WALL-E: poesia visual

Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há 14 anos, em junho de 2008, a animação WALL-E estreava nos cinemas. Fui conferir a contragosto, afinal não me interessava muito por animações e, principalmente, vivia o apogeu da insolência adolescente. Aos 16 anos, somos todos intragáveis.

Havia ganhado ingresso porque participava de um projeto (na antiga Gazetinha, suplemento infantojuvenil da Gazeta do Povo) no qual estávamos aprendendo – e escrevendo – sobre cinema. Assim, compareci à sessão do filme dirigido por Andrew Stanton, com roteiro de Stanton e Jim Reardon.

Rabugento e com as expectativas baixas, eu não poderia ter me surpreendido mais. WALL-E é uma produção encantadora, capaz de desmontar qualquer guarda alta. Porém, eu nunca havia revisitado essa obra da Pixar enquanto adulto, e só o fiz, sem qualquer motivo específico, na última semana.

Pois bem, com grande satisfação (e certo alívio), renovei minha apreciação – novamente cético, novamente cínico, pois apenas um lunático é capaz de confiar nas impressões de sua versão de 16 anos.

A sequência inicial de WALL-E é famosa, não por acaso. Não há qualquer diálogo por 22 minutos. Nesse tempo, conhecemos Wall-E, um robô senciente compactador de lixo. Solitário em uma Terra abandonada – e repleta de seu material de trabalho –, ele mantém hábitos, objetos e gostos humanos no ano 2805. E uma barata.

Wall-E até dispõe de contemplação estética, assistindo a filmes (e reproduzindo seus movimentos) por meio de fitas coletadas em seu ofício. O enredo se desenvolve a partir da chegada de EVA, outro robô – muito mais moderno e funcional – enviado pela nave habitada pelos seres humanos para procurar algum resquício de vida no planeta. Androides sonham com paixões elétricas?

Diante do silêncio, portanto, a narrativa avança pelos movimentos dos personagens e pelo primor de caracterização. De cara, WALL-E se apresenta como uma mistura de 2001: Uma Odisseia no Espaço com Charles Chaplin e/ou Buster Keaton (inspirações explícitas dos produtores).

Os movimentos, roteirizados e executados com maestria, preterem o uso de palavras, o que confere certa universalidade – e atemporalidade – ao longa-metragem. Por sua vez, a caracterização não seria um problema para a Pixar, estúdio devidamente capacitado para criar fofuras das mais diversas formas.

Assim, logo nos apegamos a Wall-E e permanecemos instigados por aquele contexto pós-apocalíptico. Quando os dois protagonistas encontram os seres humanos de 2805 (spoilers?) na nave Axiom, estes são… talvez irreconhecíveis não seja a melhor palavra. Mas engordaram a ponto de perder os movimentos – locomovem-se em cadeiras flutuantes – e não conseguem resolver problema algum por conta própria. Estão sempre conectados.

É claro que o filme carrega uma mensagem (e que a Enclave odeia mensagens), mas vamos lá. Primeiro, a obra se sustenta por si só, uma vez que o drama do apaixonado Wall-E é suficientemente estimulante.

Segundo, dentro da mensagem explicitamente ecológica – que, né… digamos que tenha um ponto –, há outra sutileza singela. Despreocupado em moralizar e ensinar de forma tão direta, WALL-E não retrata os seres humanos como perversos, mesquinhos, monstros indomáveis. O longa sequer se preocupa em detalhar a trajetória da Terra até o estado apresentado.

Isso porque a animação representa o ser humano não como porco, mas apenas… distraído. À medida que se afasta da dependência da tecnologia, que enfrenta os próprios problemas com diligência e procura atentar-se aos dilemas que o afetam, o indivíduo desperta.

Um filme lindíssimo – elegante, comovente e bem-humorado –, que certamente exigiu um enorme conhecimento de humanidade para nos entregar um amável robô compactador de lixo apaixonado por um iPad voador.

Baú: Lama Padma Samten

Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O exame cuidadoso do sofrimento revela que ele é, na verdade, um desconforto mental, cuja base, na maior parte das vezes, não tem sequer origem física ou mesmo concreta, mas é constituída das voláteis substâncias da imaginação e da delusão. É esse sofrimento, tomado em sua acepção de desconforto mental mais geral e abrangente, que é enfocado pelo Buda Sakiamuni como um dos pontos centrais de seu ensinamento.

Logo após sua iluminação, com olhos cheios de compaixão, o Buda fitou os variados seres em cada reino de existência e, compreendendo a dor do mundo, enunciou a primeira Nobre Verdade, a da existência do sofrimento e impossibilidade da harmonia – mantida a perspectiva humana de harmonia como satisfação completa dos desejos, apegos e necessidades.

O sofrimento é a sombra do ser. Havendo um ser, há sofrimento. Havendo um ser, há o mundo, e o sofrimento é inevitável. Pode-se ver três faces no sofrimento: impossibilidade de harmonia, impermanência e busca de salvação.

A impossibilidade de harmonia é exemplificada por uma história.

Na vida anterior à de sua iluminação, o Buda estava certa vez imerso em profunda meditação na encosta de uma montanha, quando ouviu um rufar de asas. Tratava-se de uma pequena pomba em voo vacilante. Ela pousou junto ao Buda e suplicou: “Abençoado Senhor! Estou sendo perseguida por um enorme abutre e, por mais que me esforce, não consigo escapar. Minhas forças já vacilam, e em breve por certo sucumbirei. Proteja-me, suplico-lhe!”. Nem bem havia a pomba concluído seu apelo desesperado e se ouviu um rufar de asas mais pesado. Pousando próximo, um gigantesco abutre dirigiu-se ao Buda: “Abençoado Senhor! Dê-me essa pomba. Não é justo que a proteja. Na minha condição de abutre, estou perseguindo-a desde o início do dia. Ela é o justo retorno por meu esforço. Já estou exausto e, se alguma raposa encontra-me assim tão fraco, por certo estarei perdido, e também meus filhos, que, abandonados, perecerão”. Conta a lenda que o Buda, com o coração de bodisatva cheio de compaixão, alimentou o abutre com sua própria carne, dando sua vida.

Conta-se também que, na vida seguinte, o príncipe Sidarta, quando menino, viu um verme ser estraçalhado por dois passarinhos que o disputavam e reconheceu a justeza da atitude dos pássaros em busca do alimento, bem como a inevitabilidade do terror e morte do verme. Naquele instante Sidarta compreendeu que a harmonia não pertence a esse mundo. Se passarinhos comportam-se dessa forma, o que dizer dos demais seres?

Como seria possível harmonizar os diferentes seres e interesses? Não estavam corretos a pomba, o abutre, o verme e os dois pássaros? Se todos estão corretos, como poderia haver harmonia?

Lama Padma Samten, A Joia dos Desejos, 2001 (ed. Peirópolis).

