Autor: Jornal RelevO
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Dias Perfeitos: em que consiste uma vida bem vivida?
Extraído da edição 123 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
Dias Perfeitos: em que consiste uma vida bem vivida?
Como essas coisas que não valem nada
e parecem guardadas sem motivo
(alguma folha seca… uma taça quebrada…)
eu só tenho um valor estimativo. [1]
Wim Wenders produziu grande beleza, e dessa vez em Tóquio. Este alemão é o diretor de Paris, Texas (1984) e de outros quatro filmes que seu amigo formado em Cinema te recomendou à toa (incluindo O Sal da Terra). Sua última obra, Dias Perfeitos (2023), acompanha um zelador japonês a viver uma rotina mundana — o que, logo questionaremos, talvez não seja um pleonasmo.
Hirayama, o protagonista (Koji Yakusho no mais alto nível), limpa banheiros. Com esmero, capricho, atenção. Ele acorda sempre do mesmo jeito; toma o mesmo café da manhã; locomove-se da mesma forma; mantém os mesmos hábitos (fotografia, jardinagem); descansa na mesma praça; banha-se no mesmo lugar; bebe o mesmo highball. Suas tecnologias já pararam no tempo, o que não demove seu prazer, uma vez que ele permanece entusiasta dos alimentos da alma, como música e literatura. [2]
Ao sair do cinema – pela primeira vez, pois acabei reassistindo dois dias depois –, os pômulos tremendo na contenção de lágrimas, retomei alguns questionamentos a que recorro com frequência. Isto é, sabendo que nosso tempo é finito, por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida?
Em outras palavras, em que consiste uma vida bem vivida? Algumas alternativas óbvias e cumulativas: viajar pelo mundo. Conhecer um grande amor (ou vários). Conquistar poder. Acumular dinheiro.
Qualquer indivíduo que já tenha vivido mais de meia hora neste planeta tem a humildade de não subestimar nenhum desses fatores e, ao mesmo tempo, reconhece que acima de todos eles reside o bem-estar volátil, intempestivo e eternamente angustiado de cada um. Viajar pelo mundo com um grande amor e muito dinheiro certamente ajuda, mas não garante satisfação alguma — não para sempre. Se Anthony Bourdain se matou, por que eu não me mataria?
Com maestria técnica e, principalmente, uma sensibilidade absurda, Dias Perfeitos nos permite absorver como “felicidade” é uma ideia complexa, contraditória e transitória. Mais que isso – a beleza se encontra em dois opostos complementares: (1) a repetição consciente e (2) a quebra inesperada, isto é, aquilo que não pode nunca ser planejado, esperado, calculado (seja o efeito do vento nas folhas, seja o frescor do contato com alguém indiferente às convenções sociais). Abraçar o primeiro ajuda a saborear o segundo.
Não se trata de um filme sobre “a beleza das pequenas coisas”, algo assim. Seu grande mérito é expressar de maneira tão singela como a alegria está contida na tristeza e vice-versa. Não há nada além do agora – o que não é uma frase motivacional, apenas descritiva – e nada existe além da nossa tão esquecida atenção.
E afinal, em que consiste uma vida bem vivida? Por ora, paramos para um interlúdio.
Interlúdio: sobre a redução da ética de trabalho
Aqui, vale mais do que nunca lembrar a anedota do pescador e do estudante de MBA, com tradução via DeepL e revisão nossa. A versão original dessa historinha partiu de outro alemão (!), Heinrich Böll. [3]
Um empresário americano estava no píer de uma pequena vila costeira mexicana quando um pequeno barco com apenas um pescador atracou. Dentro do pequeno barco havia vários atuns albacora grandes. O americano elogiou o mexicano pela qualidade do peixe.
O MBA americano de Harvard: quanto tempo você levou para pegá-los?
Pescador mexicano: só um pouco.
MBA: por que você não fica mais tempo fora e pega mais peixes?
Pescador: tenho o suficiente para atender às necessidades imediatas de minha família.
MBA: mas o que você faz com o resto do seu tempo?
