Leão do Castelo de Gripsholm

Extraído da edição 48 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

No século 18, as relações diplomáticas entre Suécia e Argélia eram bastante próximas. Os escandinavos enviavam vários presentes valiosos aos argelinos e em troca tinham garantida a passagem segura e gratuita de seus navios pelo mar mediterrâneo. Em retribuição, em 1731 o Rei Frederik I recebeu do Dey (uma espécie de regente) da Argélia alguns mimos, que incluíam: um leão, três hienas e um escravo liberto, que se tornou o cuidador dos animais. Todos viveram suas vidas no luxuoso Djurgården, o parque real.

Alguns anos após o leão morrer, o rei enviou os restos do felino (a pele e os ossos que haviam sobrado) para que um taxidermista o reconstruísse em toda a sua glória. O leão seria exposto no castelo como um símbolo da força da Coroa sueca. O problema era que o taxidermista nunca tinha visto um leão pessoalmente e teve que se basear em relatos escritos e brasões de armas. Como é de se imaginar, o resultado ficou uma bosta:

Essa espécie de Ecce Homo animal está em exposição no castelo de Gripsholm, hoje um museu, e é um dos muitos exemplos de animais exóticos sendo mal desenhados por artistas europeus. Nas iluminuras medievais, principalmente nos bestiários, eram comuns as representações bizarras de animais como elefantescrocodilos e corujas.

O tempo passou e pouca coisa mudou: em 1840, Londres renovava a Trafalgar Square, sua principal praça, e encomendou, além de uma coluna imensa, esculturas de quatro leões. O encarregado pelos leões foi Sir Edwin Landseer,  pintor especializado em retratar animais como cães, cavalos, touros… mas não muito familiarizado com esculturas. Ou leões.

De fato, o único espécime desse animal que o artista conhecia era o leão do zoológico da cidade, e quando este morreu, Landseer pediu para que deixassem o corpo em seu ateliê para que ele pudesse estudá-lo. Mas, dizem, ele demorou tanto para terminar seu projeto que os restos  do bicho começaram a se decompor. Faltando ainda as patas a serem esculpidas, Edwin usou seu cachorro como modelo e terminou a obra.

resultado final lembra mais um esfinge do que um leão propriamente dito e causou estranhamento aos olhares mais críticos na época, mas não chama tanta atenção dos transeuntes e turistas que passam pela praça hoje em dia. Ao menos não a ponto de as pessoas deixarem de tirar fotos e escalar os bichanos de bronze. De todo modo, se for esculpir ou empalhar um leão, talvez a relação entre perfeição e pressa tenha que ser reconsiderada.

Tony Garnier

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No início do século passado, Lyon, na França, passava por uma grande industrialização. Centro metalúrgico, a cidade, cuja linha férrea com início em St. Étienne havia sido asegunda da história do país, já se adaptara a uma nova realidade de produção. Somam-se a isso a primeira fábrica de automóveis da França – uma Berliet –, testes com os primeiros aviões e a invenção do cinematógrafo. (Lembra do primeiro filme exibido ao público? Aquela fábrica se tornou o Instituto Lumière.)

Lyon, enfim, compunha um contexto agitado, modernizado e propício a especulações. Isso provavelmente borbulhava na cabeça de um arquiteto local, o talentoso Tony Garnier. Nascido em 1869, Garnier estudou na École des Beaux-Arts, em Paris, e retornou a Lyon, onde projetou aquela que seria, para ele, a cidade ideal. Seu projeto, Une cité industrielle, refletia o planejamento de uma utopia.

Une cité industrielle foi publicado em 1917 após vários anos de estudos. Preocupado com a monotonia do trabalhador em seu ofício, Garnier visou ao lazer e à acessibilidade de áreas verdes — cada casa de família, por exemplo, teria um jardim. A cidade foi idealizada para 35.000 habitantes e continha as seções industrial, agricultural, universitária, sanitária, residencial e pública, esta última dividida entre setores administrativo, cultural e esportivo.