Nuno Rau: O fim do fim da história, a morte da morte do autor (ou: o poeta que virou suco.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O pós-modernismo surgiu assim como uma espécie de apocalipse incontornável que se abateu sobre o mundo a reboque do neoliberalismo selvagem, e decorado não raras vezes por colunas e frontões escaneados de templos gregos da Antiguidade convertidos ao rés da banalidade absoluta de historicismos desvairados. Numa espécie de ópera-bufa desvairada e formalista, profissionais da arquitetura saíram decalcando esses frontões e colunas dóricas ou jônicas em fachadas de todo tipo de construção – escolas, bancos, estações, residências, shopping-centers etc. Quando todos pensávamos que não havia mais por onde piorar esse desastre, surgiu a fachada padrão das lojas Havan, acrescidas ainda com a cereja do bolo da degeneração estética terceiro-mundista: réplicas da estátua da liberdade em lugar de destaque de sua implantação (do mesmo modo não adiantou Francis Fukuyama preconizar o fim da História, porque as Torres Gêmeas foram ao chão, a Ucrânia segue em guerra por uma disputa entre duas potências imperialistas, e tudo o mais que aconteceu entre esses dois eventos).

Não se se vocês também sentem que quase tudo que vem na esteira do que se convencionou chamar de pós-modernismo soa como uma espécie de vale-tudo, de diluição, repetição insossa; pra mim tem esse gosto, e não importa muito como a gente chame, se de pós-modernidade, tardo-modernidade, hiper-modernidade, ficando tudo pior quando a gente olha em torno e sente que o século XIX pode não ter acabado ainda, que podemos estar presos numa espécie de looping histórico em que fatos e estéticas se repetem numa espécie de série perversa, sensação que fica pior porque vem no bojo de discursos de elogio ao “novo” (parece até aquele partido que leva esse nome, que de novo nada tem, é a velha política das oligarquias numa embalagem edulcorada).

Na literatura esse fenômeno tem muitas faces, e quase todas passam por um completo desconhecimento da História e da tradição. Pois é, esta última palavra é particularmente problemática, mais ainda se for pensada sob a perspectiva do anjo benjaminiano, já que toda tradição está vinculada a um tempo que não passa de catástrofe, espécie de maldição que – não se enganem – atinge também a nós, que problematizamos tudo, das relações à comida, passando pelas definições de poesia e literatura, e talvez tenhamos nos perdido num labirinto de problematizações de tal modo capilarizado que não possibilita a reunião de tudo numa grande frente de real renovação dos modos de vida. Fosse diferente, é provável que não estivéssemos engolfados numa onda reacionária e no aperfeiçoamento constante do receituário do sistema para captura de nossos melhores esforços por uma financeirização e uma mercantilização selvagens. Onde a reação para esse estado de coisas? O que pode literatura, o que pode a poesia contra toda essa depauperação de nossas esperanças?

De digressão em digressão saí, como de costume, do assunto principal: as muitas faces de uma certa diluição na produção literária, e sua possível explicação pelo desconhecimento do que já foi feito. Nos últimos dias um meme circulou bastante pelas redes sociais, e ele, em sua aparente despretensão, explica muita coisa. A cena é a seguinte: um homem vestindo um uniforme militar está de mãos para o alto, rendido pelo que aparenta ser uma patrulha do exército inimigo, que aponta fuzis para o desafortunado. Então ele grita “Não disparem, sou poeta!”, e alguém da patrulha responde: “Prove!”. A resposta é mais ou menos um retrato de parte da produção que circula nas redes: “Não disparem sou poeta!” A questão se funda no que pode fazer de um poema um poema. O século XX, no processo mais do que necessário de questionamento de regras esvaziadas, foi pródigo em declarações bombásticas que, se tomadas integralmente a sério, levam ao polo oposto, um vale-tudo sem margens. Exemplo disso é a declaração de Mário de Andrade (uma figura que acho ainda precisa de mais estudo para que sua luta pela cultura seja compreendida) sobre a natureza do conto: “Conto é tudo o que o autor chamar de conto”. A liberdade que essa declaração pressupõe permite muita produção interessante, que por critérios clássicos seria recusada, mas toda liberdade pressupõe, do mesmo modo, o bom uso, a não incursão no que chamei de vale-tudo, e isso, penso, está numa entrelinha não dita – mas pensada – por Mário. Voltando ao meme: o que ele mostra é aquilo que tem sido chamado, em muitas postagens pelas redes afora, de “empilhamento”: o verso acaba sem razão aparente, sem nada que explique a versura, e segue na linha seguinte para realizar a mesma façanha do sem-sentido. Ou seja, todo o desenvolvimento de técnicas, das quais o enjambement é apenas um exemplo, parece desconhecido, ou é desconhecido mesmo, e aí toda a aventura de escrita das gerações anteriores fica relegada ao desprezo, a uma zona de sombra, tendo como resultado que cada vez temos menos ferramentas de leitura e interpretação do que é escrito.

Existe, no entanto, um outro polo na produção de hoje, que é a de poetas que conhecem muito sobre versificação, métrica, ritmo, todas as questões técnicas do verso, enfim, mas cuja produção parece não ter se descolado do século XIX. Se colocarmos os poemas de “Claro Enigma”, de Drummond, (ou do “Livro de Sonetos”, de Jorge de Lima, ou de “Siciliana” de Murilo Mendes”, entre outros exemplos), ao lado desta parte da produção contemporânea, esses poemas novos soam a naftalina, são como aquelas construções em que se apõem frontões e colunas gregas, sem agregar significado algum. Nesse momento o tempo se embaralha, e penso em Drummond, Jorge e Murilo como “jovens há mais tempo”, torcendo para jogar nesse time, rezando pra que as musas me protejam da água diluída do empilhamento, e da técnica vazia de poemas pomposos e engalanados que não dizem nada.

Paul Valéry conta a seguinte história, que costuma ser muito repetida por aí: certo dia o pintor Degas comentou com Mallarmé, seu amigo, que tinha boas ideias, mas que não conseguia fazer bons poemas. Mallarmé, teria respondido que poemas não se faziam com ideias, mas com palavras. Penso que se Mallarmé soubesse como sua frase seria deturpada décadas afora, teria apenas silenciado diante de Degas. O que Mallarmé quis dizer, por óbvio, é que para escrever poemas é preciso que ideias, boas ideias, sejam materializadas em palavras, e que, para isso, é preciso dominar um código específico, diferente daquele dominado por Degas, e muito bem, para a pintura. É deste domínio que falo, domínio que foi muito afetado pela má incorporação dos avanços das vanguardas históricas – mas isso é outro papo. Uma coisa deve estar soando estranha a vocês: o último número do RelevO trouxe apenas um poema de autora brasileira, o interessante “Talhar na nódoa um precipício”, de Ana Maria Vasconcelos, e estou aqui me estendendo sobre o que seja e o que não seja poesia….

Houve uma compensação, por certo, que foram os dois conjuntos de traduções publicados – os de Adam Zagajewski, Vasil Stus e Serhyi Zhandan, traduzidos por Piotr Kilanowski, e os de Laura Gilpin, traduzidos por Hélio Parente –, além da estreia do acervo da revista Escamandro, trazendo nessa estreia um texto de Guilherme Gontijo Flores sobre Adília Lopes, acompanhado de alguns poemas (há também o flash em três versos de Helena Kolody na contracapa). Esses três conjuntos, bem como o poema de Ana Maria Vasconcelos, provam que a tese de Mallarmé é muito mais ampla do que a redução de um poema ao jogo de palavras. A mesma coisa pode ser dita a respeito da prosa, e o conto de Paulo Moura também comprova isso, mostrando o desenrolar do desespero de um dos personagens diante da constatação de que quase tudo num relacionamento é fluidez e movimento.

