Brazilliance: entrevista com Andreas Dünnewald

Extraído das edições de maio (parte 1) e de junho (parte 2) do Jornal RelevO: as duas partes foram agrupadas neste link. O RelevO pode ser assinado aqui. Também apresentamos o Brazilliance na Enclave, nossa newsletter, que pode ser assinada gratuitamente.

Brazilliance: o alemão por trás de um catálogo extraordinário da música brasileira

Descobrimos o Brazilliance por acaso, parando em uma página que fornecia o histórico de lançamentos da música ‘Lamento no morro’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com artistas, capas e tudo. Dois pontos chamaram atenção de imediato: a catalogação impecável da informação e a acessibilidade aos materiais, isto é, além de informação, é possível escutar cada uma das versões elencadas. Há 167 páginas como a de ‘Lamento no morro’, encorpando o mapeamento da música brasileira no século XX, principalmente no que tange ao samba-canção e à bossa nova. Também há 13 mixtapes extraordinárias, separadas por tema (From the Vault), e índices de artistas e músicas. A partir disso, um novo universo se abriu: no Brazilliance, editado pelo alemão Andreas Dünnewald, conhecemos e reconhecemos a música brasileira. Logo nos interessamos, portanto entramos em contato para entender quem (e o que) move um trabalho tão fino. Nesta e na próxima edição do RelevO, compartilhamos nossa conversa e incentivamos, convidamos, convocamos qualquer leitor com o menor interesse na música brasileira a acessar o Brazilliance, um verdadeiro baú boiando pela internet. Dünnewald também é autor de Brazilliance (2011, ed. Conte Verlag), livro que compila 1.111 capas de discos brasileiros lançados entre 1952 e 1977.

JORNAL RELEVO: Nossa primeira pergunta é… por quê? Digo, por favor fale um pouco sobre quem você é e o que gerou esse seu interesse em música brasileira.
ANDREAS DÜNNEWALD: Nasci em 1964 e moro em Frankfurt am Main (Alemanha). Em uma vida passada estudei design de moda, gráficos de moda, design de estampas e alfaiataria em Viena (Áustria). Apesar de certo sucesso inicial depois de retornar, eu não gostava da indústria e a deixei após três anos. Na minha vida atual, trabalho em escritório, o que não era exatamente o plano, mas foi apenas uma das voltas e reviravoltas.
Foi no verão de 2007 que eu, enquanto procurava algo que não ouvia havia muito tempo em minha coleção de discos, deparei com um disco de João Gilberto (que, depois descobri, era uma compilação de seus três primeiros álbuns). Eu conhecia a bossa nova que os brasileiros haviam gravado com músicos de jazz nos Estados Unidos, mas – subitamente me dando conta de que aquele era o som original – me perguntei: como a bossa nova soava no Brasil? Como era o resto da música [brasileira] naquele tempo? Quem eram os músicos e cantores?

JR: O que veio primeiro, sua curiosidade pelas capas de discos brasileiros ou pela música?
AD: Procurando na internet, me surpreendi ao encontrar sites cujos donos investiam horas intermináveis digitalizando discos esgotados e suas capas – e disponibilizando-os aos fãs para download. O melhor deles era o Loronix, do Zecalouro, um músico do Rio de Janeiro com uma rede que incluía alguns artistas da época. Loronix era um paraíso musical formativo, embora tenha existido por apenas três anos. Por muitos anos, o número desses sites cresceu constantemente, mas hoje há apenas alguns ativos, como o Parallel Realities, de Milan Filipović, na Sérvia, e o Toque Musicall, de Augusto TM, no Brasil. Eu tive a sorte de procurar exatamente na hora certa.
Aqui na Europa, existia (e existe) só um repertório curto disponível em CD, mas os downloads de vinil ofereceram a verdadeira extensão. Foi assim que descobri cantores e músicos que amei desde então, como Elza Laranjeira, Miltinho, Edison Machado e Moacyr Marques, bem como músicas cuja beleza eu não sabia que existia, como ‘Não Me Diga Adeus’, ‘Derradeira Primavera’, ‘Você Passou’ e ‘Murmúrio’.
Um amigo – que havia ficado igualmente impressionado com o que encontrei – me pediu para discotecar em sua festa de Ano Novo, e projetamos um slideshow com 300 capas de discos na tela para que os convidados pudessem ver aquilo que escutavam. Enquanto ajeitávamos o projetor e a tela, ainda em cima de uma escada, tive a ideia de fazer um livro sobre essas capas deslumbrantes. Foi assim que o Brazilliance começou como livro – apenas para mim e um público privado. Conforme o primeiro rascunho tomava forma, entrei em contato com uma gráfica recomendada por um amigo que trabalhava nessa área. Quando viajei os 200 quilômetros para visitar a gráfica e discutir a escolha de papel e a capa, para minha surpresa, eles me informaram que também tinham uma editora e que queriam publicar meu pequeno livro. Precisei de três anos e meio para, a partir daquela ideia na escada, segurar o livro em minhas mãos.

JR: Sobre o livro… Brazilliance é muito mais focado no design, certo? De que forma ele levou ao trabalho no site?
AD: Considerei acrescentar texto no livro, mas decidi que ele deveria consistir puramente em uma galeria visual. Há alguns livros semelhantes, mas (considerando que o meu seria meramente privado àquela altura) eu não tinha qualquer intenção de competir com eles. Bossa Nova e Outras Bossas, de Caetano Rodrigues e Charles Gavin, foi o primeiro e ainda é o melhor. Infelizmente, trata-se de uma edição limitada, publicada em 2005, que logo se esgotou. Ao menos consegui uma cópia usada, ao contrário do livro seguinte de Gavin, 300 Discos Importantes da Música Brasileira, publicado em 2008 e também esgotado rapidamente. Ademais, há o Bossa Nova and the Rise of Brazilian Music in the 1960s, lançado em 2010 pela Soul Jazz Records, em Londres, com uma diagramação adorável, mas bem menos completo e com alguns erros editoriais.
Enquanto finalizava meu livro, passei a construir meu site, afinal de que outra maneira o mundo saberia sobre o Brazilliance? Além disso, o site nos permite experienciar a música contida dentro dessas capas fabulosas. Para combinar os dois, eu baseava os artigos em páginas duplas selecionadas do livro, de cujas capas escolhia os cantores e músicos para os retratos e as playlists. Naturalmente, esse conceito não poderia continuar para sempre, por isso encerrei depois de 45 artigos e iniciei as páginas de músicas.

JR: Você já esteve no Brasil? Além da música, você mantém algum tipo de relação com a cultura brasileira?
AD: Não, nunca fui ao Brasil e quase nunca conheci brasileiros, embora cerca de seis mil morem na minha região.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

JR: Você havia comentado que não fala português. Como isso afeta sua pesquisa? Você tem algum amigo brasileiro (ou português) para te ajudar – ou sequer precisa?
AD: Ao longo dos anos, aprendi algumas palavras das letras, assim como aprendi algumas das óperas italianas. Falar a língua certamente ajudaria com a pesquisa – e talvez algum dia eu comece a aprender –, mas ela funciona bem com os tradutores online.
Quanto às páginas das músicas, para mim é importante incluir as letras, e por sorte a maioria está disponível na internet. Nem sempre certas, no entanto. Por isso eu sempre as comparo acusticamente com as gravações originais antes de usá-las em um artigo.
Porém, traduções para o inglês [das letras] que refletissem precisamente a dicção e o estilo – portanto, expressão e emoção – seriam a conclusão perfeita para essas páginas. Sem saber as letras, nós (não brasileiros) definitivamente estamos perdendo algo. Traduções automáticas não compreendem as complexidades de uma língua, e muitos dos meus acessos vêm da América do Norte, Europa e Ásia – pouquíssimos entendem as palavras originais. Seria incrível se essa parte artística das músicas pudesse ser compreendida por todos, mas isso demandaria alguém disposto a traduzi-las, o que seria uma tarefa literária.

