Gutemberg Medeiros: Memórias de todo mundo, distopias e algo mais

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Assim como acontece a mais de quatro décadas nos EUA e na Europa, no Brasil está instaurada uma realidade corporativa no mercado editorial, onde se formam grandes grupos a fagocitar selos já existentes. Disso decorre uma consequência das mais negativas: publica-se apenas o que dá retorno em curto prazo. É o fim dos long sellers ou dos autores novos ou mesmo já com quilometragem que apostam no novo. Ou seja, dificilmente um Guimarães Rosa teria lugar nas gôndolas. 

Quem está provendo o mercado de bons títulos fora desse horizonte contábil são as pequenas editoras. Entre elas, destaca-se uma segmentada em literatura russa, Kalinka, que já trouxe em cuidadas traduções diretas de autores como Daniil Kharms e Sologub. Em seu site há também uma revista, com poemas de Anna Akhmatova vertidos pela professora do Curso de Russo da USP Aurora Bernardini.

Pois a editora vai lançar em 2018 uma obra de fundamental importância, as memórias de Nina Nikolaievna Berberova, também traduzidas por Aurora. Boris Schnaiderman considerava esta obra uma das mais importantes da chamada literatura de exílio russo. Memórias de Nina e de todo mundo que interessava na literatura russa da primeira metade do século passado.

Nascida a 1901, em São Petersburgo, emigrou da ex-URSS em 1922 com o poeta Vladislav Khodasevich e viveu em Berlim até 1924 e, depois, em Paris – os maiores bolsões de emigrados russos no mundo. Na capital francesa, atuou como jornalista em jornais russos onde publicou sua prosa e poemas, histórias curtas, poemas, crítica de filmes e resenhas sobre a nascente literatura soviética. Ainda em Paris, escreveu uma das primeiras biografias sobre Tchaikovski, em 1936, onde aborda a homossexualidade do compositor.

O grande valor de suas memórias – além da apurada e deliciosa carpintaria literária – está em falar sobre a vida dos exilados russos e sobre bastidores valiosos do mundo literário. Em suas páginas, encontramos Anna Akhmatova, Vladimir Nabokov, Boris Pasternak, Marina Tsvetaeva, Vladimir Maiakovski, Ievgueni Zamiatin, entre tantos outros. 

A autora emigrou aos EUA em 1950 onde se tornou destacada professora em universidades como Yale e Princeton. Justamente em Princeton, o escritor argentino a conheceu pessoalmente e ficou tão impressionado com ela a ponto de basear um personagem na prosa “O caminho de Ida”, uma das últimas do escritor argentino. Certamente, o livro das memórias de Berberova deve ser um dos mais importantes lançamentos de 2018, forte concorrente aos principais prêmios editoriais, como o Jabuti. 

 

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Outro lançamento que deve chegar até o fim do ano pela Editora 34 é a primeira tradução competente e direta do russo publicada no Brasil do clássico Nós, de Zamiatin, vertido por Francisco Araújo. Outra direta foi publicada recentemente, mas infelizmente não deu conta da complexidade da obra. O texto original exige a noção de Transcriação pensada por Haroldo de Campos e não apenas tradução, priorizando mais os sentidos e a musicalidade interna do texto do que propriamente versão literal.

Muitos viram Nós como exemplo de ficção científica, um equívoco. É, acima de tudo, uma grande reflexão sobre a condição humana na modernidade, independente do regime político em que o sujeito está inserido. Assim, representa o pensamento distópico, avesso ao da utopia, em torno do controle opressivo da sociedade sobre o indivíduo. A sua importância pode ser medida por ter inspirado outros clássicos contemporâneos a exemplo de 1984 de George Orwell, Admirável mundo novo de Aldous Huxley e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Leitura indispensável, especialmente para os tempos que correm. Aviso ao leitor: fique de olho nas próximas versões do russo de Francisco Araújo – certamente um dos mais capacitados da nova geração de tradutores que emergiu nos últimos dez anos no Brasil.