Pensando bem, acho que este ombudsman queria se queixar de só haver um poema de poeta brasileir_ contemporâne_ na edição de junho, por mais que se divirta com os textos de humor – “Profissões mais top do agora” e “Relevo Turismo” –, e curta a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance. Talvez um pouco mais de poesia e ficção, que ficou restrita aos contos de Paulo Moura e de Nathália Fernandes, se afinasse com a potência de RelevO, que, penso, é mais do que fundada nessa divulgação.

Não existe jornal sem conflito / não há motivos para existir jornal sem humor

Editorial extraído da edição de julho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Não existe jornal sem conflito.

Uma das principais noções de existência que carregamos da nossa inserção no meio literário é que fazemos escolhas o tempo todo, principalmente do que não queremos. Partícipe da natureza analógica, não podemos (nem queremos) escolher todos. Não podemos escolher metade. Não vamos escolher nem 2% do que recebemos.

À primeira vista, pode parecer um exercício de prepotência – e um método criativo de carteiraço – antes de o(a) escritor(a) manifestar seu descontentamento com a falta de retorno do material enviado em 2020. Mas definitivamente não se trata de salto alto. Não temos qualquer anseio de cânone, muito menos de ilusão de importância (“o jornal que você precisa ler para entender o mundo hoje”).

Em média, recebemos 400 textos por mês, portanto cerca de cinco mil textos por ano. Temos 24 páginas e no máximo dez colaboradores por edição, desconsiderando colunas fixas, da casa, como as centrais, o ombudsman, a Enclave e a Brazilliance. Quem sabe, um formato especial da Latitudes (nossa newsletter exclusiva para assinantes, voltada a concursos literários, editais e cursos de literatura) também comece a circular no impresso. Então, com o espaço que temos, publicamos apenas 120 autores e autoras por ano.

Não escolher 98% dos textos que recebemos gera ruído. Deste percentual de 100% de não escolhidos, temos: assinantes do Jornal; escritores que fazem questão de reforçar que estudaram na USP; indicações de amigos; nóias; antigos colaboradores com potencial; gente nova em busca de espaço no ecossistema literário; picaretas conhecidos desde o início da nossa circulação etc.

Para evitarmos mais ruído (e também por falta de braço), não damos retorno específico, detalhando a recusa. Há alguns anos, tentamos isso – não durou dois meses (principalmente por falta de braço). Hoje, com um processo mais maduro, nem achamos que deveríamos fazê-lo. A presente edição, de julho de 2022, por exemplo, está repleta de textos sobre morte e misticismo, com um viés de humor estranho em textos nos arredores deste eixo temático. Não faria sentido dizer: “Pena que o seu texto sobre escritor corno fumando em um bar não foi selecionado agora”.

[Em nossa seção Publique, do site do Jornal, ainda manifestamos nossa preguiça geral com “escritor triste escrevendo sobre escrever”, “poema sobre o valor da poesia” e “meu amor não correspondido acaba de sair pela porta”. Isso não significa que materiais dessa natureza serão automaticamente piores e/ou recusados].

Não há motivos para existir jornal sem humor.

Para o RelevO, é o humor que acende a vela necessária para sobreviver aos espasmos de escuridão. É o humor que mantém acesa a loucura e a impossibilidade. O humor desarma, desprende, pisa nas convicções. Rir de modo inesperado é uma das únicas experiências ainda válidas em qualquer modo de convivência humana. O humor, inclusive, nos auxilia a lidar com o próprio meio em que estamos inseridos.

Gabriel García Márquez dizia: “Todo mundo tem três vidas: a vida pública, a vida privada e a vida secreta. A vida privada é só para convidados. A vida secreta não é da conta de ninguém”. O RelevO, em seu protocolo institucional gauche, faz o possível para transparecer suas ações. Mas sabemos de nossos segredos. Por exemplo, não divulgamos quem pertence ao nosso Conselho Editorial de avaliação de textos. Podem ser quatro, podem ser três, podem ser dois, e pode ser que um dia não seja ninguém — um dia que esperamos que demore para chegar. O que queremos, ao fim e ao cabo, é entregar um jornal interessante de se ler (sem desconsiderar todas as implicações disso).

Uma boa leitura a todos.

Lágrimas na chuva

Extraído da edição 108 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Vangelis Papathanassiou morreu aos 79 anos, vítima de insuficiência cardíaca (movida, aparentemente, por Covid-19; “aparentemente” porque, até o momento, nada foi esclarecido por completo).

Sua popularidade mais estrondosa pode ter vindo com Carruagens de Fogo (1981), aquela melodia incrustada de tal forma na cultura popular que não se desassocia mais das próprias paródias, mas o catálogo de Vangelis oferece diversas outras camadas.

A começar pelo que fez antes mesmos de suas incursões pelas grandes trilhas sonoras. Já escrevemos sobre 666 (1973), o sensacional disco da Aphrodite’s Child, banda grega que reuniu Vangelis e o popularíssimo Demis Roussos. Ali, o grupo tocou o terror com um rock esotérico viril incapaz de envelhecer.

Porém, Vangelis jamais ficou conhecido por qualquer “rock viril”. Ao contrário: sua imagem ficou bem mais ligada ao new age, à calmaria constante. Essa versatilidade – a caixa de ferramentas inesgotável, do rock progressivo ao acompanhamento de meditação – o preparou para produções tão reconhecidamente cósmicas a partir de seus sintetizadores.

E cosmicidade é o que não falta na trilha sonora de Blade Runner (1982), um álbum extraordinário por si só – e componente indissociável do filme, outra obra-prima. Sem Vangelis, Blade Runner não é Blade Runner. Nessa obra, o grego “f*d* o tecido do tempo” engendrando uma nova estética de futuro.

  • Discorrer sobre Blade Runner é chover (ou chorar) no molhado, portanto apenas acrescentamos que a trilha sonora foi complementada em 2007, com dois discos adicionais (o lançamento original tem apenas 57 minutos, expressivamente menos que o composto para o filme).
  • Volta e meia essas faixas bônus aparecem no YouTube, mas nem sempre de maneira organizada. Por algum motivo, a edição é rara na internet. Por ora – enquanto não derrubam –, encontramos algo próximo a isso (2009, lançamento privado) aqui.
  • Há diversos bootlegs com lançamentos não oficiais. O mais interessante para iluminar cantos esquecidos do filme é a Esper Edition.

De todo modo, Vangelis não só usa, mas também gasta, estende, expande seus sintetizadores. O resultado é um pináculo, um dos melhores discos de música eletrônica de todos os tempos. A verve da cidade futurista hiperpopulosa está ali; o quarto escuro e solitário também – a belíssima ‘Memories of Green‘ já havia sido lançada em See You Later (1980).