JR: Em todos esses anos, qual é sua maior surpresa ao lidar com a música brasileira (incluindo as capas)? No sentido de “meu Deus, isso é um tesouro escondido!”.
AD: Nos primeiros anos, claro, qualquer nova música, cantor, banda e arte gráfica parecia uma caça ao tesouro que desenterra joias. Entretanto, a maior surpresa foi quando o neto e o filho de Eddie Moyna me escreveram em questão de dez minutos.
Nos anos 1950 e 1960, designers gráficos sequer eram mencionados pelas gravadoras, e as grandes, como a RGE, não mudaram isso depois. Portanto, infelizmente pouquíssimos nomes são conhecidos. Cesar G. Villela aparentemente foi o primeiro a conseguir fazer um nome para si (que então passou a ser impresso nas contracapas), mas nada pode ser encontrado sobre outros, como Joselito, Maurício, Moacyr Rocha, Mafra – ou Eddie Moyna. Então foi um prazer muito especial – e completamente inesperado – escrever [o artigo] A Special Feature on Eddie Moyna depois que seu filho Carlos me providenciou algumas informações. Porque, até onde eu sei, trata-se do único retrato desse artista gráfico.

JR: Você é um colecionador de discos? Tem os discos físicos dessas capas que chamaram sua atenção?
AD: Alguns anos atrás, reduzi substancialmente minha coleção física, mas minha coleção digital consiste em cerca de 50 mil músicas, das quais cerca de 15 mil são brasileiras. Definitivamente corro risco de me viciar, mas hoje defino o HD do meu laptop como limite. Além de cerca de 80 CDs e 20 discos de vinil, minha coleção brasileira é digital porque é difícil comprar os vinis originais na Europa. Então, aprecio especialmente meu exemplar de Convite ao Drink (1960), de Djalma Ferreira, com seu fabuloso encarte de Joselito e fotografia de Mafra.
Como não falo a língua, não faria sentido abrir uma conta em um portal de sebos brasileiro, onde há muitas opções de escolha. Comprar discos internacionalmente ainda pode ser caro em razão de possíveis taxas alfandegárias. Mas o Youtube também pode ser uma grande fonte de gravações antigas. Eu até encontrei algumas joias em um portal romeno de mp3.

JR: Você já leu Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer? [Nota: livro em que o autor, um alemão, vem ao Rio de Janeiro obcecado para encontrar João Gilberto. Fischer se matou antes do lançamento.] Em termos de livros, especificamente, sei que parte do trabalho de Ruy Castro foi traduzido para o inglês, mas realmente não tenho ideia do que mais pode ter chegado à Alemanha vindo daqui. O que você me diz?
AD: Chega de Saudade, de Ruy Castro [ed. Cia. das Letras; na Alemanha, Bossa nova – The Sound of Ipanema: Eine Geschichte der brasilianischen Musik], é um livro excelente, escrito de maneira muito cativante, com grandes histórias de fundo. Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer, vale a pena por sua perspectiva muito pessoal. Além deles, li alguns livros publicados em inglês no Brasil e nos Estados Unidos, mas não me lembro deles, então evidentemente não foram muito instrutivos para mim. Antonio Carlos Jobim: um homem iluminado [ed. Nova Fronteira], de sua irmã Helena Jobim, ainda está na minha lista.

JR: Brasileiros entram em contato com você por conta do Brazilliance?
AD: Ocasionalmente. Seja para elogiar — o que, obviamente, é sempre um prazer —, seja porque estão procurando algum disco ou música. Mas de vez em quando algo especial acontece.
Certa vez, alguém entrou em contato a respeito do disco Orquestra de Danças (1957), da Orquestra do Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro. O tio dessa pessoa havia composto três das músicas e participado das gravações. O sindicato em questão estava preparando seu aniversário de 50 anos, mas não tinha uma cópia do disco — que não estava disponível em lugar algum. Claro que foi um prazer lhes providenciar, ao menos de forma digital.
Outra vez, um casal me escreveu dos Estados Unidos indagando se João Gilberto e Tom Jobim tinham tocado no cruzeiro que eles fizeram do Rio de Janeiro a Nova York em 1962. Eles me perguntaram se isso poderia ter acontecido. Depois de alguma pesquisa, tive de responder que isso seria muito difícil, tendo em vista que à época ambos estavam tocando em seu famoso espetáculo no Au Bon Gourmet, no Rio, quando ‘Só danço samba’, ‘Garota de Ipanema’ e ‘Samba do avião’ estrearam para o público. Mas foi uma pergunta absolutamente comovente.

JR: O que você geralmente escuta? Em geral, não só de música brasileira. Aliás, você toca algum instrumento?
AD: Cresci escutando discos de jazz e a música pop da American Forces Network (AFN) [serviço governamental de mídia das forças armadas americanas], porque minha mãe não gostava da rádio alemã. Meu programa favorito quando adolescente eram as paradas dos Estados Unidos de 1935 a 1950, todos os domingos de manhã na AFN. Nelas, descobri as orquestras de Tommy Dorsey e Harry James e cantoras como Billie Holiday e The Pied Pipers.
Quando comecei a pintar e desenhar, aos 14, passei por várias fases, e uma delas foi a da Ásia Oriental. Enquanto alguns compravam discos do Abba, eu comprava swing music, música japonesa de koto e óperas chinesas, que eu ouvia alto, muitas e muitas vezes. Isso me levou à [ópera] Turandot, de Puccini (a gravação definitiva, com Birgit Nilsson, 1966), e ao mesmo tempo eu ia de ‘Mirage’, de Stan Kenton (de seu disco Innovations in Modern Music, 1950), direto para A Sagração da Primavera, de Stravinsky.
No início dos anos 1980, o pós-punk e a new wave se tornaram meu universo musical, mas também o pop e o soul dos anos 1960 — e mais jazz (hardbop e cool jazz), além de cantoras como Sarah Vaughan e Nancy Wilson. Eu não sobreviveria na tão falada ilha deserta sem New Order/Joy Division, Siouxsie and The Banshees, Chris Connor, Dusty Springfield e tudo que soa como Wall of Sound, de Phil Spector, e Motown. Óperas, principalmente as de Puccini e Verdi, têm um lugar especial no meu coração, tal qual cantoras como Renata Tebaldi.
A música mais tocante já escrita, na minha opinião, é ‘Ich bin der Welt abhanden gekommen’, de Gustav Mahler, principalmente quando cantada pela inigualável Christa Ludwig. Qualquer um que não seja duramente afetado pela beleza e pela verdade dessa música provavelmente está morto.
O que torna a música tão incomparável é seu efeito imediato e livre de influências. Podemos ter nossas preferências e achar outras coisas absolutamente detestáveis, mas nunca conseguimos escapar dos efeitos inconscientes da música. Nesse sentido, para mim, essa é a mais emocionante das artes, talvez até a mais humana.
Não sei tocar nenhum instrumento, não sei ler partituras e, infelizmente, também não sei cantar, embora eu creia que a voz seja o instrumento mais belo. Mas isso não me impede de me ver como um indivíduo musical, porque não limito meu gosto e tenho a necessidade de adquirir conhecimento a respeito da música de que gosto — conhecimento que me permite compreendê-la melhor.