A utopia projetada por ele não continha delegacias, tribunais, prisões ou igrejas. Porque capitalismo. Não obstante, existe ali um legado arquitetônico mais rico do que a ignorância arquitetônica do editor permite enxergar – como a existência de edifícios de concreto armado – portanto permanecemos na apreciação estética. Se você entende algo de francês, vale se atentar a este documento aqui. Se não entende, fique pelas imagens e dificilmente se arrependerá.

Baú: David Kelley

Extraído da edição 48 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

É por isso que precisamos de virtudes, antes de mais nada: nós não conseguimos atingir nossos fins com ações mágicas, fantasiosas ou aleatórias; nós precisamos levar em conta fatos sobre a natureza humana, o mundo em que agimos e a relação causal entre ações e resultados. Uma virtude envolve o reconhecimento de tais fatos e o compromisso de agir de acordo com eles. Assim, o orgulho é o reconhecimento do fato de que ‘o homem é um ser cuja alma se faz’: nós não conseguimos alcançar a autoestima sem que ajamos de forma com que a mereçamos. A racionalidade é o reconhecimento do fato mais básico de todos – fatos são fatos, A é A e a razão é nosso único meio de conhecimento.

David Kelley, Unrugged Individualism, 1996

Gisele Barão: Apostas

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma das primeiras coisas que nos faz pegar um exemplar de jornal que não conhecemos, ou conhecemos muito pouco, e está ali disponível em algum ponto de distribuição, é a sua capacidade de nos atrair visualmente. O leitor distraído precisa se sentir instigado a levar um jornal para casa, mesmo que a capa lhe ofereça quase nenhuma informação sobre o conteúdo. O RelevO, na minha avaliação, é muito eficiente nisso. A capa não nos avisa o que vamos encontrar nas páginas internas. Talvez uma boa parcela de leitores deste impresso não o conheceu porque ouviu alguém comentar, e sim porque frequenta algum ponto de distribuição o jornal, descobriu um exemplar e gostou. 

Tudo isso para elogiar a capa da edição de julho, com uma aquarela de Marcos Beccari. Sei que há tempos o RelevO capricha nesse quesito. Ele desperta curiosidade, dá vontade de ler sem saber o que vai encontrar, porque o projeto gráfico é bem pensado e interpreto isso como um trabalho em prol da literatura. Dava até para investir um pouco mais em ilustração, nos lugares certos. Elas podem ser uma saída melhor do que unir, nas mesmas páginas, dois textos bem diferentes entre si. Poesia não serve para tapar espaço em branco.

Quero dizer também que a poesia é para o que nasce. Não dá muito certo transformá-la em outro tipo de texto. Consigo compreender e gostar da ideia de ver outras manifestações artísticas inspiradas em poesias, mas não a ideia de usar um poema já clássico para criar um texto de outro estilo literário, como vi acontecer na edição de julho. Para mim, a alma da poesia é esse jeito meio torto e conciso de contar uma história, encerrar um assunto ali. E que elas fiquem assim na nossa memória. Opinião da ombudsman — um tipo específico de leitora e sempre em formação.

Na edição passada, as páginas do meio, com a Copa acabando no dia 15 de julho, ficaram velhas um pouco rápido. E tive minhas dúvidas se o evento merecia mesmo esse espaço do jornal, ainda que em tom de humor. De maneira geral, essa seção cumpre muito bem a função de respiro entre os textos. Talvez seja a “segunda capa” do RelevO: a gente escolhe o exemplar pela capa, depois dá aquela olhada nas páginas do meio para avaliar o conteúdo. E quem leva embora depois disso?

Alguns dos acertos de julho: o ótimo trecho retirado do livro de Antoine Compagnon. Um bom serviço de seleção e cujo tema está sintonizado com o debate que o impresso nos provoca a fazer. Na linha dos trechos de livros, “Viagem ao Volga” foi uma escolha interessante, talvez por representar um estilo mais raro no jornal. “Segundas chances”, de Lesley Nneka Arimah, também vale a leitura. Na escrita e na publicação, é sempre preciso ter critério. O RelevO faz apostas.