 

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Impressionam manifestações nas redes sociais contra Lima Barreto ser tema da FLIP de 2017 por ser este um evento de mercado e completamente avesso à obra do escritor. Equívoco. Há anos não se fala tanto de Lima na imprensa, em blogs e em outras mídias. Tudo bem, fala-se muita besteira. Mas essa exposição, de uma forma ou de outra, vai trazer leitores a esse escritor tão importante. O que já compensa. Afinal, Lima escreveu para ser lido e as reedições de suas obras são fundamentais para isso – autor bom é autor na gôndola das livrarias analógicas ou virtuais. O resto é especulação vazia.

 

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Outra coisa que me impressionou foi a edição, certamente, não proposital do último RelevO em que foi publicado um texto sobre encontro com Mia Couto e a minha coluna alusiva às besteiras que assolam o país.

 

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Também na edição anterior do periódico a feliz escolha das traduções dos poemas de Nizar Oabbani, Nazik Al-Malaika e Ezequiel Zaidenwerg. Deste, fica no ar de que revolução o poeta fala. No mesmo exemplar, é bom saber que ensaísmo dos bons continua sendo feito, como o trecho de prefácio de Guardião de Datas. No texto, Ben-Hur Demeneck consegue exercer a difícil arte da síntese sem reducionismo. Não à toa, este cronista dá o valor devido à poesia “encalacrada no cotidiano” sob a égide do tempo. Agora é esperar mais da produção deste remador digno de ser personagem de Nelson Rodrigues.

Gutemberg Medeiros: Besteiras ainda assolam o país

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Besteiras continuam jorrando todos os dias na grande imprensa, é impossível ignorá-los. Apenas dois recentes envolvendo o atual ocupante da cadeira da presidência da República assim o comprova. Na agenda oficial, a supracitada autoridade constava uma visita à “República Socialista Federativa Soviética da Rússia”, nome do antigo do principal componente da ex-URSS finda em 1991. Em discurso de 26 de junho, o mesmo chefe do Poder Executivo afirmou que despertou o vívido interesse de “empresários soviéticos” investirem no Brasil. Na mesma viagem, declarou que iria almoçar com o “rei da Suécia”, quando estava na Noruega sob o reinado de Harald V.

Provavelmente este senhor não saiba, mas está inserido em rica e extensa tradição que viceja no Brasil e um de seus maiores historiadores da realidade emergente foi Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo do jornalista e escritor Sérgio Porto – em seu impagável “Festival de Besteiras que assolam o País”. Originalmente coluna do jornal Última Hora, rendeu três ótimos volumes publicados nos anos de 1960 e recentemente enfeixados em apenas um pela Companhia das Letras. Fonte inesgotável para os mais diversos perfis de leitores – de leitores a escritores até aos que desejam tentar entender onde vivemos. 

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Falando em besteira, uma das mais interessantes foi proclamada por Mário de Andrade em determinada resenha ao afirmar que “Conto será sempre aquilo que seu autor batizou de conto”. Ironia desregrada ao referir-se a determinada coletânea publicada em França paga pela Academia Brasileira de Letras onde havia de tudo, até pedaço de romance. Pois ao folhear o RelevO de maio e junho foi com prazer que me deparei com alguns dos vencedores do Concurso de Conto de Curitiba e constatar que esse gênero não apenas continua vivo, mas com bons representantes surgindo neste cenário. O tema da competição não poderia ser mais próximo ao gênero, “Um olhar sobre a Cidade”, pois o que são fundamentais os andarilhos da urbe nas tradições próximas de conto e crônica. Como atesta Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Rubem Braga, Drummond, João Antônio e tantos outros. Tanto os jovens autores quanto os tradicionais comprovam que bater perna na rua pode gerar boa literatura.

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O novo é uma construção eventualmente inacessível ao olhar de seus contemporâneos. O novo também é derivado se suportes recém-surgidos, como a literatura emergente do meio digital em redes sociais. Pois experimentação do tipo também constou do exemplar de junho de RelevO. Importante veiculá-la, não há dúvida, mas ainda não vejo consistência estética pelo que foi publicado. Provavelmente, miopia minha como a de Anatoli Lunatcharski, o ministro da Educação e Cultura de Lênin, ao nada ver de importante nas vanguardas russas. Apesar disso, ele deu todo o apoio material para que fossem veiculadas e garantiu um dos mais preciosos tesouros que ainda nos alimenta. 