JR: Na primeira parte da entrevista, perguntei por que razão você começou o Brazilliance. Agora te pergunto: por que você o mantém? 
AD: Conhecedores do jazz estão familiarizados com o Great American Songbook, uma coleção de standards de jazz e música popular que se estendem aproximadamente de 1920 até 1960. Mas a ideia de cânone das músicas mais importantes e influentes, cujo legado resistiu ao teste do tempo, aplica-se igualmente ao Brasil, porque inúmeras músicas, principalmente dos anos 1930 até os anos 1960, tornaram-se standards por direito próprio. Elas foram gravadas muitas vezes, suas letras são conhecidas e elas ainda são amadas e tocadas. Gosto de pensar nelas como o Brazilian Songbook, embora ninguém o chame assim. E porque aparentemente ninguém tentou juntar tal coleção — que apresente as diversas gravações e tente informar algo sobre as composições —, fiz isso com o Brazilliance desde 2014.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

JR: Por fim, de que maneira você compila e organiza as informações do Brazilliance? (Percebi que boa parte das páginas da seção de referências, por exemplo, já nem é mais atualizada).
AD: Até o momento, o Brazilliance tem cerca de 170 páginas de músicas de 1937 até 1970; a cada dez, uma é uma versão brasileira de uma música internacional. ‘Manhã de Carnaval’ é a mais extensa, com 75 gravações. Geralmente apresento todas as versões que tenho ou consigo encontrar. Apenas em listas longas eu retiro uma ou outra, quando estas não acrescentam algo em relação às adicionadas. Ainda resisto à tentação de publicar músicas que, incompreensivelmente, foram gravadas apenas uma vez, então é necessário haver ao menos duas gravações para eu criar uma publicação. Idealmente, músicas do mesmo ano de origem não seguem uma à outra, e a ordem de publicação também deve alternar entre gêneros e velocidade, bem como em número de gravações.
De acordo com os anos de origem, o foco provavelmente se concentra por volta de 1960, mas esses anos foram obviamente muito criativos, com um número impressionante de grandes composições. Gosto particularmente das orquestrações e dos arranjos daquele tempo, e, estilisticamente, essa época também foi bastante diversa. Sou especialmente apegado ao [gênero musical] sambalanço, por exemplo. Apesar de sua popularidade, ele só corresponde a um período muito curto.
A pesquisa muitas vezes é difícil, porque as fontes não são tão extensas quanto as de gêneros dos Estados Unidos e da Europa. Os arquivos mais importantes são o Instituto Memória Musical Brasileira e o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Contudo, nenhuma fonte é livre de erros e, para conseguir fornecer uma informação confiável, preciso comparar muito conteúdo on-line com criticidade. Muitas vezes é como um quebra-cabeças em que você tem de organizar as peças enquanto as agrupa. Ainda assim, meu próprio conteúdo dificilmente é livre de erros.
Não cito as fontes porque isso aumentaria meu empenho enormemente. Mas verifico tudo — tanto quanto é possível — por precisão e, quando em dúvida, me abstenho de fornecer informações. Minha página de referências lista de forma incompleta os sites que lidam com a música sobre a qual escrevo, ainda que alguns deles tenham sido descontinuados.
Além das páginas de músicas, outros capítulos adicionaram facetas ao longo dos anos:
From the Vault, em que ofereço minhas compilações pessoais. Comecei em 2017, quando tinha pouco tempo para as páginas de músicas. Como essa série parece ter tido alguma popularidade, porém, decidi continuar.
Em 2020, comecei o Reutilisation, uma série sobre gravações nas quais arranjos e outras faixas foram reaproveitadas. Na maioria dos casos, a gravação original continha um vocalista, ao passo que a segunda era instrumental. Um olhar mais atento revela que, em cada caso, ambas as gravações foram lançadas pela mesma gravadora (ou por uma de suas subsidiárias), o que claramente indica que elas apenas queriam reduzir os custos de produção ou aproveitar-se de músicas populares uma segunda vez. Mas os resultados geralmente são muito válidos. Além disso, é a perfeita trivia de colecionador.
Em 2021, comecei o Pseudonyms, uma série sobre músicos que utilizaram pseudônimos para além de seus nomes reais. Como é uma série nova, ainda há apenas um artigo até o momento — sobre Ed Lincoln, que certamente teve mais [pseudônimos] que qualquer um, com ao menos 18 —, mas outros virão.
E quem sabe, numa dessas invento outra coisa. O Brazilliance se tornou meu bebê (enquanto escrevo isso, minha gata, Elza, subitamente olha fundo nos meus olhos, mesmo que ela parecesse estar dormindo) e ainda é divertido. Então, definitivamente pretendo continuar… Bem como meu segundo site, KEUP — My Favourite Things, que comecei em 2019. Quase se poderia pensar que o Brazilliance não é o suficiente para mim.

Brazilliance, por Andreas Dünnewald.

Diamond Dogs

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Há quanto tempo não falamos do nosso aclamado David Bowie!

Uma descoberta acidental nos trouxe de volta ao Starman. Atentem-se, numerólogos, pois o disco Diamond Dogs completa 47 anos no fim de maio. Este foi lançado em 1974. Por sua vez, Bowie nasceu em 1947. E Diamond Dogs foi baseado no romance 1984, escrito em 1948 (mas, lamentavelmente, publicado em 1949).

DD é um discaço, talvez um pouco ofuscado pela sonoridade ainda um tanto parecida com a de Ziggy Stardust (1972), embora não possamos chamá-lo de subestimado.

A começar pela capa, desenhada pelo belga Guy Peellaert (1934-2008). Se sua parte frontal já fornece traços esquisitos, possivelmente grotescos, a contracapa nos presenteia com um cão-Bowie… em todos os seus membros. Polêmica, ela seria reeditada para cobrir o falo canino (ah, a pureza de um mundo pré-internet).

O álbum, enfim, abre com uma introdução falada, situando este universo orwelliano (não licenciado, pois Sonia Orwell, viúva de George, não permitiu a adaptação teatral que Bowie tanto almejava). Ouvimos sobre pulgas do tamanho de ratos e ratos do tamanho de gatos na pós-apocalíptica Hunger City.

A partir disso – “this ain’t rock and roll, this is genocide!” –, a faixa-título joga tudo para cima, levantando cães e mullets coloridos.

E então, Diamond Dogs contém um de meus momentos favoritos em toda a carreira de Bowie: o tríptico formado pelas faixas 3, 4 e 5, isto é, ‘Sweet Thing’, ‘Candidate’ e ‘Sweet Thing (reprise)’, respectivamente (as três juntas aqui).

Essa beleza expressa um decadentismo megalomaníaco que ora se acalma, ora cresce com metais e uma das grandes exibições vocais do inglês: ele desce muito baixo e voa muito alto ao longo da tríade. Um fone de ouvido utilizável ajuda a capturar as sutilezas da produção, a qual tem o toque de Tony Visconti, que viria a trabalhar com Bowie basicamente para sempre.

Talvez por essa execução primorosa, tão caprichada – ou talvez pelo mero desgaste –, a faixa seguinte, ‘Rebel Rebel’, soe como uma aporrinhação infantil. Eis um dos raros casos em que Bowie conseguiu ser chato (quem discorda que pinte um raio na testa…). Sem brigas, amigos, pois assim acaba o lado A.

O lado B não decepciona, longe disso. Com um adicional: nele, David Bowie já insere elementos que permeariam seu trabalho seguinte, Young American (1975), imerso no soul e afastado do glam rock pelo qual a fase Ziggy Stardust é conhecida. (Os mais afundados no Bowieísmo devem ouvir esta versão de ‘1984/Dodo’ e assistir a isso aqui.)

Como sempre, as letras são evocativas o suficiente para gerar uma experiência estética, mas vagas a ponto de não se fecharem em um só caminho.

Os discos conceituais de Bowie são assim: muito menos narrativas estruturadas, com início, meio e fim, e muito mais imagens, cenários, descrições capazes de fazer sentido, mas que exigem do ouvinte uma ligação de pontos. Trata-se de uma vagueza poética que trabalha para o artista. Por isso mesmo, as temáticas funcionam de forma tão atemporal.

De uma ponta à outra, Diamond Dogs é um trabalho incrível, capaz de abraçar o épico, executá-lo com maestria e não dar a mínima. Na discografia de qualquer outro indivíduo, seria o apogeu absoluto; na de Bowie, é apenas mais um momento incandescente.