Gisele Barão: Editar é uma forma de saber literário

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O RelevO mostra que literatura é um assunto que nunca acaba. São inúmeras as possibilidades de produção e de estilo dentro do jornal, e a edição de junho apenas reforça isso. Escrever nunca é fácil; é um trabalho penoso para o qual dedicamos cada vez menos tempo. O ser humano que consegue escrever com certa regularidade já merece o nosso apreço. Enfiar a escrita no meio de todas as coisas que precisamos fazer para nos manter neste mundo é uma guerra. E tudo isso sob o mantra “ninguém se importa” ecoando a cada batida nas teclas. Pode ser desmotivante, mas pode ser um combustível também. 

A edição de junho do RelevO fica especialmente boa a partir do texto de André Cáceres e Bruna Meneguetti, “Parada 4 – Avenida Alcântara Machado”. Isso não quer dizer que o que vem antes não agrada. A carta de uma leitora, por exemplo, me prendeu muito mais do que alguns conteúdos seguintes. Temos também uma entrevista na medida certa sobre HQ e o miolo do jornal, sempre cativante. Mas, da página 17 em diante, os textos parecem convergir.

Em “Parada 4 – Avenida Alcântara Machado”, o tema me fisgou. Para mim, viagens de ônibus, assim como as salas de aula, são grandes laboratórios da humanidade. No restante do tempo estamos encenando. Contudo, nosso comportamento como aluno e como passageiro de um ônibus nos revela. O olhar de um professor sobre nós, ou do cobrador do ônibus — personagem central no texto em questão — raramente se equivocam. É bom falar um pouco sobre coisas reais.

Depois, “A língua, o asterisco e a natureza da sardinha”, de Arzírio Cardoso, vem com uma simplicidade… que eu imagino ser difícil de fazer. Uma das magias da literatura é a gente desconhecer por completo as condições em que o escritor produziu aquilo tudo. E, de qualquer forma, saiu. Está ali no papel, e nos parece simples. Nos encanta sem sabermos direito de onde vem. Isso é demais. 

Viro a página e Elstor Hanzen me comove novamente com a sacada sobre as relações possíveis entre o pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche e do compositor brasileiro Belchior. De novo, a experiência de coisas reais. É uma perspectiva inédita? Não. Ainda assim vale. Vale publicar no RelevO. Ler, discordar, depois concordar, encerrar sem saber se gostou ou não. Não importa, tudo é experiência. E aí encerramos com Diana Joucovski. Um texto forte num local bem escolhido do jornal. Editar também é uma forma de saber literário, não é? Tem metafísica nessa história de escrever, de publicar jornal de literatura. Mas tem muito da vida, o que, para Belchior, é muito pior. É disso que a gente gosta.

Por quem os sinos dobram

Extraído da edição 47 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

 

Dizem que nada se cria, tudo se copia. O título deste texto foi copiado de uma música de Raul Seixas chamada “Por quem os sinos dobram”. Essa música é boa, mas seu significado é um pouco obscuro. Ao menos no começo Raul canta “nunca se vence uma guerra lutando sozinho”. A canção é a primeira faixa do lado B do disco Por quem os sinos dobram, lançado em 1979.

Em 1984, o Metallica lançou a canção ‘For whom the bell tolls’, que em português poderia ser traduzido como “Por quem os sinos dobram”, apesar de o sino em inglês (bell) estar no singular. A canção tratava dos horrores de uma guerra. Em 1993, o Bee Gees lançou uma canção chamada ‘For whom the bell tolls’, que também pode ser entendida como “Por quem os sinos dobram”. Essa canção é sobre desilusão amorosa.

Algumas décadas antes, em 1940, Ernest Hemingway publicou o romance For whom the bell tolls (em português, Por quem os sinos dobram), um romance sobre a guerra civil espanhola que influenciou bastante, ao menos, a música do Metallica.

Muito, muito antes, em 1624, um reverendo e poeta inglês chamado John Donne escreveu, na cama em que passou dias a um passo da morte, um livro chamado, adivinha!, Devotions upon emergent occasions. Era uma coleção de 23 pequenas “devoções”, uma para cada dia de internação, sobre seu processo de adoecimento e cura e outras questões humanas.

