonho de uma noite de cacau

Editorial extraído da edição de outubro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Conforme antecipamos a quem nos assina no Substack, estamos fazendo um chocolate. Entre tantas piadas, absurdos e asneiras já publicadas neste espaço, essa é seríssima.

“Fazer um chocolate”, na verdade, não é a descrição justa: estamos vendendo um chocolate. Obviamente, não temos a capacidade de fazer um chocolate, ou ao menos um que teríamos coragem de comercializar. Trata-se de um produto da Utopia Tropical, aqui de Curitiba, com a nossa embalagem. Uma bela embalagem, por sinal, desenhada pelo amigo Bolívar Escobar, num belíssimo chocolate (72% cacau, medalha de prata na International Chocolate Awards de 2023).

O lançamento culminará num evento aberto ao público, também em Curitiba. Teremos música, chopp, drinks, ecobags, carimbos, Edição de Colecionador, etc. Se você ler a tempo, está plenamente convidado, com ou sem chocolate. Os detalhes estão logo abaixo, e qualquer um pode reservar sua(s) barra(s) desde já.

Aos poucos, extrapolamos a esfera do papel para cavucar outros delírios. O chocolate e o evento serão um ótimo teste para entendermos os limites da nossa comunidade e da nossa capacidade de mobilizar nossos assinantes – aqueles que, mês após mês, ano após ano, permitem a existência do Jornal.

Trata-se de um desafio, de uma fuga da zona de conforto e, por isso mesmo, também uma oportunidade. Estamos animados e com algum frio na barriga. Gostaríamos de não fracassar (diante da nossa estimativa modesta de sucesso e fracasso) e temos pessoas muito competentes nos auxiliando.

Se você quiser apoiar este ou outros delírios, considere comprar nosso chocolate – que é, sem sombra de dúvidas, muito bom e muito bonito – e/ou comparecer à nossa festa. Queremos proporcionar uma tarde agradável e uma noite promissora. Para tanto, prometemos nos esforçar. Também nos assine ou siga nos assinando. Seguimos na sina de ser jornal e de papel, acompanhando um café da manhã, um tablete de chocolate na mesa.

João Gilberto era um vampiro sugador de almas?

Extraído da edição 119 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


(via DALL-E)

— Então… Quer dizer que você quer se encontrar com João Gilberto?
— É.
— Pois tome cuidado — avisa Menescal.
— Por quê?
— João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.
— Como assim?
— De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre.

Faz anos que este humilde editor quer escrever sobre Ho-ba-la-lá – não a música, mas o livro do alemão Mark Fischer (não confundir com Mark Fisher, aquele). Por um motivo ou outro, isso nunca aconteceu, isto é, até agora, quando o universo me forneceu sinais suficientes para retomar o assunto.

Estava em um aniversário (de um grande colaborador do Jornal, inclusive, e que justamente por isso terá sua identidade e credibilidade preservadas), quando me dei conta de que toda a roda, movida por um espírito de esquema de pirâmide (iniciada por mim; o mérito é meu), havia lido Ho-ba-la-lá, um livro esgotado e fora de circulação, portanto caríssimo (apenas quatro edições, preço mínimo R$ 230 na Estante Virtual) e [portanto de novo] obtido apenas por métodos não legais, porém gratuitos1. Ho-ba-la-lá certamente não foi uma bomba, ao menos não em Curitiba, então havia alguma relação de causa e efeito ali.

Pois bem, a premissa do livro é muito simples: Mark Fischer, um alemão, quer porque quer encontrar João Gilberto, o brasileiro, e ouvi-lo tocar ‘Ho-ba-la-lá’, a música. Apenas isso. Porém, qualquer cidadão deste país minimamente cônscio da mitologia nacional sabe que encontrar João nunca foi tarefa fácil ao longo da vida deste gênio. Fischer sabia disso.

Para que encontrar um homem que, evidentemente, não deseja ser encontrado? Para que fazer contato com quem não quer contato nenhum?

Razão nº 1: Porque João Gilberto é um enigma. Porque não está claro o que o instiga, ou se alguma coisa ainda o instiga em seu quarto de hotel — ou onde quer que ele more no momento. Porque circulam histórias estranhas a seu respeito, e não se sabe quais são verdadeiras e quais são estapafúrdias, fantasiosas, inventadas:

Dizem que toca violão o tempo todo, sempre as mesmas canções.

Dizem que conversa com gatos.

Dizem que fala com os mortos.

Dizem que uiva para a lua.