Saul Bass, um corpo que ainda cai

Extraído da edição 88 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Poucos elementos ficaram tão associados a Alfred Hitchcock quanto as aberturas do designer gráfico Saul Bass (1920-1996). Este, por sinal, vai muito além dos créditos do diretor inglês, tendo trabalhado com diretores variados e deixado sua marca em muitos pôsteres – e logotipos – ao longo de sua carreira.

Se hoje o cinema e a televisão oferecem créditos dinâmicos, envolventes e com uma tipografia que flutua, captura nosso olhar e conta uma história, muito disso é mérito de Bass.

Até então, os créditos (iniciais ou finais) eram basicamente estáticos, mas esse designer americano identificou a oportunidade de unir forma e conteúdo de uma maneira tão característica que, hoje, forma um gênero próprio.

Ele chamou atenção com um de seus primeiros trabalhos no cinema, o que aconteceu na abertura do noir O Homem do Braço de Ouro (1955, já em domínio público), de Otto Preminger, com Frank Sinatra e Kim Novak (que viria a estrelar Um Corpo que Cai [Vertigo] em 1958).

Aliás, Saul Bass faria os créditos de Pelos Bairros do Vício (Walk on the Wild Side) em 1962, também adaptado de romance de Nelson Algren, autor d’O Homem do Braço de Ouro.

Com Hitchcock, a parceria trouxe resultados marcantes: Um Corpo que Cai, Intriga Internacional (1959, imagem que abre o texto) e Psicose (1960). Só o altíssimo nível. Este editor andou revendo os dois primeiros, daí a lembrança. É impossível deixar passar a contribuição de Bass – ou não perceber sua evidente influência sobre a área, que hoje dedica uma enorme atenção às sequências de título.

Com Martin Scorsese, já na década de 1990 – e com Elaine Bass, sua parceira criativa e esposa –, Bass colaborou em outros filmes notáveis: Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), Cabo do Medo (1991), A Época da Inocência (1993) e Cassino (1995).

Saul Bass morreu de LNH (linfoma não Hodgkin) aos 75 anos, em 1996.


  • Neste vídeo, vemos uma compilação de vários dos créditos criados por Saul Bass. Essencial.
  • Além de sua influência eminente (com e mesmo), duas homenagens a Bass são muito explícitas: as aberturas do filme Prenda-me se for Capaz (2002) e da série Mad Men (2007-2015). Sobre esta última, aqui vemos uma discussão bastante aprofundada.
  • Linkamos no começo do texto, mas vale o reforço: pôsteres e logotipos.

Baú: ninguém escrevia como David Nasser

Extraído da edição 88 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Ninguém escrevia como David Nasser. E ninguém tão sem escrúpulos. Em 1946, induzira o deputado Barreto Pinto a posar de fraque e cueca em seu apartamento no leme para o fotógrafo Jean Manzon, e fez disso uma reportagem de inacreditáveis doze páginas em O Cruzeiro – do que resultou a cassação do mandato de Barreto Pinto em 1949. Como repórter de O Cruzeiro, metade do que David apresentava como fato não passava de ficção – e, na outra metade, o que pontificava no texto era ele, não o assunto. Fazia-se íntimo de cantores, compositores e políticos com quem nunca trocara mais que um bom-dia. E era insuperável na ofensa e na infâmia. À custa disso, e por ter o patrão Assis Chateaubriand às suas costas, construiu o mito de repórter mais poderoso do país.
Mas o poder de David se limitava à página impressa. Fisicamente, ele era uma antologia de mazelas. Nascera muito abaixo do peso, com paralisia parcial nas pernas e problemas de visão. Só começara a andar aos três anos, com a ajuda de aparelhos, e chegara à idade adulta com problemas de coordenação motora. Não conseguia caminhar em linha reta, nem se vestir, nem se abotoar sozinho. À mesa, nas refeições, fazia uma lambança: com dificuldade para cortar os alimentos e levá-los à boca, escorria o alimento pelo próprio peito ou sujava quem se sentasse perto dele. Não admira que evitasse certos ambientes – devia ser o único jornalista do Rio que não ia ao Vogue ou a boate alguma. Talvez por isso falasse delas com desprezo.
O destino natural das “memórias” de Herivelto [Martins] seria O Cruzeiro, revista de que David era o principal nome. Mas, sabendo com quem lidavam, os diretores executivos da revista, Accioly Neto e José Amadio, as recusaram – afinal, por que O Cruzeiro se disporia a massacrar uma cantora tão querida e popular como Dalva de Oliveira? David não se alterou. Levou a série para o vespertino Diário da Noite, outro importante órgão dos Diários Associados, e, em 22 artigos que se estenderam por cinco semanas, dedicou-se a moer Dalva. Os títulos só faltavam saltar da página – “Boa cantora, péssima esposa”; “Dalva, rainha do despudor”; “Meu lar era um botequim”; “[Dalva] Não é mãe; teve filhos” – e garantiram a onipresença do Diário da Noite em todos os trens da Central, bondes e lotações naquele período.

Ruy Castro. A noite do meu bem, 2015 (ed. Companhia das Letras).

Brazilliance

Extraído da edição 87 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

Existe um repositório extraordinário da música brasileira no século 20 alimentado, catalogado e conduzido por um alemão – há praticamente dez anos. Trata-se do Brazilliance, trabalho realmente inacreditável de Andreas Dünnewald.

Descobri o Brazilliance por acaso, parando em uma página que fornecia o histórico de lançamentos da música ‘Lamento no morro’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com artistas, capas e tudo. Dois pontos chamaram atenção de imediato: a catalogação impecável da informação e a acessibilidade aos materiais. Isto é, além de informação, é possível escutar cada uma das versões elencadas.

mais de 170 páginas como a de ‘Lamento no morro’, encorpando o mapeamento da música brasileira no século 20, principalmente no que tange ao samba-canção e à bossa nova. Também há 13 mixtapes finíssimas, separadas por tema (From the Vault), e índices de artistas e músicas. Ademais, Dünnewald é autor de Brazilliance (2011, ed. Conte Verlag), livro que compila 1.111 capas de discos brasileiros lançados entre 1952 e 1977.

Subitamente hipnotizado pela iniciativa, entrei em contato com o responsável pela proeza, tentando compreender quem é ele e o que impulsiona uma atividade tão cuidadosa, precisa e completa. Consegui entrevistá-lo: a primeira parte da interação foi publicada na edição de maio do RelevO (já enviada pelos Correios); a segunda estará na edição de junho.

Uma vez em circulação, não deixaremos de juntar ambas as partes nessa grande rede. Brazilliance é o tipo de projeto maluco que merece todo tipo de atenção possível, e a Enclave humildemente sugere que qualquer indivíduo com o mínimo interesse pela música brasileira o confira e invista um tempo percorrendo seu acervo.

E o que, afinal, haveria de mover tamanho empenho advindo de Frankfurt? Um fascínio pela cultura local, algum grande contato pessoal, alguma memória interligada ao nosso país? “Não, nunca fui ao Brasil e quase nunca conheci brasileiros”, disse-me Andreas Dünnewald. Por isso mesmo, Brazilliance não parece explicável. Que saibamos aproveitá-lo!

Há som mais belo que ‘Clair de lune’?

Extraído da edição 86 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Fonte: Tom Mrazek.

O terceiro movimento da Suite bergamasque (1905), de Claude Debussy (1862-1918), atende por ‘Clair de lune‘ (luar) e teve como inspiração o poema homônimo de Paul Verlaine (disponível aqui).

E esse pedaço, esse breve e notável movimento, certamente é uma das criações musicais mais sublimes de sempre. Você já deve ter escutado ‘Clair de lune’ por aí, conscientemente ou não. Se já conhece, vale reencontrar. Se não conhece, não custa dedicar uns minutos, pois há muito a se ganhar.

