Nuno Rau: Notas marginais ao texto de jack london, (ou Pasolini mais moderno que todos nós, procurando irmãos que não existem.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A verdade é que ainda estou em dúvida, e mais que isso: são, agora, mais de duas semanas em estado de suspensão. Perguntar aos editores sobre a verdade estragaria o tribunal íntimo a que me entreguei, não sem um certo prazer. A beleza está muitas vezes no caminho, na deriva, a chegada tem um quê de previsível, a concretude dos fatos pode ser aborrecida e os contornos diluídos abrem possibilidades de sentido – podem também retirar o chão. O fato: não tenho certeza se a seção de cartas está sendo utilizada como espaço de ficção. Não totalmente, porque isso seria sonegar a correspondência real, exercendo uma escrita ora crítica, ora onírica, ora autoelogiosa, algumas vezes vazada de humor, e não é essa a proposta do RelevO na seção “Cartas”. Talvez a dúvida tenha me bloqueado porque a estratégia me interessa muito como forma de questionar o estatuto do real, desabilitar certezas, inserir níveis de indeterminação no sistema – mas há indícios que apontam para a constatação de que aquelas cartas são verdadeiras: (i) o editorial, onde se busca explicar o óbvio (que justamente por ser óbvio nem sempre é percebido), (ii) a afirmação (ficcional) de que “é tudo real” na parte 4 da seção “Enfezadinhos”, e, por fim, (iii) a coexistência com cartas que são reais, foram de fato enviadas. Existe, claro, uma outra hipótese, que é de poetas/escritor_s usarem a seção de correspondência para exercitar um tipo de laboratório, criando tipos, propondo debates por meio dessas cartas-garrafas de náufrago.

De que cartas estou falando? Das cartas-não cartas, as que foram supostamente enviadas por potenciais colaboradores que tiveram seus textos recusados pelo jornal: Renata (ou Renato?) Duque, Feliciano Moreira, Ramiro Gregorin, Ronald Cabello, Alves Viana e Vanderley Gonçalves, reais, imaginários ou reais-imaginários, destilam sua amargura por não conseguirem (ainda, existe sempre um ainda nessa etapa) aceder ao status de autores publicados. Pondo de lado que meus planos consistiam em seguir conversando sobre alguns aspectos da poesia e da prosa contemporâneas, e falar disso a partir das ideias de Pasolini, o desvio que a dúvida causou pode ser útil para alguns aspectos da relação com a escrita. De saída, na hipótese de serem reais as manifestações, o texto de Jack London traduzido por Eder Capobianco tem tudo que aponta para o quão fora de foco elas estão, e de modo tão intenso que essas linhas poderiam ser apenas notas à margem de “Sobre a filosofia de vida do escritor” (p. 6 e 7 da edição de agosto). É curioso como London afirma a escrita como trabalho humano, propõe uma relação com a tradição que não imobilize ou esvazie seus resultados – como é o caso dos chatoboys neoparnasianos e seus sonetos insossos, inermes, inanimados –, e vincula, na medida exata, texto e experiência vital, sendo esta filtrada pelo pensamento. Ele é explícito: “Ao nascer eles [os que London considera talentosos, originais, os que possuem uma filosofia de trabalho] devem ter sido muito semelhantes a todos os bebês, mas de alguma forma, do mundo e de suas tradições eles adquiriram algo que seus companheiros não adquiriram. E isso não era nem mais nem menos do que algo a dizer. Agora você, jovem escritor, tem algo a dizer, ou apenas pensa que tem algo a dizer? Se você tem, não há nada que impeça que você o diga.” Essa última afirmação me faz lembrar de Antônio Abujamra quando disparava a seguinte fala para seus entrevistados no programa “Provocações” “Agora use sua liberdade, a que talvez você nunca tenha tido e que gostaria de ter por um momento, e fale para aquela câmera tudo que você gostaria de dizer”. O efeito da pergunta era, quase invariavelmente, curioso: as pessoas ou travavam ou diziam banalidades – a liberdade de dizer assusta, e na escrita não é muito diferente.

O que London afirma, no entanto, leva a pensar sobre o porquê da escrita. Em certa medida – e acho que já falei sobre isso em alguma edição –, é um ato solitário, mas apesar de existir a outra dimensão, coletiva, social, e apesar de que o ato de publicar seja de fato importante, imprescindível – porque tornar público um texto cria o potencial do diálogo e da crítica –, se quem escreve tem uma relação de dependência quase sôfrega com a publicização do que produz, algo está no lugar errado. Minha premissa é a seguinte: todos devemos escrever indiferentes à recepção, seja de editoras, de revistas, jornais, leitor_s etc. Não se deve buscar alimento nessas relações, elas são o depois da escrita, e podem vir ou não, inclusive de modo desvinculado da qualidade e significado da produção (claro que aqui tangenciamos um terreno complexo, pantanoso e impossível de esgotar no espaço de uma coluna – a definição do que seja qualidade num poema, conto, romance). Há casos bastante emblemáticos e conhecidos em que elas não vieram, ou não vieram com a proporção merecida (Emily Dickinson e Fernando Pessoa, por exemplo), porque ao fim e ao cabo é tudo muito aleatório: premissas de editores, comissões editoriais, júris de concursos, todos que viabilizam a publicação e veiculação do que quer que seja escrito. São tramas complexas, e, nesse campo, ancorar nosso trabalho a expectativas é desviar o foco do mais importante: escrever apesar de, apesar de, apesar de.

Não raras vezes alguém atravessou esse assunto num poema; é o caso de Pasolini, que afirma a potência da escrita em “Eu sou uma força do Passado”, escrito em 1964, aqui em tradução de Régis Bonvicino: “Eu sou uma força do Passado/ Somente na tradição está o meu amor/ Venho das ruínas, das igrejas/ dos retábulos, das aldeias/ abandonadas dos Apeninos ou Pré-Alpes/ onde habitavam os irmãos/ Vago pela Tuscolana como um louco,/ pela Ápia como um cão sem dono./ Vejo os crepúsculos, as manhãs/ de Roma, da Ciociaria, do mundo,/ como os primeiros atos da Pós-História,/ que testemunho, por conta da idade,/ da borda extrema de qualquer época/ sepulta. As vísceras de uma mulher morta/ pariram um ser Monstruoso./ E eu, feto adulto, vagueio/ mais moderno que todos os demais/ a procurar irmãos, que não existem mais”. O poema é carregado de significados complexos, ancorados na História, além de ser composto por muitas camadas. Ser uma força do passado, por exemplo, significa para ele “perceber a parte mais vital de nossa memória, morada de nossas memórias e conflitos”. E compreender o passado é essencial, porque não tê-lo entendido implica em revivê-lo como farsa: “viver o passado em forma de pedra significa remover a parte vital”, segundo o próprio Pier Paolo.