See You Later, por sinal, talvez seja a melhor maneira de encapsular Vangelis em 40 minutos. O disco – um tanto esquecido – é experimental, porém melódico; eletrônico, porém orgânico. ‘Multi-track suggestion‘ demonstra essa abordagem emergente entre o pós-punk e o disco. Colaboram Jon Anderson (do Yes), Peter Marsh e Cherry Vanilla.

Por sua vez, The Friends of Mr. Cairo (1981), agora também assinado com Jon (“Jon & Vangelis”), é divertido pela megalomania oitentista. Já havíamos comentado, no texto sobre 666, como a música-título “contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura”.

Pois bem, a longa faixa (12 minutos) navega pelo livro/filme Maltese Falcon/Relíquia Macabra, como um pastiche do cinema americano dos anos 1940, incluindo imitações de Humphrey Bogart e Jimmy Stewart.

  • Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa. Mr. Cairo é, naturalmente, personagem do livro de Dashiell Hammett, interpretado no filme pelo marcante Peter Lorre.
  • O álbum ainda contém ‘State of independence‘, que viria a estourar no ano seguinte, com Donna Summer (produzida por Quincy Jones).

Na outra ponta, temos a trilha sonora L’Apocalypse des animaux (1973), de quando ele ainda estava na Aphrodite’s Child. Gravado em 1970, esse curto disco – que acompanhava uma série documental francesa e não contempla tudo que Vangelis compôs para a produção – tem como fio condutor a leveza sublime. Basta ouvir ‘Le singe bleu‘ para flutuar nessa sutileza.

  • Mencionamos cosmicidade: não à toa, Carl Sagan utilizaria ‘Création du monde‘ justamente na sua série Cosmos (1980), anos depois.

Se existe um além, Vangelis não fará uma estreia, mas um reconhecimento. Se existe um ser maior, este ser lhe perguntará: “como cara***s você já expressava tudo isso aqui com um teclado?”. Que nosso grego favorito descanse em paz.

Nossos cinco favoritos:

Baú: Trevanian

Extraído da edição 108 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Nikolai tocou com os dedos o supercílio quebrado. — Não foram os seus guardas, senhor. A maioria dos ferimentos é o resultado do interrogatório ao qual me submeteram os americanos.

— A maioria deles? E os outros?

Nikolai abaixou os olhos na direção do chão e pigarreou. Sua voz estava áspera e fraca e naquele momento precisava ser fluente e persuasivo. Prometeu a si mesmo que não permitiria, nunca mais, que a sua voz fraquejasse por falta de exercícios. — Sim, a maioria. O resto… Devo confessar-lhe que cometi algumas auto-agressões. Desesperado, bati com a cabeça de encontro à parede. Foi uma atitude tola e vergonhosa, mas sem nada para me ocupar a mente… — deixou que a voz definhasse e manteve os olhos baixos.

O Sr. Hirata estava perturbado só de pensar nas repercussões de um caso de loucura e suicídio quando já estava no final de sua carreira, especialmente agora que só lhe faltavam alguns anos para a aposentadoria. Prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance e saiu da cela tumultuado e agitado diante do pior tormento para um funcionário público civil: a necessidade de tomar uma decisão por sua conta.

Trevanian, Shibumi, 1979 (ed. Círculo do Livro, 1984).

Nuno Rau: Entre texto, contexto e interpretações (ou: Baudelaire, quem diria, acabou no Mercadão de Madureira…)

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Confessar, preciso confessar que as primeiras vezes que entrei em contato com a poesia de Baudelaire, algo que estava posto sobre os versos — e entre eles — me fazia sentir um certo incômodo, em parte, e um tanto de tédio. Antes disso, na infância e na adolescência, lia os poemas como uma experiência direta e sem filtro de nenhuma natureza, e foi assim que atravessei românticos, parnasianos, modernos, tudo que se abrigava sob o nome de poesia chamada marginal (que só merecia esse rótulo agregador por sua marginalidade em relação ao mercado), o furacão Fernando Pessoa, e alguns inclassificáveis, como Augusto dos Anjos. Revirando aqui esse tempo, percebo que talvez tenha começado cedo a tentar entender o que existia de pensamento para além das margens dos poemas, o que havia de debate sobre a produção d_s poet_s: lendo as revistas dos anos 1970 — Revista Escrita, José, e O Saco, principalmente, além de ter conseguido naquela época as também incríveis Navilouca e Almanaque Biotônico Vitalidade, que não continham entrevistas ou ensaios, mas cujos projetos eram, em si mesmos, projetos-pensamento —, lendo aquelas revistas comecei a conhecer o que gravitava em torno da escrita, algumas das questões específicas da poesia e outras, do campo ampliado da cultura.

Foi ali pelos vinte e bem poucos que cheguei a Baudelaire, e nesse momento já tinha o hábito de buscar apoios no que havia sido escrito sobre _s poet_s que estava lendo, achava — e não estava exatamente errado — que, por esse caminho, iria encostar melhor na pele dess_s poet_s, perceber seus mínimos movimentos, capturar garrafas de náufrago tantos nos versos como nos espaços entre eles, esse contrabando que poetas mais interessantes fazem embarcar no que escrevem e nem sempre (quase nunca?) são realmente decifrados. Pois aqui, nessa articulação, caí numa armadilha: o que havia me chegado às mãos sobre Baudelaire não passava de uma recepção conservadora – e, por isso mesmo, equivocada – de sua poesia. A leitura pela chave da arte pela arte (o poeta como artista puro e reacionário em política), a ênfase absoluta nos procedimentos técnicos, ótica pela qual ele não diferiria estruturalmente dos parnasianos, a fixação de sua imagem como um dândi, um burguês excêntrico, tudo me levava àquela sensação incômoda de tédio, que nada mais era do que uma recusa do que os comentários sobre a obra faziam aderir a ela, no contexto da minha experiência pessoal de poeta muito jovem e sem grana num subúrbio afastado de uma das periferias do capitalismo.

Essa sensação só começou a se dissipar quando conheci o que Walter Benjamin escreveu sobre a poesia de Flores do Mal, e se afastou de vez quando li os livros de Dolf Oehler sobre o mesmo assunto. Foi por tais leituras que soube que a reação de Brecht a Baudelaire foi semelhante à minha, e mesmo, de um modo geral, a crítica de esquerda até um dado momento — Lukács, Sartre etc. Sob essa chave de interpretação, a leitura caía refém de uma série de esquematismos, mal-entendidos e condenações acríticas, porque, na realidade, Baudelaire cifrou em seus poemas uma crítica profunda a respeito do pensamento burguês e seu modus operandi. Seria uma contradição minha essa recusa ao poeta da arte pela arte, o poeta mestre da técnica, já que considero a técnica (ao lado do conhecimento da tradição) um eixo essencial da poesia? Não, porque a técnica e o conhecimento da história da poesia não são conflitantes com seus aspectos políticos, sociais, além de seu punch existencial. Essa é uma falsa oposição, que, por razões óbvias de espaço, não será possível aprofundar, além de não ser esse o objetivo: o que gostaria de ter exposto era a modificação de meu olhar sobre a poesia baudelairiana, e, com ele, toda a minha compreensão.

Essa longa confissão se deu por conta das artes do Acaso, esse deus quase sempre avaro, mas que tem sido pródigo na minha relação com o RelevO: quase sempre tenho alguns insights prévios sobre esta coluna e, quando recebo o jornal, nele encontro fragmentos que apontam para esses insights. No excelente texto de Greicy P. Bellin sobre os contos de Joyce em Dublinenses , eis que me deparo com uma menção a Baudelaire por conta de sua relação com as transformações de Paris em sua época. De algum modo, também, o poema de Ana Vilalta, por celebrar em sua fatura – e com precisão – uma relação técnica entre poesia e prosa, mostrando como os limites andam mesmo borrados, e também que dessa investigação se pode produzir excelente poesia. Até as traduções de João Moura Fernandes — gostei especialmente das soluções adotadas na versão do poema de Frost — remetem ao Baudelaire tradutor de Poe, assim como as tensões que o poema de Rafael Iotti explora também remete, de algum modo, a ele. Dos textos em prosa, há um pisar no chão do real que me trouxe o trecho de Cerco animal, de Vanessa Lodoño, bem como o humor ácido que se infiltra na dicção do personagem do conto de Marlon Grando, na escolha das palavras que caracterizam uma pessoa de outra geração.

Hoje, penso, não passa despercebido a ninguém que escritor_s, poet_s, folósof_s, crític_s, artistas, todos foram, até há não muito tempo — regra quase geral —, filhos da burguesia, das classes médias, de parcelas bem privilegiadas dessas classes médias. Uma das marcas distintivas da boa literatura, da boa poesia, é o senso de contradição e de oposição com a classe de origem, se essa classe for privilegiada. Baudelaire é apresentado por Oehler, em Terrenos vulcânicos, como um traidor de classe, e Drummond, por Vagner Camilo no excelente livro Da rosa do povo à rosa das trevas, como um deslocado na família, na classe social e na vida pública, um gauche. A saudável diversidade (de classe, de gênero, de orientação sexual) que incidiu sobre o perfil de escritor_s e poet_s mudou a dinâmica como estava estabelecida até o penúltimo quarto do século passado.

A tristeza, a dor e alguma revolta podem nos levar a uma aproximação com o riso — de si mesmo e dos outros — e foi dentro dessa perspectiva que, olhando para a cena da poesia, imaginei a divisão de quem escreve poesia em duas categorias básicas: Poetas da Varanda Gourmet e Poetas Palha de Aço, estes últimos podendo ser chamados de Poetas do Mercadão de Madureira (vocês conhecem o Rio de Janeiro? Caso não, podem trocar por Poetas do Ver o Peso, o antigo, no caso de Belém do Pará. Dica: pesquisem o bairro no contexto do Rio). O mundo literário apresenta a mesma estrutura da sociedade em geral, a mesma divisão de classes, e por vezes de modo nada agradável, para dizer o mínimo, porque inverte os vetores da atribuição de valor, e, em alguns casos, poéticas insípidas são supervalorizadas, e mesmo justificadas teoricamente — o que não as faz menos ruins. Baudelaire seria, aqui, o poeta que desceu da varanda gourmet e veio comer pastel e beber cerveja no Mercadão de Madureira, onde veio se tornar flaneur.

Essa brincadeira pessoal não funciona como esquematização desse pertencimento a mundos diferentes, como se ele possibilitasse ou impedisse a produção de boa ou excelente poesia. Não é tão simples. Uma visão elitista diria que só privilegiad_s são capazes de produzir uma boa escrita, enquanto uma visão populista advogaria que só as classes espoliadas, justamente por essa espoliação, são capazes de produzir poesia de qualidade, posto que crítica. A visão mais realista talvez afirme que só artistas conscientes de suas próprias contradições, estejam onde estiverem, é que podem realizar obras realmente válidas, caso as encarem de frente.

O Baudelaire que habita em mim só se incomodou, na edição de maio, com a menção a Ayn Rand e seu livro A nascente, que defende um individualismo radical bem adequado ao ataque neoliberal de que somos reféns, o que parece ser a tônica da série Mad Men, objeto do artigo da seção Enclave. Por fim, daqui fiquei pensando que o Mateus Ribeirete deve descansar seu corpo massacrado pela Gop Tun 2022 no Relev’Otel Fazenda (vou procurar todas as indicações de som que ele fez, confesso que música eletrônica nunca foi bem a minha praia). Por fim, gostei da viagem em torno do samba de Bide e Marçal, esses bambas cariocas das décadas heroicas da malandragem. Persistente leitor, esteja você no Mercadão de Madureira ou na Varanda Gourmet, pense no junkspace que é o presente em que vamos enfiados até pelo menos o pescoço, e invente as suas formas de rebelião, de não conformismo, como fez Baudelaire pelas ruas de Paris e pelas páginas dos livros — de servidão voluntária já andamos cheios demais.

Sensos e generosidades

Editorial extraído da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O RelevO sempre se diferenciou de uma organização com fins lucrativos – não só pela desorganização de seus primeiros anos e pela incapacidade de lucrar, contínua – e se assemelhou a uma instituição, operacionalmente. Não entendemos, de forma alguma, que o nosso impresso mensal de literatura desenvolva atividades como as de hospitais, universidades e igrejas (sequer temos crenças). Todavia, acreditamos que temos alguma relevância (com o perdão do trocadilho) tanto em quesitos editoriais como de acessibilidade ao nosso trabalho, que busca apresentar novos autores e descentralizar perspectivas do meio literário (o que também não sabemos se conseguimos, dada a nossa limitação logística). De fato, muito do que fazemos é pelo senso livre e particular de gostar do que fazemos – e de primar absolutamente por continuidade.

Nesses quase 12 anos de existência, apostamos muito em nosso senso de comunidade, promovendo a autocrítica constante, criando o cargo de ombudsman, abrindo ao leitorado as cartas mais negativas possíveis e divulgando o nosso balanço financeiro mensalmente. Não temos vergonha de nossos índices e práticas, que até poderiam ser chamadas de modelo de negócio caso tivéssemos certeza que chegamos até aqui com um plano.

A transparência é um pilar do nosso projeto editorial e não negamos que utilizamos desse expediente para a publicidade de nossas ações. Pagamos os autores e autoras e divulgamos isso. Confiamos em nosso corpo de assinantes para superar crises. Esforçamo-nos para entregar, todo mês, o melhor periódico que conseguimos.

Se não apelamos diretamente para o slogan “Não deixe o RelevO morrer”, não deixamos de reconhecer que sempre expomos nossas fragilidades e dificuldades em busca de compreensão e de suporte financeiro. Também por isso, entendemos como necessário agradecer a cada um que ouve nossos chamados nas circulares mensais direcionadas aos assinantes, que nos escrevem depois de nos encontrar numa biblioteca do interior, gente que manifesta generosidade genuína e se compadece da nossa situação de busca simples por continuidade,. E é apenas isso que buscamos: continuar.

Obrigado. Boa leitura a todos.