Dizem que, mesmo com os parentes, ele só se comunica por intermédio de bilhetes que lhe são passados por debaixo da porta.

Dizem que, em resumo, ele não se comunica.

Dizem que pratica uma religião estranha.

Dizem que odeia tanto as pessoas que não consegue suportá-las.

Dizem que ama tanto as pessoas que não consegue suportá-las.

Para abordar o problema, Fischer tomou a melhor solução criativa possível. Pois antes de mais nada, o gênero do livro, em sua essência, é um romance policial. Tem o formato, a estrutura, o cheiro. Estruturado em primeira pessoa, tem até um Watson, “que na verdade não se chama Watson coisa nenhuma, e aliás não é homem. Trata-se da minha fiel companheira Rachel, o cão rastreador mais rápido do mundo e a intérprete mais habilitada do Rio de Janeiro, porque, claro, não falo uma palavra de português. É uma judia líbano-brasileira com um diabo tatuado na panturrilha; pesa duas vezes mais que eu, prefere mulheres a homens e desde o primeiro instante eu soube: aí está meu Watson”.

Fischer, que leva a tarefa muito a sério (alemães…) sem se levar muito a sério (cariocas!), oferece-nos uma narrativa deliciosa, extraordinária, entrevistando figuras como João Donato, Miúcha, Marcos Valle, Roberto Menescal e outros indivíduos menos conhecidos, mas ainda mais marcantes. A conversa com o garçom Garrincha – já publicada na Enclave, tal qual o trecho que abre este texto – é surreal e sintetiza a complexidade de tentar decifrar o indecifrável:

Começo de imediato com meu interrogatório:

— Garrincha, por quanto tempo você foi o cozinheiro preferido de João [Gilberto]?

— Pouco mais de cinco anos, mais ou menos.

(…)

— E como era quando João ligava?

— Sempre a mesma coisa. Onze da noite, no Plataforma, o telefone tocava, e João dizia: “Boa noite, Garrincha”. E eu: “Boa noite, João”. Ele: “Como vai, Garrincha?”. “Tudo bem, João.” “E como vai sua esposa, Garrincha?” “Bem também, João.” “E as crianças, como estão?” “Todas bem, João.” “Adriana sarou?” “Sarou, sim. A gripe já passou.” “O que tem hoje no cardápio, Garrincha?” “Acabamos de receber peixe fresco, João. Um bacalhau maravilhoso, servido com legumes e arroz. É muito bom, acabei de experimentar, comi ainda agorinha.” “E o que mais tem, Garrincha?” “O de sempre, João: picanha, churrasco, costelinha, lombo de porco, costeleta de cordeiro, atum, perca, lagosta, peixe-espada.” “O peixe-espada está bom, Garrincha?” “Está excelente, João. Vou mandar grelhar e temperar com uma nova mistura que acabei de inventar. Você vai adorar.” “Vou querer o steak, Garrincha.” “Está bem, João.” Então, entre meia-noite e uma da manhã, o mesmo entregador levava quase sempre o mesmo prato para ele. Deixava o pedido no chão, diante da porta. E, no dia seguinte, a cena toda se repetia.

— Quanto tempo durava a conversa ao telefone?

— Uns quarenta minutos.

— E assim foi durante cinco anos?

— Assim foi durante cinco anos.

— Você nunca viu João pessoalmente?

— Não, nunca vi.

— O entregador chegou a ver ele?

— Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.

— Mas isso é piração, Garrincha.

— Isso é João Gilberto, meu senhor.

(via DALL-E)

Portanto, há situações e personagens um tanto absurdas, e a leitura do autor é sempre apurada – como, de fato, a de um detetive noir. O trecho abaixo parece extraído de Raymond Chandler ou do Vício Inerente de Pynchon:

Watson veste uma blusa vermelha bem decotada e traz brincos enormes nas orelhas. Parece uma Mata Hari mais avantajada. Eu a trouxe comigo e sugeri o estilo sexy porque, depois de um minuto ao telefone com Otávio, logo vi que seu inglês não era suficiente para ser compreendido e que ele era o tipo de sujeito que, com homens, fala pouco, mas, diante de uma mulher, não para de falar.

E, caso a presença de Watson não bastasse, eu tinha trazido algo mais, uma arma secreta: o baseado que João Donato me dera e que eu, em razão do inesperado progresso das investigações, ainda não conseguira fumar. Ele seguia guardado no meu maço de cigarros — a salvo, sequinho e muito eficaz.