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RelevO de maio trouxe em sua quarta capa trechos de ensaios de Otto Maria Carpeaux derivados do trabalho de pesquisa de Eduardo Zomkowski e em publicação no seu site Projeto Carpeaux. O pesquisador informa que já peneirou mais de 50 textos inéditos em 20 periódicos. Retomar a produção desse austríaco radicado no Brasil é fundamental, pois ele teve vasta atividade não apenas na imprensa, mas também no mercado editorial. Para citar um exemplo: a coletânea em nove volumes de contos russos pela Editora Luz, no início dos anos 60, todos organizados e com lúcidas introduções de Carpeaux – que conhecia as obras de lê-las em russo. 

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Para quem estiver em São Paulo em 28 de julho, na Biblioteca Mário de Andrade às 19 horas farei a palestra “Tolstói e o novo homem russo do século XX” sobre a prosa “A morte de Ivan Ilitch”. Além de analisar esta obra fundamental, vou expor como o autor russo está presente ainda hoje na literatura brasileira – especialmente em Lima Barreto e Hilda Hilst. O evento está inserido no inédito ciclo “Literatura, teatro, antiteatralidade e performance” a reunir dez montagens de companhias paulistas e seis conferências de pesquisadores ligados aos autores e peças programadas, sob a refinada curadoria do jornalista e doutorando da ECA/USP Álvaro Machado. As palestras e encenações ocorrem até novembro.

Gutemberg Medeiros: Nelson Rodrigues em Som e Fúria

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A mais longeva crítica teatral no Brasil, Barbara Heliodora, desde 1957 em jornais diários, não hesitava em comparar Nelson a Shakespeare. “Apenas pelo fato de serem dois homens de suas épocas, que absorveram os universos que os rodeavam e tiveram não só uma capacidade excepcional para criar as personagens que habitariam suas obras. Ambos tinham talento especial para o teatro, vendo o mundo em termos de ação, pois só quem pensa assim escreve bom teatro”, enfatizava.

A amizade entre eles nasceu quando o dramaturgo soube que Barbara era filha do “Marcos do Fluminense”. “Meu pai foi tricampeão pelo time e goleiro da seleção campeã sul-americana de 1919. O Nelson volta e meia falava nele. Nós nos encontrávamos no teatro ou no Maracanã, sempre com papos tranquilos e simpáticos”.

Barbara acreditava que parece “um engano a busca do clima das chamadas peças míticas, nas quais Nelson não chega a estabelecer uma dramaturgia realmente eficiente” e o melhor está em Vestido de noiva e O beijo no asfalto. Já seu maior tino estaria nas peças cariocas, nas quais, “pela primeira vez, transpõe para o palco, em termos teatrais, o linguajar do Rio de Janeiro, criando, com seu ouvido de repórter, ações dramáticas que lembram o ‘aqui e agora’ de A vida como ela é…, alterando definitivamente o teatro brasileiro”. 

Por outro lado, Nelson era grande frasista. Barbara contava uma que ouviu pessoalmente dele, sentada ao seu lado no intervalo de um jogo no Maracanã – naturalmente, ambos torcendo pelo Fluminense: “Tenho a impressão de que em outra encarnação eu já pastei; porque olho para esse verde e me dá uma tranquilidade…” ou “Se carrocinha apanha cachorro, por que não apanha crítico?”. O humor e as frases jorravam em seu cotidiano.

Lembrar Nelson Rodrigues hoje parece ser fundamental, especialmente ao ver como a grande imprensa reprocessa os acontecimentos. O dramaturgo era nietzschiano ao defender que não existem fatos, mas a interpretação dos mesmos.

Nelson provavelmente elaborou os dois momentos mais intensos de metajornalismo no Brasil nas peças Boca de ouro (1960) e O beijo no asfalto (1961). Após a estreia desta última peça, declarou: todos estamos afetados por esta peça e ninguém que a veja poderá sentir-se alheio a ela, pois nos envolve a todos. Eu creio firmemente que vivemos numa floresta de papel impresso: somos modelados, condicionados pela imprensa. Em O beijo no asfalto é dramatizado e tratado como se fosse uma personagem da peça. Cria-se então uma mútua dependência: os leitores tornam-se vítimas do que leem nos jornais e estes tornam-se vítimas dos caprichos, das atitudes e reações de seus leitores.