Pescador, respondendo com um sorriso: durmo até tarde, pesco um pouco, brinco com meus filhos, tiro uma siesta com minha esposa, Maria, passeio pelo vilarejo todas as noites, onde tomo vinho e toco violão com meus amigos.
MBA, interrompendo impacientemente: olhe, eu tenho um MBA de Harvard e posso ajudá-lo a ser mais lucrativo. Você pode começar pescando várias horas a mais todos os dias. Depois, você pode vender os peixes extras que pescar. Com o dinheiro extra, você pode comprar um barco maior. Com a renda adicional que esse barco maior trará, em pouco tempo você poderá comprar um segundo barco, depois um terceiro, e assim por diante, até ter uma frota inteira de barcos de pesca.
Orgulhoso de seu raciocínio aguçado, ele elaborou com entusiasmo um grande esquema que poderia trazer lucros ainda maiores:
— Então, em vez de vender seu pescado para um intermediário, você poderá vender seu peixe diretamente para o processador, ou até mesmo abrir sua própria fábrica de conservas. Eventualmente, você poderia controlar o produto, o processamento e a distribuição. Você poderia deixar esse pequeno vilarejo costeiro e se mudar para a Cidade do México, ou até mesmo para Los Angeles ou Nova York, onde poderia expandir ainda mais seu empreendimento.
Pescador: mas, señor, quanto tempo isso vai levar?
MBA, após um rápido cálculo mental: provavelmente cerca de 15 a 20 anos, talvez menos se você trabalhar muito duro.
Pescador: e depois, señor?
MBA, rindo: essa é a melhor parte. No momento certo, você anunciaria uma IPO (Oferta Pública Inicial), venderia as ações da sua empresa ao público e ficaria muito rico, ganharia milhões.
Pescador: milhões, señor? E depois?
MBA, lentamente: depois, você se aposentaria. Aí se mudaria para uma pequena vila costeira de pescadores, onde dormiria até tarde, pescaria um pouco, brincaria com seus filhos, tiraria uma siesta com sua esposa, passearia pela vila à noite, onde poderia tomar um vinho e tocar violão com seus amigos.
Assombrados
Morrer de trabalho, como sugere a anedota acima, é apenas um dos caminhos. A verdade é que desperdiçamos a vida em jogos de vaidades, travamos diante do risco e congelamos por medo de aceitação. Por fim, preenchemos a existência com ruído e feiura. [4]
Não existe fórmula, tampouco algo mais solúvel que “felicidade”. [5] O que diabos é a felicidade? Quem disse que devemos perseguir felicidade? A vida é o que é, os seres humanos são humanos e fazemos o que fazemos — simplesmente. A magia acontece nas pequenas e inesperadas fissuras, nas grandes sensações de momentos discretos, minúsculas quebras da nossa percepção viciada. Repetição e rotina – seja para o zelador de Dias Perfeitos, seja para o editor do RelevO – não são um problema, e definitivamente não são o problema. Toda concentração traduzida em movimento é bela, e o que nos mata é a falta de atenção.
Eis algumas premissas pessoais para tentar, afinal, responder à pergunta principal deste texto. Adoraria “conhecer o mundo”, já uma simplificação (é possível conhecer o mundo?), e certamente associaria esse traço a uma vida bem vivida. Por lógica, isso significa que alguém imóvel leva uma vida menos interessante? Não necessariamente. Vastidão não implica profundidade.
É perfeitamente possível estar em outro lugar e não se submeter a nenhuma ruptura (o famoso brasileiro no estrangeiro procurando churrascaria). É perfeitamente possível se arriscar em uma novidade e continuar apenas um mala em diferentes continentes.
Mas esses são só dois exemplos. Estar em outro lugar favorece pequenas e grandes rupturas, e rupturas em geral favorecem a sensação de estar vivo – o que, por fim, favorece crer que não desperdiçamos a vida. É perfeitamente possível ter rupturas no próprio bairro onde se vive (e, claro, ir para longe tende a refrescar nossa visão local). A mera ideia de experiência já foi tão commoditizada que, por si só, cada um só pode ser seu próprio avaliador de genuinidade.