O principal aqui, penso, é perceber que o poema é um modo de estar no mundo, de esgrimir com a História, de enfrentar as contradições, inclusive as nossas – e sob essa ótica o chororô de ser ou não publicado parece vir de quem foi criado a leite com pera e ovomaltine na bandeja. Existe algo mais afastado da poesia, da literatura, da arte? Claro que há: os fascismos, por exemplo. No entanto, deixar de sentir-se o centro do mundo e aproveitar o tempo em trabalhos não contraproducentes como indignar-se por ser recusado me parece mais sintonizado com o que Jack London prescreve. Não custa lembrar também que a longo prazo estaremos todos mortos. Colocar a morte em perspectiva costuma ser um bom exercício para diluir essas veleidades. Outra coisa produtiva é a raiva, bem dirigida, contida em margens de ferro e transmutada em esforço de produção, escrever é trabalho humano que sempre permite ser aprimorado, ajustado. Resumindo ao máximo: é preciso parar de lero-lero e ir à luta.

Mas ainda não falei quase nada sobre o RelevO de agosto… Invertendo o pêndulo de edições anteriores, apenas dois textos em prosa estão presentes: um trecho de “Metamorfoses do Sr. Ovídio”, de Julia Raiz, e “mas que inferno”, de Mariana Soeiro. Contos curtos e pedaços de romances ou novelas não deixam entrever, exatamente, o potencial de um autor, uma autora, trazem sinais desse potencial, e o maior deles é nossa curiosidade por ler mais – o que os dois textos provocaram em mim. A poesia ocupou, também proporcionalmente, mais espaço. As traduções de Piotr Kilanowski para poemas de Halyna Petrosaniak, Vasyl Stus e Serhij Zhadan se ocupam do problema da guerra e suas consequências nos indivíduos, e as boas surpresas que foram os poemas “9 tempos para entrar no mar”, de Raquel Zepka, e “Monocultura”, de Fernanda Lira, panorama que é completado pela tradução feita por Laura Assis do poema “A casa”, da poeta queniana Warsan Shire. Todos os poemas deslocam perspectivas, cada um a seu modo, afirmam um olhar diferente sobre a parte da realidade que trazem à superfície – e este é um traço da poesia que diz ao que veio. No mais, continuo curtindo as colunas Enclave e Brazilliance, sem deixar de lembrar que poesia e ficção são o que fazem de RelevO um jornal sempre esperado por leitor_s (menos pelos recusados indignados).

Pós-escrito: para que todo o acima escrito não ganhe ar de encenação, preciso dizer que antes de escrever os dois últimos parágrafos não aguentei a curiosidade e perguntei ao editor se as cartas eram reais. Não sem algum espanto (porque havia a esperança do contrário) recebi a confirmação: as manifestações indignadas de autores recusados – sim, ao que parece todos do gênero masculino – são absolutamente reais.

12 + 1: o que nunca fizemos

Editorial extraído da edição de setembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Cento e sessenta edições.

O RelevO completa 12 anos e chega a um número redondo de circulação, quase como um acaso beneficente: 12 anos de circulação ininterrupta e mais de 5 mil assinantes diferentes (hoje, somos pouco mais de 1050 assinantes regulares). Embora tenhamos feito um pouco de tudo ao longo desse período, seguimos virgens em algumas atitudes. Por exemplo, nunca fizemos:

  1. Acordo com escritor em troca de assinatura ou privilégio editorial.
  2. Acordo com editora em troca de resenha ou espaço preferencial.
  3. Concessões humorísticas por conta de assinantes que cancelaram assinaturas em função do nosso humor. Jamais deixamos de publicar textos considerados impróprios para uma parcela de nossos assinantes e anunciantes. Também nunca…
  4. Servimos de palanque político-partidário para qualquer figura naturalmente transitória.
  5. Alegamos que somos a salvação da literatura brasileira ou o maior jornal de literatura do Brasil.
  6. Agredimos idosos na FLIP.
  7. Escondemos nossas dificuldades, pontos cegos ou limitações.
  8. Deixamos de apresentar nossas melhorias, aprimoramentos e evoluções logísticas.
  9. Mimamos o artista/escritor/poeta, tratando-o como sujeito sagrado e removido da sociedade. [Sempre respeitamos quem tem contas a pagar – e torcemos o nariz para quem não tem.]
  10. Deixamos de publicar ofensas, críticas agressivas, reações exacerbadas, violências originais e todo tipo de insulto de que, muitas vezes, fomos merecedores ou que simplesmente nos entreteram muito.

Por fim, também (11) nunca deixamos de, em alguma medida, nos divertir. Parece besteira, mas é o vício inerente capaz de nos manter operacionais. Acreditamos na leveza e, seguindo a lógica habitual, o desafio para os próximos 12 anos é existir. Que venha o 13.

Uma boa leitura a todos!

Arte sem artista, imaginação praticada

Extraído da edição 110 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

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Essa é uma pintura de Edward Hopper no Rio de Janeiro, embora Hopper (provavelmente) nunca o tenha visitado, muito menos retratado. Para criá-la, precisei digitar uma frase e clicar em um botão.

Empolgado, fiz Hopper ir a Tóquio e recriar seu ‘Nighthawks’ lá. Por fim, ele precisou reproduzir a obra em uma estação espacial.

 

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Aí a coisa começou a ficar séria. Subitamente, me senti movido por aquela inquietação primal diante da infinidade de escolhas. Havia um universo de possibilidades à minha frente, à minha disposição. Bastava eu brincar.

E se Canaletto pintasse Hong Kong? E se também pintasse o Rio de Janeiro?

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E se Francisco de Goya retratasse uma casa de ópio?

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A partir daí, misturei diversos temas que já passaram por este enclave (“E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?!”, Nelson Rodrigues).

Obriguei Umberto Boccioni a retratar uma partida de futebol; e Pieter Jansz Saenredam, o Maracanã. Fiz os astecas derrotarem os conquistadores espanhóis com um auxílio cyberpunk; depois, fiz Picasso estar lá para imortalizar o momento. Então, vi a gloriosa Tenochtitlán ser invadida pelas criaturas alienígenas de Guerra dos Mundos.

Eu poderia passar horas nisso sem piscar. Caravaggio recriando Blade Runner; Syd Mead desenhando um Honda Civic 2000; Arnold Böcklin retratando o ritual de Eyes Wide Shut; a Xangai futurista de Hieronymus Bosch; Pieter Bruegel pintando a colonização de Marte.

Bruegel e a colonização de Marte <beta.dreamstudio.ai>

A partir do DreamStudio, como outras ferramentas já fazem (DALL-E 2, a mais famosa delas), eu estava concretizando sonhos, devaneios, fantasias e demais ocupações lúdicas da mente – sem dispor de nenhuma técnica para tal. A inteligência artificial, nesse estado tão desenvolvido quanto acessível (de graça), já é capaz de produzir arte sem o artista. Que troca fabulosa!