Na Devoção XVII, John Donne traz o seguinte trecho, originalmente:
“No man is an Iland, intire of it selfe; every man is a peece of the Continent, a part of the maine; if a Clod bee washed away by the Sea, Europe is the lesse, as well as if a Promontorie were, as well as if a Mannor of thy friends or of thine owne were; any mans death diminishes me, because I am involved in Mankinde; And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee.”

Em português, tradução livre:
“Nenhum homem é uma ilha, todo em si; todo homem é uma parte do continente, uma parte da terra; se um torrão de terra é levado pelo mar, a Europa é diminuída, tanto se fosse um promontório, como também se fosse uma casa de teus amigos ou a tua própria; a morte de todo homem me diminui, porque sou parte na humanidade; e então nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

E foi daí surgiu essa frase consagrada na cultura popular.

Do quarto de Donne, ele conseguia ouvir os sinos da igreja tocando. Isso significava que alguém que vivia ali perto havia morrido, e as pessoas se perguntavam: por quem os sinos dobram? Em outras palavras, quem morreu?

O reverendo se perguntava se as pessoas não achavam que tivesse sido ele próprio.

Fra Angelico

Extraído da edição 47 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Fra Angelico e sua Anunciação – a transição perfeita entre o Gótico e o Renascimento

O Renascimento, se é que isso realmente existiu, pode ser visto, ainda que de maneira bastante simplista, como a transição entre a representação artística rudimentar do período Gótico e as inovações que culminaram nas formas e proporções perfeitas do David de Michelangelo. Na realidade, esse trajeto foi muito mais tortuoso do que os almanaques de história da arte fazem parecer, e não foram poucas as ramificações, bem como idas e vindas dos artistas.

É fato, porém, que nesse espaço de mais de 200 anos as artes visuais passaram por uma transformação profunda: os motivos representados deixaram de ser estritamente religiosos e rigidamente ditados pela tradição bizantina para incorporar símbolos pagãos e métodos sistemáticos de representação de luz e espaço. E não houve nenhum artista que expressasse melhor o equilíbrio entre esses dois mundos do que Fra Angelico.

Fra Angelico, muito antes de ser um licor, era Guido di Pietro, um pintor que começou seus estudos como iluminador (fazedor de iluminuras) e mais tarde tornou-se frade. Seus trabalhos sempre tiveram motivos religiosos, tanto pelo século em que vivia quanto pela sua intensa fé pessoal: pintava peças de altar para igrejas e objetos de devoção pessoal para patronos mais abastados. Apesar de estar envolvido direta e profundamente com a Igreja, não se limitava a reproduzir a pintura religiosa tradicional. Ao contrário, estava completamente consciente das mudanças que aconteciam ao seu redor.

O estilo em voga para a pintura religiosa na época era o Gótico Internacional, em que figuras esbeltas com rostos angelicais idealizados contracenam num espaço celestial austero e normalmente folheado a ouro. O que se pretendia era representar o mundo espiritual e a mensagem trazida do evangelho. Um dos exemplos mais simbólicos dessa escola é a Anunciação de Simone Martini, realizada praticamente 100 anos antes de Fra Angelico começar a pintar.

Contemporâneo de Fra Angelico, Masaccio era um expoente de sua geração. Sua pintura O Pagamento do Tributo, entre as mais influentes desse início de Renascença, foi uma das primeiras a empregar a perspectiva linear, que acabara de ser desenvolvida por Brunelleschi, para criar a ilusão de um espaço realista. Com isso, veio a preocupação com o peso e o volume dos personagens, além de sua disposição nesse espaço, algo que não acontecia anteriormente.

Anunciação de Fra Angelico, um afresco de 1446,  é uma síntese dessas vertentes. Seus personagens – o Anjo Gabriel e a Virgem Maria – seguem a estética gótica com seus corpos leves, auréolas bidimensionais e a gravidade da troca silenciosa de olhares. Mas ao contrário da pintura de Martini, nessa cena as figuras habitam um espaço realista, uma varanda cuidadosamente composta respeitando a perspectiva de um ponto. Além disso, nota-se o capricho com o qual os detalhes arquitetônicos foram executados. Arcos ogivais, marca inconfundível do Gótico, dividem o espaço com capitéis jônicos e coríntios que só poderiam ser desenhados por alguém que estudou os textos antigos de Vitrúvio e estava em contato com o retorno da arquitetura clássica.