Como no poema de T.S. Eliot, “o fim de toda nossa exploração será chegar ao ponto de partida”. [6] Explorar o mundo externo é ótimo, mas e aí? Há todo um universo interior para cavucar. Encarar o banquete de consequências é duro porque nossas vidas intrinsecamente carregam um conjunto de vidas não vividas. O que nos aflige são as portas não abertas, principalmente aquelas já trancadas – ainda mais quando vemos outros abrirem. Somos assombrados por elas todos os dias.
Aceitar isso é, de fato, complicadíssimo. Se fosse fácil estar em paz consigo mesmo, não existiria… na verdade, não existiria muita coisa – quase nada! O que cabe a nós é não desperdiçar a nossa atenção, externa e interna. Preparar o café da manhã; limpar o banheiro; conversar com um desconhecido; fundar uma empresa; escalar uma montanha: não se trata do que fazer, mas como. Dias Perfeitos enriquece esse impasse.
De banheiro em banheiro – sem respostas –, seguimos.
Notas
[1] “A imagem perdida”, Mário Quintana. [2] Aqui, o parágrafo inteiro do editorial: “O RelevO, este zelador sensível que chora de alegria sozinho no carro e de tristeza ao abraçar a família, sabe que a alegria reside na tristeza; e a tristeza, na alegria. Não somos os anjos de Asas do Desejo que leem pensamentos e se solidarizam com a melancolia humana — somos banalmente humanos e periódicos. Não há muito o que fazer além de, bom, continuar fazendo. Afinal, nosso tempo é finito: por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida? Em que consiste uma vida bem vivida?”. [3] Somando com Wim Wenders, eis a agradável surpresa de que ao menos dois alemães parecem compreender que a vida é mais que eficiência. [4] Compartilhamos o Universo com aberrações como museus de cera; bonecos Funko Pop; Blink 182; programas de auditório de TV aberta e memes corporativos. [5] “What is happiness? It’s a moment before you need more happiness. [6] Aqui a versão traduzida por Ivan Junqueira.Baú: Claudio Bojunga
Extraído da edição 123 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
Segundo Renato Archer, com poucas exceções, nenhuma chefia tradicional da época falava em desenvolvimento, planejamento, quilometragens. De repente, a população começou a ouvir expressões como quilowatt per capita que assustavam os políticos tradicionais de todas as correntes. É conhecida a frase do coronel maranhense Vitorino Freira: “Quero lá saber de quilowatt, quero saber é de meus amigos”. Juscelino usava outra linguagem. Queria quilowatts, luz, força, estradas. Queria tirar o bolor de Minas. Os rotineiros o chamavam de leviano, mas o povo gostava que estivesse de bem com a vida, da sua gargalhada franca e ruidosa, do seu desassombro em face da inveja, de como saboreava as viagens e serestas.
Em Poços de Caldas, Juscelino entrava nas serestas do prefeito Agostinho Junqueira. Em campanha, era capaz de fazer cem quilômetros para garimpar um voto no distrito de Capim. Gostava de desarmar os espíritos, não perseguia, fazia visitas a ex-adversários da UDN, gostava de flores e de mulher bonita, mas graduava sua sensualidade e galanteria, aquém da concupiscência, pela prudência política, pelo background religioso, pela crença de que “quem escolhia era a mulher”. Mais importante ainda: não atendia políticos só interessados em nomear inspetores de quarteirão e transferir delegados e professoras. Seu clientelismo era de resultados.
Claudio Bojunga, JK: o artista do impossível, 2001 (ed. Objetiva).