A Enclave de hoje, portanto, prefere mostrar a descrever. Limitamo-nos a traduzir ‘Clair de lune’ como uma contemplação da solidão; uma brisa noturna; um chamado às belezas da dor.

Deixamos algumas sugestões nos seguintes links. Com certeza há muito mais pela internet.

Suite bergamasque completa
Seong-Jin Cho (primeira parte) / Jean-Efflam Bavouzet (segunda parte)
Alain Planès
Gustave Cloëz & André Caplet (orquestrada)

‘Clair de lune’
Por uma hora
Leopold Stokowski (orquestrada)
Lucien Caillet (orquestrada)
Roxane Elfasci (violão)
Ray Chen & Julio Elizalde (piano e violino)

Bônus
Kamasi Washington – ‘Clair de lune
Susumu Yokota – ‘Purple Rose Minuet
Polo & Pan – ‘Pays Imaginaire

Baú: Tom Jobim

Extraído da edição 85 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Eu digo por razões dialéticas: a proximidade do mar, o fato do João [Gilberto] ser baiano, o fato do Vinicius [de Moraes] ser um homem culto. Eu acho que houve uma série de circunstâncias para que isso [bossa nova] acontecesse. No Rio de Janeiro ainda existe uma influência climática, uma vagabundagem, certa folga que favorece a criação. Aqui é o pindorama. Você não pode compor “No rancho fundo” em Nova Iorque, não pode. Você pode compor como memória: Guimarães Rosa, por exemplo, escreveu grande parte de sua obra na Alemanha, João Cabral de Mello Neto em Barcelona. Mas o que eles traziam dentro? Quer dizer, o sujeito escreve como memória. É possível que eu vá pra Moscou, fique num quarto de hotel e faça um choro autenticamente carioca. Mas isso é pelo que eu tenho dentro da cabeça. Você não pode se descartar do seu meio. Eu nunca fiz outra música que não música brasileira, porque é o melhor que a gente sabe fazer. (…)
O Villa-Lobos, por exemplo, dizia que era o último dos grandes músicos. Tive a felicidade de conhecê-lo e creio que ele queria dizer com isso, que um músico no sentido que ele foi cada vez se torna mais difícil no mundo de hoje, entende? A música passa a se tornar uma arte visual, ligada a gestos, roupas, imagens, atitudes, política e tudo o mais. A gente pergunta: mas qual é o meio de se ouvir uma sinfonia? Radinho de pilha ou televisão? Esses dois meios são inadequados. Como você vai ouvir a Sagração da primavera no radinho do carro? Você pode, mas está perdendo 90% do conteúdo sonoro.
A música exige uma atenção por parte do ouvinte que hoje em dia não tem mais tempo. Ainda outro dia li no jornal que tudo que tem mais de cinco minutos de existência deve ser destruído. Quer dizer, toda obra que exige muito tempo, como um romance por exemplo. Você vê, nós pensamos hoje em dia em termos de leitura dinâmica, de informação, de passar a vista em quatro ou cinco jornais, três revistas e se libertar daquilo o mais rapidamente possível e, ao mesmo tempo, estar informado para estar por dentro, não é? Eu não creio que essas coisas levem à criatividade. O indivíduo que sofre de superinformação, de superalimentação, de supertrabalho, de superócio, ele está sempre dirigido, entende? E as pessoas são dirigidas muito facilmente, o que é lamentável descobrir, não é fato? (…)
Sinto uma padronização e diversificação de quase tudo. Muitas vezes, os jovens que se dizem livres e que almejam a liberdade estão todos se vestindo igual, tendo as mesmas atitudes, o que nos faz supor que eles não sejam tão livres assim. (…) O sujeito acreditar em ideias é um problema, o raciocínio comparativo é falso. O dar nome às coisas prejudica a compreensão: quer dizer eu chamo Maria de Maria, e penso que conheço Maria, quando Maria não é nada disso.

Antonio Carlos Jobim, 1968 (!). Encontros: Tom Jobim. Frederico Coelho e Daniel Caetano (org.). Azougue Editorial, 2011.

Baú: Thomas E. Skidmore

Extraído da edição 84 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O golpe de 10 de novembro foi o triunfo do desejo de Vargas, evidente havia muito tempo, de permanecer no cargo além do mandato legal, que expiraria em 1938. Desde 1935 ele empurrava os adversários para uma posição em que lhe fosse possível desacreditá-los ou refreá-los, ao mesmo tempo que, cuidadosamente, cultivava o apoio de bem estabelecidos grupos de poder, como os cafeicultores e a cúpula militar. Para apaziguar os cafeicultores, por exemplo, em outubro de 1937 Vargas havia baixado o teto dos preços do café brasileiro, num esforço para aumentar as vendas (e, quem sabe, a renda total das exportações) no exterior. No que dizia respeito aos militares, o comando do Exército planejava uma solução autoritária para a crise política brasileira desde a revolta comunista de novembro de 1935. A cúpula militar achava que o Brasil não tinha capacidade para aguentar a confusão e a indecisão da disputa política aberta, e amedrontava-se com a possibilidade de novos avanços dos radicais de esquerda – que, se um dia chegassem ao poder, poderiam acabar com o papel de árbitro supremo dos conflitos políticos exercido pelas Forças Armadas. No fim das contas, o golpe de 1937 foi possível porque a classe média, esse pequeno mas importante grupo social capaz de assegurar o equilíbrio de qualquer sistema de eleições livres restrito a eleitores alfabetizados, estava confusa e dividida. Alguns eleitores de classe média continuavam leais a seu tradicional constitucionalismo liberal, e depositaram suas esperanças em Salles Oliveira na campanha de 1937. Outros, perdida a confiança em seu liberalismo original, voltaram-se para o radicalismo de esquerda ou de direita. Ao fazer isso, admitiram na prática que a fórmula liberal já não se aplicava ao Brasil e que estavam, portanto, preparados, ainda que inconscientemente, a aceitar, quase sem protesto, o tipo especial de autoritarismo que Vargas impôs, de súbito, em novembro de 1937. O golpe de novembro de 1937 fechou o sistema político. E todas as questões de força eleitoral nas eleições marcadas para janeiro de 1938 se tornaram acadêmicas.

Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), 1967 (Companhia das Letras, 2010).

After Hours, o esquecido de Scorsese

Extraído da edição 82 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em noites de confinamento – voluntário ou por inércia –, a imagem das ruas vazias da cidade têm me lembrado de After Hours (Depois de Horas), não um disco recente, mas o filme de Martin Scorsese, lançado em 1985.

After Hours me fez gostar de cinema, isto é, não de “ver um filme”, mas de apreciar a imagem, a edição, a trilha sonora, as pontas amarradas de uma história; enxergar aquela arte como uma linguagem própria. O estalo começou ali, na adolescência.

Trata-se, claro, de conclusões retroativas: não tive uma epifania e/ou passei a dedicar a vida ao Expressionismo alemão no Ensino Médio (nem agora). Mas o território começava a ganhar um mapa; um esboço de mapa. Por isso, Depois de Horas, além de seu valor intrínseco, puxa um valor afetivo.

Como toda curiosidade genuína, esta nasceu com a guarda baixa, não contaminada pela pretensão. Lembro de ligar a televisão (cinza, de tubo) no início da madrugada e, por acaso, parar no canal que transmitia After Hours.

Não sabia que aquele era um filme de Scorsese, o que tampouco faria diferença, porque ‘scorsese’ podia muito bem ser o nome de um molho, à época. Também não saberia descrever a função de um diretor. Hoje, me impressiona quanto não ouço grandes menções à película quando o assunto é a filmografia desse brilhante contador de histórias.

No entanto, havia uma magnetismo naquelas imagens, mesmo que jurássicas do ponto de vista de um adolescente. Tudo se passava à noite, porém uma noite estranha, com personagens fascinantes, pitorescos. Nenhum cenário ou sujeito daquela trama poderia existir sob a luz do dia.