Claro, podemos estender uma discussão semântica para o conceito de “artista”: serão os programadores? Seremos nós, meros usuários? Porém, não vamos estender essa discussão (não hoje). Afinal, diante de ferramentas como o DreamStudio, a própria função [artista] se torna dessacralizada – sem abandonar a beleza da criação [arte] em si.

E aí, quem sabe, isso nos trará algum tipo de crise existencial (não será a primeira; não será a única). Quem sabe banalizaremos qualquer elemento belo gerado sem nenhum esforço. Quem sabe isso não será problema, diante da breguice em escala industrial. Vale lembrar que estamos em um planeta cheio de bonecos funko pop – e que eles custam caro.

Enquanto isso não acontece, vale deliciar-se com a novidade de terceirizar a execução da própria imaginação. Em algum momento, é inevitável que a mesma brincadeira não se aplique à música, se é que isso já não existe.

Isto é, em uma mera página do navegador – carregando uma infraestrutura inimaginável há 20 anos –, que eu possa solicitar e gerar um álbum colaborativo entre Tom Jobim e David Bowie com um clique, pedir a música X com o arranjo de Y ou consiga produzir faixas drum & bass do Geraldo Vandré.

O texto é uma mídia mais acessível: o gerador de pós-modernismo, por exemplo, data de 1996 (!). Da mesma forma – mas com um funcionamento mais complexo –, hoje alguns chatbots até conseguem sustentar uma conversa (às vezes, às vezes).

Quem sabe um dia, com ainda mais processamento, dados etc., eu não consiga gerar um longa-metragem (“O Homem que Copiava by Stanley Kubrick”), e até lá a noção de artista, autoria e atribuição já tenha se diluído de tal forma a nos aperfeiçoarmos nos verdadeiros desafios imutáveis da sociedade, como inserir anúncios na Lua e impedir os sem-teto de dormir confortavelmente.

Já vivemos num mundo onde a Magalu quer ser sua melhor amiga e um rapper virtual assina um contrato, depois é demitido por negligência racial (FNMeka: seu TikTok, cujo apelo me foge, já tem 10 milhões de seguidores). A inteligência artificial também já pode corrigir sotaques – atenção às aspas, mesmo sem aspas – para call centers e identificar você, seus amigos, sua família em fotografias pessoais.

Por ora, a Enclave segue apaixonada por qualquer ferramenta que lhe proporcione inserir o ‘Caminhante sobre o mar de névoa’ em Júpiter.

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Baú: Elias Thomé Saliba

Extraído da edição 110 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Bem mais recentemente, nas áreas conexas da neurociência cognitiva e alavancadas por sofisticados sistemas de informática, inúmeras pesquisas vêm mostrando que o humor é um mecanismo de enfrentamento psicológico, um estratagema que o cérebro humano usa para a resolução de conflitos: nem sempre este conflito aparece na forma de uma piada, pelo contrário, ele é inerente à vida humana na sua totalidade. Neste sentido, como veremos mais adiante ao analisarmos as teorias do humor, as inúmeras pesquisas da neurociência parecem corroborar a noção de incongruência – uma das teorias humorísticas mais utilizadas por todos os analistas, apesar da sua notável imprecisão. Elas sustentam que o humor revela a enorme complexidade do cérebro humano: se o cérebro fosse um governo, não seria uma ditadura, uma monarquia ou mesmo uma democracia – seria mais semelhante a uma anarquia: partes conectadas a outras partes que, por sua vez, são conectadas a outras e que, em nenhum lugar no sistema, existe uma autoridade central que decide o que dizer ou fazer. Essa situação gera alguns benefícios, como nos permitir resolver problemas e, até mesmo, raciocinar sobre várias coisas. Mas, em alguns momentos, isto provoca conflitos como, por exemplo, quando tentamos lidar com duas ou mais ideias inconsistentes ao mesmo tempo. Quando isso ocorre, o cérebro conhece apenas uma resposta: o riso. Noutras palavras, o cérebro lida bem com ideias que são conflitantes e usa estas situações para alcançar pensamentos e soluções mais complexas. Esse processo pode ser prazeroso, gerando o humor.
Elias Thomé Saliba, História cultural do humor: balanço provisório e perspectivas de pesquisas (Revista de História, USP, 2017)

Nuno Rau: A aura romântica que paira, impávida, e brilha no céu da pátria em raios fúlgidos, (ou: o conformismo nosso de cada dia.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em Signos em rotação, Octavio Paz começa um ensaio com a seguinte questão: “Começarei por uma confissão – estou certo da existência de alguns poemas escritos nos últimos anos por alguns poetas latino-americanos, mas não o estou da existência da poesia latino-americana.” Sob os efeitos de uma inquietação semelhante, não me soa despropositado dizer que não estou certo da existência de uma poesia brasileira contemporânea, inquietação de fundo – percebo agora depois de alguns meses procurando desempenhar de modo ao menos aceitável a função provisória de ombudsman do jornal RelevO – que atravessa a quase totalidade dos textos elaborados entre março e julho deste ano (e estendo essa quase angústia à prosa de ficção). Tomando o jornal como registro de um dado recorte dessa produção, a questão parece se justificar plenamente; para começar a refletir sobre o problema, confrontemos o conteúdo do editorial de julho com a carta de Ademir Demarchi do mesmo mês. O primeiro nos informa que são recebidos quase 400 textos por mês, o que gera, em razão do espaço disponível (em razão dos custos de impressão, são 24 páginas), uma recusa de 98% do material enviado. Se como termômetro tomarmos também a edição do mês passado, na qual nenhum/a poeta brasileiro/a foi publicado/a, ficamos diante da pergunta: a poesia remetida foi de fato tão inferior à prosa?

