Autor: Jornal RelevO
Nuno Rau: A aura romântica que paira, impávida, e brilha no céu da pátria em raios fúlgidos, (ou: o conformismo nosso de cada dia.)
Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Em Signos em rotação, Octavio Paz começa um ensaio com a seguinte questão: “Começarei por uma confissão – estou certo da existência de alguns poemas escritos nos últimos anos por alguns poetas latino-americanos, mas não o estou da existência da poesia latino-americana.” Sob os efeitos de uma inquietação semelhante, não me soa despropositado dizer que não estou certo da existência de uma poesia brasileira contemporânea, inquietação de fundo – percebo agora depois de alguns meses procurando desempenhar de modo ao menos aceitável a função provisória de ombudsman do jornal RelevO – que atravessa a quase totalidade dos textos elaborados entre março e julho deste ano (e estendo essa quase angústia à prosa de ficção). Tomando o jornal como registro de um dado recorte dessa produção, a questão parece se justificar plenamente; para começar a refletir sobre o problema, confrontemos o conteúdo do editorial de julho com a carta de Ademir Demarchi do mesmo mês. O primeiro nos informa que são recebidos quase 400 textos por mês, o que gera, em razão do espaço disponível (em razão dos custos de impressão, são 24 páginas), uma recusa de 98% do material enviado. Se como termômetro tomarmos também a edição do mês passado, na qual nenhum/a poeta brasileiro/a foi publicado/a, ficamos diante da pergunta: a poesia remetida foi de fato tão inferior à prosa?
Antes de tentar aprofundar a questão, penso que cabe alguma conversa sobre os textos em prosa publicados, ainda diante da exposição pragmática do editorial, com seus 98% de recusas, mas diante, também, da nossa circunstância – e quero dizer com isso: da história, de nossa condição incontornável de animais políticos. Não, não estou estreitando os parâmetros de juízo para privilegiar uma produção que tem por tema explícito as questões especificamente políticas de nosso tempo, que são muitas e candentes; não desejo que todo mundo escreva romances como Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Os que bebem como cães, de Francisco de Assis Brasil, ou contos como A morte de D.J. em Paris, de Roberto Drummond, e Você vai voltar pra mim e outros contos, de Bernardo Kucinski. A investigação do aspecto trágico de nossa condição como animais políticos está presente nos contos de Dalton Trevisan, quase sempre debruçados sobre a micropolítica dos afetos, em Nelson Rodrigues e em Cassandra Rios, para não me estender em exemplos. “Primavera ao sol”, de Luis Felipe Mendes dos Santos, não aproveita a concisão necessária ao conto para jogar com possíveis tensões da situação nele desenhada, conformando-se ao pitoresco e ao inusitado; esse lado inusitado é explorado por Fernanda Mellvee n“O amante fantasma”, que também – em meu modo de ver, claro – tem diante de si a oportunidade criada pela trama insólita (ainda que já explorada, por exemplo, em Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado), mas não transita nas possibilidades de exposição mais caricata das fraturas expostas da relação conjugal em sua face micropolítica (impossível não pensar em Madame Bovary, em que Flaubert delineia esse jogo, milimetricamente). A surpresa, para mim, se resumiu ao fragmento do romance Na contramão, Curitiba, de D. K. Montoya, com suas descrições obsessivas, como se tentasse extrair dos detalhes aparentemente insignificantes e banalíssimos a possibilidade de um sentido, numa articulação entre forma e conteúdo que é o cerne da literatura. Não sei se é essa a proposta do romance, mas até para poder comprovar ou não essa intuição, me senti capturado pela vontade de lê-lo. O texto do italiano Alberto Arecchi sobre Opicino de Canistris, apesar de estar entre meus interesses pelo tema (o tempo e o lugar em que a acumulação primitiva do capital foi, talvez, mais interessante – a Itália entre o fim da Idade Média e o Renascimento), não entra nesse argumento por não se tratar de autor brasileiro.
Retornemos, então, à poesia, que na edição passada esteve representada pelas traduções que Piotr Kilanowski trouxe de Jacek Podciadlo, poeta polonês contemporâneo, Irina Ratuchínskaia, porta russa nascida na atual Ucrânia, e Vasyl Symonenko, poeta ucraniano, com três poemas políticos que abordam a impossibilidade de ação diante da experiência totalitária e da guerra (tema candente, no momento em que duas nações imperialistas não vindas do projeto Escamandro, da poeta indiana Tishani Doshi, em que também estão imbricadas questões políticas no campo ampliado. Poesia brasileira contemporânea? territorialistas fazem a Ucrânia de marisco, entre a onda e a pedra); também as traduções, Nada. Aqui chegamos à (des) carta de Ademir Demarchi: “Por falar em poema, esse é um aspecto do jornal que o aproxima do Almanaque do Biotônico, assim como do próprio xarope, com esses textos choramingados e sentimentalóides (‘gotas caem como chuva’, ‘ir garimpar estrumes de vazio’, ‘dói, mas estamos juntos regando plantinhas’, ‘regar as plantas dos pés’, ‘quem é mau, ama com maldade’, ‘o céu é cheio de imortalidades… a língua é sempre doce’, ‘e todas as noites têm lua e todas as noites têm cigarras’), todos textos que o tom marcante de kitsch a esse nano-nanico curitibano chegado a colunas dóricas.” Se tomarmos exclusivamente os trechos apontados, chegaremos à conclusão de que a poesia anda tangenciando a banalidade com roupas de metáfora prêt-à-porter.
Voltemos ao texto de Octavio Paz para investigar suas conclusões. Depois de pôr de lado a poesia brasileira, por sua especificidade em relação à produzida no restante do continente, Paz conclui que a poesia precisa estar conectada a certa continuidade histórica: “Mas história e poesia se cruzam e às vezes coincidem. É indubitável que de Bolívar a Zapata e de Zapata a Fidel Castro – um aristocrata, um camponês e um revolucionário de classe média – há uma certa continuidade, não nas ideias mas nos propósitos profundos e talvez inconscientes. O que alguns chamam de ‘lógica da história’ e outros de ‘destino’. Um poeta latino-americano não pode ser insensível a essa continuidade, encontrar a palavra de origem e fundar uma sociedade não são, no essencial, tarefas contraditórias, mas complementares. Quando a história e a poesia rimam, essa coincidência se chama, por exemplo, Whitman; quando há discórdia entre uma e outra, a dissonância se chama Baudelaire.”