Exceto o protagonista, Paul, interpretado por Griffin Dunne (recentemente, ele apareceu na extraordinária Succession). Paul é um eterno deslocado no enredo, atirado como uma bola de pinball entre um desconforto e outro – o que faz de sua jornada tão cativante.

Em Nova York, nosso herói conhece uma mulher e combina de encontrá-la após o trabalho. A partir daí, surgem problemas que, ao invés de soluções, acarretam novos problemas. Até porque a verdadeira protagonista de After Hours sequer é Paul, mas a própria noite, com seu eterno mistério e a não linearidade exclusiva às sombras.

Flutuando por cenários típicos de Edward Hopper, mas com enorme sensibilidade cômica, Scorsese costurou um filme de Alfred Hitchcock a seu modo – podemos chamar de paródia. São premissas literalmente fascinantes, pois geram um deslumbramento, uma curiosidade que leva à aproximação.

Talvez esse efeito seja amplificado agora, quando não conseguimos nós mesmos testemunhar qualquer não linearidade na magia da noite. Afinal, não há magia: travados no tempo, resta o resgate de elementos queridos. After Hours é um deles.

Mère Louise, um cabaré western em Copacabana

Extraído da edição 79 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Mère Louise, na esquina à direita, no início do século 20.
Foto: Augusto Malta. Fonte: Rio de Janeiro Aqui.

1907, Rio de Janeiro, Copacabana. Muito perto de onde seria o Forte de Copacabana, que ainda não existia (ele foi inaugurado em 1914), exatamente na esquina das atuais R. Francisco Otaviano e Av. Atlântica. Ali funcionava o Mère Louise, restaurante de frutos do mar administrado pela francesa Louise Chabas.

“Restaurante” é uma simplificação. O Mère Louise era um verdadeiro cabaré parisiense, um café dançante à beira-mar carioca. Lembrando que o Rio de Janeiro ainda era a capital do Brasil – e seguia um forte processo de urbanização.

Segundo Ruy Castro, em A Noite do Meu Bem, o estabelecimento funcionava “ao estilo de um saloon do Oeste americano, com varanda, portas em vaivém dando para o salão, piano, balcão, espelho e mesas, tudo em torno de uma cadeira de balanço da qual Madame Louise controlava o movimento. Apesar do ambiente mais propício a vaqueiros, seus clientes eram a nata letrada e boêmia do Rio: políticos, ministros de Estado, diplomatas, artistas e jornalistas, alguns acompanhados de ‘amigas’ ou admiradoras”.

Havia shows, havia comida, havia diplomacia e baixaria. Mas, principalmente, havia serviço – à noite, permanecia sempre aberto – e havia logística – os bondes próximos rodavam até as duas da manhã (podemos ver trilhos na imagem que abre o texto). A seguinte imagem, também do incrível Augusto Malta e também retirada do canal Rio de Janeiro Aqui, mostra o cabaré mais de perto, já num cenário mais urbanizado, com iluminação. Nela, vemos a Av. Atlântica e a praia à direita.

Para as emergências, também havia quartos. “Louise conhecia a todos pelo nome e ia de mesa em mesa, falando com cada um. Tal intimidade tornava natural que, em emergências, ela cedesse – pela escorchante diária de 6 mil-réis – discretos aposentos nos fundos para quem precisasse ‘repousar'”, ainda de acordo com Castro.

Movimentado por figurões, o estabelecimento era visado. As brigas eram comuns; os tiroteios, pouco raros. A atratividade da região também trazia um problema um tanto incontornável: alguns clientes, depois de encher o bucho e a cara, entravam no mar. O resultado é óbvio.

Idosa – mas, principalmente, cansada de confusões e de calotes –, Louise Chabas vendeu o local em 1911. O Mère Louise sobreviveu até o início da década de 1930, quando foi demolido e deu lugar ao Cassino Atlântico. Hoje, ali existe o Shopping Cassino Atlântico. Chabas se aposentou, instalou-se num asilo, desistiu da aposentadoria e administrou outros estabelecimentos. Morreu em 1918, aos 73 anos.

Dezoito menos um

O que este civil garboso faz no meio dos militares da Revolta do Forte de Copacabana, em 1922? Qual é a relação desse evento com o Mère Louise? Pela última vez (hoje!), emprestamos um trecho de Ruy Castro:

Na tarde do dia 5 de julho de 1922, em que dezoito oficiais e soldados rebeldes deixaram o Forte de Copacabana para se bater até a morte contra as forças do governo de Epitácio Pessoa – os “18 do Forte” –, o Mère Louise não tinha por que se meter. Aliás, tudo recomendava a neutralidade. Mas, quando os militares passaram pela sua porta, um de seus clientes, o gaúcho Otavio Corrêa, veio lá de dentro, chegou à calçada e lhes fez um aceno. Estava aderindo à rebelião e queria uma arma. O tenente Newton Prado acedeu e entregou-lhe um fuzil Mauser. Corrêa juntou-se a eles e, na mais famosa foto que se fez da marcha, pode-se vê-lo de terno escuro e chapéu-chile – o único civil da foto –, na primeira fila. Talvez por isso tenha sido um dos primeiros a ser abatido, antes mesmo que chegassem à rua Bolívar. Com isso, o Mère Louise tinha agora um mártir.

Nem sempre o espírito de quem acaba de ser motivado por Cristiano Ronaldo gera resultado.

O escritório onde gostaríamos de procrastinar…

…ou até trabalhar. Elegantemente.

Extraído da edição 77 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

A essa altura de 2020, qualquer comentário sobre 2020 é redundante, repetitivo; uma retroalimentação entre cansativo e cansado. A Enclave te poupará (mas, principalmente, se poupará) de qualquer análise.

Mas houve bons momentos em 2020, naturalmente. Entre aqueles agradáveis e singelos na vida do editor, consta a descoberta acidental de um livro sobre o arquiteto Frank Lloyd Wright (Wright, 2006) escrito por seu aprendiz Bruce Books Pfeiffer (1930-2017) e editado pela Taschen.

O livro foi traduzido para o português (de Portugal), então distribuído no Brasil pela Paisagem. Não sei como foi parar no canto escuro de um sebo pouco charmoso do centro de Curitiba, onde eu havia entrado para buscar outra encomenda e, com a adição de 18 reais, saí com duas. (Aparentemente, ainda há opções baratas no mercado.)

De acordo com a folha de rosto, Wright: construir para a democracia foi impresso em Singapura, o que, em outra descoberta acidental, nos liga à última Enclave. Pois bem, se semana passada sonhamos com coquetéis no Atlas Bar, hoje trazemos a matriz da SC Johnson em Racine, Wisconsin (EUA).

Finalizado em 1939, o edifício contém esse escritório que você vê na abertura do nosso texto. Mas a criação de Wright vai muito além do escritório (embora este nos cative mais no atual momento): o edifício, complementado por uma torre de pesquisa em 1950, é tão singular como encantador, interna e externamente.

Segundo Pfeiffer (p. 57), “Na sala de trabalho principal, uma floresta de finas colunas brancas de betão eleva-se para se abrir em cima e formar o tecto, sendo os espaços entre os círculos cheios de clarabóias feitas de tubos de vidro. Nos cantos, onde as paredes normalmente encontram o tecto, estas param um pouco mais abaixo, sendo continuadas por tubos de vidro que se ligam às clarabóias”.

O Arch Daily descreve o Johnson Wax da seguinte forma:
  • “Estar no edifício é um pouco como estar em uma floresta. Um estacionamento mais baixo, com colunas menores, leva ao saguão. Quando alcança-se a Grande Sala, o céu se abre e você está cercado por esbeltas colunas cogumelos e raios de luz. (…) Wright forneceu espaço de trabalho quase utópico, auto-suficiente e um tanto quanto futurista. A atmosfera moderna e racional foi comunicada através de uma linguagem circular consistente, perfis de canto curvos, formas arredondadas em peças de mobiliários e o uso do vidro Pyrex, que se estendem além dos materiais de cobertura para divisórias de paredes e substituem as janelas convencionais.”