O beijo no asfalto mereceria ser lida com atenção por todos os que querem tecer uma leitura crítica do que os cerca. Literalmente, mostra como os fatos são reprocessados conforme a conveniência do veículo em que são expostos.

A histórica montagem se deu em 1961, com o grupo de Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Mário Lago e grande elenco no Teatro Municipal, na Cinelândia carioca. Era comum no teatro rodrigueano o jornalismo ser representado por profissionais de ética, no mínimo, discutível. Em O beijo no asfalto, o dramaturgo parte de um fato: um homem comum cumpre o último desejo de um atropelado que, às portas da morte, pede um beijo na boca.

Um repórter de polícia faz matérias forjando um caso escandaloso de homossexualidade. Para dar veracidade à peça, Nelson faz com que esse jornalista, personagem chave do espetáculo – praticamente seu protagonista –, receba o nome verdadeiro do maior repórter dessa editoria no poderoso jornal Última Hora: Amado Ribeiro. Samuel Wainer, o dono do periódico na vida real – o mesmo no qual Nelson era sucesso há dez anos com sua coluna “A vida como ela é…” – também é mencionado em cena. E o próprio jornal é apresentado, na visão do escritor, como aquele que induz a chamada “opinião pública”, a mesma que execra aquele que beijou na boca, levando-o a uma morte trágica.

Luiz Fernando Mercadante – que atuou por grandes veículos como Jornal do Brasil e a revista Realidade – lembra que na estreia do espetáculo em questão, mais da metade da plateia era formada por jornalistas do Rio de Janeiro e de outros estados. “Corria o boato de que Nelson escrevia uma peça contra nós e a classe compareceu em peso”. Após o pano final, não teve o aplauso esperado. Os jornalistas saíram em silêncio e, no dia seguinte, alegaram que o autor retratava a redação de Última Hora e que todos os outros eram éticos no cotidiano. Mercadante viu a felicidade estampada no rosto de Amado Ribeiro durante a temporada. “Ele era pior do que na peça”, lembrava o jornalista. Mas, fora o Amado e Wainer, todos viraram a cara para Nelson, o que o fez sair do jornal.

A última coisa que o autor de O beijo no asfalto – e de outras 16 peças, além de romances e contos – deseja fazer é um retrato realista e agradável da vida urbana: o realismo, dizia ele, é uma “quase canalhice”. A fusão de memorialismo, reflexão, notícia e ficção em seu trabalho lembra a tradição satírica da imprensa russa da segunda metade do século 19, com debates políticos, morais e metafísicos em linguagem semicifrada para escapar à censura.

Nelson morreu afirmando que o grande autor de sua vida foi Dostoievski, tudo estava lá. E certamente se valeu de O duplo e Crime e castigo, entre outros, ao recusar o realismo e a ausência de tensão trágica, ao contrário da maioria. Ele nunca explicou em detalhes sua visão de Dostoievski, mas legou uma ou outra observação, como “a grande ficção nada tem a ver com o bom gosto” e “Dostoievski é o meu único professor de drama”. Não à toa, Nietzsche foi atento leitor do russo, a partir do qual elaborou a sua concepção de Super-Homem.

Para melhor ler os tempos que correm, falta-nos alguém como Nelson no Jornalismo. Para melhor traduzir esses trás dos fatos, tão plenos de som e fúria.

Gutemberg Medeiros: Boris Schnaiderman, jornalista

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Algumas editoras lembram o centenário da Revolução Russa com lançamentos de obras literárias e de cunho histórico. Mas há outro centenário a lembrar em relação à cultura russa no Brasil, o de nascimento de Boris Schnaiderman, em 17 de maio de 1917. Nascido em Úman, mas criado na cidade portuária de Odessa, dedicou 74 anos à tradução e divulgação da literatura e cultura russas no Brasil.