Independentemente da direção, Mark Fischer parece se deparar com uma conclusão comum: João Gilberto é uma espécie de vampiro, um ser de outra dimensão capaz de alterar a consciência (e a lucidez) daqueles que convivem com ele. Trata-se de um padrão: ninguém – quase ninguém – passa ileso, como alertaria Menescal.

O que traz um elemento extremamente doloroso, mas ainda mais complexo para Ho-ba-la-lá: Fischer se matou pouco antes do lançamento do livro.

Pois é.

Respostas que trazem perguntas, dúvidas que trazem indagações2. Sua morte é um paratexto assustador da obra, o que – numa leitura completamente irresponsável, favor não levar a sério – parece salientar a tese do autor. Assim como Fischer, numa tarefa hercúlea e impossível, queria entender João Gilberto, queria eu entender Mark Fischer. Agradecê-lo e abraçá-lo antes de mais nada.

Ho-ba-la-lá é extraordinário, obra-prima mesmo, porque consegue contar uma história envolvente no melhor formato possível para desenvolvê-la. Mais do que isso, é extraordinário por ser muito, muito pessoal. Nada cativa mais que uma tarefa quixotesca, incapaz de ser justificada para além de uma coceira individual e (via de regra) ilógica. Não é preciso conhecer ou gostar de João Gilberto para ser puxado por esse vórtice.

Com todas as suas particularidades, o livro também é o caso típico de obra que não só não perde por partir de uma mente estrangeira, como provavelmente só poderia ter sido escrito por um estrangeiro. O olhar externo intrinsecamente permite rupturas e permissões inalcançáveis àqueles que vivem dentro do contexto retratado.

Se Mark Fischer encontrou João Gilberto?

Leia Ho-ba-la-lá.

Baú: James Cameron vs. H. R. Giger

Extraído da edição 119 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


Contexto: “Considerando a reação extremamente positiva a seu incrível trabalho, premiado com o Oscar, no filme anterior, pouco surpreende a ‘decepção’ de H. R. Giger por não ter sido contatado quando teve início a produção de Aliens, o segundo episódio do que ainda é uma das franquias mais bem-sucedidas da história do cinema. O célebre artista suíço que concebeu o lindamente horrendo alienígena no final da década de 1970 expressou seu desagrado e, através de seu agente, Leslie Barany, escreveu ao diretor da sequência, James Cameron. Três meses depois, Cameron explicou sua decisão nesta carta fascinante e extraordinariamente honesta.”

Prezado sr. Barany:

Lamento que a intensa pressão para concluir “ALIENS” não me permitiu responder a carta de 3/11/86 que o senhor escreveu em nome de seu cliente, sr. H. R. Giger.

Nessa carta, o senhor menciona a “decepção inicial” do sr. Giger por não ter sido contatado a propósito de “ALIENS”, o que é muito compreensível, já que ele é o autor das criaturas e dos cenários. Ironicamente, foi a produção de “ALIEN”, com sua bizarra paisagem psicossexual do subconsciente criada pelo sr. Giger, que despertou meu interesse pelo projeto de uma sequência.

No entanto, tendo sido diretor de arte antes de me tornar diretor, achei que tinha de colocar minha marca no projeto. Só assim o projeto faria sentido àquela altura de minha carreira, quando eu já tinha algumas ideias e criações originais que podia levar adiante com idêntica recompensa financeira e com maior liberdade como autor.

Achei que criar uma sequência pode ser um exercício incômodo em termos de equilibrar impulsos criativos, a vontade de criar algo inteiramente novo e a necessidade de seguir o original. A marca visual do sr. Giger em “ALIEN” (e que muito contribuiu para o sucesso do filme) é tão forte e onipresente que tive medo de ser esmagado por ele e seu trabalho, se o incluíssemos numa produção da qual ele tinha mais direito de participar do que eu, de certo modo.

A 20th Century Fox gostou da história que apresentei e por isso me deu a oportunidade de criar o mundo que imaginei ao escrever. Aproveitei essa oportunidade e para a criação de efeitos especiais chamei desenhistas, escultores e técnicos com os quais eu já havia trabalhado, o que é muito natural, quando há necessidade de cumprir prazo e ater-se ao orçamento.

Outro fator de minha decisão foi o conflitante envolvimento do sr. Giger em “POLTERGEIST II”, que infelizmente não utilizou suas ideias tão bem como “ALIEN”.