Tal como o bar em Singapura, as fotografias são autoexplicativas. Nesse escritório, gostaríamos de usar o YouTube, reclamar da falta ou do excesso de ar-condicionado, decidir onde almoçar, ouvir fofocas sobre o alto escalão corporativo (sem fomentá-las!), isto é, tudo aquilo que se faz num escritório.

Esta página institucional da SC Johnson contém um histórico e mais fotos, algumas bastante preciosas. O Atlas of Space, por sua vez, dispõe imagens inestimáveis aos interessados – em alta resolução. Dele, extraímos as fotografias no miolo deste texto. Outra página do Arch Daily (aqui, em inglês) apresenta mais imagens e mais detalhes da construção.

Brasília, poema sinfônico

Extraído da edição 73 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Ainda encantado com a música brasileira, deparei com um evento até então desconhecido para meu limitado repertório. Diante de minha surpresa, consultei alguns amigos para averiguar se fui o último no planeta a conhecer Brasília: Sinfonia da Alvorada (1959). Concluí que a descoberta, mesmo longe de obscura, é suficientemente esquecida para justificar meu espanto.

A obra, pois, consiste em um poema sinfônico escrito por Vinicius de Moraes e composto por Tom Jobim. A criação foi incentivada (mas, tecnicamente, não encomendada) por Juscelino Kubitschek – em razão da inauguração de Brasília (DF), em 1960. Ela é dividida em cinco movimentos: I. O planalto deserto; II. O homem; III. A chegada dos candangos; IV. O trabalho e a construção; V. Coral.

O LP, gravado em 1960 e lançado em 1961, teve encarte de Oscar Niemeyer, que já havia trabalhado no cenário da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius (a mesma que virou filme, teve trilha sonora de Jobim e cujo longa-metragem inspirou Bong Joon-ho). Na gravação, a voz que declama é do próprio Vinicius.

Curiosamente, a sinfonia só foi apresentada ao público em 1966, na TV Excelsior. Em Brasília, isso aconteceu apenas em 1986 – seis anos após a morte do Poetinha. Para contextualizar a criação, passo a palavra ao próprio Vinicius de Moraes, em relato disposto no encarte da obra. (Quem quiser ir mais a fundo pode ler esta dissertação).

Esboçado o plano da obra, partimos para Brasília a fim de estruturar temas e poemas em contato humano  com  a  cidade.  Hóspedes  do  “Catetinho”,  hoje  tombado  como  monumento  histórico,  olhávamos  de  nossa  sala-de-trabalho  –  a  mesma  em  que  o  Presidente  Kubitschek  assinou  seus  primeiros  atos  na  nova  capital  –  a  silhueta  quase  sobrenatural  da  cidade  na  linha  extrema  do  horizonte,  recortada  contra  auroras  e  poentes  de  indizível  beleza.  De  madrugada,  enquanto  víamos congelar-se no ar frio o jato ascencional do Boeing-707, escutávamos também o piar das perdizes  e  dos  jaós,  entre  as  surdas  rajadas  intermitentes  do  vento  do  altiplano.Havia  em  nós  essa  tristeza  que  nasce  da  beleza,  e  pavilhávamos  os  capões  de  mato  com  a  sensação  do  irremediável do tempo. Jobim, caçador experimentado e velho piador de pássaros, arremetia mais longe  do  que  eu.  Eu  voltava,  a  partir  do  lindo  ôlho  dágua  do  pequeno  bosque,  para  os  meus  intermináveis passeios na alpendrada do “Catetinho”, onde ficava a pensar o texto da Sinfonia e a esperar a comida simples e gostosa que nos dava “a patrôa” de Luciano, o caseiro: o mais antigo funcionário  de  Brasília.  Apraz-me  dizer  nunca  ouvi,  ao  longo  das  horas  em  que  Antonio  Carlos  Jobim mergulhava no mato, um só tiro perturbar o silêncio das velhas planuras. É minha impressão que o músico perdeu a coragem de chumbar seus coleguinhas alados, mesmo quando constituam ótimo comestível, como é o caso das perdizes.
(…)
Dez  dias  ficamos  assim  no  “Catetinho”,  nesse  dolce  far  niente  de  fazer  uma  Sinfonia,  com  sentinela à porta, pois a princípio os numerosos turistas punham sempre o nariz na vidraça para constatar  como  íamos  de  trabalho. (…)
Falei em piano. É fato. João Milton Prates providenciou-nos um piano que veio de Goiânia. Ajudados por Luciano e três candangos, nós o subimos a braço para o “Catetinho”, com mais mêdo de que seus degraus cedessem ao pêso do que de um enfarte do miocárdio. Naturalmente, pois o “Catetinho” é hoje um monumento histórico, e a estátua do Fundador de Brasília parecia apreensiva, sôbre o seu pedestal no terreiro em frente, com os resultados de nossa operação.

O assunto ressurgiu em entrevista de Tom Jobim a Jô Soares, em 1993 (um ano antes de o músico morrer). Jobim respondeu sobre Brasília: Sinfonia da Alvorada:

“Eu nunca escuto. Mas quando escuto, parece uma piada. Diante do que está lá… Aquele sonho do Vinicius [de Moraes], Juscelino [Kubitschek], Oscar Niemeyer; a gente acreditando, querendo o Brasil e coisa e tal… A gente fez aquilo tudo com um amor danado. Fala no planalto deserto, na chegada do homem, naqueles campos bonitos do senhor; a gente brincando nos campos do senhor. E era muito bonito. Hoje em dia, quando vejo Brasília, fico um pouco nostálgico, entristecido.”

Brasília: Sinfonia da Alvorada está disponível no Spotify e no YouTube: I, II, III, IV e V.

Oscar Niemeyer, Vinicius de Moraes, Lila Bôscoli e Tom Jobim nos bastidores da peça Orfeu da Conceição.

Syd Mead, futurista visual

Extraído da edição 72 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando o ilustrador Syd Mead morreu, em 30 de dezembro do ano passado, a Enclave estava parada. Do contrário, não teríamos deixado passar.

Mead é, direta ou indiretamente, um dos grandes arquitetos do imaginário popular do século passado. Sua influência reverbera interminavelmente, e muito do que vemos na ficção científica – por si só fonte contínua de inspiração para arquitetura, design e moda – partiu desse artista.

Americano, serviu ao exército logo após a Guerra da Coreia. Depois de retornar, graduou-se na Art Center School em Los Angeles (1959), então ingressou na Ford, onde permaneceu por dois anos. Passou as décadas seguintes prestando serviços de ilustração, design e renderização para diversas empresas do mundo inteiro.

Sua consagração no imaginário popular veio com Blade Runner e Tron, ambos lançados em 1982. Tratamos da construção do universo do primeiro na Enclave 58.

Já respeitado como designer industrial, Mead foi chamado pelos respectivos diretores (Ridley Scott e Steven Lisberger) para auxiliar com objetos (incluindo veículos) e cenários das duas narrativas futuristas. Ele já havia trabalhado em Star Trek: The Motion Picture (1979).

Como os filmes foram lançados praticamente ao mesmo tempo – 25 de junho (BR) e 9 de julho (Tron) – não sabemos em qual produção Mead trabalhou primeiro, ou se houve alguma influência direta entre um serviço e outro. Os spinners (carros voadores) de Blade Runner e as motocicletas futuristas de Tron são fruto da imaginação e dos traços do ilustrador.

Mas esses são apenas exemplos pinçados. Basta bater o olho em alguma de suas obras (recomendamos este link) para compreender a grande beleza de seus cenários, sempre envolventes em cores e detalhes. Em uma tela nítida, identificamos todo um universo vivo – e quem se inspirou nele.