A lista de autores que Boris trouxe até nós é extensa. Como Isaac Bábel, Aleksander Blok, Ivan Bunin, Fiódor Dostoiévski, Ilia Ehrenburg, Máximo Górki, Daniil Kharms, Vladimir Maiakóvski, Ossip Mandelstam, Iuri Oliecha, Leon Tolstói, Anton Tchékhov, entre tantos outros. Além de serem expoentes da rica tradição da literatura em língua russa, foram traduzidos por este que é uma das mais originais personalidades da cultura brasileira.

O que pouco se fala sobre Boris é a sua trajetória de jornalista cultural. São mais de 300 artigos publicados na imprensa desde 1956. Ele inicia no antigo suplemento literário de O Estado de São Paulo editado por Décio de Almeida Prado e Antonio Cândido. Foi-lhe oferecido espaço intitulado “Letras Russas”, em paralelo à coluna “Letras Germânicas” de seu amigo e um dos principais críticos de teatro, o berlinense Anatol Rosenfeld.

Formou gerações de leitores, não exclusivamente sobre literatura russa. O seu ensaísmo chega ao tom de diálogo dos mais abertos. Por vezes, vislumbra aspectos da sua memória, desde que relevantes para o fluxo de entendimento. Ele lembra que logo depois que assumiu a coluna no Estadão, fez confidência a Décio. Sentia-se muito mal como comunista em colaborar em um dos principais jornais da direita. O editor sorriu e pediu para olhar para a redação. Assim como em toda a grande imprensa, a maioria dos jornalistas era de esquerda. Logo, tinham de sobreviver de uma forma ou de outra naquele ofício e buscar espaços para veicular algo na contracorrente do jornal.

Em termos de jornalismo cultural, Boris é um exemplo dos mais bem acabados da transição que ocorreu desde os anos de 1950. Como historiografou Russel Jacoby, professor da Universidade da Califórnia, em Os últimos intelectuais (Edusp, 1990), o intelectual que pensava questões emergentes da sociedade na crítica literária ou ensaio sociológico falava ao público o mais amplo possível a partir do jornal diário. Gradativamente, esse segmento migrou para as universidades e fala para determinado leitor iniciado em sua área de pesquisa.

Ele fez a transição para a universidade, ao fundar o Curso de Russo, na USP, em 1960, contribuindo de forma decisiva para a profissionalização da atividade de tradutor no Brasil. Manteve a qualidade de colaborar com jornais e revistas, mesmo com periodicidade variável, mantendo um texto dos mais inclusivos para todo o perfil de leitor, bastasse ser interessado em literatura e cultura russas. Este não foi o primeiro curso do gênero do país de terceiro grau, mas foi o único que sobreviveu à ditadura civil-militar instaurada em 1964. Sob o comando de Boris e com o apoio de colegas e alunos – entre eles Antonio Cândido, Paulo Emilio Salles Gomes, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes – manteve essa trincheira livre de pensamento e prática cotidianas.

Para o leitor ter noção da rica produção jornalística de Boris, há duas coletâneas de textos. A primeira, em catálogo pela Editora Perspectiva intitulada Projeções Rússia/Brasil/Itália (1978), traz textos publicados em jornais e revistas das décadas de 1960 e 1970. Um dos destaques é a revelação de que o poeta Alexander Púchkin foi tradutor para o russo de uma lira do árcade Tomás Antonio Gonzaga a partir de uma edição francesa.

Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (1983, esgotado) é um todo coeso de textos jornalísticos publicados, entre outros, no “Caderno de Sábado”, suplemento semanal de cultura do extinto Jornal da Tarde (do mesmo grupo do Estadão). Livro pioneiro onde se descortina o gradativo descobrimento do pensador russo Mikhail Bakhtin – hoje presente em pesquisas muito além dos campos da linguística e literatura –, cujo introdutor no Brasil foi o próprio Boris. Mais uma vez, em cada texto ele introduz o leitor não especializado ao universo de reflexões de Bakhtin, revelando a sua riqueza e pertinência.

Na construção de uma memória coletiva, igualmente função do bom jornalismo, uma das obras em que Boris melhor soube abordar importantes passagens de sua vida está em seu volume de ensaios Tradução: ato desmedido (Perspectiva, 2011), onde narra como se deu o envolvimento com a língua russa em situações diferentes ao de tradutor. Como todos, nem sempre tem dimensão exata do que viveu. Isso se torna evidente quando narra os meses em que foi “secretário” do correspondente da Agência Telegráfica da URSS (Tass), Iúri Kalúguin, entre 1945 e 1947.