Edição de março de 2024
Dos manuais e guias
Editorial extraído da edição de março de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
“O excesso é o mal da escrita americana. Somos uma sociedade sufocada por palavras desnecessárias, construções circulares, afetações pomposas e jargões sem nenhum sentido. Quem consegue entender o linguajar cifrado usado pelo comércio americano no dia a dia, ou seja, um memorando, um relatório empresarial, uma carta de negócios, um comunicado de banco que explique o seu mais recente e “simplificado” balanço? Qual usuário de um seguro ou de um plano de saúde consegue decifrar o livreto que explica todos os seus custos e benefícios? Que pai ou mãe consegue montar um brinquedo para uma criança com base nas instruções que vêm junto com a embalagem? Nossa tendência é inflar tudo e, assim, tentar parecer importante. O piloto de avião que anuncia que em alguns minutos atravessaremos uma área de turbulência por causa das nuvens carregadas e possíveis precipitações nem sequer pensa em dizer simplesmente que poderá chover. Se a frase é simples demais, deve haver alguma coisa errada nela…” William Zinser em Como escrever bem.
o
céu
era açuc ar lu
minoso
comestível
vivos
cravos tímidos
limões
verdes frios s choc
olate
s. so b,
uma lo
co
mo tiva c uspi
ndo
vi
o
letas.
e.e.cummings em tradução de Haroldo de Campos.
Jarros de polvo!
Efêmero um sonho.
Luar de verão.
Bashô em tradução de Fabiano Sei.
“Entusiasmo. Prazer. Raramente ouvimos essas palavras! Raramente vemos pessoas vivendo e, no nosso caso, criando com base nelas! Ainda assim, se me perguntarem sobre os itens mais importantes no figurino de um escritor, as coisas que moldam o seu material e o impelem em direção ao caminho que ele deseja percorrer, eu apenas o aconselharia a olhar para o seu entusiasmo, para o seu prazer”, Ray Bradbury em Zen e a Arte da Escrita.
Uma boa leitura a todos.
Edição de fevereiro de 2024
Sobre a deprimência de tantos anúncios
Extraído da edição 122 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
Bring us the day they switch off the machines
‘Cos men in yellow jackets, putting adverts inside my dreams
An automated song and the whole world gone
Fallen under the spell of the
Distance between us when we communicate
Se você pensar cuidadosamente, criteriosamente, reconhecerá poucas verdadeiras motivações do ser humano antes de qualquer ação concreta. Para se mexer, um indivíduo muito provavelmente busca (1) conquistar alguém, (2) impedir o sono de um sem-teto ou (3) inserir um anúncio em algum lugar. Quase todo o desenvolvimento do planeta na Idade Contemporânea pode ser explicado a partir dessas três fontes de motivação.
- Se ou quando o ser humano morar em Marte, será para impedir mendigos de dormir de graça lá. [Ou para inserir anúncios.]
Aqueles com pouco mais ou pouco menos de 30 anos tendem a se lembrar da internet com nostalgia. Usávamos essa ferramenta para nos distrair do mundo real, enquanto hoje precisamos do mundo real para escapar da internet. Nesse aspecto, as limitações ajudavam: o fato de você estar obrigatoriamente fechado em algum espaço – isto é, sem internet móvel – configurava uma mudança clara de estado. Ou você estava conectado (e preso a algum espaço físico para, afinal, conseguir estar conectado) ou estava desconectado e, portanto, na vala comum daquilo que chamamos de vida real.
E então esses dois universos começaram a se misturar, para a alegria do nerdão ex-hippie de jeans e gola rolê preta.
Como já é sabido, nascemos tarde demais para explorar o planeta e cedo demais para explorar a galáxia. A única janela mágica de exploração a que tivemos acesso foi a virtualidade, a internet como uma passagem lúdica de vivenciar o outro (lugar, personalidade, comportamento) e vislumbrar o desconhecido. Acreditávamos – filosófica ou intuitivamente – que criaríamos [ou estávamos criando] novas estruturas. Enquanto isso, no contrafluxo, as velhas estruturas de mídia acordaram, aprenderam e tomaram conta do nosso espaço mágico.
Ademais, envelhecemos e, pasmem, gente ainda mais velha passou a ocupar (mas, principalmente, estragar) nossos espaços. Hoje, já somos os intrusos de novos espaços, estragando-os para nativos mais jovens que nós.
Ah, sim, os anúncios.
Sem grandes soluções para o velho problema da rentabilização – e uma vez ocupada a terra de ninguém, quando não havia estruturas para combater pirataria e/ou fazer valer qualquer copywright –, a internet se encheu de anúncios.
