Baú: Fernanda Torres

Extraído da edição 129 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

“O Brasil é uma ilha continental, e a gente é isolado pela nossa língua. Ao mesmo tempo, a gente consome a nossa própria cultura. A gente tem total interesse por nós mesmos, porque nós somos uma potência de 200 milhões de pessoas. Somos um país complexo – a gente não é um país periférico. A gente tem as nossas próprias questões. Eu conheço a cultura francesa, a americana, a russa, a alemã, a italiana, mas eles não conhecem muito a brasileira. E às vezes eu tenho pena de quem nunca leu Machado de Assis, de quem não conhece o Eça de Queiroz. Agora as pessoas descobriram a Clarice Lispector e escrevem assombradas. Como é que eu posso falar com alguém que não sabe quem é Nelson Rodrigues, que não sabe quem é Candeia? Então, ao mesmo tempo, o Brasil tem esse complexo de vira-lata dessa não comunicação com o mundo; por outro lado, o Brasil tem pena de o mundo não saber o que a gente sabe. Quando alguém fura a fronteira e leva algo que nos é pessoal para fora, é essa espécie de sentimento de ‘olha o que a gente tem de rico’. É um sentimento de orgulho nacional bacana, bom de sentir.”

Fernanda Torres, esses dias, Uol Prime.

Baú: João Cabral de Melo Neto

Extraído da edição 128 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O que o senhor diria a um jovem poeta que deseja ‘construir seu objeto’?

Essas coisas são muito difíceis. Primeiro, que evite sempre a palavra abstrata e prefira a palavra concreta. Eu acho que a palavra maracujá é muito mais poética do que melancolia, porque maracujá você sabe o que é. Se eu ponho num poema maracujá, estou pondo um objeto diante de sua vista; se ponho melancolia não, porque tenho um conceito de melancolia, você tem outro. Cada pessoa chama tristeza, melancolia, depressão e essa coisa de um estado diferente. Porque usando essas palavras abstratas você não pode ser preciso. Você dilui a poesia porque usa uma palavra que tem dez sentidos, cada pessoa dá o seu sentido a essa palavra, ao passo que maracujá ninguém confunde com manga.

João Cabral de Melo Neto. Revista ISTOÉ Senhor n. 1059, 3. janeiro de 1990.

Baú: Jerry Saltz

Extraído da edição 127 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Gustave Flaubert se perguntou: “Seriam os escritores muito mais que papagaios sofisticados?”. A maioria dos artistas conhece esse sentimento – de que estamos sendo conduzidos por algo alheio a nós mesmos. Todos nós escolhemos nossos estilos, materiais, modos, meios, ferramentas etc., mas a obra que criamos não é inteiramente uma questão de escolhas conscientes. Eu nunca sei bem o que vou escrever até que o escreva – e, ainda assim, não tenho certeza de onde veio o que escrevi. Essa é a alteridade da arte. Ela é tão poderosa que você às vezes pode se perguntar se a arte está nos usando para se reproduzir – se ela seria uma força cósmica autorreplicante (ou um fungo?) que nos colonizou em um serviço simbiótico.

Isso pode ser emocionante, mas também desconcertante. “É como se um fantasma estivesse escrevendo”, disse Bob Dylan, “só que o fantasma me escolheu para escrever a canção”. Não deixe que isso te apavore. Pelo contrário, aprenda a confiar nessa alteridade.

Jerry Saltz. Como ser artista, 2020 (ed. Seiva, 2024).

Baú: Antônio Maria

Extraído da edição 126 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Acorda esse homem inesperada e injustificavelmente cedo, sem saber direito onde está, mas inteiramente certo de que aquela cama não é a sua. O despertar de quem dorme fora é sempre assim e a primeira sensação é uma desconfiança: terei sido raptado? Aos poucos, as ideias se arrumam, a inconsciência do sono vai cedendo lugar à lucidez das coisas exatas e a realidade se comprova na cor da parede, no desenho dos móveis, no cheiro da fronha e dos lençóis, que é uma agradável novidade olfativa. Esse homem chega à simples conclusão de que é um hóspede. Tem um dia grande e vadio pela frente. Poderá, se quiser, continuar na cama, lendo, tramando, cochilando e, mais que tudo, gozando a perspectiva do tempo sem horários e sem tarefas. Mas decide levantar. Antes, faz sua reza íntima de todas as manhãs, a que diz: “Não te deixes tomar pelo pequeno êxito e não te eleves acima do conhecimento que tens da tua frequente fragilidade” etc. Abre a janela. A bruma baixa desfigurou a silhueta dos montes. Vai chover e o dia terá um céu triste. Mas o vento frio da serra e as flores, que são tantas — amarelas, vermelhas, azuis — trazem uma alegria completa, uma impressão de salvamento, em que os cansaços e desgostos aparecem como penas já cumpridas. Dali por diante, esse homem está quite com os castigos e lhe chegam — como nos domingos da meninice — as esperanças, o ânimo, a ideia tranquila de existência. Esse homem não sabe se está apaixonado por uma mulher ou simplesmente pela vida. Mas, em seu coração, há um amor indefinido, que por si, pelo bem que faz, poderá ficar sem alvo certo, sem reciprocidade. Basta-lhe a manhã de vento frio, o perfume das flores e o verde do capim viçoso. Deve ser este um grande momento de sua vida, porque a sensação constante de saudade não está, pela primeira vez, entre os seus sentimentos.

Antônio Maria. Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria, Todavia, 2021, pp. 130-131. Publicada, originalmente, no Diário Carioca, de 07/11/1954.

Baú: a última carta de Sylvia

Extraído da edição 125 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

4 de fevereiro, 1963

Querida mãe,

(…) Eu jamais poderia ser autossuficiente nos Estados Unidos; aqui tenho os melhores médicos completamente grátis e, com crianças, isto é uma verdadeira bênção. Além disso, Ted [Hughes] vê as crianças uma vez por semana e isto faz com que se sinta mais responsável na hora de pagar a pensão. Simplesmente, terei que continuar aqui me virando sozinha.

(…) Agora as crianças precisam de mim mais do que nunca, de modo que durante mais alguns anos tentarei continuar escrevendo de manhã e dedicando-me a elas durante a tarde, e verei meus amigos ou lerei e estudarei de noite.

Começarei a ir à consulta de uma doutora, também a cargo da Seguridade Social, que me recomendou um médico do bairro muito bom que conheço, e confio que me ajudará a superar esses tempos difíceis. Mande meu beijo carinhoso a todos.

Sivvy

Sylvia Plath. Fonte: ElPaís.

Contexto: “Uma semana separa a última carta de Sylvia Plath (1932-1963) da noite, segunda-feira, lua quase cheia, em que abriu a válvula de gás do forno e enfiou ali a cabeça até morrer intoxicada. Seu ex-companheiro, o poeta Ted Hughes, havia definido a escritura de cartas como ‘um excelente treinamento para aprender a conversar com o mundo’. Não sabia que também servia para se despedir dele. Excelente escritor de cartas, Hughes redigiu textos secos e frios para comunicar a notícia fatal” [no link].

Baú: Paul Auster

Extraído da edição 124 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Meu pensamento vagueou por várias semanas em busca de um modo de começar. A vida de uma pessoa é algo inexplicável, eu dizia a mim mesmo, o tempo todo. Não importa quantos fatos sejam relatados, quantos detalhes sejam oferecidos, o essencial não admite ser contado. Dizer que fulano nasceu em tal lugar e foi para tal cidade, que fez isso e aquilo, que se casou com fulana e teve tantos filhos, que ele viveu, morreu, deixou tais e tais livros, ou essa batalha, ou aquela ponte — nada disso nos diz muita coisa. Todos queremos ouvir histórias e as ouvimos do mesmo modo que fazíamos quando éramos pequenos. Imaginamos a história verdadeira por dentro das palavras e, para fazê-lo, tomamos o lugar do personagem da história, fingindo que podemos compreendê-lo porque compreendemos a nós mesmos. Isso é um embuste. Existimos para nós mesmos, talvez, e às vezes chegamos até a ter um vislumbre de quem somos realmente, mas no final nunca conseguimos ter certeza e, à medida que nossas vidas se desenrolam, tornamo-nos cada vez mais opacos para nós mesmos, cada vez mais conscientes de nossa própria incoerência. Ninguém pode cruzar a fronteira que separa uma pessoa da outra — pela simples razão de que ninguém pode ter acesso a si mesmo.

Paul Auster, A Trilogia de Nova York, 1987 (ed. Companhia das Letras, 2010).