Antes de tentar aprofundar a questão, penso que cabe alguma conversa sobre os textos em prosa publicados, ainda diante da exposição pragmática do editorial, com seus 98% de recusas, mas diante, também, da nossa circunstância – e quero dizer com isso: da história, de nossa condição incontornável de animais políticos. Não, não estou estreitando os parâmetros de juízo para privilegiar uma produção que tem por tema explícito as questões especificamente políticas de nosso tempo, que são muitas e candentes; não desejo que todo mundo escreva romances como Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Os que bebem como cães, de Francisco de Assis Brasil, ou contos como A morte de D.J. em Paris, de Roberto Drummond, e Você vai voltar pra mim e outros contos, de Bernardo Kucinski. A investigação do aspecto trágico de nossa condição como animais políticos está presente nos contos de Dalton Trevisan, quase sempre debruçados sobre a micropolítica dos afetos, em Nelson Rodrigues e em Cassandra Rios, para não me estender em exemplos. “Primavera ao sol”, de Luis Felipe Mendes dos Santos, não aproveita a concisão necessária ao conto para jogar com possíveis tensões da situação nele desenhada, conformando-se ao pitoresco e ao inusitado; esse lado inusitado é explorado por Fernanda Mellvee n“O amante fantasma”, que também – em meu modo de ver, claro – tem diante de si a oportunidade criada pela trama insólita (ainda que já explorada, por exemplo, em Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado), mas não transita nas possibilidades de exposição mais caricata das fraturas expostas da relação conjugal em sua face micropolítica (impossível não pensar em Madame Bovary, em que Flaubert delineia esse jogo, milimetricamente). A surpresa, para mim, se resumiu ao fragmento do romance Na contramão, Curitiba, de D. K. Montoya, com suas descrições obsessivas, como se tentasse extrair dos detalhes aparentemente insignificantes e banalíssimos a possibilidade de um sentido, numa articulação entre forma e conteúdo que é o cerne da literatura. Não sei se é essa a proposta do romance, mas até para poder comprovar ou não essa intuição, me senti capturado pela vontade de lê-lo. O texto do italiano Alberto Arecchi sobre Opicino de Canistris, apesar de estar entre meus interesses pelo tema (o tempo e o lugar em que a acumulação primitiva do capital foi, talvez, mais interessante – a Itália entre o fim da Idade Média e o Renascimento), não entra nesse argumento por não se tratar de autor brasileiro.

Retornemos, então, à poesia, que na edição passada esteve representada pelas traduções que Piotr Kilanowski trouxe de Jacek Podciadlo, poeta polonês contemporâneo, Irina Ratuchínskaia, porta russa nascida na atual Ucrânia, e Vasyl Symonenko, poeta ucraniano, com três poemas políticos que abordam a impossibilidade de ação diante da experiência totalitária e da guerra (tema candente, no momento em que duas nações imperialistas não vindas do projeto Escamandro, da poeta indiana Tishani Doshi, em que também estão imbricadas questões políticas no campo ampliado. Poesia brasileira contemporânea? territorialistas fazem a Ucrânia de marisco, entre a onda e a pedra); também as traduções, Nada. Aqui chegamos à (des) carta de Ademir Demarchi: “Por falar em poema, esse é um aspecto do jornal que o aproxima do Almanaque do Biotônico, assim como do próprio xarope, com esses textos choramingados e sentimentalóides (‘gotas caem como chuva’, ‘ir garimpar estrumes de vazio’, ‘dói, mas estamos juntos regando plantinhas’, ‘regar as plantas dos pés’, ‘quem é mau, ama com maldade’, ‘o céu é cheio de imortalidades… a língua é sempre doce’, ‘e todas as noites têm lua e todas as noites têm cigarras’), todos textos que o tom marcante de kitsch a esse nano-nanico curitibano chegado a colunas dóricas.” Se tomarmos exclusivamente os trechos apontados, chegaremos à conclusão de que a poesia anda tangenciando a banalidade com roupas de metáfora prêt-à-porter.

Voltemos ao texto de Octavio Paz para investigar suas conclusões. Depois de pôr de lado a poesia brasileira, por sua especificidade em relação à produzida no restante do continente, Paz conclui que a poesia precisa estar conectada a certa continuidade histórica: “Mas história e poesia se cruzam e às vezes coincidem. É indubitável que de Bolívar a Zapata e de Zapata a Fidel Castro – um aristocrata, um camponês e um revolucionário de classe média – há uma certa continuidade, não nas ideias mas nos propósitos profundos e talvez inconscientes. O que alguns chamam de ‘lógica da história’ e outros de ‘destino’. Um poeta latino-americano não pode ser insensível a essa continuidade, encontrar a palavra de origem e fundar uma sociedade não são, no essencial, tarefas contraditórias, mas complementares. Quando a história e a poesia rimam, essa coincidência se chama, por exemplo, Whitman; quando há discórdia entre uma e outra, a dissonância se chama Baudelaire.”

Postos os termos do problema, é importante chamar atenção para a incompreensão de Paz sobre Baudelaire, que também não havia encontrado até então muita compreensão por parte dos críticos de esquerda, amarrados à leitura de seus poemas como expressões da arte pela arte, cuja exceção seria tão somente Walter Benjamin. Mesmo Brecht teria incidido nessa difração da leitura, quando disse: “Baudelaire é a punhalada final nas costas de Blanqui. A derrota de Blanqui é sua vitória de Pirro.” É Dolf Oehler quem demonstra, décadas depois, como o poeta cifra sua escrita como “testemunha de acusação do processo que o proletariado move à classe burguesa”, como apontado por Benjamin, indicando um dos possíveis caminhos que podem ser trilhados com as devidas vênias do presente, suas complexidades e contradições específicas – sem deixar de considerar que, em parte, o século 19 não acabou, o que também se percebe por outra vertente da produção atual, que emula Baudelaire em sua forma (alguns com extenso domínio), sem apropriar sua subversão no jogo dos sentidos, sua maravilhosa traição de classe. Se tais poetas estão em um polo, no outro gravita o grupo de quem aposta na pura expressão, sem qualquer consciência dos debates que atravessam a poesia ao longo das décadas, estabelecendo em sua produção uma posição crítica, como fizeram poetas que marcaram território, como Drummond, Murilo, Cabral, Ana C., Waly, Secchin, Geraldo Carneiro e tant_s outr_s. É de Antonio Carlos Secchin, por sinal, uma das mais precisas observações que já li sobre a relação com a tradição, que não pode significar aprisionamento: “Há muitos modos de aprisionar o transbordamento do mundo, não queiramos que a poesia seja mais um. Ela deve ser a palavra vigorosa, diante de todo arbítrio classificatório, a voz que não se pode perceber senão nas margens. Por isso a poesia representa a fulguração da desordem, o mau caminho do bom senso, o sangramento inestancável do corpo da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum.”

Novamente este ombudsman recorre a seus estratagemas para se queixar de não haver nenhum poema de poeta brasileir_ contemporâne_ (na edição de junho apareceu um, ao menos), por mais que ache importante haver textos de humor, embora o Mapa baixo astral não siga os passos de edições anteriores, por uma enorme e importante ressalva: o texto escorrega em estereótipos de certo universo masculino que não estão alinhados com um pensamento que se considere crítico. Uma boa referência é a série “Viver do riso”, dirigida por Ingrid Guimarães, que mostra como o humor vem acompanhando as (necessárias) mudanças políticas do mundo (link para um episódio: bityli.com/uNQeoj). Sigo curtindo a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance, mas outra vez chamo aos editores a atenção de que poesia e ficção potentes, distantes da diluição, devem manter espaço nas páginas de RelevO.