Postos os termos do problema, é importante chamar atenção para a incompreensão de Paz sobre Baudelaire, que também não havia encontrado até então muita compreensão por parte dos críticos de esquerda, amarrados à leitura de seus poemas como expressões da arte pela arte, cuja exceção seria tão somente Walter Benjamin. Mesmo Brecht teria incidido nessa difração da leitura, quando disse: “Baudelaire é a punhalada final nas costas de Blanqui. A derrota de Blanqui é sua vitória de Pirro.” É Dolf Oehler quem demonstra, décadas depois, como o poeta cifra sua escrita como “testemunha de acusação do processo que o proletariado move à classe burguesa”, como apontado por Benjamin, indicando um dos possíveis caminhos que podem ser trilhados com as devidas vênias do presente, suas complexidades e contradições específicas – sem deixar de considerar que, em parte, o século 19 não acabou, o que também se percebe por outra vertente da produção atual, que emula Baudelaire em sua forma (alguns com extenso domínio), sem apropriar sua subversão no jogo dos sentidos, sua maravilhosa traição de classe. Se tais poetas estão em um polo, no outro gravita o grupo de quem aposta na pura expressão, sem qualquer consciência dos debates que atravessam a poesia ao longo das décadas, estabelecendo em sua produção uma posição crítica, como fizeram poetas que marcaram território, como Drummond, Murilo, Cabral, Ana C., Waly, Secchin, Geraldo Carneiro e tant_s outr_s. É de Antonio Carlos Secchin, por sinal, uma das mais precisas observações que já li sobre a relação com a tradição, que não pode significar aprisionamento: “Há muitos modos de aprisionar o transbordamento do mundo, não queiramos que a poesia seja mais um. Ela deve ser a palavra vigorosa, diante de todo arbítrio classificatório, a voz que não se pode perceber senão nas margens. Por isso a poesia representa a fulguração da desordem, o mau caminho do bom senso, o sangramento inestancável do corpo da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum.”
Novamente este ombudsman recorre a seus estratagemas para se queixar de não haver nenhum poema de poeta brasileir_ contemporâne_ (na edição de junho apareceu um, ao menos), por mais que ache importante haver textos de humor, embora o Mapa baixo astral não siga os passos de edições anteriores, por uma enorme e importante ressalva: o texto escorrega em estereótipos de certo universo masculino que não estão alinhados com um pensamento que se considere crítico. Uma boa referência é a série “Viver do riso”, dirigida por Ingrid Guimarães, que mostra como o humor vem acompanhando as (necessárias) mudanças políticas do mundo (link para um episódio: bityli.com/uNQeoj). Sigo curtindo a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance, mas outra vez chamo aos editores a atenção de que poesia e ficção potentes, distantes da diluição, devem manter espaço nas páginas de RelevO.
“Hoje pavão, amanhã espanador”
Editorial extraído da edição de agosto de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Um impresso de literatura vive de pequenas conquistas não simbólicas. Por exemplo, a gráfica. Pagar a gráfica não é alegórico. Não temos como permutar a gráfica ou convencê-los de que os preços subiram e “esse mês tem como pendurar?”. O mesmo vale para todos os nossos insumos: itens de papelaria, envelopes, combustível, manutenção do carro do jornal — o prestidigitado RelevOMóvel. Estar em dia, para nós, equivale a continuar em circulação. Portanto, é um sintoma de nossos acertos.
Nesse cotidiano em que a logística é muito importante – e, certamente, o coração operacional do Jornal –, às vezes deixamos certos vácuos editoriais sem solução (ou apenas com sistemas de continuidade duvidosos). Como já relatamos em editoriais recentes, sempre tivemos muita dificuldade de estar em dia com as leituras dos textos encaminhados para avaliação ao nosso Conselho Editorial. A situação já foi tão desesperadora que chegamos a ter dois mil textos não lidos. Na pandemia, o drama se acentuou.
Pois bem: em julho, conseguimos, enfim, zerar a caixa de entrada, ou ao menos encaixá-lo no que a nossa própria política de publicação alega ser o ideal: “Tentamos, mas não conseguimos acusar recebimento. Se você não receber retorno em 60 dias, não utilizamos o material. Se o aprovarmos depois deste prazo – estamos em constante atraso –, evidentemente entraremos em contato. Textos selecionados têm sua aprovação comunicada antes do fechamento da edição”. Em suma, os textos não lidos (menos de 40) agora se encontram na margem de retorno.
Além das leituras, retornamos individualmente para cada autor ou autora não selecionada. Reforçamos que o material não será utilizado pelo nosso Conselho Editorial e que isso não significa, de modo algum, que o trabalho não tem potencial literário: apenas não se encaixa na linha editorial das próximas edições. “Fique à vontade para submeter outros materiais quando quiser” foi o tom que buscamos apresentar, entendendo que estamos em um circuito interligado, o dito meio literário. [Nós mesmos publicamos textos que hoje não publicaríamos apenas porque… mudamos, como tudo na natureza.]
O RelevO não é um periódico de um banco ou de um órgão público. Nossa equipe é enxuta, regular e preza por transparência (talvez até com um certo grau obsessivo). Assim como trazemos a público a satisfação de, depois de mais de três anos, estar com a caixa de entrada em um nível decente, também dividimos os melhores-piores retornos dos recusados, curiosamente todos homens. Você pode conferir tudo na nossa seção de cartas, em que apenas mudamos os nomes dos autores porque é justamente dessa união entre ego frágil e tempo livre que nascem alguns processos.
Reiteramos aquilo que consta nas nossas orientações há anos: “Tentamos, mas não conseguimos acusar recebimento. Se você não receber retorno em 60 dias, não utilizamos o material. Se o aprovarmos depois deste prazo – estamos em constante atraso –, evidentemente entraremos em contato. Textos selecionados têm sua aprovação comunicada antes do fechamento da edição. Uma recusa absolutamente não impede novas tentativas. Não tome a avaliação como pessoal. Se você não tem preparo emocional para receber um não – todos nós já recebemos vários –, por favor, não nos envie seu trabalho”. Também sabemos há muito tempo que autointitulados não leem edital algum.
Nada do que recebemos como retorno negativo nos surpreendeu. Sabemos que uma parcela significante do meio literário sofre de egoesclerose ou da mera dificuldade de compreender que qualquer veículo toma decisões não inclusivas. Ao mesmo tempo, a imensa maioria dos temporariamente recusados foi gentil, cortês e estreitou vínculos conosco. Dentro da nossa miudeza de projeto e do nosso lastro de quase 12 anos de publicação, não somos nada mais do que atravessadores, que tomam emprestado textos que julgamos bons.
Tudo nesse mundo é emprestado, como relembra a canção.
Boa leitura a todos.
WALL-E: poesia visual
Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há 14 anos, em junho de 2008, a animação WALL-E estreava nos cinemas. Fui conferir a contragosto, afinal não me interessava muito por animações e, principalmente, vivia o apogeu da insolência adolescente. Aos 16 anos, somos todos intragáveis.
Havia ganhado ingresso porque participava de um projeto (na antiga Gazetinha, suplemento infantojuvenil da Gazeta do Povo) no qual estávamos aprendendo – e escrevendo – sobre cinema. Assim, compareci à sessão do filme dirigido por Andrew Stanton, com roteiro de Stanton e Jim Reardon.
Rabugento e com as expectativas baixas, eu não poderia ter me surpreendido mais. WALL-E é uma produção encantadora, capaz de desmontar qualquer guarda alta. Porém, eu nunca havia revisitado essa obra da Pixar enquanto adulto, e só o fiz, sem qualquer motivo específico, na última semana.
Pois bem, com grande satisfação (e certo alívio), renovei minha apreciação – novamente cético, novamente cínico, pois apenas um lunático é capaz de confiar nas impressões de sua versão de 16 anos.