Digo tudo isso para me explicar e me desculpar, com a esperança de que o sr. Giger considere a possibilidade de me perdoar por lhe abduzir seu “primogênito”. Se assim for, poderá surgir uma oportunidade de participarmos com respeito mútuo de um projeto inteiramente novo e original em que a única limitação seja sua esplêndida imaginação.

Sou, antes de tudo e sempre, fã de seu trabalho (uma litografia assinada do ovo alienígena encomendado por ocasião de “ALIEN” é um de meus bens mais preciosos).

Cordialmente,

James Cameron, 1987 (Cartas Extraordinárias. Org.: Shaun Usher. Trad.: Hildegard Fest, Companhias das Letras, 2013).

Amanda Vital: Ombudswoman 9: nômades digitais

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


— E a menina trabalha?

— Trabalho sim senhor, todos os dias. Estou trabalhando agora mesmo.

— Mas no que trabalha?

— Eu sou assistente editorial em uma editora brasileira.

— Então está cá temporariamente?

— Não, eu moro aqui em Portugal, mesmo. Já vai fazer uns quatro anos.

— E como é que trabalha para uma editora brasileira?

— Por trabalho remoto. Faço tudo pelo computador.

— Ah! É como os nómadas digitais?

— Não, não é como os nômades digitais.

— Como não?!

— É que esse tipo de trabalho que eu faço sempre foi pelo computador. Quer dizer… pelo menos nos tempos digitais, informáticos.

— Pois então! É nómada digital.

— Mas eu não sou.

— Trabalha em outro país e pode fazer tudo pelo computador? É nómada digital, sim.

— Mas não sou. Eu não tenho o estilo de vida do nômade digital.

— Que estilo de vida?

— Sei lá. Supergentrificar países, comprar trocentas casas e terrenos ao preço da chuva e cobrar aluguéis caríssimos, não contribuir com a economia local?

— Mas o nómada digital não precisa necessariamente fazer isso. Até tenho um amigo britânico que…

— Foi só um exemplo.

— Ainda acho que a senhora é nómada digital.

— Não sou, não. Eu nem tenho o visto para nômades digitais!

— Mas muitos não têm! Esse meu amigo não tem.

— Ele pode pedir.

— E a menina, não?

— Não, eu não posso, porque eu não sou nômade digital.

— E o que é que a desqualifica enquanto nómada digital?

— Minha renda mensal é inferior à quantidade mínima de euros que os serviços pedem.

— Mas isso é o valor estimado. Acho que eles aceitam mesmo assim.

— Mas eu não sou nômade digital, senhor.

— Ainda acho que é nómada digital.

— Eu não trabalho no que os nômades digitais costumam trabalhar.

— E no que eles trabalham?

— Não sei bem ao certo, para falar a verdade. No que esse seu amigo trabalha?

— Ele explicou-me uma vez. Não me recordo.

— Pois então. Acho que há trabalho remoto que se qualifica como nômade digital e outros que não.

— Mas ele mexe com o computador assim como você.

— Mas há muito poucos assistentes editoriais, senhor. Não somos assim tantos. E ele pode mexer no computador com, sei lá, programação. Processamento de dados. Essas coisas.

— E o seu não é esse coiso?

— Não, não é.

— A menina está aí com planilha aberta, e-mail aberto… isso é tanga. Faz o mesmo que o meu amigo.

— Olha aqui um livro aberto em PDF. Ele abre livros no computador?

— Por acaso não.

— Então. São coisas diferentes.

— E esses livros aí são virtuais? E-book?

— Não, a maioria vai só para impressão. Esse aqui não vai ter e-book.

— E imprime cá?

— Não mando imprimir, eu só verifico tudo para ir para a gráfica. Eles é que imprimem lá no Brasil.

— Então seu trabalho é só virtual. Digital. É nómada digital, vê?!

— Mas que mania! Eu não sou nômade digital. Para ser “nômade” eu precisava morar em mais de um lugar. Eu só vim do Brasil para cá.

— A menina migrou. É nómada, é.

— Mas eu nem vim a trabalho, vim estudar! Eu só quis ficar aqui depois dos estudos, só! Acho que o nômade tem essa coisa de ter contrato para trabalhar nos lugares específicos, não?

— Não. Esse meu primo não tem isso, não.

— Afinal, ele é primo ou amigo?

— É os dois. A menina é nómada e ponto. E que há de mal nisso?

— Eu não sou neoliberal para ser nômade digital. Não quero ser confundida com um neoliberal.

— Mas que eu saiba não tem nada a ver com política. Vocês, também, a meter a política em tudo… — Tem razão. Me desculpe.