Ao mesmo tempo, alguns detalhes impedem o balanço perfeito da obra: a grama do lado esquerdo da imagem é representada sem profundidade alguma, como um papel de parede estendido entre o piso da varanda e a cerca de madeira. E mais: o teto, apesar de ser muito lindo, parece estar muito baixo, de modo que se a Virgem se levantasse, provavelmente bateria a cabeça. Mas engana-se quem pensar que isso aconteceu por inaptidão ou incapacidade técnica.

São escolhas conscientes que o autor fez para contrastar a santidade dos protagonistas com um ambiente mundano. Inclusive as colunas e arcos da Anunciação lembram muito o pátio do Convento de São Marco em Florença, onde está a pintura em questão e onde Fra Angelico pintou a porção mais célebre de sua obra. A intenção era auxiliar os monges e frades que habitavam o local em sua meditação, aproximando-os das figuras e ensinamentos transcendentais expressos nesse afresco.

Em suma, Fra Angelico foi o artista que melhor balanceou tradição e inovação no século 15 na Europa. Dominava igualmente a estética gótica e a renascentista e com total consciência se utilizava de diferentes  recursos para atingir seu público de maneiras diversas, sem nunca deixar de ter uma aura de santidade em volta de seu trabalho. Não à toa foi beatificado em 1982 pelo Papa João Paulo II e elevado ao status de padroeiro universal dos artistas.

Bônus: não deixe de conferir neste link uma galeria de fotos do Convento de São Marco, hoje um museu, mostrando como as pinturas de Fra estão dispostas nas paredes das celas individuais, os dormitórios dos monges, e como elas conversam com o espaço que ocupam. E falando em ocupar espaço, agradecemos formalmente ao sr. Ivan Gambus, que foi a Florença, visitou o museu de San Marco e nos trouxe lindas fotos, estórias e o livro-guia oficial. Obrigado, sr. Ivan Gambus.

Lucien Rudaux

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Na minha infância, ainda em Porto Alegre, lembro de um CD-ROM próprio para Windows 95 dedicado ao nosso Sistema Solar. As poucas memórias sobreviventes são borradas, mas é certo que havia os planetas e que era possível clicar neles. A partir disso liam-se informações sobre cada um, com imagens – estáticas, nada de animação – acompanhadas por uma trilha sonora discreta. Não o encontrei na internet.

Nossa Lua, apesar de não ser um planeta, era a mais impactante, pois me ocorre que sua coloração mais fria convergia com a sonoridade cuja clara ambientação de solidão no desconhecido atingia seu objetivo. Eu sentia um medo saudável daquelas imagens — e certamente repeti o fascínio posteriormente com registros melhores, animações mais modernas e sonoridades mais bem gravadas.

Mas antes de qualquer software, e antes de Clarke, de Kubrick e, principalmente, de Clarke e Kubrick, havia Lucien Rudaux, pioneiro de arte espacial. Rudaux (1874–1947), francês, era ele próprio astrônomo, autor e ilustrador. No final do século 19, isto é, com apenas 20 anos, fundou um observatório em Donville-les-Bains, na Normandia. Rudaux serviu ao exército francês na Primeira Guerra, quando, já respeitado pelos serviços prestado ao ensino, havia sido nomeado Oficial de Instrução Pública, uma ordem honorífica.

Filho do pintor Edmond Rudaux, Lucien sem dúvidas herdou a aptidão para representações visuais, a maioria delas produzida nas décadas de 1920 e 30, após a atuação militar. Com elas, fugindo de planetas montanhosos, oferecia imagens mais sóbrias cujo realismo superou até seus sucessores. Seus traços acumulam ainda mais valor conforme caçamos, ou tentamos emular, retrofuturismo.