Hoje, abrir qualquer página nova na internet sem um bloqueador de anúncios é uma tarefa estressante. Um pop-up, uma caixa de cadastro (nosso site também tem!), um anúncio rolando para cima, um banner embaixo. Vídeo, autoplay, mais pop-up. E os aplicativos em geral não são tão diferentes.
Talvez não haja exemplo mais simbólico desse senso de derrota que o da Netflix. Estamos falando de um sucesso da virada digital que desestabilizou até hoje toda a sua indústria. Um ícone de sua era e a vanguarda entre seus concorrentes. A imaterialidade em pleno funcionamento (mesmo que a empresa tenha começado com DVDs). A companhia que arrotou por anos sua superioridade por não depender de anúncios.
E a Netflix adotou os anúncios. Ou seja, copiou o que há de mais tradicional e menos imaginativo na televisão mais arcaica. E, obviamente, deu certo. Obviamente (de novo), seus concorrentes vão todos correr atrás. Então… é isso. Essa é a solução. Essa é a disrupção entrando na própria bunda. A grande ideia consiste em… anúncios. Eis a deprimência.
- Modismos de mercado sempre impressionam, embora nunca surpreendam. Já reparou em novos cartões ou máquinas de pagamento atendendo por “rosinha” ou “laranjinha”? Caramba, de onde será que isso saiu?
O problema em questão é muito mais estético que ético, ao menos no que tange aos meus incômodos. Não me perturba a tentativa de me empurrarem um produto ou serviço (e se deveria fazê-lo, mas meu cérebro já definhou na configuração mercadológica da sociedade, é outra discussão). Há propagandas e propagandas; anúncios e anúncios. Já me emocionei com propagandas: de imediato me lembro de uma da Mastercard (!) que envolve Pelé e álbum de figurinhas. É (ou pode ser) uma arte — não adentraremos essa discussão, porque, mais que inútil (nada contra), não é divertida.
- Nota inserida após a publicação: infelizmente, só assistimos a isso aqui depois de dispararmos o texto. A sensação de refrescância (mesmo diante de uma propaganda de banco) deriva da tentativa genuína de pensar e executar algo realmente criativo, não “meme-da-semana” criativo. Óbvio que estamos falando de uma produção, mas esse é um problema de quem controla o orçamento. Enquanto espectador e possível cliente, é um acerto claro. Tardiamente, também nos lembramos deste ótimo exemplo aqui. Quando forma e conteúdo se conectam com um propósito claro, magia acontece — em qualquer contexto.
E não há nada novo em expor produtos. Tomemos como exemplo a “Anunciação” (~1564) de Ticiano. De acordo com [Sir] John Hegarty, ali já temos uma notória publicidade indireta: o vaso de vidro no canto inferior direito da tela – discreto, sutil, desnecessário – indica aos rivais romanos e florentinos que o vidro veneziano era o melhor entre os produtos.
Outro caso: “Um Bar em Folies-Bergère”, de Édouard Manet (1882), com as garrafas da cerveja Bass (também referenciada por Picasso). Puta product placement, mêo.
Inclusive, a suposta pureza de intenções é uma das balelas mais superestimadas na história de qualquer arte. Se alguém produziu beleza porque se encantou com o por do sol ou porque vendeu sua visão ao dono de uma franquia da Cacau Show, o Universo é indiferente.
É sabido o quanto Dostoiévski escreveu essencialmente por dinheiro, isto é, por precisar dele (até passamos por isso em nosso texto sobre apostas). Crime e Castigo não seria necessariamente um romance melhor em outras condições – é até mais fácil argumentar o oposto. Toulouse-Lautrec foi contratado pelo Moulin Rouge (permuta!) para desenhar seus tão copiados cartazes, que se tornaram icônicos do mesmo jeito. Um dos mais belos discos de Tom Jobim foi encomendado pela Odebrecht. É menor por isso? Não. Tanto faz.
- Apenas um grande artista é funcional o suficiente para não depender de motivações puras ou algo assim… O capricho absoluto é o desapego. No frigir dos ovos, o que fica é o que foi feito, e não sua motriz.