A sequência inicial de WALL-E é famosa, não por acaso. Não há qualquer diálogo por 22 minutos. Nesse tempo, conhecemos Wall-E, um robô senciente compactador de lixo. Solitário em uma Terra abandonada – e repleta de seu material de trabalho –, ele mantém hábitos, objetos e gostos humanos no ano 2805. E uma barata.
Wall-E até dispõe de contemplação estética, assistindo a filmes (e reproduzindo seus movimentos) por meio de fitas coletadas em seu ofício. O enredo se desenvolve a partir da chegada de EVA, outro robô – muito mais moderno e funcional – enviado pela nave habitada pelos seres humanos para procurar algum resquício de vida no planeta. Androides sonham com paixões elétricas?
Diante do silêncio, portanto, a narrativa avança pelos movimentos dos personagens e pelo primor de caracterização. De cara, WALL-E se apresenta como uma mistura de 2001: Uma Odisseia no Espaço com Charles Chaplin e/ou Buster Keaton (inspirações explícitas dos produtores).
Os movimentos, roteirizados e executados com maestria, preterem o uso de palavras, o que confere certa universalidade – e atemporalidade – ao longa-metragem. Por sua vez, a caracterização não seria um problema para a Pixar, estúdio devidamente capacitado para criar fofuras das mais diversas formas.
Assim, logo nos apegamos a Wall-E e permanecemos instigados por aquele contexto pós-apocalíptico. Quando os dois protagonistas encontram os seres humanos de 2805 (spoilers?) na nave Axiom, estes são… talvez irreconhecíveis não seja a melhor palavra. Mas engordaram a ponto de perder os movimentos – locomovem-se em cadeiras flutuantes – e não conseguem resolver problema algum por conta própria. Estão sempre conectados.
É claro que o filme carrega uma mensagem (e que a Enclave odeia mensagens), mas vamos lá. Primeiro, a obra se sustenta por si só, uma vez que o drama do apaixonado Wall-E é suficientemente estimulante.
Segundo, dentro da mensagem explicitamente ecológica – que, né… digamos que tenha um ponto –, há outra sutileza singela. Despreocupado em moralizar e ensinar de forma tão direta, WALL-E não retrata os seres humanos como perversos, mesquinhos, monstros indomáveis. O longa sequer se preocupa em detalhar a trajetória da Terra até o estado apresentado.
Isso porque a animação representa o ser humano não como porco, mas apenas… distraído. À medida que se afasta da dependência da tecnologia, que enfrenta os próprios problemas com diligência e procura atentar-se aos dilemas que o afetam, o indivíduo desperta.
Um filme lindíssimo – elegante, comovente e bem-humorado –, que certamente exigiu um enorme conhecimento de humanidade para nos entregar um amável robô compactador de lixo apaixonado por um iPad voador.

- Por sinal, até os créditos (spoiler!) são estonteantes.
Baú: Lama Padma Samten
Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
O exame cuidadoso do sofrimento revela que ele é, na verdade, um desconforto mental, cuja base, na maior parte das vezes, não tem sequer origem física ou mesmo concreta, mas é constituída das voláteis substâncias da imaginação e da delusão. É esse sofrimento, tomado em sua acepção de desconforto mental mais geral e abrangente, que é enfocado pelo Buda Sakiamuni como um dos pontos centrais de seu ensinamento.Logo após sua iluminação, com olhos cheios de compaixão, o Buda fitou os variados seres em cada reino de existência e, compreendendo a dor do mundo, enunciou a primeira Nobre Verdade, a da existência do sofrimento e impossibilidade da harmonia – mantida a perspectiva humana de harmonia como satisfação completa dos desejos, apegos e necessidades.
O sofrimento é a sombra do ser. Havendo um ser, há sofrimento. Havendo um ser, há o mundo, e o sofrimento é inevitável. Pode-se ver três faces no sofrimento: impossibilidade de harmonia, impermanência e busca de salvação.
A impossibilidade de harmonia é exemplificada por uma história.
Na vida anterior à de sua iluminação, o Buda estava certa vez imerso em profunda meditação na encosta de uma montanha, quando ouviu um rufar de asas. Tratava-se de uma pequena pomba em voo vacilante. Ela pousou junto ao Buda e suplicou: “Abençoado Senhor! Estou sendo perseguida por um enorme abutre e, por mais que me esforce, não consigo escapar. Minhas forças já vacilam, e em breve por certo sucumbirei. Proteja-me, suplico-lhe!”. Nem bem havia a pomba concluído seu apelo desesperado e se ouviu um rufar de asas mais pesado. Pousando próximo, um gigantesco abutre dirigiu-se ao Buda: “Abençoado Senhor! Dê-me essa pomba. Não é justo que a proteja. Na minha condição de abutre, estou perseguindo-a desde o início do dia. Ela é o justo retorno por meu esforço. Já estou exausto e, se alguma raposa encontra-me assim tão fraco, por certo estarei perdido, e também meus filhos, que, abandonados, perecerão”. Conta a lenda que o Buda, com o coração de bodisatva cheio de compaixão, alimentou o abutre com sua própria carne, dando sua vida.
Conta-se também que, na vida seguinte, o príncipe Sidarta, quando menino, viu um verme ser estraçalhado por dois passarinhos que o disputavam e reconheceu a justeza da atitude dos pássaros em busca do alimento, bem como a inevitabilidade do terror e morte do verme. Naquele instante Sidarta compreendeu que a harmonia não pertence a esse mundo. Se passarinhos comportam-se dessa forma, o que dizer dos demais seres?
Como seria possível harmonizar os diferentes seres e interesses? Não estavam corretos a pomba, o abutre, o verme e os dois pássaros? Se todos estão corretos, como poderia haver harmonia?
Edição de julho de 2022
Nuno Rau: O fim do fim da história, a morte da morte do autor (ou: o poeta que virou suco.)
Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
O pós-modernismo surgiu assim como uma espécie de apocalipse incontornável que se abateu sobre o mundo a reboque do neoliberalismo selvagem, e decorado não raras vezes por colunas e frontões escaneados de templos gregos da Antiguidade convertidos ao rés da banalidade absoluta de historicismos desvairados. Numa espécie de ópera-bufa desvairada e formalista, profissionais da arquitetura saíram decalcando esses frontões e colunas dóricas ou jônicas em fachadas de todo tipo de construção – escolas, bancos, estações, residências, shopping-centers etc. Quando todos pensávamos que não havia mais por onde piorar esse desastre, surgiu a fachada padrão das lojas Havan, acrescidas ainda com a cereja do bolo da degeneração estética terceiro-mundista: réplicas da estátua da liberdade em lugar de destaque de sua implantação (do mesmo modo não adiantou Francis Fukuyama preconizar o fim da História, porque as Torres Gêmeas foram ao chão, a Ucrânia segue em guerra por uma disputa entre duas potências imperialistas, e tudo o mais que aconteceu entre esses dois eventos).