— Estrangeira, ainda por cima. É nómada, é.

— Eu sei lá, eu… olha, não tenho o Instagram de um nômade digital.

— E como é o Instagram de um nómada digital?

— Ah, tipo… cheio de fotos de viagem. Comida chique. Gente saradona.

— Nada, essas pessoas estão nos cafés a trabalhar. O meu vizinho não faz isso do Instagram.

— Mas ele não era seu…? Ah, deixa estar. Olha, pode ser, mas eu tenho que estar ativa para o trabalho o dia todo. Os nómadas têm metas e essas coisas.

— Mas se terminam cedo, podem usufruir dos momentos de lazer. Já vi a menina a fazer isso.

— É claro que eu faço. Mas eu não sou nômade! Eu não sou neoliberal!

— Não é sobre política!

— Tá bem, tá bem! Fogo!!!

— Ai, que disparate!

— O senhor não para de me encher o saco com isso.

— Por que é que está tão nervosa?

— Porque eu não sou nômade digital. E nem quero ser.

— Se a menina não queria ser chamada de nómada digital, era só dizer.

— E faria alguma diferença? Tiraria isso da cabeça?

— Não. Eu estaria a mentir para si.

— Olha, senhor, eu não sou responsável pelo aumento do preço da habitação de Lisboa. Eu moro de favor, inclusive. Não tenho um MacBook nem um iPhone. Essas coisas, sei lá.

— Mas nem todo nómada… até tenho um colega que…

— Ah, não. De novo, não.

14

Editorial extraído da edição de setembro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


A vida financeira do RelevO é dividida em quatro faixas. Por meio delas, estabelecemos metas de arrecadação, partindo do 1º dia do mês até a última semana – quando imprimimos o Jornal. Com este controle, conseguimos observar as quedas de arrecadação e os períodos de maior fluxo de caixa.

Ter um controle básico de entradas e saídas nos permite averiguar meses mais complicados e outros mais tranquilos, quando até podemos colocar contas em dia com antecedência ou planejar o aumento de tiragem. 2023 tem sido um ano mais complicado, apesar do cenário mais otimista previsto no início do ano.

Temos muitas especulações possíveis a respeito das dificuldades financeiras pelas quais passamos — e já falamos sobre isso diversas vezes, sob o risco reconhecido de sermos repetitivos. Contudo, queremos trazer um novo aspecto dessa faceta administrativa que tanto nos suga energia: a nossa falta de causa.

O RelevO, como alega nosso projeto editorial, não é financiado por nenhum partido, nenhum banco, nenhum coletivo literário ou grupo que resolveu ter um Jornal pra chamar de seu. Muito menos algum herdeiro entediado, infelizmente (se você é um, entre em contato conosco – não estamos brincando!).

Os motivos do nosso surgimento não são necessariamente nobres: vontade de ler; vontade de escrever (menos); vontade de encontrar diversão num mundo com tédio, mas sem herança. Será a falta de um propósito mais elevado a principal razão para causamos menos interesse quando estamos em dificuldades?

Seguindo a mesma lógica, mas pela rota contrária: será que as pessoas têm menos propensão a “ajudar” em comparação com participar de uma campanha vitoriosa? Isto é, se mascarássemos nossa contabilidade e concentrássemos nossas forças em parecer muito legais, um projeto mega impactante, será que conseguiríamos apelar para o “FOMO” de cada um? Quem quer financiar uma barca furada?

São perguntas honestas, não retóricas. Se tivéssemos as respostas, pouparíamos todos nós (como dito, não gostamos tanto assim de escrever). Sem muita paciência para estratégias, métricas, indicadores, buzz, conversão, leads, lead magnets, lides (“f*d*-se que a Britney Spears tá grávida de um cavalo”), metas, redes sociais em geral e, basicamente, qualquer coisa que permita alimentar a doença do crescimento na nossa realidade, seguimos assim. Isto é, com organização e disciplina, mas sempre meio à deriva. Os instrumentos são baratos e improvisados, mas familiares. Produzem melodia. Acompanhamos o baixista e nos viramos. Quando as luzes se apagarem e o bar fechar, não insistiremos. Ninguém vai se jogar no chão e espernear. Em 14 anos de existência, conseguimos evitar o proselitismo e a demagogia. Também conseguimos nos divertir. Parafraseando Paulo Leminski – o que, incrível e ironicamente, talvez nunca tenha acontecido nesse jornal de alma e CEP curitibanos –, isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar ao buraco. Uma boa leitura a todos.