“Hoje pavão, amanhã espanador”

Editorial extraído da edição de agosto de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Um impresso de literatura vive de pequenas conquistas não simbólicas. Por exemplo, a gráfica. Pagar a gráfica não é alegórico. Não temos como permutar a gráfica ou convencê-los de que os preços subiram e “esse mês tem como pendurar?”. O mesmo vale para todos os nossos insumos: itens de papelaria, envelopes, combustível, manutenção do carro do jornal — o prestidigitado RelevOMóvel. Estar em dia, para nós, equivale a continuar em circulação. Portanto, é um sintoma de nossos acertos.

Nesse cotidiano em que a logística é muito importante – e, certamente, o coração operacional do Jornal –, às vezes deixamos certos vácuos editoriais sem solução (ou apenas com sistemas de continuidade duvidosos). Como já relatamos em editoriais recentes, sempre tivemos muita dificuldade de estar em dia com as leituras dos textos encaminhados para avaliação ao nosso Conselho Editorial. A situação já foi tão desesperadora que chegamos a ter dois mil textos não lidos. Na pandemia, o drama se acentuou.

Pois bem: em julho, conseguimos, enfim, zerar a caixa de entrada, ou ao menos encaixá-lo no que a nossa própria política de publicação alega ser o ideal: “Tentamos, mas não conseguimos acusar recebimento. Se você não receber retorno em 60 dias, não utilizamos o material. Se o aprovarmos depois deste prazo – estamos em constante atraso –, evidentemente entraremos em contato. Textos selecionados têm sua aprovação comunicada antes do fechamento da edição”. Em suma, os textos não lidos (menos de 40) agora se encontram na margem de retorno.

Além das leituras, retornamos individualmente para cada autor ou autora não selecionada. Reforçamos que o material não será utilizado pelo nosso Conselho Editorial e que isso não significa, de modo algum, que o trabalho não tem potencial literário: apenas não se encaixa na linha editorial das próximas edições. “Fique à vontade para submeter outros materiais quando quiser” foi o tom que buscamos apresentar, entendendo que estamos em um circuito interligado, o dito meio literário. [Nós mesmos publicamos textos que hoje não publicaríamos apenas porque… mudamos, como tudo na natureza.]

O RelevO não é um periódico de um banco ou de um órgão público. Nossa equipe é enxuta, regular e preza por transparência (talvez até com um certo grau obsessivo). Assim como trazemos a público a satisfação de, depois de mais de três anos, estar com a caixa de entrada em um nível decente, também dividimos os melhores-piores retornos dos recusados, curiosamente todos homens. Você pode conferir tudo na nossa seção de cartas, em que apenas mudamos os nomes dos autores porque é justamente dessa união entre ego frágil e tempo livre que nascem alguns processos.

Reiteramos aquilo que consta nas nossas orientações há anos: “Tentamos, mas não conseguimos acusar recebimento. Se você não receber retorno em 60 dias, não utilizamos o material. Se o aprovarmos depois deste prazo – estamos em constante atraso –, evidentemente entraremos em contato. Textos selecionados têm sua aprovação comunicada antes do fechamento da edição. Uma recusa absolutamente não impede novas tentativas. Não tome a avaliação como pessoal. Se você não tem preparo emocional para receber um não – todos nós já recebemos vários –, por favor, não nos envie seu trabalho”. Também sabemos há muito tempo que autointitulados não leem edital algum.

Nada do que recebemos como retorno negativo nos surpreendeu. Sabemos que uma parcela significante do meio literário sofre de egoesclerose ou da mera dificuldade de compreender que qualquer veículo toma decisões não inclusivas. Ao mesmo tempo, a imensa maioria dos temporariamente recusados foi gentil, cortês e estreitou vínculos conosco. Dentro da nossa miudeza de projeto e do nosso lastro de quase 12 anos de publicação, não somos nada mais do que atravessadores, que tomam emprestado textos que julgamos bons.

Tudo nesse mundo é emprestado, como relembra a canção.

Boa leitura a todos.

WALL-E: poesia visual

Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há 14 anos, em junho de 2008, a animação WALL-E estreava nos cinemas. Fui conferir a contragosto, afinal não me interessava muito por animações e, principalmente, vivia o apogeu da insolência adolescente. Aos 16 anos, somos todos intragáveis.

Havia ganhado ingresso porque participava de um projeto (na antiga Gazetinha, suplemento infantojuvenil da Gazeta do Povo) no qual estávamos aprendendo – e escrevendo – sobre cinema. Assim, compareci à sessão do filme dirigido por Andrew Stanton, com roteiro de Stanton e Jim Reardon.

Rabugento e com as expectativas baixas, eu não poderia ter me surpreendido mais. WALL-E é uma produção encantadora, capaz de desmontar qualquer guarda alta. Porém, eu nunca havia revisitado essa obra da Pixar enquanto adulto, e só o fiz, sem qualquer motivo específico, na última semana.

Pois bem, com grande satisfação (e certo alívio), renovei minha apreciação – novamente cético, novamente cínico, pois apenas um lunático é capaz de confiar nas impressões de sua versão de 16 anos.

A sequência inicial de WALL-E é famosa, não por acaso. Não há qualquer diálogo por 22 minutos. Nesse tempo, conhecemos Wall-E, um robô senciente compactador de lixo. Solitário em uma Terra abandonada – e repleta de seu material de trabalho –, ele mantém hábitos, objetos e gostos humanos no ano 2805. E uma barata.

Wall-E até dispõe de contemplação estética, assistindo a filmes (e reproduzindo seus movimentos) por meio de fitas coletadas em seu ofício. O enredo se desenvolve a partir da chegada de EVA, outro robô – muito mais moderno e funcional – enviado pela nave habitada pelos seres humanos para procurar algum resquício de vida no planeta. Androides sonham com paixões elétricas?

Diante do silêncio, portanto, a narrativa avança pelos movimentos dos personagens e pelo primor de caracterização. De cara, WALL-E se apresenta como uma mistura de 2001: Uma Odisseia no Espaço com Charles Chaplin e/ou Buster Keaton (inspirações explícitas dos produtores).

Os movimentos, roteirizados e executados com maestria, preterem o uso de palavras, o que confere certa universalidade – e atemporalidade – ao longa-metragem. Por sua vez, a caracterização não seria um problema para a Pixar, estúdio devidamente capacitado para criar fofuras das mais diversas formas.

Assim, logo nos apegamos a Wall-E e permanecemos instigados por aquele contexto pós-apocalíptico. Quando os dois protagonistas encontram os seres humanos de 2805 (spoilers?) na nave Axiom, estes são… talvez irreconhecíveis não seja a melhor palavra. Mas engordaram a ponto de perder os movimentos – locomovem-se em cadeiras flutuantes – e não conseguem resolver problema algum por conta própria. Estão sempre conectados.