Não se se vocês também sentem que quase tudo que vem na esteira do que se convencionou chamar de pós-modernismo soa como uma espécie de vale-tudo, de diluição, repetição insossa; pra mim tem esse gosto, e não importa muito como a gente chame, se de pós-modernidade, tardo-modernidade, hiper-modernidade, ficando tudo pior quando a gente olha em torno e sente que o século XIX pode não ter acabado ainda, que podemos estar presos numa espécie de looping histórico em que fatos e estéticas se repetem numa espécie de série perversa, sensação que fica pior porque vem no bojo de discursos de elogio ao “novo” (parece até aquele partido que leva esse nome, que de novo nada tem, é a velha política das oligarquias numa embalagem edulcorada).
Na literatura esse fenômeno tem muitas faces, e quase todas passam por um completo desconhecimento da História e da tradição. Pois é, esta última palavra é particularmente problemática, mais ainda se for pensada sob a perspectiva do anjo benjaminiano, já que toda tradição está vinculada a um tempo que não passa de catástrofe, espécie de maldição que – não se enganem – atinge também a nós, que problematizamos tudo, das relações à comida, passando pelas definições de poesia e literatura, e talvez tenhamos nos perdido num labirinto de problematizações de tal modo capilarizado que não possibilita a reunião de tudo numa grande frente de real renovação dos modos de vida. Fosse diferente, é provável que não estivéssemos engolfados numa onda reacionária e no aperfeiçoamento constante do receituário do sistema para captura de nossos melhores esforços por uma financeirização e uma mercantilização selvagens. Onde a reação para esse estado de coisas? O que pode literatura, o que pode a poesia contra toda essa depauperação de nossas esperanças?
De digressão em digressão saí, como de costume, do assunto principal: as muitas faces de uma certa diluição na produção literária, e sua possível explicação pelo desconhecimento do que já foi feito. Nos últimos dias um meme circulou bastante pelas redes sociais, e ele, em sua aparente despretensão, explica muita coisa. A cena é a seguinte: um homem vestindo um uniforme militar está de mãos para o alto, rendido pelo que aparenta ser uma patrulha do exército inimigo, que aponta fuzis para o desafortunado. Então ele grita “Não disparem, sou poeta!”, e alguém da patrulha responde: “Prove!”. A resposta é mais ou menos um retrato de parte da produção que circula nas redes: “Não disparem sou poeta!” A questão se funda no que pode fazer de um poema um poema. O século XX, no processo mais do que necessário de questionamento de regras esvaziadas, foi pródigo em declarações bombásticas que, se tomadas integralmente a sério, levam ao polo oposto, um vale-tudo sem margens. Exemplo disso é a declaração de Mário de Andrade (uma figura que acho ainda precisa de mais estudo para que sua luta pela cultura seja compreendida) sobre a natureza do conto: “Conto é tudo o que o autor chamar de conto”. A liberdade que essa declaração pressupõe permite muita produção interessante, que por critérios clássicos seria recusada, mas toda liberdade pressupõe, do mesmo modo, o bom uso, a não incursão no que chamei de vale-tudo, e isso, penso, está numa entrelinha não dita – mas pensada – por Mário. Voltando ao meme: o que ele mostra é aquilo que tem sido chamado, em muitas postagens pelas redes afora, de “empilhamento”: o verso acaba sem razão aparente, sem nada que explique a versura, e segue na linha seguinte para realizar a mesma façanha do sem-sentido. Ou seja, todo o desenvolvimento de técnicas, das quais o enjambement é apenas um exemplo, parece desconhecido, ou é desconhecido mesmo, e aí toda a aventura de escrita das gerações anteriores fica relegada ao desprezo, a uma zona de sombra, tendo como resultado que cada vez temos menos ferramentas de leitura e interpretação do que é escrito.
Existe, no entanto, um outro polo na produção de hoje, que é a de poetas que conhecem muito sobre versificação, métrica, ritmo, todas as questões técnicas do verso, enfim, mas cuja produção parece não ter se descolado do século XIX. Se colocarmos os poemas de “Claro Enigma”, de Drummond, (ou do “Livro de Sonetos”, de Jorge de Lima, ou de “Siciliana” de Murilo Mendes”, entre outros exemplos), ao lado desta parte da produção contemporânea, esses poemas novos soam a naftalina, são como aquelas construções em que se apõem frontões e colunas gregas, sem agregar significado algum. Nesse momento o tempo se embaralha, e penso em Drummond, Jorge e Murilo como “jovens há mais tempo”, torcendo para jogar nesse time, rezando pra que as musas me protejam da água diluída do empilhamento, e da técnica vazia de poemas pomposos e engalanados que não dizem nada.
Paul Valéry conta a seguinte história, que costuma ser muito repetida por aí: certo dia o pintor Degas comentou com Mallarmé, seu amigo, que tinha boas ideias, mas que não conseguia fazer bons poemas. Mallarmé, teria respondido que poemas não se faziam com ideias, mas com palavras. Penso que se Mallarmé soubesse como sua frase seria deturpada décadas afora, teria apenas silenciado diante de Degas. O que Mallarmé quis dizer, por óbvio, é que para escrever poemas é preciso que ideias, boas ideias, sejam materializadas em palavras, e que, para isso, é preciso dominar um código específico, diferente daquele dominado por Degas, e muito bem, para a pintura. É deste domínio que falo, domínio que foi muito afetado pela má incorporação dos avanços das vanguardas históricas – mas isso é outro papo. Uma coisa deve estar soando estranha a vocês: o último número do RelevO trouxe apenas um poema de autora brasileira, o interessante “Talhar na nódoa um precipício”, de Ana Maria Vasconcelos, e estou aqui me estendendo sobre o que seja e o que não seja poesia….
Houve uma compensação, por certo, que foram os dois conjuntos de traduções publicados – os de Adam Zagajewski, Vasil Stus e Serhyi Zhandan, traduzidos por Piotr Kilanowski, e os de Laura Gilpin, traduzidos por Hélio Parente –, além da estreia do acervo da revista Escamandro, trazendo nessa estreia um texto de Guilherme Gontijo Flores sobre Adília Lopes, acompanhado de alguns poemas (há também o flash em três versos de Helena Kolody na contracapa). Esses três conjuntos, bem como o poema de Ana Maria Vasconcelos, provam que a tese de Mallarmé é muito mais ampla do que a redução de um poema ao jogo de palavras. A mesma coisa pode ser dita a respeito da prosa, e o conto de Paulo Moura também comprova isso, mostrando o desenrolar do desespero de um dos personagens diante da constatação de que quase tudo num relacionamento é fluidez e movimento.
Pensando bem, acho que este ombudsman queria se queixar de só haver um poema de poeta brasileir_ contemporâne_ na edição de junho, por mais que se divirta com os textos de humor – “Profissões mais top do agora” e “Relevo Turismo” –, e curta a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance. Talvez um pouco mais de poesia e ficção, que ficou restrita aos contos de Paulo Moura e de Nathália Fernandes, se afinasse com a potência de RelevO, que, penso, é mais do que fundada nessa divulgação.
Não existe jornal sem conflito / não há motivos para existir jornal sem humor
Editorial extraído da edição de julho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Não existe jornal sem conflito.
Uma das principais noções de existência que carregamos da nossa inserção no meio literário é que fazemos escolhas o tempo todo, principalmente do que não queremos. Partícipe da natureza analógica, não podemos (nem queremos) escolher todos. Não podemos escolher metade. Não vamos escolher nem 2% do que recebemos.
À primeira vista, pode parecer um exercício de prepotência – e um método criativo de carteiraço – antes de o(a) escritor(a) manifestar seu descontentamento com a falta de retorno do material enviado em 2020. Mas definitivamente não se trata de salto alto. Não temos qualquer anseio de cânone, muito menos de ilusão de importância (“o jornal que você precisa ler para entender o mundo hoje”).
Em média, recebemos 400 textos por mês, portanto cerca de cinco mil textos por ano. Temos 24 páginas e no máximo dez colaboradores por edição, desconsiderando colunas fixas, da casa, como as centrais, o ombudsman, a Enclave e a Brazilliance. Quem sabe, um formato especial da Latitudes (nossa newsletter exclusiva para assinantes, voltada a concursos literários, editais e cursos de literatura) também comece a circular no impresso. Então, com o espaço que temos, publicamos apenas 120 autores e autoras por ano.
Não escolher 98% dos textos que recebemos gera ruído. Deste percentual de 100% de não escolhidos, temos: assinantes do Jornal; escritores que fazem questão de reforçar que estudaram na USP; indicações de amigos; nóias; antigos colaboradores com potencial; gente nova em busca de espaço no ecossistema literário; picaretas conhecidos desde o início da nossa circulação etc.
Para evitarmos mais ruído (e também por falta de braço), não damos retorno específico, detalhando a recusa. Há alguns anos, tentamos isso – não durou dois meses (principalmente por falta de braço). Hoje, com um processo mais maduro, nem achamos que deveríamos fazê-lo. A presente edição, de julho de 2022, por exemplo, está repleta de textos sobre morte e misticismo, com um viés de humor estranho em textos nos arredores deste eixo temático. Não faria sentido dizer: “Pena que o seu texto sobre escritor corno fumando em um bar não foi selecionado agora”.
[Em nossa seção Publique, do site do Jornal, ainda manifestamos nossa preguiça geral com “escritor triste escrevendo sobre escrever”, “poema sobre o valor da poesia” e “meu amor não correspondido acaba de sair pela porta”. Isso não significa que materiais dessa natureza serão automaticamente piores e/ou recusados].Não há motivos para existir jornal sem humor.
Para o RelevO, é o humor que acende a vela necessária para sobreviver aos espasmos de escuridão. É o humor que mantém acesa a loucura e a impossibilidade. O humor desarma, desprende, pisa nas convicções. Rir de modo inesperado é uma das únicas experiências ainda válidas em qualquer modo de convivência humana. O humor, inclusive, nos auxilia a lidar com o próprio meio em que estamos inseridos.
Gabriel García Márquez dizia: “Todo mundo tem três vidas: a vida pública, a vida privada e a vida secreta. A vida privada é só para convidados. A vida secreta não é da conta de ninguém”. O RelevO, em seu protocolo institucional gauche, faz o possível para transparecer suas ações. Mas sabemos de nossos segredos. Por exemplo, não divulgamos quem pertence ao nosso Conselho Editorial de avaliação de textos. Podem ser quatro, podem ser três, podem ser dois, e pode ser que um dia não seja ninguém — um dia que esperamos que demore para chegar. O que queremos, ao fim e ao cabo, é entregar um jornal interessante de se ler (sem desconsiderar todas as implicações disso).
Uma boa leitura a todos.
Edição de junho de 2022
Lágrimas na chuva
Extraído da edição 108 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Vangelis Papathanassiou morreu aos 79 anos, vítima de insuficiência cardíaca (movida, aparentemente, por Covid-19; “aparentemente” porque, até o momento, nada foi esclarecido por completo).
Sua popularidade mais estrondosa pode ter vindo com Carruagens de Fogo (1981), aquela melodia incrustada de tal forma na cultura popular que não se desassocia mais das próprias paródias, mas o catálogo de Vangelis oferece diversas outras camadas.
A começar pelo que fez antes mesmos de suas incursões pelas grandes trilhas sonoras. Já escrevemos sobre 666 (1973), o sensacional disco da Aphrodite’s Child, banda grega que reuniu Vangelis e o popularíssimo Demis Roussos. Ali, o grupo tocou o terror com um rock esotérico viril incapaz de envelhecer.
Porém, Vangelis jamais ficou conhecido por qualquer “rock viril”. Ao contrário: sua imagem ficou bem mais ligada ao new age, à calmaria constante. Essa versatilidade – a caixa de ferramentas inesgotável, do rock progressivo ao acompanhamento de meditação – o preparou para produções tão reconhecidamente cósmicas a partir de seus sintetizadores.
E cosmicidade é o que não falta na trilha sonora de Blade Runner (1982), um álbum extraordinário por si só – e componente indissociável do filme, outra obra-prima. Sem Vangelis, Blade Runner não é Blade Runner. Nessa obra, o grego “f*d* o tecido do tempo” engendrando uma nova estética de futuro.
- Discorrer sobre Blade Runner é chover (ou chorar) no molhado, portanto apenas acrescentamos que a trilha sonora foi complementada em 2007, com dois discos adicionais (o lançamento original tem apenas 57 minutos, expressivamente menos que o composto para o filme).
- Volta e meia essas faixas bônus aparecem no YouTube, mas nem sempre de maneira organizada. Por algum motivo, a edição é rara na internet. Por ora – enquanto não derrubam –, encontramos algo próximo a isso (2009, lançamento privado) aqui.
- Há diversos bootlegs com lançamentos não oficiais. O mais interessante para iluminar cantos esquecidos do filme é a Esper Edition.
De todo modo, Vangelis não só usa, mas também gasta, estende, expande seus sintetizadores. O resultado é um pináculo, um dos melhores discos de música eletrônica de todos os tempos. A verve da cidade futurista hiperpopulosa está ali; o quarto escuro e solitário também – a belíssima ‘Memories of Green‘ já havia sido lançada em See You Later (1980).
See You Later, por sinal, talvez seja a melhor maneira de encapsular Vangelis em 40 minutos. O disco – um tanto esquecido – é experimental, porém melódico; eletrônico, porém orgânico. ‘Multi-track suggestion‘ demonstra essa abordagem emergente entre o pós-punk e o disco. Colaboram Jon Anderson (do Yes), Peter Marsh e Cherry Vanilla.
Por sua vez, The Friends of Mr. Cairo (1981), agora também assinado com Jon (“Jon & Vangelis”), é divertido pela megalomania oitentista. Já havíamos comentado, no texto sobre 666, como a música-título “contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura”.
Pois bem, a longa faixa (12 minutos) navega pelo livro/filme Maltese Falcon/Relíquia Macabra, como um pastiche do cinema americano dos anos 1940, incluindo imitações de Humphrey Bogart e Jimmy Stewart.
- Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa. Mr. Cairo é, naturalmente, personagem do livro de Dashiell Hammett, interpretado no filme pelo marcante Peter Lorre.
- O álbum ainda contém ‘State of independence‘, que viria a estourar no ano seguinte, com Donna Summer (produzida por Quincy Jones).
Na outra ponta, temos a trilha sonora L’Apocalypse des animaux (1973), de quando ele ainda estava na Aphrodite’s Child. Gravado em 1970, esse curto disco – que acompanhava uma série documental francesa e não contempla tudo que Vangelis compôs para a produção – tem como fio condutor a leveza sublime. Basta ouvir ‘Le singe bleu‘ para flutuar nessa sutileza.
- Mencionamos cosmicidade: não à toa, Carl Sagan utilizaria ‘Création du monde‘ justamente na sua série Cosmos (1980), anos depois.
Se existe um além, Vangelis não fará uma estreia, mas um reconhecimento. Se existe um ser maior, este ser lhe perguntará: “como cara***s você já expressava tudo isso aqui com um teclado?”. Que nosso grego favorito descanse em paz.
Nossos cinco favoritos:
Baú: Trevanian
Extraído da edição 108 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
Nikolai tocou com os dedos o supercílio quebrado. — Não foram os seus guardas, senhor. A maioria dos ferimentos é o resultado do interrogatório ao qual me submeteram os americanos.
— A maioria deles? E os outros?
Nikolai abaixou os olhos na direção do chão e pigarreou. Sua voz estava áspera e fraca e naquele momento precisava ser fluente e persuasivo. Prometeu a si mesmo que não permitiria, nunca mais, que a sua voz fraquejasse por falta de exercícios. — Sim, a maioria. O resto… Devo confessar-lhe que cometi algumas auto-agressões. Desesperado, bati com a cabeça de encontro à parede. Foi uma atitude tola e vergonhosa, mas sem nada para me ocupar a mente… — deixou que a voz definhasse e manteve os olhos baixos.
O Sr. Hirata estava perturbado só de pensar nas repercussões de um caso de loucura e suicídio quando já estava no final de sua carreira, especialmente agora que só lhe faltavam alguns anos para a aposentadoria. Prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance e saiu da cela tumultuado e agitado diante do pior tormento para um funcionário público civil: a necessidade de tomar uma decisão por sua conta.
Nuno Rau: Entre texto, contexto e interpretações (ou: Baudelaire, quem diria, acabou no Mercadão de Madureira…)
Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Confessar, preciso confessar que as primeiras vezes que entrei em contato com a poesia de Baudelaire, algo que estava posto sobre os versos — e entre eles — me fazia sentir um certo incômodo, em parte, e um tanto de tédio. Antes disso, na infância e na adolescência, lia os poemas como uma experiência direta e sem filtro de nenhuma natureza, e foi assim que atravessei românticos, parnasianos, modernos, tudo que se abrigava sob o nome de poesia chamada marginal (que só merecia esse rótulo agregador por sua marginalidade em relação ao mercado), o furacão Fernando Pessoa, e alguns inclassificáveis, como Augusto dos Anjos. Revirando aqui esse tempo, percebo que talvez tenha começado cedo a tentar entender o que existia de pensamento para além das margens dos poemas, o que havia de debate sobre a produção d_s poet_s: lendo as revistas dos anos 1970 — Revista Escrita, José, e O Saco, principalmente, além de ter conseguido naquela época as também incríveis Navilouca e Almanaque Biotônico Vitalidade, que não continham entrevistas ou ensaios, mas cujos projetos eram, em si mesmos, projetos-pensamento —, lendo aquelas revistas comecei a conhecer o que gravitava em torno da escrita, algumas das questões específicas da poesia e outras, do campo ampliado da cultura.
Foi ali pelos vinte e bem poucos que cheguei a Baudelaire, e nesse momento já tinha o hábito de buscar apoios no que havia sido escrito sobre _s poet_s que estava lendo, achava — e não estava exatamente errado — que, por esse caminho, iria encostar melhor na pele dess_s poet_s, perceber seus mínimos movimentos, capturar garrafas de náufrago tantos nos versos como nos espaços entre eles, esse contrabando que poetas mais interessantes fazem embarcar no que escrevem e nem sempre (quase nunca?) são realmente decifrados. Pois aqui, nessa articulação, caí numa armadilha: o que havia me chegado às mãos sobre Baudelaire não passava de uma recepção conservadora – e, por isso mesmo, equivocada – de sua poesia. A leitura pela chave da arte pela arte (o poeta como artista puro e reacionário em política), a ênfase absoluta nos procedimentos técnicos, ótica pela qual ele não diferiria estruturalmente dos parnasianos, a fixação de sua imagem como um dândi, um burguês excêntrico, tudo me levava àquela sensação incômoda de tédio, que nada mais era do que uma recusa do que os comentários sobre a obra faziam aderir a ela, no contexto da minha experiência pessoal de poeta muito jovem e sem grana num subúrbio afastado de uma das periferias do capitalismo.
Essa sensação só começou a se dissipar quando conheci o que Walter Benjamin escreveu sobre a poesia de Flores do Mal, e se afastou de vez quando li os livros de Dolf Oehler sobre o mesmo assunto. Foi por tais leituras que soube que a reação de Brecht a Baudelaire foi semelhante à minha, e mesmo, de um modo geral, a crítica de esquerda até um dado momento — Lukács, Sartre etc. Sob essa chave de interpretação, a leitura caía refém de uma série de esquematismos, mal-entendidos e condenações acríticas, porque, na realidade, Baudelaire cifrou em seus poemas uma crítica profunda a respeito do pensamento burguês e seu modus operandi. Seria uma contradição minha essa recusa ao poeta da arte pela arte, o poeta mestre da técnica, já que considero a técnica (ao lado do conhecimento da tradição) um eixo essencial da poesia? Não, porque a técnica e o conhecimento da história da poesia não são conflitantes com seus aspectos políticos, sociais, além de seu punch existencial. Essa é uma falsa oposição, que, por razões óbvias de espaço, não será possível aprofundar, além de não ser esse o objetivo: o que gostaria de ter exposto era a modificação de meu olhar sobre a poesia baudelairiana, e, com ele, toda a minha compreensão.
Essa longa confissão se deu por conta das artes do Acaso, esse deus quase sempre avaro, mas que tem sido pródigo na minha relação com o RelevO: quase sempre tenho alguns insights prévios sobre esta coluna e, quando recebo o jornal, nele encontro fragmentos que apontam para esses insights. No excelente texto de Greicy P. Bellin sobre os contos de Joyce em Dublinenses , eis que me deparo com uma menção a Baudelaire por conta de sua relação com as transformações de Paris em sua época. De algum modo, também, o poema de Ana Vilalta, por celebrar em sua fatura – e com precisão – uma relação técnica entre poesia e prosa, mostrando como os limites andam mesmo borrados, e também que dessa investigação se pode produzir excelente poesia. Até as traduções de João Moura Fernandes — gostei especialmente das soluções adotadas na versão do poema de Frost — remetem ao Baudelaire tradutor de Poe, assim como as tensões que o poema de Rafael Iotti explora também remete, de algum modo, a ele. Dos textos em prosa, há um pisar no chão do real que me trouxe o trecho de Cerco animal, de Vanessa Lodoño, bem como o humor ácido que se infiltra na dicção do personagem do conto de Marlon Grando, na escolha das palavras que caracterizam uma pessoa de outra geração.
Hoje, penso, não passa despercebido a ninguém que escritor_s, poet_s, folósof_s, crític_s, artistas, todos foram, até há não muito tempo — regra quase geral —, filhos da burguesia, das classes médias, de parcelas bem privilegiadas dessas classes médias. Uma das marcas distintivas da boa literatura, da boa poesia, é o senso de contradição e de oposição com a classe de origem, se essa classe for privilegiada. Baudelaire é apresentado por Oehler, em Terrenos vulcânicos, como um traidor de classe, e Drummond, por Vagner Camilo no excelente livro Da rosa do povo à rosa das trevas, como um deslocado na família, na classe social e na vida pública, um gauche. A saudável diversidade (de classe, de gênero, de orientação sexual) que incidiu sobre o perfil de escritor_s e poet_s mudou a dinâmica como estava estabelecida até o penúltimo quarto do século passado.
A tristeza, a dor e alguma revolta podem nos levar a uma aproximação com o riso — de si mesmo e dos outros — e foi dentro dessa perspectiva que, olhando para a cena da poesia, imaginei a divisão de quem escreve poesia em duas categorias básicas: Poetas da Varanda Gourmet e Poetas Palha de Aço, estes últimos podendo ser chamados de Poetas do Mercadão de Madureira (vocês conhecem o Rio de Janeiro? Caso não, podem trocar por Poetas do Ver o Peso, o antigo, no caso de Belém do Pará. Dica: pesquisem o bairro no contexto do Rio). O mundo literário apresenta a mesma estrutura da sociedade em geral, a mesma divisão de classes, e por vezes de modo nada agradável, para dizer o mínimo, porque inverte os vetores da atribuição de valor, e, em alguns casos, poéticas insípidas são supervalorizadas, e mesmo justificadas teoricamente — o que não as faz menos ruins. Baudelaire seria, aqui, o poeta que desceu da varanda gourmet e veio comer pastel e beber cerveja no Mercadão de Madureira, onde veio se tornar flaneur.
Essa brincadeira pessoal não funciona como esquematização desse pertencimento a mundos diferentes, como se ele possibilitasse ou impedisse a produção de boa ou excelente poesia. Não é tão simples. Uma visão elitista diria que só privilegiad_s são capazes de produzir uma boa escrita, enquanto uma visão populista advogaria que só as classes espoliadas, justamente por essa espoliação, são capazes de produzir poesia de qualidade, posto que crítica. A visão mais realista talvez afirme que só artistas conscientes de suas próprias contradições, estejam onde estiverem, é que podem realizar obras realmente válidas, caso as encarem de frente.
O Baudelaire que habita em mim só se incomodou, na edição de maio, com a menção a Ayn Rand e seu livro A nascente, que defende um individualismo radical bem adequado ao ataque neoliberal de que somos reféns, o que parece ser a tônica da série Mad Men, objeto do artigo da seção Enclave. Por fim, daqui fiquei pensando que o Mateus Ribeirete deve descansar seu corpo massacrado pela Gop Tun 2022 no Relev’Otel Fazenda (vou procurar todas as indicações de som que ele fez, confesso que música eletrônica nunca foi bem a minha praia). Por fim, gostei da viagem em torno do samba de Bide e Marçal, esses bambas cariocas das décadas heroicas da malandragem. Persistente leitor, esteja você no Mercadão de Madureira ou na Varanda Gourmet, pense no junkspace que é o presente em que vamos enfiados até pelo menos o pescoço, e invente as suas formas de rebelião, de não conformismo, como fez Baudelaire pelas ruas de Paris e pelas páginas dos livros — de servidão voluntária já andamos cheios demais.
Sensos e generosidades
Editorial extraído da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
O RelevO sempre se diferenciou de uma organização com fins lucrativos – não só pela desorganização de seus primeiros anos e pela incapacidade de lucrar, contínua – e se assemelhou a uma instituição, operacionalmente. Não entendemos, de forma alguma, que o nosso impresso mensal de literatura desenvolva atividades como as de hospitais, universidades e igrejas (sequer temos crenças). Todavia, acreditamos que temos alguma relevância (com o perdão do trocadilho) tanto em quesitos editoriais como de acessibilidade ao nosso trabalho, que busca apresentar novos autores e descentralizar perspectivas do meio literário (o que também não sabemos se conseguimos, dada a nossa limitação logística). De fato, muito do que fazemos é pelo senso livre e particular de gostar do que fazemos – e de primar absolutamente por continuidade.
Nesses quase 12 anos de existência, apostamos muito em nosso senso de comunidade, promovendo a autocrítica constante, criando o cargo de ombudsman, abrindo ao leitorado as cartas mais negativas possíveis e divulgando o nosso balanço financeiro mensalmente. Não temos vergonha de nossos índices e práticas, que até poderiam ser chamadas de modelo de negócio caso tivéssemos certeza que chegamos até aqui com um plano.
A transparência é um pilar do nosso projeto editorial e não negamos que utilizamos desse expediente para a publicidade de nossas ações. Pagamos os autores e autoras e divulgamos isso. Confiamos em nosso corpo de assinantes para superar crises. Esforçamo-nos para entregar, todo mês, o melhor periódico que conseguimos.
Se não apelamos diretamente para o slogan “Não deixe o RelevO morrer”, não deixamos de reconhecer que sempre expomos nossas fragilidades e dificuldades em busca de compreensão e de suporte financeiro. Também por isso, entendemos como necessário agradecer a cada um que ouve nossos chamados nas circulares mensais direcionadas aos assinantes, que nos escrevem depois de nos encontrar numa biblioteca do interior, gente que manifesta generosidade genuína e se compadece da nossa situação de busca simples por continuidade,. E é apenas isso que buscamos: continuar.
Obrigado. Boa leitura a todos.
Edição de maio de 2022
Nuno Rau: Poet_s vagam atônit_s pelos vãos de um século incendiário (ou: o mundo é um holograma ou essa parada do real é concreta mesmo?)
Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
O Acaso é um deus estranho, e sua maior diversão parece ser pregar peças nas pessoas distraídas e desavisadas, às vezes empurrando grandes feitos da História, em outras se satisfazendo com o milimétrico tropeção existencial. O que posso dizer é que foi uma surpresa abrir o RelevO de abril e ver, algumas páginas adentro — meus ímpetos retrô dão saltos mortais triplos de contentamento — as colunas Hi-Fi Braziliance e Enclave. A primeira nos trouxe Dolores Duran com sua “Ternura Antiga”, passeando por diversas versões dessa canção tão delicada, e a segunda estampa a imagem de um cinema, o Fox Bruin Theatre, um palácio de cinema com 670 lugares, localizado no bairro Westwood de Los Angeles, Califórnia, cenário do filme Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino… Fosse por aqui não estaria mais de pé, já que os cinemas andam sendo demolidos, as livrarias fechando, os bares tradicionais da boemia sendo transformados em points de playboys, a cidade derretendo e refundindo seus metais em direções que não podemos supor com precisão, sob o influxo do capital volátil e agora também cripto-alado.
Futuros distópicos à parte, algumas coisas postas na edição de abril me jogaram num campo de reflexão: a paixão de Tarantino por uma Hollywood que não existe mais, o poema da pesada de André Giusti (“Talking ‘bout our generation”), as angústias do poeta Felipe Mamone expostas nas cartas d_s leitor_s, a menção a Edmund Burke no conto de Luciana Merley (“Lendo jornal no Mercado Central”), e a própria imagem de um mercado central, que nos grandes centros do Brasil ocupa, em geral, edifícios do século 19, com estruturas em ferro importadas de Manchester, tudo isso junto me levou a pensar sobre a complicada relação com a tradição, o que implica, por complementaridade, na relação com o presente. Observo com agudo interesse o arco tenso da poesia brasileira há bastante tempo, e nesse percurso observei que, a partir dos anos 1980, o interesse de jovens poetas — com raras exceções — parecia, em paralelo a uma insistente ancoragem à dicção cabralina, se descolar do tecido de nossa tradição e buscar referências exógenas: Cristophe Tarkos, Sylvia Plath, William Carlos Williams estão entre _s preferid_s daquela primeira década pós-marginal, quando a maioria se regozijava em conversar com Oswald, Mário, Bandeira, Drummond, e — por que não? — o invasivo Cabral. Ou seja, parece que um corte foi desferido sobre o tecido que vinha sendo trançado desde, ao menos, Gregório de Matos Guerra.
Um ombudsman às vezes percebe que não consegue se afastar de suas obsessões, e mesmo se esforçando para não sair dos trilhos do que se vincula aos materiais do jornal a que se dedica, acaba trocando as pernas em suas ideias fixas: eis que, como confessei acima, poemas, contos, textos e matérias do periódico me jogaram na cara o precioso tema de nossa relação com a tradição, e suas não poucas contradições (que, por sua vez, se trança com a questão de março (para o que olhamos quando estamos escrevendo?) junto com a de abril (que é escrever poesia nesse começo de terceira década do século 21?). No ensaio Sobre tradição, que integra o volume Sem diretriz: Parva aesthetica, Adorno pontua que “o que parece não ter história, ser um puro começo, é antes de tudo uma vítima da história, e tão mais funesta por não ter consciência disto”, e complementa: “O escritor que resiste aos momentos de aparência da tradição, encontra-se contudo enredado nela, sobretudo por meio da linguagem”; como também: “Assim como a tradição aferrada a si mesma é ingênua, também é ingênuo aquilo que carece de tradição em absoluto, pois desconhece o que há de passado nas relações pretensamente puras com as coisas, não turvadas pela poeira do parecer.”
Para pensadores como Adorno e Lukács, a tradição é incompatível com as sociedades burguesas, está sempre em contradição com elas, empenhadas em sua necessidade de fabricar novos produtos (que na arte se caracteriza pela “crescente e incessante obrigação da recusa, segundo Adorno, pela aceleração na troca de movimentos e programas estéticos), autofagocitando tudo com sua força centrípeta. Com a aceleração do empuxo neoliberal, o descarte do passado é motor da produção do novo, cada vez mais, já que seus processos de produção e reprodução são vinculados tão somente à razão instrumental, prática, e não a uma razão integral, totalizante. Ocorre que este passado permanece como fantasma: convertido em forma vazia, sem relação com as formas sociais que lhes deram origem (e igualmente sem a pesquisa de possibilidades de novas relações dessas formas com as formas sociais), vemos o verso livre, as formas fixas, a experiência do poema concreto, a poesia visual serem empregados acriticamente.
É nesse cenário que a recusa da passada de bastão de poetas como Drummond, Murilo, Mário, Jorge de Lima, Cecília, Henriqueta, entre outr_s, repelidos em face de uma tradição exógena, soa deslocada. Alguém pode argumentar que é visível o diálogo com poetas como Ana Cristina César, Torquato Neto, Hilda Hilst, Paulo Leminski e Roberto Piva, mas desconfio que, nestes casos, a aura romântica que paira sobre a imagem de cada um, como um adensamento de matéria simbólica gerado pelo destino trágico que os irmana, se sobrepõe aos aspectos realmente significativos da obra de cada um, refletindo apenas apreensão superficial, porque sem conversar com a concepção de mundo dest_s poetas, com a História, com suas estéticas. Em lugar disso, a forma pura, o gesto esvaziado de conteúdo.
É nesse contexto, de quem apercebeu-se que o verso não morreu, e que temos que lidar com a falência das utopias (junto com elas, em direção aos mesmos ralos, foram as vanguardas), é que podemos ir conversando criticamente com vozes que vieram antes de nós: a tradição é algo que a gente ama, mas é também, e sempre, o indício de uma tragédia, muitas aliás, que nos trouxeram até aqui – nosso tempo espelha conflitos e contradições que eram ainda mais intensos no século anterior: machismo, racismo, sexismo, a exploração do trabalho, tudo enfim que representa um rol de bandeiras pra gente, agora, e cada vez mais. Não há território pacífico. Quem me conhece sabe que gosto de brincar com sonetos, por exemplo, e isso tem dois lados. Um lado é não afastar uma forma que foi criada e desenvolvida por pessoas como nós, e que tem um teor de atualidade que pode ser recuperado, desde que bem feita a abordagem, desde que não sejamos neoparnasianos, ou tentemos apenas emular a intensidade com que Drummond, Murilo e Jorge de Lima se aplicaram nessa forma, munidos das potências simbólicas de seu tempo. O outro lado é: nenhuma forma nos chega pura, as formas vêm sujas de História, e toda História humana é barbárie (cf. Benjamin).
Não pensar nisso é ser inocente, seja para negar o já feito, seja para abraçá-lo. Isso vale também, e muito, para a apropriação dos ganhos do concretismo. Os textos e manifestos do concretismo e da poesia práxis do período heroico chegam a ser ridículos pela sua fé absoluta no progresso da técnica, o que significava uma adesão a um modelo que politicamente, na prática, estava em contradição com as crenças dos poetas, porque os irmãos Campos, Décio e os demais se opuseram, tanto quanto a turma do Chamie, ao regime do golpe civil-militar de 1964. Resumindo: vivemos sobre um chão de brasas, está ardendo, e a gente se mover é difícil, há gases estupefacientes no ar nublando a visão e toldando a compreensão. Estar no presente de corpo inteiro (e é só isso que temos, todos) é sempre uma aventura complexa em qualquer época.
E para não dizer que não falei da prosa, achei muito interessante que os contos “Emprendedores”, de Cid Brasil, “Lendo jornal no Mercado Central”, de Luciana Merley, o hilário “Celsinho Kaizen”, dos editores, “Estranhos na noite”, do uruguaio Rodolfo Caravia, em tradução de Johann Heyss, bem como o ensaio “Abrace o caos,” de Otávio de Moura Brandão, todos dialogam com fragmentos de nosso mundo atomizado e fetichizado.
Fato é que gostaria de investir uns poucos cobres em ações da cerveja BuZazen, do Celsinho Kaizen (leiam o conto, não vou dar spoiler), deve arrebentar nas vendas, e quem sabe mesmo acionistas mini-mini-minoritários consigam desconto na compra… Tem que ser divertida — apesar dos aspectos distópicos — a aventura: isso é o que nos salva em meio a um século incendiário.