Nuno Rau: Poet_s vagam atônit_s pelos vãos de um século incendiário (ou: o mundo é um holograma ou essa parada do real é concreta mesmo?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O Acaso é um deus estranho, e sua maior diversão parece ser pregar peças nas pessoas distraídas e desavisadas, às vezes empurrando grandes feitos da História, em outras se satisfazendo com o milimétrico tropeção existencial. O que posso dizer é que foi uma surpresa abrir o RelevO de abril e ver, algumas páginas adentro — meus ímpetos retrô dão saltos mortais triplos de contentamento — as colunas Hi-Fi Braziliance e Enclave. A primeira nos trouxe Dolores Duran com sua “Ternura Antiga”, passeando por diversas versões dessa canção tão delicada, e a segunda estampa a imagem de um cinema, o Fox Bruin Theatre, um palácio de cinema com 670 lugares, localizado no bairro Westwood de Los Angeles, Califórnia, cenário do filme Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino… Fosse por aqui não estaria mais de pé, já que os cinemas andam sendo demolidos, as livrarias fechando, os bares tradicionais da boemia sendo transformados em points de playboys, a cidade derretendo e refundindo seus metais em direções que não podemos supor com precisão, sob o influxo do capital volátil e agora também cripto-alado.

Futuros distópicos à parte, algumas coisas postas na edição de abril me jogaram num campo de reflexão: a paixão de Tarantino por uma Hollywood que não existe mais, o poema da pesada de André Giusti (“Talking ‘bout our generation”), as angústias do poeta Felipe Mamone expostas nas cartas d_s leitor_s, a menção a Edmund Burke no conto de Luciana Merley (“Lendo jornal no Mercado Central”), e a própria imagem de um mercado central, que nos grandes centros do Brasil ocupa, em geral, edifícios do século 19, com estruturas em ferro importadas de Manchester, tudo isso junto me levou a pensar sobre a complicada relação com a tradição, o que implica, por complementaridade, na relação com o presente. Observo com agudo interesse o arco tenso da poesia brasileira há bastante tempo, e nesse percurso observei que, a partir dos anos 1980, o interesse de jovens poetas — com raras exceções — parecia, em paralelo a uma insistente ancoragem à dicção cabralina, se descolar do tecido de nossa tradição e buscar referências exógenas: Cristophe Tarkos, Sylvia Plath, William Carlos Williams estão entre _s preferid_s daquela primeira década pós-marginal, quando a maioria se regozijava em conversar com Oswald, Mário, Bandeira, Drummond, e — por que não? — o invasivo Cabral. Ou seja, parece que um corte foi desferido sobre o tecido que vinha sendo trançado desde, ao menos, Gregório de Matos Guerra.

Um ombudsman às vezes percebe que não consegue se afastar de suas obsessões, e mesmo se esforçando para não sair dos trilhos do que se vincula aos materiais do jornal a que se dedica, acaba trocando as pernas em suas ideias fixas: eis que, como confessei acima, poemas, contos, textos e matérias do periódico me jogaram na cara o precioso tema de nossa relação com a tradição, e suas não poucas contradições (que, por sua vez, se trança com a questão de março (para o que olhamos quando estamos escrevendo?) junto com a de abril (que é escrever poesia nesse começo de terceira década do século 21?). No ensaio Sobre tradição, que integra o volume Sem diretriz: Parva aesthetica, Adorno pontua que “o que parece não ter história, ser um puro começo, é antes de tudo uma vítima da história, e tão mais funesta por não ter consciência disto”, e complementa: “O escritor que resiste aos momentos de aparência da tradição, encontra-se contudo enredado nela, sobretudo por meio da linguagem”; como também: “Assim como a tradição aferrada a si mesma é ingênua, também é ingênuo aquilo que carece de tradição em absoluto, pois desconhece o que há de passado nas relações pretensamente puras com as coisas, não turvadas pela poeira do parecer.”

Para pensadores como Adorno e Lukács, a tradição é incompatível com as sociedades burguesas, está sempre em contradição com elas, empenhadas em sua necessidade de fabricar novos produtos (que na arte se caracteriza pela “crescente e incessante obrigação da recusa, segundo Adorno, pela aceleração na troca de movimentos e programas estéticos), autofagocitando tudo com sua força centrípeta. Com a aceleração do empuxo neoliberal, o descarte do passado é motor da produção do novo, cada vez mais, já que seus processos de produção e reprodução são vinculados tão somente à razão instrumental, prática, e não a uma razão integral, totalizante. Ocorre que este passado permanece como fantasma: convertido em forma vazia, sem relação com as formas sociais que lhes deram origem (e igualmente sem a pesquisa de possibilidades de novas relações dessas formas com as formas sociais), vemos o verso livre, as formas fixas, a experiência do poema concreto, a poesia visual serem empregados acriticamente.

É nesse cenário que a recusa da passada de bastão de poetas como Drummond, Murilo, Mário, Jorge de Lima, Cecília, Henriqueta, entre outr_s, repelidos em face de uma tradição exógena, soa deslocada. Alguém pode argumentar que é visível o diálogo com poetas como Ana Cristina César, Torquato Neto, Hilda Hilst, Paulo Leminski e Roberto Piva, mas desconfio que, nestes casos, a aura romântica que paira sobre a imagem de cada um, como um adensamento de matéria simbólica gerado pelo destino trágico que os irmana, se sobrepõe aos aspectos realmente significativos da obra de cada um, refletindo apenas apreensão superficial, porque sem conversar com a concepção de mundo dest_s poetas, com a História, com suas estéticas. Em lugar disso, a forma pura, o gesto esvaziado de conteúdo.

É nesse contexto, de quem apercebeu-se que o verso não morreu, e que temos que lidar com a falência das utopias (junto com elas, em direção aos mesmos ralos, foram as vanguardas), é que podemos ir conversando criticamente com vozes que vieram antes de nós: a tradição é algo que a gente ama, mas é também, e sempre, o indício de uma tragédia, muitas aliás, que nos trouxeram até aqui – nosso tempo espelha conflitos e contradições que eram ainda mais intensos no século anterior: machismo, racismo, sexismo, a exploração do trabalho, tudo enfim que representa um rol de bandeiras pra gente, agora, e cada vez mais. Não há território pacífico. Quem me conhece sabe que gosto de brincar com sonetos, por exemplo, e isso tem dois lados. Um lado é não afastar uma forma que foi criada e desenvolvida por pessoas como nós, e que tem um teor de atualidade que pode ser recuperado, desde que bem feita a abordagem, desde que não sejamos neoparnasianos, ou tentemos apenas emular a intensidade com que Drummond, Murilo e Jorge de Lima se aplicaram nessa forma, munidos das potências simbólicas de seu tempo. O outro lado é: nenhuma forma nos chega pura, as formas vêm sujas de História, e toda História humana é barbárie (cf. Benjamin).