Enfim, os anúncios.
Telas favorecem anúncios, e hoje tudo é tela (o que aconteceu com os táteis, ágeis e intuitivos botões?). Temos telas nas ruas, nos ônibus, nos aviões, nos elevadores. Portanto, temos anúncios em todos esses espaços. Não existe AdBlock pessoal, ao menos por enquanto. Fechar-se em qualquer espaço público praticamente presume a companhia de alguma subcelebridade gritando sobre um fundo colorido. Fechar-se em seu próprio mundo, com fones de ouvido, também – ao menos enquanto você não paga. Eficaz ou não, trata-se de um desfecho deprimente.
- E por que tudo é tela? Bom, vale lembrar da regra 3 do início do texto (e, claro, do fato de a tecnologia das telas ter avançado drasticamente em 20 anos – lembra como monitores e TVs eram tenebrosos, pesados e cansativos aos olhos? [Não somos luditas!] –, além de ter ficado muito mais barata). Aqui preferimos a explicação pelo viés da sociologia de boteco e, portanto, afirmamos, sem qualquer base, que se a tecnologia das telas avançou e se elas ficaram mais baratas é tão somente porque houve um esforço maior em fazê-lo justamente pelo fato de telas comportarem anúncios.
Um problema essencialmente estético. A distopia não é uma placa de néon, a oferta cansativa de produtos ou a solidão em meio às cores vivas de um arranha-céu reluzente. É tudo isso somado e deformado em seu grau mais pobre: o som constante do celular alheio num ambiente apertado; marcas dialogando entre si como adolescentes; o eterno fluxo de interrupções visuais; a confirmação de que o novo envelheceu mal e, na garupa dele, você também.
Baú: Charles Portis
Extraído da edição 122 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
Depois do jantar entrei no saguão às escuras. Ainda era o “happy hour” e o lugar estava apinhado de moradores locais. Não vi socialite alguma. Tive dificuldade pra conseguir um dos banquinhos sem encosto no bar porque toda vez que algum deles vagava eu esperava um ou dois minutos deixando-o esfriar, pra que o carlo do corpo se dissipasse da almofada de plástico, mas aí outra pessoa se sentava. A multidão escasseou quando os preços ficaram mais caros e aí eu meio que tive o bar inteiro só pra mim. Vi um homem de pé na ponta do balcão escrevendo uma carta com um lápis. Ele estava rindo do seu próprio trabalho, um bandido solitário escrevendo insultos cruéis pro chefe da polícia.
Pedi uma caneca de cerveja e dispus minhas moedas sobre o balcão, em colunas divididas de acordo com o valor. Quando a cerveja chegou, mergulhei o dedo nela e umedeci cada uma das pontas do guardanapo de papel pra ancorá-lo, de modo que não subisse junto com a caneca toda vez e eu parecesse um pateta. Bebi do lado da caneca que uma pessoa canhota usaria, na crença de que menos bocas tinham estado desse lado. Essa também é a minha política com xícaras, qualquer recipiente com alça, mas geralmente é de se esperar que as xícaras sejam lavadas com mais esmero do que canecas de bar. Uma rápida chapinhada na água aqui e ali e essas belezinhas estão de volta na prateleira!
À minha frente do outro lado do balcão havia um espelho escuro e acima dele uma cabeça de veado com um cigarro na boca. Na área das mesas uma mulher tocava um órgão elétrico. Ninguém estava berrando pedidos pra ela. Eu era a única pessoa do lugar que aplaudia sua música — uma bravata de viajante. E depois de algum tempo eu também parei de aplaudir. Eu não tinha a menor personalidade. Se os outros fregueses de repente decidissem atacar a pobre mulher com garrafadas, com aquelas garrafas quadradas de gim, creio que eu teria me juntado a eles. Isso era uma coisa nova. Todos nós sabemos do aristocrata que entra em derrocada, mas ali estava algo que Jefferson não havia antevisto: um serviçal decadente.
Charles Portis, O Cão do Sul, 1979 (ed. Alfaguara, 2015, trad. Renato Marques).