Mead ainda trabalharia em diversos títulos, como Aliens, Strange Days, 2010, Elysium e Blade Runner 2049. Sua ligação com o cinema foi compilada no belíssimo livro The movie art of Syd Mead (2017), com prefácio de Denis Villeneuve.

O artista morreu aos 86 anos, em razão de um linfoma. Ele deixou um marido, Roger Servick, com quem havia se casado em 2016. Guardamos seu legado com muito carinho.

Baú: Rudyard Kipling

Extraído da edição 69 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Na cidade grande, havia um grupo de sobreviventes locais, de um contingente sul-americano, que vieram da Guerra. Eles eram alegres e sinceros, mas cada um devia carregar a própria amargura ou nostalgia por baixo de toda a jovialidade e do riso. “Brincadeiras à parte, que tipo de vida era esta para eles?”. E a resposta, com todas inserções e alusões locais, era: “É uma vida boa. Esta é uma vida boa. É claro que temos reclamações, mas no geral é uma vida tão boa quanto se pode esperar. Não há porquê afligir-se, e não há razão para desuniões, se o dinheiro levar a isso. Mas está repleta de tentações, você sabe, independente de ter-se dinheiro ou não”. Deveria-se contentar com isso. Em outra parte, um grupo distinto era formado por alguns homens, mulheres e crianças inglesas à vontade, após um dia de trabalho, em um lindo clube. Ali parecia que nos aproximávamos um pouco mais dos vestígios e meio segredos da vida. Mas as convenções – tanto pior – proíbem interrogar os passantes e perguntar a eles: “Como você vive na realidade? O que acha das coisas daqui – negócios, comércio, empregados, doenças infantis, educação e tudo o mais?”. Assim o rio de rostos fluía com suficiente placidez, e podia-se apenas imaginar o que jazia por baixo da superfície e reentrâncias.

Os brasileiros que encontrei eram interessados e completamente a par dos assuntos externos, mas estes não compunham seu mundo essencial. O Deus deles – eles caçoavam – era brasileiro. Ele dava a eles tudo o que queriam e um pouco mais. Por exemplo, uma vez quando a colheita do café excedeu os limites, Ele enviou uma geada no momento certo, que podou um quarto e equilibrou confortavelmente o mercado. E as vastas terras do interior do país estavam repletas de tudo o que se poderia querer, esperando para ser usado no devido tempo. Durante a Guerra, quando foram obrigados a prover por si mesmos metais, fibras e coisas assim, mostraram uma amostra a um índio e perguntaram: “Onde se pode encontrar mais disto?”. Então ele pôde guiá-los até lá. Mas possuir tais coisas, eles davam a entender, não implicava desenvolvimento imediato pelas concessionárias. O Brasil era um país gigantesco, com metade ou um terço inexplorado. Ele cuidaria de si mesmo no tempo certo. Pouco depois, fantasiei qualquer coisa nos bastidores, existiu uma linhagem de proprietários de terras com aversão ao mero comprador e vendedor de mercadorias, que sugeria uma origem aristocrática para a construção nacional.

Rudyard Kipling, Um mundo à parte (em Crônicas do Brasil, 1927), tradução ed. Landmark, 2006.

 

Menos colarinho, mais Marlon Brando

Extraído da edição 53 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Da esquerda para a direita, Cary Grant, Clark Gable, Humphrey Bogart e Gary Cooper

Você provavelmente está usando uma camiseta agora, principalmente se estiver em casa. Eu estou. Mas se prestarmos atenção às representações visuais de um passado não muito distante – desde o início do século 20 –, observaremos essa peça em contextos diferentes do atual. Em Mad Men, Peaky Blinders e virtualmente qualquer filme de guerra ou western, a camiseta costuma ser encontrada sob a camisa de botões do personagem masculino.

Ora com henley, ora com ceroula, ora com union suit, fato é que o dorso esteve coberto de maneiras diversas, intermediando a relação da pele com a camisa. Em determinado momento, porém, a camiseta – esta tão popular hoje – deixou de ser algo que usa se por baixo para se tornar algo que se usa. Quando, exatamente?

Claro, transformações culturais não ocorrem do dia para a noite – seria irresponsável atribuir tal mudança a um só evento. Por outro lado, isso é exatamente o que faremos, visto que carecemos de compromisso com a verdade, confundimos correlação com causalidade e porque, afinal, acabamos de alertar para nossa licença poética (“qualquer coisa, chama de literatura”, aconselhou um amigo historiador, sóbrio há quase dez dias).

Uma contextualização responsável já foi feita no Gizmodo, cuja leitura recomendamos. Dela extrairemos algumas informações antes de seguir adiante:

“Pouco após o fim da guerra, o autor F. Scott Fitzgerald se tornou a primeira pessoa conhecida a usar a palavra ‘camiseta’ (ou t-shirt, em inglês), em seu romance Este Lado do Paraíso, como um dos itens que o personagem principal leva para a universidade. (…) Quando a Segunda Guerra Mundial começou, a camiseta ‘moderna’ já era comum em escolas e universidades pelos EUA, mas não era onipresente e ainda era usada por adultos, por exemplo, como uma camisa interior. (…) O que fez com que elas se tornassem populares entre todos foi o fim da guerra, quando os soldados voltaram para casa e começaram a incorporar a vestimenta ao guarda-roupa tradicional, da mesma forma como faziam durante a guerra.”

Pois bem. Lembremos o arquétipo do galã na Era de Ouro de Hollywood, desde antes até depois da Segunda Guerra (1939-1945): Cary Grant, Clark Gable, Humphrey Bogart e Gary Cooper, como na imagem de abertura deste texto. Há um padrão claro ali, isto é, de vestimenta – sequer abordaremos fatores raciais, ainda mais evidentes.

Estes senhores, enfim, estão devidamente engomados para nossos padrões atuais. A estrela hollywoodiana, dentro ou fora das telas, era um homem de terno de flanela cinza até os anos 1950, e terno, colete, Brylcreem e chapéu.

Em 1951, o filme Uma Rua Chamada Pecado foi lançado, adaptando a peça homônima de Tennessee Williams (A Streetcar Named Desire, 1947, também traduzida como Um Bonde Chamado Desejo – que, por sinal, hoje seria um ótimo título de funk carioca). E um jovem Marlon Brando, então com 26 anos, apareceu da seguinte forma.

Mais sedutor do que nunca, Brando foi Stanley Kowalski, papel que já vinha interpretando na peça durante temporada da Broadway. Este personagem havia retornado da Segunda Guerra Mundial, e não por acaso é um grande adepto de uma simples camiseta (suada, gasta e até rasgada). Stanley é bruto, instintivo e carnal, uma contraposição visível ao galã hollywoodiano clássico.

Marlon Brando também representava uma mudança na forma de atuar, empregando um envolvimento total ao personagem. Essa postura – a que estamos acostumados hoje – difere do melodrama mais caricato a que associamos a atuação até meados do século passado. Fato é que Brando – à vontade, ousado, e já falei suado? – tornou-se um ícone visual, independentemente de quão abominável pudesse ser o desfecho de seu personagem. A partir do filme, a camiseta passou a ser muito mais aceita, utilizada e procurada como uma peça autossuficiente, isto é, sem a condição de roupa íntima.

Podemos enxergar este momento como um estopim. A camisa e o terno são cada vez mais associadas a contextos formais, ao passo que a camiseta, leve e prática – de algodão ou poliéster, com ou sem estampa –, foi abraçada pelos mais diversos grupos demográficos. Marlon Brando evidentemente não é a causa de adesão generalizada desta peça no planeta, mas um empurrão – e um ponto de referência. Aquele alinhamento do zeitgeist que, se não ocorresse por meio dele, talvez ocorreria da mesma forma, pois a receita já estava no forno. (Não somos tão descompromissados com a verdade!)