Ao ler a descrição, como jornalista, não pude concordar que Boris fosse apenas secretário e fui eliminar essa dúvida. Ele manteve a versão reiteradamente. Então, pedi para descrever seu cotidiano. Boris chegava à casa do russo e lia jornais, revistas e escolhia as notícias que poderiam interessar aos leitores da Tass. Feita essa triagem, lia em russo o que estava em português para Kalúguin. O jornalista escrevia a matéria e Boris revisava os dados. Eventualmente, o “secretário” somava ao texto aspectos que estivessem em pressuposição ao leitor brasileiro, mas não ao russo. Após a definição de quais sugestões de Boris seriam aceitas, providenciava-se o texto final ainda com uma última leitura deste. Expliquei a Boris que ele exerceu funções específicas de um jornalista: pré-pauta, pauta, redação, pré-edição e edição. Ele me olhou espantado e reconheceu o seu engano.

Boris partiu no ano passado, aos 99 anos. Mas o seu acervo está aí e pode gerar várias coletâneas de seus textos jornalísticos, a exemplo do que ocorre há anos com a produção de Anatol Rosenfeld. Enquanto isso, as suas traduções estão em catálogo pela Editora 34, que há pouco relançou O processo do tenente Ieláguin de Ivan Bunin e promete relançar a prosa Inveja, de Iuri Oliesha, uma das principais da literatura russa e publicada originalmente em 1927.

Charles Manson & Dennis Wilson

Extraído da edição 44 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Wilson e Manson: boas vibrações.

Um antigo ditado assírio, datado de quando a Babilônia virou modinha, defende que o ateísmo recebe três grandes testes ao longo da vida: o leito de morte, a queda livre de um avião e o contato com Pet Sounds. Nas palavras do próprio Assurbanípal, “mano…… Beach Boys é lôco demais”. Mas não é do Pet Sounds, especificamente, que trataremos. Ah, não. O tópico que abre a Enclave de hoje traz uma dessas conexões inesperadas que a vida trata de abrir. Talvez uma nota 7 na escala Julian Assange-Pamela Anderson.

Acontece que Charles Mansonaquele Charles Manson, morou um certo tempo na casa de Dennis Wilson, baterista, compositor e único surfista de fato dos Beach Boys. Curiosamente, Wilson também era um Wilson, e, portanto, irmão de Brian e Carl, integrantes da banda californiana. O ano era 1968: conta-se que o músico encontrou duas moças peregrinando pela estrada e as levou à sua casa. No dia seguinte, lá estavam elas de novo, desta vez com mais uma dezena de pessoas, todas seguidoras de Manson – que ali também constava, literalmente beijando seus pés. A versão menos romântica narra que Manson descobriu a residência do baterista ao procurar maconha.

Quando um culto inteiro para no seu jardim, resta chamá-lo pra dentro e abrigá-lo. Ou tomar outra cem decisões melhores do que essa, mas, de todo modo, foi o que ocorreu. Como é de se imaginar, a residência de Charles Manson & Seguidores deve ter sido uma bela merda para Wilson. Ao todo, a hospedagem de quase duas dezenas de gente custou ao músico mais de 100 mil dólares, 21 mil deles torrados em um carro sem seguro, destruído pelos inquilinos. Muito dinheiro também foi gasto com penicilina para amenizar o constante problema da Família Manson com… gonorreia. Qual era o benefício em receber uma corja tão expressiva? Para Wilson, 17 mulheres constantemente nuas e dispostas a obedecer comandos.

Com essa união, Charles Manson visava a um desenvolvimento de sua carreira musical, utilizando-se do estúdio do irmão Brian. Wilson chegou a afirmar que o guru dispunha de ótimas ideias. Manson compôs ‘Cease to exist’, música que acabaria regravada pelos Beach Boys e lançada como ‘Never learn not to love‘, no lado B de ‘Bluebirds over the mountain’. Nenhum crédito foi concedido a Manson, que agiu de forma serena, ameaçando assassinar Wilson ao lhe presentear com uma bala. “Cada vez que você olhar para ela, quero que lembre de como seus filhos estão seguros”.

Dennis Wilson resolveu a saia justa de forma simples: bastou enfiar a porrada até dizer chega. Para se livrar da Família Manson, no entanto, o baterista simplesmente abandonou a casa onde o grupo já havia se instalado.

GeoGuessr

Extraído da edição 44 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Imagine que você, no maior estilo Bear Grylls, foi jogado de um helicóptero e caiu de paraquedas num lugar em qualquer parte do mundo. Seu desafio não é sobreviver, ao contrário do cara do Discovery Channel, mas sim descobrir onde você está. Se essa proposta soou tentadora, você precisa conferir o GeoGuessr. Trata-se de um site no qual você é desafiado após ser levado a algum lugar do mundo pelo Google Street View.

Você pode andar o quanto quiser pelas ruas até conseguir pistas suficientes para adivinhar exatamente onde está e cravar o local no mapa. Quanto mais perto chegar da localização, mais pontos ganha. Os mais competitivos também podem intimar os amigos – se eles existirem – em desafios temáticos, com pontos turísticos famosos, capitais europeias, igrejas do mundo, cidades brasileiras, norte-americanas, enfim, qualquer coisa. Uma recomendação Enclave para pretensos conhecedores do planeta, viajantes sem dinheiro ou apenas procrastinadores com carteira assinada.

Disintegration Loops

Extraído da edição 44 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Arte da capa de Disintegration Loops.

William Basinski é um compositor nova-iorquino que desde os anos 1980 experimenta com gravações fitas e loops para criar suas obras. Seu trabalho mais reconhecido são os Disintegration Loops, lançados em 2002 pelo seu selo próprio, 2062.

A história ficou tão famosa que o  próprio Basinski já não deve ter mais a paciência de contá-la. No verão de 2001, reza a lenda que ele encontrou em seu apartamento caixas repletas de fitas com trechos de músicas gravadas vinte anos antes. As músicas provinham de rádios easy listening. O artista resolveu transferi-las para o formato digital, mas logo percebeu que pequenos pedaços se desprendiam cada vez que a fita passava pelo equipamento de conversão, fazendo com que a faixa tocada se desintegrasse lentamente – até ficar completamente distorcida e eventualmente decair num silêncio absoluto.

Essa é a base do Disintegration Loops, que conta com quatro volumes, cada um com duas ou três faixas intituladas ‘dlp1.1’, ‘dlp2.1’, ‘dlp1.2’, etc. Cada faixa é um loop de alguns segundos mergulhado profundamente em efeitos sonoros etéreos (argh……..) que se repete e se desintegra lentamente.

Algum tempo depois de produzir a obra, William a escutava em seu terraço no Brooklyn quando aconteceram os ataques de 11 de setembro. Enquanto caía a tarde e fumaça cobria a não tão distante Manhattan, ele montou uma câmera num tripé e gravou horas de imagens de uma cidade em choque que lentamente voltava ao escuro da noite. O paralelo com os seus Loops não era difícil de perceber. No dia seguinte, Basinski assistiu às filmagens ao som de ‘dlp1.1‘, primeira faixa do disco, e decidiu que eram parte da mesma obra. A capa de Disintegration Loops foi retirada de um frame do vídeo e, na edição comemorativa de 10 anos, outras imagens e gravações daquele dia foram incluídas no encarte e CD.

Desde então, os  Disintegration Loops se tornaram uma espécie de elegia ao que se passou naquele dia. Num evento no museu Metropolitan de New York em homenagem aos dez anos do 11 de setembro foi apresentada uma versão orquestrada de ‘dlp1.1’. Assim como nas fitas, os instrumentos de cordas e percussão repetem a mesma frase exaustivamente e se decompõem aos poucos. Ao fim, o que resta é o silêncio, que só é interrompido depois de alguns minutos, por fortes aplausos de uma plateia profundamente tocada. Aqui você pode conferir um trecho, o único vídeo que a equipe Enclave conseguiu encontrar da ocasião.

‘Dlp1.1’ orquestrada, tocada em concerto no Metropolitan Museum.

Embora seja essencialmente música ambiente, não é exatamente do tipo que se pode deixar tocando ao fundo enquanto você lê ou prepara o almoço. É difícil não entrar numa atmosfera de luto quando o som que sai do alto-falante morre um pouco cada vez que é tocado. Eis o som de melancolia e efemeridade.

 

Sobre o fraque

Extraído da edição 44 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Na próxima vez que chamarem O Editor para qualquer evento diurno – um chá de bebê, uma volta no parque ou a comemoração de habeas corpus da Tia Lúcia –, carregue a certeza de que O Editor usará um fraque. Se você não sabe, ou não se lembra daquilo em que consiste um fraque, seu plebeu medíocre, permita-me reforçar sua memória:

Tratado de Versalhes, 1919: 3/4 dos integrantes utilizaram fraque. Você, que não assina Tratado algum, usa zero fraque. Coincidência???

Brincadeiras à parte – Tia Lúcia certamente apodrecerá na cadeia –, um fraque é a composição que a etiqueta formal exigia até o pôr-do-sol. Não à toa, este traje é conhecido como morning dress, embora a palavra em português provenha do frock, que pode ser entendido como a peça isolada deste terno (qual o tailcoat), ou como uma espécie de sobretudo aristocrático (justaucorps) que hoje mais remete a um cosplay de Dr. Who.

O fraque, enfim, requer de seu usuário um colete da cor do terno. Sob a gravata, aceita camisas de gola removível, as quais hão de ser lembradas na próxima vez em que esta newsletter oferecer páginas de estilo. Também orna perfeitamente com bengala, cartola e boutonnière. Não sabe o que é uma boutonnière? Ha-Ha-Ha, como é penoso dialogar com mendicantes. Aliás, que não passe batido: você de fato leu a palavra “orna” na Enclave, seu carrapato desvalido.

Em suma, não há maior caricatura de riqueza do que um fraque, e é justamente por isso que, a partir do momento em que a gelatina circular da moda o redescobrir, você se lembrará do nosso manifesto pelo retorno imediato do traje em questão. P.S: Dos quatro representantes na fotografia cima, adivinha qual acabou apelidado de “chorão” e ainda abriu caminho para Mussolini? Pois é. Usem fraque, oras.

Lista: fotos do Hindenburg

Extraído da edição 44 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Hindenburg foi um zepelim construído no início dos anos 1930 pela Alemanha nazista para ser uma aeronave comercial, visando ao transporte transatlântico de passageiros e, de quebra, à propaganda política. Ficou famoso tanto pela sua imponência e alta classe das suas instalações quanto pelo desastre espetacular que marcou o fim da era dos dirigíveis. Eis alguns belos registros dessa imensa aeronave cheia de nitrogênio:

LZ 129 Hindenburg
Hindenburg em seu primeiro voo, 1936
LZ 129 Hindenburg
Detalhe da cabine
LZ 129 Hindenburg
O Hindenburg é até hoje a maior aeronave a ter voado. Acima, a comparação com um Boeing 747
LZ 129 Hindenburg
Hindenburg sobre o Rio de Janeiro
LZ 129 Hindenburg
Salão de jantar

LZ 129 Hindenburg

LZ 129 Hindenburg
Writing room (não deixe essas cafeterias descolex descobrirem isso)
LZ 129 Hindenburg
Cabine de passageiros
LZ 129 Hindenburg
Cabine de controle
LZ 129 Hindenburg
Salão de fumantes, o lugar mais popular entre os passageiros do dirigível
LZ 129 Hindenburg
Panfletos com informações aos passageiros: a distância entre América e Europa correspondia a dois dias e meio de viagem

 

Baú: Arthur Conan Doyle

Extraído da edição 44 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Lestrade e eu ficamos em silêncio durante alguns momentos; depois, impulsivamente, batemos palmas, como ao final de um espetáculo. O sangue subiu ao rosto de Holmes, e ele inclinou-se, como o ator dramático que recebe a homenagem da assistência. Era nesses momentos que ele deixava de ser uma máquina pensante e traía seu amor pela admiração e pelo aplauso. A mesma criatura orgulhosa e reservada, que desdenhava da notoriedade popular, ficava emocionada ao receber o elogio espontâneo de um amigo.

Arthur Conan DoyleOs seis bustos de Napoleão1904.