Não pensar nisso é ser inocente, seja para negar o já feito, seja para abraçá-lo. Isso vale também, e muito, para a apropriação dos ganhos do concretismo. Os textos e manifestos do concretismo e da poesia práxis do período heroico chegam a ser ridículos pela sua fé absoluta no progresso da técnica, o que significava uma adesão a um modelo que politicamente, na prática, estava em contradição com as crenças dos poetas, porque os irmãos Campos, Décio e os demais se opuseram, tanto quanto a turma do Chamie, ao regime do golpe civil-militar de 1964. Resumindo: vivemos sobre um chão de brasas, está ardendo, e a gente se mover é difícil, há gases estupefacientes no ar nublando a visão e toldando a compreensão. Estar no presente de corpo inteiro (e é só isso que temos, todos) é sempre uma aventura complexa em qualquer época.

E para não dizer que não falei da prosa, achei muito interessante que os contos “Emprendedores”, de Cid Brasil, “Lendo jornal no Mercado Central”, de Luciana Merley, o hilário “Celsinho Kaizen”, dos editores, “Estranhos na noite”, do uruguaio Rodolfo Caravia, em tradução de Johann Heyss, bem como o ensaio “Abrace o caos,” de Otávio de Moura Brandão, todos dialogam com fragmentos de nosso mundo atomizado e fetichizado.

Fato é que gostaria de investir uns poucos cobres em ações da cerveja BuZazen, do Celsinho Kaizen (leiam o conto, não vou dar spoiler), deve arrebentar nas vendas, e quem sabe mesmo acionistas mini-mini-minoritários consigam desconto na compra… Tem que ser divertida — apesar dos aspectos distópicos — a aventura: isso é o que nos salva em meio a um século incendiário.

Pedintes

Editorial extraído da edição de maio de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Ao longo de quase 12 anos de existência & suas consequências, o RelevO fez algo além de circular mensalmente e colaborar para o desmatamento de reservas de reflorestamento: pedir.

Desde o dia da criação mental do Jornal, o que mais fazemos é pedir. Foi assim em agosto de 2010, quando conseguimos dois anunciantes para custear a impressão (quando conseguíamos imprimir 1000 jornais com R$ 200). Quinze dias depois, o Jornal começava a circular em não mais do que dez lugares do Paraná, diversos exemplares soltos no banco de passageiros do mesmo Gol 1994 que ainda hoje transporta os fardos coletados na gráfica (com custos que agora aumentam a cada três meses).

Em 2012, ambicionando a estabilidade e o fim da dependência exclusiva de anunciantes, começamos a vender assinaturas, que custavam, então, R$ 50 ao ano. Em pouco mais de dois meses de prospecções, tínhamos 100 assinantes e a esperança de que conseguiríamos mesmo imprimir um jornal de literatura com alguma regularidade. Neste período, demos alguns saltos que podemos considerar, hoje, como excessivamente arrojados para o nosso perfil de investimentos em mais de uma década.

A entrada de assinantes nos levou a tomar medidas de cunho organizacional. Precisávamos entregar os jornais e justificar a confiança daqueles que adquiriam 12 edições antes mesmo de receber a primeira. Ali, aprimoramos nossas planilhas, ampliamos nossa rede de distribuição para angariar mais leitores e chegamos a ter 25 anunciantes em 2015, com edições de 32 páginas e seis mil exemplares de tiragem.

Aí percebemos nosso teto de produção. Com fechamentos confusos e altos índices de erros de checagem, vimos que 32 páginas eram um excesso; também enxergávamos de maneira mais notória os efeitos da crise de formato, com o predomínio do digital e o fechamento de diversas marcas conhecidas da dita mídia tradicional. Tínhamos alguns sinais oscilantes: crescíamos, mas também gastávamos mais energia.

Em 2015, com o aumento de diversos custos (pois veja), como combustíveis e gráfica, começamos campanhas mais agressivas para ampliar o nosso fluxo de caixa. Não foram poucas as noites em que o editor do periódico escreveu para amigos, conhecidos, contatos e qualquer ser humano que pudesse gostar do nosso projeto editorial. “Que acha da ideia de assinar o Jornal RelevO?”. Foi em 2018 que chegamos a 1000 assinantes e pensamos: será possível ter mais assinantes? Acreditávamos que sim – e ainda acreditamos, hoje, com pouco mais de 1100 assinantes (patamar que não conseguimos ultrapassar desde 2019 e que não sofreu quedas severas com as permanentes crises econômicas).

Desde então, o cenário mudou muito. Os custos cresceram ainda mais, os hábitos de leitura mudaram — nos chamam de “experiência offline” —, tivemos uma pandemia, os índices de renovação caíram, as reclamações aumentaram. Ao mesmo tempo, solidificamos nossos processos, nos tornamos ainda mais antifrágeis e convivemos com alguma resiliência com o nosso cinismo, sem fazer clima de terra arrasada, mas também sem deixar de considerar os desafios do nosso meio de atuação.

A pandemia, sem dúvida, foi o momento em que mais pedimos, em que mais apelamos para o nosso senso de comunidade. Ao diminuir a tiragem, cessar a distribuição em pontos físicos e ter os custos aumentados em cadeia, temos cada vez mais dificuldades para abrir novos mercados e dependemos sobremaneira de nossos assinantes.

Não temos vergonha de pedir. Em nossas circulares, destinadas apenas a assinantes e colaboradores, contamos os nossos percalços e os esforços para manter em circulação o periódico que gostamos de seguir produzindo. Não são poucos os dias em que nos perguntamos se não estamos exagerando no drama. E 2022 está mesmo complicado.

Enquanto interessarmos como produto e como projeto literário, pediremos. Quando não for mais possível manter a Operação RelevO, ainda assim seremos gratos por tantos anos e anos em que os nossos pedidos viraram o pagamento de contas, a edição seguinte, a manutenção de nossa circulação. Somos mesmo muito gratos.

Uma boa leitura a todos.

Shibumi!

Extraído da edição 107 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Shibumi (1979), de Trevanian (Rod Whitaker), é um livro esquisito. Não necessariamente pela forma atípica ou por um conteúdo extravagante, mas existe algo inerentemente curioso nesse romance de espionagem.

A começar por seu autor. “Mas quem diabos é ‘Tre-va-nian’? ‘Tre-va-ni-an‘?” foi minha reação ao deparar de algum modo – não lembro qual – com a recomendação de Shibumi pela internet. Quem confiaria em um escritor de um nome só?

Rod Whitaker (1931-2005), a despeito de uma carreira acadêmica regular nos Estados Unidos, não só vendeu, mas também vendeu bastante assinando como Trevanian, um pseudônimo/heterônimo/alterego misterioso que só viria a ser desvendado alguns anos antes da morte da pessoa física.

Whitaker publicou seu primeiro romance – já sob o heterônimo Trevanian, uma homenagem ao historiador G. M. Trevelyan (1876-1962) – em 1972. The Eiger Sanction (Escalada Mortal) logo viria a ser adaptado (e estrelado) por Clint Eastwood, em 1975, para desaprovação do escritor, incomodado com a miopia interpretativa de quem não identificou os tons satíricos da obra.

  • Escalada Mortal acompanha um professor de arte-alpinista-assassino-mercenário (não dá para desconfiar de imediato? Professor de arte não completa uma volta no Parque Barigui, oras).