É claro que o filme carrega uma mensagem (e que a Enclave odeia mensagens), mas vamos lá. Primeiro, a obra se sustenta por si só, uma vez que o drama do apaixonado Wall-E é suficientemente estimulante.

Segundo, dentro da mensagem explicitamente ecológica – que, né… digamos que tenha um ponto –, há outra sutileza singela. Despreocupado em moralizar e ensinar de forma tão direta, WALL-E não retrata os seres humanos como perversos, mesquinhos, monstros indomáveis. O longa sequer se preocupa em detalhar a trajetória da Terra até o estado apresentado.

Isso porque a animação representa o ser humano não como porco, mas apenas… distraído. À medida que se afasta da dependência da tecnologia, que enfrenta os próprios problemas com diligência e procura atentar-se aos dilemas que o afetam, o indivíduo desperta.

Um filme lindíssimo – elegante, comovente e bem-humorado –, que certamente exigiu um enorme conhecimento de humanidade para nos entregar um amável robô compactador de lixo apaixonado por um iPad voador.

Baú: Lama Padma Samten

Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O exame cuidadoso do sofrimento revela que ele é, na verdade, um desconforto mental, cuja base, na maior parte das vezes, não tem sequer origem física ou mesmo concreta, mas é constituída das voláteis substâncias da imaginação e da delusão. É esse sofrimento, tomado em sua acepção de desconforto mental mais geral e abrangente, que é enfocado pelo Buda Sakiamuni como um dos pontos centrais de seu ensinamento.

Logo após sua iluminação, com olhos cheios de compaixão, o Buda fitou os variados seres em cada reino de existência e, compreendendo a dor do mundo, enunciou a primeira Nobre Verdade, a da existência do sofrimento e impossibilidade da harmonia – mantida a perspectiva humana de harmonia como satisfação completa dos desejos, apegos e necessidades.

O sofrimento é a sombra do ser. Havendo um ser, há sofrimento. Havendo um ser, há o mundo, e o sofrimento é inevitável. Pode-se ver três faces no sofrimento: impossibilidade de harmonia, impermanência e busca de salvação.

A impossibilidade de harmonia é exemplificada por uma história.

Na vida anterior à de sua iluminação, o Buda estava certa vez imerso em profunda meditação na encosta de uma montanha, quando ouviu um rufar de asas. Tratava-se de uma pequena pomba em voo vacilante. Ela pousou junto ao Buda e suplicou: “Abençoado Senhor! Estou sendo perseguida por um enorme abutre e, por mais que me esforce, não consigo escapar. Minhas forças já vacilam, e em breve por certo sucumbirei. Proteja-me, suplico-lhe!”. Nem bem havia a pomba concluído seu apelo desesperado e se ouviu um rufar de asas mais pesado. Pousando próximo, um gigantesco abutre dirigiu-se ao Buda: “Abençoado Senhor! Dê-me essa pomba. Não é justo que a proteja. Na minha condição de abutre, estou perseguindo-a desde o início do dia. Ela é o justo retorno por meu esforço. Já estou exausto e, se alguma raposa encontra-me assim tão fraco, por certo estarei perdido, e também meus filhos, que, abandonados, perecerão”. Conta a lenda que o Buda, com o coração de bodisatva cheio de compaixão, alimentou o abutre com sua própria carne, dando sua vida.

Conta-se também que, na vida seguinte, o príncipe Sidarta, quando menino, viu um verme ser estraçalhado por dois passarinhos que o disputavam e reconheceu a justeza da atitude dos pássaros em busca do alimento, bem como a inevitabilidade do terror e morte do verme. Naquele instante Sidarta compreendeu que a harmonia não pertence a esse mundo. Se passarinhos comportam-se dessa forma, o que dizer dos demais seres?

Como seria possível harmonizar os diferentes seres e interesses? Não estavam corretos a pomba, o abutre, o verme e os dois pássaros? Se todos estão corretos, como poderia haver harmonia?

Lama Padma Samten, A Joia dos Desejos, 2001 (ed. Peirópolis).

Nuno Rau: O fim do fim da história, a morte da morte do autor (ou: o poeta que virou suco.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O pós-modernismo surgiu assim como uma espécie de apocalipse incontornável que se abateu sobre o mundo a reboque do neoliberalismo selvagem, e decorado não raras vezes por colunas e frontões escaneados de templos gregos da Antiguidade convertidos ao rés da banalidade absoluta de historicismos desvairados. Numa espécie de ópera-bufa desvairada e formalista, profissionais da arquitetura saíram decalcando esses frontões e colunas dóricas ou jônicas em fachadas de todo tipo de construção – escolas, bancos, estações, residências, shopping-centers etc. Quando todos pensávamos que não havia mais por onde piorar esse desastre, surgiu a fachada padrão das lojas Havan, acrescidas ainda com a cereja do bolo da degeneração estética terceiro-mundista: réplicas da estátua da liberdade em lugar de destaque de sua implantação (do mesmo modo não adiantou Francis Fukuyama preconizar o fim da História, porque as Torres Gêmeas foram ao chão, a Ucrânia segue em guerra por uma disputa entre duas potências imperialistas, e tudo o mais que aconteceu entre esses dois eventos).

Não se se vocês também sentem que quase tudo que vem na esteira do que se convencionou chamar de pós-modernismo soa como uma espécie de vale-tudo, de diluição, repetição insossa; pra mim tem esse gosto, e não importa muito como a gente chame, se de pós-modernidade, tardo-modernidade, hiper-modernidade, ficando tudo pior quando a gente olha em torno e sente que o século XIX pode não ter acabado ainda, que podemos estar presos numa espécie de looping histórico em que fatos e estéticas se repetem numa espécie de série perversa, sensação que fica pior porque vem no bojo de discursos de elogio ao “novo” (parece até aquele partido que leva esse nome, que de novo nada tem, é a velha política das oligarquias numa embalagem edulcorada).

Na literatura esse fenômeno tem muitas faces, e quase todas passam por um completo desconhecimento da História e da tradição. Pois é, esta última palavra é particularmente problemática, mais ainda se for pensada sob a perspectiva do anjo benjaminiano, já que toda tradição está vinculada a um tempo que não passa de catástrofe, espécie de maldição que – não se enganem – atinge também a nós, que problematizamos tudo, das relações à comida, passando pelas definições de poesia e literatura, e talvez tenhamos nos perdido num labirinto de problematizações de tal modo capilarizado que não possibilita a reunião de tudo numa grande frente de real renovação dos modos de vida. Fosse diferente, é provável que não estivéssemos engolfados numa onda reacionária e no aperfeiçoamento constante do receituário do sistema para captura de nossos melhores esforços por uma financeirização e uma mercantilização selvagens. Onde a reação para esse estado de coisas? O que pode literatura, o que pode a poesia contra toda essa depauperação de nossas esperanças?