Pioneiro, Rudaux virou prêmio. E se já temos muitos outros registros, imagens melhores e fotografias mais precisas, suas ilustrações sobrevivem pelo único caminho capaz de garantir sobrevivência de qualquer arte: estética, o encanto cuja coceira limita as palavras e permite, vez ou outra, que o medo seja saudável; e a solidão, confortável.

Lista: poemas para a Copa do Mundo

Extraído da edição 47 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.


Deuses, demônios
santos e anjos —
El-Hadary do Egito
quarenta e cinco anos

2
Argentina escalada
você fez apostas?
Parece que é Messi
e dez sacos de bosta

Depois da Croácia
audácia que enrola
o Messi parece
o Neto Berola.

3
calor que sobe
chuva que cai
Muslera ainda
titular do Uruguai

4
você viu o cabelo do Neymar.?
você viu o cabelo do Neymar..?
você viu o cabelo do Neymar…?
todo mundo viu o cabelo do Neymar:
sobre isso não há nada
que tu vais acrescentar

5
belga burro, otário
vai se fodê:
não levou o Nainggolan
por quê?

aaaaah!
Seu nome é Martínez,
você é espanhol:
burro, otário igual

6
diferentão, fã de pós-rock,
mala que ninguém carrega,
aceite, hipster tonto,
a Islândia já é brega

7
Bolaños fez Chaves
Rivera, outras artes.
Mais pica que eles
Capitão Rafa Márquez

8
ir, voltar; ir voltar;
movimento dos olhos
e falta de ar.
ir, voltar;
ir… voltar.
um primeiro poema
dedicado ao VAR

9
Sergio Ramos na zaga,
o mais duro granito.
Privilégio branco
é o Piqué ser bonito

10
Brasil com Firmino
Colômbia com Mina
Ninguém quer saber
do bolão da firma

Baú: G. K. Chesterton

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Acredito que o que realmente acontece na história é o seguinte: o homem idoso está sempre errado; e os jovens estão sempre errados sobre o que está errado. A forma prática que isso toma é a seguinte: enquanto o homem idoso se apega a algum costume estúpido, o homem jovem sempre o ataca, com alguma teoria que se mostra igualmente estúpida.
G. K. ChestertonIllustrated London News1922

Gisele Barão

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Somente em Ponta Grossa (PR), onde moro e trabalho como jornalista e professora de Comunicação, há ao menos quatro clubes de leitura. Todo mês, essas pessoas leem um novo livro, reúnem-se e conversam sobre ele. Para uma cidade com aproximadamente 340 mil habitantes, sempre achei um bom número. Mas ao receber o convite para assumir a função de ombudsman do RelevO, de repente me pareceu pouco. Por que não há clubes de leitura de jornais literários? 

Imagine um grupo que promova reuniões para ler o RelevO ou outro impresso da área e dar pitaco sobre a qualidade da produção. Digo isso também por interesse próprio. É que qualquer leitura fica melhor quando compartilhada com alguém. A vantagem do ombudsman é ter acesso às cartas que os leitores enviam ao jornal; eles são o nosso clube. Melhoram nossa leitura das coisas quando revelam outro ponto de vista, mesmo que não conversem entre si. 

Dependendo das suas condições e características como autor, talvez ninguém se importe mesmo com a sua produção literária. Talvez as cartas dos leitores sejam negativas sobre ela. Mas você não para de escrever, não é? Porque, em certa medida, existe sim um clube, e é isso que vale. Há quem aguarde uma publicação apenas para não gostar dos textos ou simplesmente para não se importar. E tá tudo bem. A gente gosta mesmo é de ter uma pré-seleção, uma indicação sobre o que deve ser lido. Com tanta gente escrevendo neste mundo, para onde podemos olhar com mais atenção?

Escrevo resenhas de livros há três anos para outro impresso, e confesso que poucas vezes busquei conhecer um autor estreante. Talvez os leitores tenham medo de arriscar. Há tantas obras clássicas na fila que nos falta tempo (ou uma gestão mais inteligente do tempo). Mas uma dúvida me provoca: em que ponto da vida a gente deixa de querer conhecer novos escritores? E por quê? Estou animada para percorrer esse breve caminho ao encontro de autores que, em grande parte, não conheço. E orgulhosa por ter o RelevO como guia.