Mas é aí que as coisas começam a ficar mais interessantes. Porque, considerando o que lemos em Shibumi – e Escalada Mortal (ed. Landscape, 2007) já foi devidamente comprado para a biblioteca Enclave –, Trevanian produz muito mais que apenas paródia.

Afinal, Shibumi é sim um livro esquisito. Também é um baita romance. A narrativa acompanha Nicholaï Hel, nascido de uma aristocrata russa com um alemão e crescido em uma Xangai ocupada pelos japoneses – sem conhecer o pai, praticamente sem a mãe –, depois no próprio Japão (Heru), por fim no Japão ocupado por americanos, após o fim da Segunda Guerra.

Apaixonadamente multicultural e com um explícito viés antiamericano, o universo de Shibumi se estende ao País Basco, onde mora Hel (e onde morou Whitaker), agora um assassino aposentado, embora ainda temido. Também se passa em Londres e em Washington, de onde a CIA alinha suas operações com a Matriz, uma corporação gigantesca e sem rosto controlando o planeta a partir do petróleo e de suas calculadas motivações políticas.

Já em seus cinquenta anos, Hel mora num castelo sem energia elétrica, explora cavernas, joga Go, pratica jardinagem japonesa, é capaz de matar qualquer um com qualquer instrumento (“a fucking pencil…”) e conseguiria entregar prazer a qualquer mulher por uma eternidade. Hel fala quase dez línguas e desenvolveu um senso de proximidade com o qual detecta não só aproximações físicas, mas seu aspecto anímico.

Um James Bond cavaleiro do zodíaco. Hel é o homem, uma máquina, uma besta enjaulada com ódio – apenas à procura de viver com shibumi, uma perfeição espontânea. E, claro, algo o fará voltar ao jogo.

Se os elementos são nitidamente exagerados, para não dizer escrachados, acontece que Trevanian consegue trafegar entre a paródia pornográfica de 007 (um dos personagens se chama D.I.L.D.O!) e o romance de desenvolvimento lento, disposto de enorme caracterização, com maestria – a maestria de quem domina a técnica e se vê forçado a brincar.

Ademais, o livro antecipa diversos tópicos em voga hoje, como inteligência artificial, ecologia, interferências de política externa e a ubiquidade de instituições dúbias. Trevanian aproveita para espalhar seu veneno em vários (vários!) tópicos, da CIA à pop art, todos com a rabugentice fundamentada de que gostamos. Há um senso de humor preciso.

Com a imagem do herói silencioso multicultural de origem misteriosa lutando contra organizações onipresentes, Shibumi inspirou a divertidíssima franquia John Wick – no primeiro filme, até vemos um personagem segurando o livro. Inclusive, Chad Stahelski, o diretor, adaptará o romance para o cinema em algum momento.

Como esta é uma newsletter, grosso modo, de adaptações e intertextualidade, pensemos em alguns pontos aqui.

  • Pela natureza longeva da narrativa, que abrange muitas décadas, será uma tarefa difícil.
  • O antiamericanismo em Shibumi, obra de um americano que adora o Japão, certamente será diluído.
  • Torço para manterem a pluralidade linguística – do russo ao basco –, agora que esse povo finalmente descobriu as legendas.

John Wick, por ora, sobrevive bem à superexposição (já são três filmes, rumo ao quarto), provando que filmes de ações não precisam ser estúpidos. Ou melhor, que podem até ser simplistas, desde que a ação em si seja vistosa, coreografada, bonita.

Afinal, ninguém se importa com explosões sequenciais e cortes indecifráveis, mas é possível aproximar uma luta armada de um balé – e incrementá-la com luzes, trajes e objetos cativantes. John Wick sabe fazer isso (como o primeiro Kingsman também fez).

Mais do que isso – e é aqui que a franquia realmente captura parte do apelo de Shibumi (como o primeiro Kingsman também capturou) –, essas narrativas temperam nossas vidas entediantes com um “e se?” lúdico, constante na infância, mas adormecido na rotina amorfa da vida.

“E se esse vendedor fosse um espião procurando informações?”; “e se essa porta trancada levasse a um porão da máfia?”; “e se esse prédio fosse um centro de comunicação de uma agência secreta?”; “e se esse corredor…”. O universo pelo qual transita o interminável Keanu Reeves carrega todo o ethos do romance – quem o ler logo identificará.

Por fim, ecos de Shibumi atravessam mídias: no videogame, a saga de Metal Gear parece ensopada de Trevanian, ao passo que desbravadores de Mass Effect reconhecerão Thane Krios como um Nicholai Hel alienígena.

Excelente para um livro esquisito: quem duvidaria de um escritor de um nome só?

Baú: Anthony Bourdain

Extraído da edição 107 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Meu primeiro indício de que comida era algo mais que uma substância para se enfiar na boca quando batia fome – como que enchendo o tanque do carro – veio no final do quarto ano primário. Foi durante as férias em que viajamos para a Europa a bordo do Queen Mary e aconteceu no salão refeitório da classe econômica. Há uma foto dessa viagem: minha mão de óculos escuros à la Jackie O., meu irmão caçula e eu terrivelmente chiques para o cruzeiro, alvoroçadíssimos com nossa primeira visita à terra natal dos ancestrais de meu pai, a França.Foi a sopa.

Estava fria.

Uma descoberta e tanto para um menino curioso cuja experiência em sopas até aquele momento ia de creme de tomate Campbell’s a canja de galinha. Eu já havia comido em restaurantes, claro, mas essa foi a primeira comida em que realmente prestei atenção. Foi a primeira comida de que gostei e, mais importante, de que me lembro de ter gostado. Perguntei ao nosso paciente garçom britânico o que vinha a ser aquele líquido deliciosamente fresco e saboroso.

“Vichyssoise”, foi a resposta, palavra que até hoje – mesmo agora, uma veterana cansada de guerra de tantos cardápios, preparada mais de mil vezes por mim – ainda guarda um tom de magia. Lembro-me de tudo sobre essa experiência: a forma como nosso garçom tirou-a de uma terrina de prata com a concha, o frescor das cebolinhas verdes francesas que ele colocou por cima para guarnecer, o gosto cremoso e forte do alho-poró com batata, o choque agradável, a surpresa de saboreá-la fria.

Não me lembro de muita coisa mais a respeito da travessia do Atlântico. Assisti a Boeing Boeing com Jerry Lewis e Tony Curtis no cinema do navio e a um filme com Bardot. O velho transatlântico tremeu, roncou e vibrou que foi um horror a viagem inteira – cracas no casco era a explicação oficial – e de Nova York a Cherbourg foi como cavalgar um cortador de grama gigante. Meu irmão e eu não demorados a nos sentir entediados e passamos grande parte do tempo no “salão jovem”, ouvindo “House of the Rising Sun” na vitrola eletrônica ou vendo a água se mexer para lá e para cá feito um vagalhão contido entre quatro paredes na piscina de água salgada do convés inferior.

Mas aquela sopa fria nunca mais me deixou. Ela ressoou, me acordou, me deixou consciente da língua e, de alguma forma, me preparou para os acontecimentos futuros.

Anthony Bourdain, Cozinha Confidencial, 2000 (Companhia de Mesa, 2016).