De digressão em digressão saí, como de costume, do assunto principal: as muitas faces de uma certa diluição na produção literária, e sua possível explicação pelo desconhecimento do que já foi feito. Nos últimos dias um meme circulou bastante pelas redes sociais, e ele, em sua aparente despretensão, explica muita coisa. A cena é a seguinte: um homem vestindo um uniforme militar está de mãos para o alto, rendido pelo que aparenta ser uma patrulha do exército inimigo, que aponta fuzis para o desafortunado. Então ele grita “Não disparem, sou poeta!”, e alguém da patrulha responde: “Prove!”. A resposta é mais ou menos um retrato de parte da produção que circula nas redes: “Não disparem sou poeta!” A questão se funda no que pode fazer de um poema um poema. O século XX, no processo mais do que necessário de questionamento de regras esvaziadas, foi pródigo em declarações bombásticas que, se tomadas integralmente a sério, levam ao polo oposto, um vale-tudo sem margens. Exemplo disso é a declaração de Mário de Andrade (uma figura que acho ainda precisa de mais estudo para que sua luta pela cultura seja compreendida) sobre a natureza do conto: “Conto é tudo o que o autor chamar de conto”. A liberdade que essa declaração pressupõe permite muita produção interessante, que por critérios clássicos seria recusada, mas toda liberdade pressupõe, do mesmo modo, o bom uso, a não incursão no que chamei de vale-tudo, e isso, penso, está numa entrelinha não dita – mas pensada – por Mário. Voltando ao meme: o que ele mostra é aquilo que tem sido chamado, em muitas postagens pelas redes afora, de “empilhamento”: o verso acaba sem razão aparente, sem nada que explique a versura, e segue na linha seguinte para realizar a mesma façanha do sem-sentido. Ou seja, todo o desenvolvimento de técnicas, das quais o enjambement é apenas um exemplo, parece desconhecido, ou é desconhecido mesmo, e aí toda a aventura de escrita das gerações anteriores fica relegada ao desprezo, a uma zona de sombra, tendo como resultado que cada vez temos menos ferramentas de leitura e interpretação do que é escrito.

Existe, no entanto, um outro polo na produção de hoje, que é a de poetas que conhecem muito sobre versificação, métrica, ritmo, todas as questões técnicas do verso, enfim, mas cuja produção parece não ter se descolado do século XIX. Se colocarmos os poemas de “Claro Enigma”, de Drummond, (ou do “Livro de Sonetos”, de Jorge de Lima, ou de “Siciliana” de Murilo Mendes”, entre outros exemplos), ao lado desta parte da produção contemporânea, esses poemas novos soam a naftalina, são como aquelas construções em que se apõem frontões e colunas gregas, sem agregar significado algum. Nesse momento o tempo se embaralha, e penso em Drummond, Jorge e Murilo como “jovens há mais tempo”, torcendo para jogar nesse time, rezando pra que as musas me protejam da água diluída do empilhamento, e da técnica vazia de poemas pomposos e engalanados que não dizem nada.

Paul Valéry conta a seguinte história, que costuma ser muito repetida por aí: certo dia o pintor Degas comentou com Mallarmé, seu amigo, que tinha boas ideias, mas que não conseguia fazer bons poemas. Mallarmé, teria respondido que poemas não se faziam com ideias, mas com palavras. Penso que se Mallarmé soubesse como sua frase seria deturpada décadas afora, teria apenas silenciado diante de Degas. O que Mallarmé quis dizer, por óbvio, é que para escrever poemas é preciso que ideias, boas ideias, sejam materializadas em palavras, e que, para isso, é preciso dominar um código específico, diferente daquele dominado por Degas, e muito bem, para a pintura. É deste domínio que falo, domínio que foi muito afetado pela má incorporação dos avanços das vanguardas históricas – mas isso é outro papo. Uma coisa deve estar soando estranha a vocês: o último número do RelevO trouxe apenas um poema de autora brasileira, o interessante “Talhar na nódoa um precipício”, de Ana Maria Vasconcelos, e estou aqui me estendendo sobre o que seja e o que não seja poesia….

Houve uma compensação, por certo, que foram os dois conjuntos de traduções publicados – os de Adam Zagajewski, Vasil Stus e Serhyi Zhandan, traduzidos por Piotr Kilanowski, e os de Laura Gilpin, traduzidos por Hélio Parente –, além da estreia do acervo da revista Escamandro, trazendo nessa estreia um texto de Guilherme Gontijo Flores sobre Adília Lopes, acompanhado de alguns poemas (há também o flash em três versos de Helena Kolody na contracapa). Esses três conjuntos, bem como o poema de Ana Maria Vasconcelos, provam que a tese de Mallarmé é muito mais ampla do que a redução de um poema ao jogo de palavras. A mesma coisa pode ser dita a respeito da prosa, e o conto de Paulo Moura também comprova isso, mostrando o desenrolar do desespero de um dos personagens diante da constatação de que quase tudo num relacionamento é fluidez e movimento.

Pensando bem, acho que este ombudsman queria se queixar de só haver um poema de poeta brasileir_ contemporâne_ na edição de junho, por mais que se divirta com os textos de humor – “Profissões mais top do agora” e “Relevo Turismo” –, e curta a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance. Talvez um pouco mais de poesia e ficção, que ficou restrita aos contos de Paulo Moura e de Nathália Fernandes, se afinasse com a potência de RelevO, que, penso, é mais do que fundada nessa divulgação.

Não existe jornal sem conflito / não há motivos para existir jornal sem humor

Editorial extraído da edição de julho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Não existe jornal sem conflito.

Uma das principais noções de existência que carregamos da nossa inserção no meio literário é que fazemos escolhas o tempo todo, principalmente do que não queremos. Partícipe da natureza analógica, não podemos (nem queremos) escolher todos. Não podemos escolher metade. Não vamos escolher nem 2% do que recebemos.

À primeira vista, pode parecer um exercício de prepotência – e um método criativo de carteiraço – antes de o(a) escritor(a) manifestar seu descontentamento com a falta de retorno do material enviado em 2020. Mas definitivamente não se trata de salto alto. Não temos qualquer anseio de cânone, muito menos de ilusão de importância (“o jornal que você precisa ler para entender o mundo hoje”).

Em média, recebemos 400 textos por mês, portanto cerca de cinco mil textos por ano. Temos 24 páginas e no máximo dez colaboradores por edição, desconsiderando colunas fixas, da casa, como as centrais, o ombudsman, a Enclave e a Brazilliance. Quem sabe, um formato especial da Latitudes (nossa newsletter exclusiva para assinantes, voltada a concursos literários, editais e cursos de literatura) também comece a circular no impresso. Então, com o espaço que temos, publicamos apenas 120 autores e autoras por ano.

Não escolher 98% dos textos que recebemos gera ruído. Deste percentual de 100% de não escolhidos, temos: assinantes do Jornal; escritores que fazem questão de reforçar que estudaram na USP; indicações de amigos; nóias; antigos colaboradores com potencial; gente nova em busca de espaço no ecossistema literário; picaretas conhecidos desde o início da nossa circulação etc.

Para evitarmos mais ruído (e também por falta de braço), não damos retorno específico, detalhando a recusa. Há alguns anos, tentamos isso – não durou dois meses (principalmente por falta de braço). Hoje, com um processo mais maduro, nem achamos que deveríamos fazê-lo. A presente edição, de julho de 2022, por exemplo, está repleta de textos sobre morte e misticismo, com um viés de humor estranho em textos nos arredores deste eixo temático. Não faria sentido dizer: “Pena que o seu texto sobre escritor corno fumando em um bar não foi selecionado agora”.

[Em nossa seção Publique, do site do Jornal, ainda manifestamos nossa preguiça geral com “escritor triste escrevendo sobre escrever”, “poema sobre o valor da poesia” e “meu amor não correspondido acaba de sair pela porta”. Isso não significa que materiais dessa natureza serão automaticamente piores e/ou recusados].

Não há motivos para existir jornal sem humor.

Para o RelevO, é o humor que acende a vela necessária para sobreviver aos espasmos de escuridão. É o humor que mantém acesa a loucura e a impossibilidade. O humor desarma, desprende, pisa nas convicções. Rir de modo inesperado é uma das únicas experiências ainda válidas em qualquer modo de convivência humana. O humor, inclusive, nos auxilia a lidar com o próprio meio em que estamos inseridos.

Gabriel García Márquez dizia: “Todo mundo tem três vidas: a vida pública, a vida privada e a vida secreta. A vida privada é só para convidados. A vida secreta não é da conta de ninguém”. O RelevO, em seu protocolo institucional gauche, faz o possível para transparecer suas ações. Mas sabemos de nossos segredos. Por exemplo, não divulgamos quem pertence ao nosso Conselho Editorial de avaliação de textos. Podem ser quatro, podem ser três, podem ser dois, e pode ser que um dia não seja ninguém — um dia que esperamos que demore para chegar. O que queremos, ao fim e ao cabo, é entregar um jornal interessante de se ler (sem desconsiderar todas as implicações disso).

Uma boa leitura a todos.

Lágrimas na chuva

Extraído da edição 108 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Vangelis Papathanassiou morreu aos 79 anos, vítima de insuficiência cardíaca (movida, aparentemente, por Covid-19; “aparentemente” porque, até o momento, nada foi esclarecido por completo).

Sua popularidade mais estrondosa pode ter vindo com Carruagens de Fogo (1981), aquela melodia incrustada de tal forma na cultura popular que não se desassocia mais das próprias paródias, mas o catálogo de Vangelis oferece diversas outras camadas.

A começar pelo que fez antes mesmos de suas incursões pelas grandes trilhas sonoras. Já escrevemos sobre 666 (1973), o sensacional disco da Aphrodite’s Child, banda grega que reuniu Vangelis e o popularíssimo Demis Roussos. Ali, o grupo tocou o terror com um rock esotérico viril incapaz de envelhecer.

Porém, Vangelis jamais ficou conhecido por qualquer “rock viril”. Ao contrário: sua imagem ficou bem mais ligada ao new age, à calmaria constante. Essa versatilidade – a caixa de ferramentas inesgotável, do rock progressivo ao acompanhamento de meditação – o preparou para produções tão reconhecidamente cósmicas a partir de seus sintetizadores.

E cosmicidade é o que não falta na trilha sonora de Blade Runner (1982), um álbum extraordinário por si só – e componente indissociável do filme, outra obra-prima. Sem Vangelis, Blade Runner não é Blade Runner. Nessa obra, o grego “f*d* o tecido do tempo” engendrando uma nova estética de futuro.

  • Discorrer sobre Blade Runner é chover (ou chorar) no molhado, portanto apenas acrescentamos que a trilha sonora foi complementada em 2007, com dois discos adicionais (o lançamento original tem apenas 57 minutos, expressivamente menos que o composto para o filme).
  • Volta e meia essas faixas bônus aparecem no YouTube, mas nem sempre de maneira organizada. Por algum motivo, a edição é rara na internet. Por ora – enquanto não derrubam –, encontramos algo próximo a isso (2009, lançamento privado) aqui.
  • Há diversos bootlegs com lançamentos não oficiais. O mais interessante para iluminar cantos esquecidos do filme é a Esper Edition.

De todo modo, Vangelis não só usa, mas também gasta, estende, expande seus sintetizadores. O resultado é um pináculo, um dos melhores discos de música eletrônica de todos os tempos. A verve da cidade futurista hiperpopulosa está ali; o quarto escuro e solitário também – a belíssima ‘Memories of Green‘ já havia sido lançada em See You Later (1980).

See You Later, por sinal, talvez seja a melhor maneira de encapsular Vangelis em 40 minutos. O disco – um tanto esquecido – é experimental, porém melódico; eletrônico, porém orgânico. ‘Multi-track suggestion‘ demonstra essa abordagem emergente entre o pós-punk e o disco. Colaboram Jon Anderson (do Yes), Peter Marsh e Cherry Vanilla.

Por sua vez, The Friends of Mr. Cairo (1981), agora também assinado com Jon (“Jon & Vangelis”), é divertido pela megalomania oitentista. Já havíamos comentado, no texto sobre 666, como a música-título “contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura”.

Pois bem, a longa faixa (12 minutos) navega pelo livro/filme Maltese Falcon/Relíquia Macabra, como um pastiche do cinema americano dos anos 1940, incluindo imitações de Humphrey Bogart e Jimmy Stewart.

  • Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa. Mr. Cairo é, naturalmente, personagem do livro de Dashiell Hammett, interpretado no filme pelo marcante Peter Lorre.
  • O álbum ainda contém ‘State of independence‘, que viria a estourar no ano seguinte, com Donna Summer (produzida por Quincy Jones).

Na outra ponta, temos a trilha sonora L’Apocalypse des animaux (1973), de quando ele ainda estava na Aphrodite’s Child. Gravado em 1970, esse curto disco – que acompanhava uma série documental francesa e não contempla tudo que Vangelis compôs para a produção – tem como fio condutor a leveza sublime. Basta ouvir ‘Le singe bleu‘ para flutuar nessa sutileza.

  • Mencionamos cosmicidade: não à toa, Carl Sagan utilizaria ‘Création du monde‘ justamente na sua série Cosmos (1980), anos depois.

Se existe um além, Vangelis não fará uma estreia, mas um reconhecimento. Se existe um ser maior, este ser lhe perguntará: “como cara***s você já expressava tudo isso aqui com um teclado?”. Que nosso grego favorito descanse em paz.

Nossos cinco favoritos: