Contexto: “Considerando a reação extremamente positiva a seu incrível trabalho, premiado com o Oscar, no filme anterior, pouco surpreende a ‘decepção’ de H. R. Giger por não ter sido contatado quando teve início a produção de Aliens, o segundo episódio do que ainda é uma das franquias mais bem-sucedidas da história do cinema. O célebre artista suíço que concebeu o lindamente horrendo alienígena no final da década de 1970 expressou seu desagrado e, através de seu agente, Leslie Barany, escreveu ao diretor da sequência, James Cameron. Três meses depois, Cameron explicou sua decisão nesta carta fascinante e extraordinariamente honesta.”
Prezado sr. Barany:
Lamento que a intensa pressão para concluir “ALIENS” não me permitiu responder a carta de 3/11/86 que o senhor escreveu em nome de seu cliente, sr. H. R. Giger.
Nessa carta, o senhor menciona a “decepção inicial” do sr. Giger por não ter sido contatado a propósito de “ALIENS”, o que é muito compreensível, já que ele é o autor das criaturas e dos cenários. Ironicamente, foi a produção de “ALIEN”, com sua bizarra paisagem psicossexual do subconsciente criada pelo sr. Giger, que despertou meu interesse pelo projeto de uma sequência.
No entanto, tendo sido diretor de arte antes de me tornar diretor, achei que tinha de colocar minha marca no projeto. Só assim o projeto faria sentido àquela altura de minha carreira, quando eu já tinha algumas ideias e criações originais que podia levar adiante com idêntica recompensa financeira e com maior liberdade como autor.
Achei que criar uma sequência pode ser um exercício incômodo em termos de equilibrar impulsos criativos, a vontade de criar algo inteiramente novo e a necessidade de seguir o original. A marca visual do sr. Giger em “ALIEN” (e que muito contribuiu para o sucesso do filme) é tão forte e onipresente que tive medo de ser esmagado por ele e seu trabalho, se o incluíssemos numa produção da qual ele tinha mais direito de participar do que eu, de certo modo.
A 20th Century Fox gostou da história que apresentei e por isso me deu a oportunidade de criar o mundo que imaginei ao escrever. Aproveitei essa oportunidade e para a criação de efeitos especiais chamei desenhistas, escultores e técnicos com os quais eu já havia trabalhado, o que é muito natural, quando há necessidade de cumprir prazo e ater-se ao orçamento.
Outro fator de minha decisão foi o conflitante envolvimento do sr. Giger em “POLTERGEIST II”, que infelizmente não utilizou suas ideias tão bem como “ALIEN”.
Digo tudo isso para me explicar e me desculpar, com a esperança de que o sr. Giger considere a possibilidade de me perdoar por lhe abduzir seu “primogênito”. Se assim for, poderá surgir uma oportunidade de participarmos com respeito mútuo de um projeto inteiramente novo e original em que a única limitação seja sua esplêndida imaginação.
Sou, antes de tudo e sempre, fã de seu trabalho (uma litografia assinada do ovo alienígena encomendado por ocasião de “ALIEN” é um de meus bens mais preciosos).
Cordialmente,
James Cameron, 1987 (Cartas Extraordinárias. Org.: Shaun Usher. Trad.: Hildegard Fest, Companhias das Letras, 2013).
Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2022 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
— E a menina trabalha?
— Trabalho sim senhor, todos os dias. Estou trabalhando agora mesmo.
— Mas no que trabalha?
— Eu sou assistente editorial em uma editora brasileira.
— Então está cá temporariamente?
— Não, eu moro aqui em Portugal, mesmo. Já vai fazer uns quatro anos.
— E como é que trabalha para uma editora brasileira?
— Por trabalho remoto. Faço tudo pelo computador.
— Ah! É como os nómadas digitais?
— Não, não é como os nômades digitais.
— Como não?!
— É que esse tipo de trabalho que eu faço sempre foi pelo computador. Quer dizer… pelo menos nos tempos digitais, informáticos.
— Pois então! É nómada digital.
— Mas eu não sou.
— Trabalha em outro país e pode fazer tudo pelo computador? É nómada digital, sim.
— Mas não sou. Eu não tenho o estilo de vida do nômade digital.
— Que estilo de vida?
— Sei lá. Supergentrificar países, comprar trocentas casas e terrenos ao preço da chuva e cobrar aluguéis caríssimos, não contribuir com a economia local?
— Mas o nómada digital não precisa necessariamente fazer isso. Até tenho um amigo britânico que…
— Foi só um exemplo.
— Ainda acho que a senhora é nómada digital.
— Não sou, não. Eu nem tenho o visto para nômades digitais!
— Mas muitos não têm! Esse meu amigo não tem.
— Ele pode pedir.
— E a menina, não?
— Não, eu não posso, porque eu não sou nômade digital.
— E o que é que a desqualifica enquanto nómada digital?
— Minha renda mensal é inferior à quantidade mínima de euros que os serviços pedem.
— Mas isso é o valor estimado. Acho que eles aceitam mesmo assim.
— Mas eu não sou nômade digital, senhor.
— Ainda acho que é nómada digital.
— Eu não trabalho no que os nômades digitais costumam trabalhar.
— E no que eles trabalham?
— Não sei bem ao certo, para falar a verdade. No que esse seu amigo trabalha?
— Ele explicou-me uma vez. Não me recordo.
— Pois então. Acho que há trabalho remoto que se qualifica como nômade digital e outros que não.
— Mas ele mexe com o computador assim como você.
— Mas há muito poucos assistentes editoriais, senhor. Não somos assim tantos. E ele pode mexer no computador com, sei lá, programação. Processamento de dados. Essas coisas.
— E o seu não é esse coiso?
— Não, não é.
— A menina está aí com planilha aberta, e-mail aberto… isso é tanga. Faz o mesmo que o meu amigo.
— Olha aqui um livro aberto em PDF. Ele abre livros no computador?
— Por acaso não.
— Então. São coisas diferentes.
— E esses livros aí são virtuais? E-book?
— Não, a maioria vai só para impressão. Esse aqui não vai ter e-book.
— E imprime cá?
— Não mando imprimir, eu só verifico tudo para ir para a gráfica. Eles é que imprimem lá no Brasil.
— Então seu trabalho é só virtual. Digital. É nómada digital, vê?!
— Mas que mania! Eu não sou nômade digital. Para ser “nômade” eu precisava morar em mais de um lugar. Eu só vim do Brasil para cá.
— A menina migrou. É nómada, é.
— Mas eu nem vim a trabalho, vim estudar! Eu só quis ficar aqui depois dos estudos, só! Acho que o nômade tem essa coisa de ter contrato para trabalhar nos lugares específicos, não?
— Não. Esse meu primo não tem isso, não.
— Afinal, ele é primo ou amigo?
— É os dois. A menina é nómada e ponto. E que há de mal nisso?
— Eu não sou neoliberal para ser nômade digital. Não quero ser confundida com um neoliberal.
— Mas que eu saiba não tem nada a ver com política. Vocês, também, a meter a política em tudo… — Tem razão. Me desculpe.
— Estrangeira, ainda por cima. É nómada, é.
— Eu sei lá, eu… olha, não tenho o Instagram de um nômade digital.
— E como é o Instagram de um nómada digital?
— Ah, tipo… cheio de fotos de viagem. Comida chique. Gente saradona.
— Nada, essas pessoas estão nos cafés a trabalhar. O meu vizinho não faz isso do Instagram.
— Mas ele não era seu…? Ah, deixa estar. Olha, pode ser, mas eu tenho que estar ativa para o trabalho o dia todo. Os nómadas têm metas e essas coisas.
— Mas se terminam cedo, podem usufruir dos momentos de lazer. Já vi a menina a fazer isso.
— É claro que eu faço. Mas eu não sou nômade! Eu não sou neoliberal!
— Não é sobre política!
— Tá bem, tá bem! Fogo!!!
— Ai, que disparate!
— O senhor não para de me encher o saco com isso.
— Por que é que está tão nervosa?
— Porque eu não sou nômade digital. E nem quero ser.
— Se a menina não queria ser chamada de nómada digital, era só dizer.
— E faria alguma diferença? Tiraria isso da cabeça?
— Não. Eu estaria a mentir para si.
— Olha, senhor, eu não sou responsável pelo aumento do preço da habitação de Lisboa. Eu moro de favor, inclusive. Não tenho um MacBook nem um iPhone. Essas coisas, sei lá.
Editorial extraído da edição de setembro de 2023 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais,clique aqui.
A vida financeira do RelevO é dividida em quatro faixas. Por meio delas, estabelecemos metas de arrecadação, partindo do 1º dia do mês até a última semana – quando imprimimos o Jornal. Com este controle, conseguimos observar as quedas de arrecadação e os períodos de maior fluxo de caixa.
Ter um controle básico de entradas e saídas nos permite averiguar meses mais complicados e outros mais tranquilos, quando até podemos colocar contas em dia com antecedência ou planejar o aumento de tiragem. 2023 tem sido um ano mais complicado, apesar do cenário mais otimista previsto no início do ano.
Temos muitas especulações possíveis a respeito das dificuldades financeiras pelas quais passamos — e já falamos sobre isso diversas vezes, sob o risco reconhecido de sermos repetitivos. Contudo, queremos trazer um novo aspecto dessa faceta administrativa que tanto nos suga energia: a nossa falta de causa.
O RelevO, como alega nosso projeto editorial, não é financiado por nenhum partido, nenhum banco, nenhum coletivo literário ou grupo que resolveu ter um Jornal pra chamar de seu. Muito menos algum herdeiro entediado, infelizmente (se você é um, entre em contato conosco – não estamos brincando!).
Os motivos do nosso surgimento não são necessariamente nobres: vontade de ler; vontade de escrever (menos); vontade de encontrar diversão num mundo com tédio, mas sem herança. Será a falta de um propósito mais elevado a principal razão para causamos menos interesse quando estamos em dificuldades?
Seguindo a mesma lógica, mas pela rota contrária: será que as pessoas têm menos propensão a “ajudar” em comparação com participar de uma campanha vitoriosa? Isto é, se mascarássemos nossa contabilidade e concentrássemos nossas forças em parecer muito legais, um projeto mega impactante, será que conseguiríamos apelar para o “FOMO” de cada um? Quem quer financiar uma barca furada?
São perguntas honestas, não retóricas. Se tivéssemos as respostas, pouparíamos todos nós (como dito, não gostamos tanto assim de escrever). Sem muita paciência para estratégias, métricas, indicadores, buzz, conversão, leads, lead magnets, lides (“f*d*-se que a Britney Spears tá grávida de um cavalo”), metas, redes sociais em geral e, basicamente, qualquer coisa que permita alimentar a doença do crescimento na nossa realidade, seguimos assim. Isto é, com organização e disciplina, mas sempre meio à deriva. Os instrumentos são baratos e improvisados, mas familiares. Produzem melodia. Acompanhamos o baixista e nos viramos. Quando as luzes se apagarem e o bar fechar, não insistiremos. Ninguém vai se jogar no chão e espernear. Em 14 anos de existência, conseguimos evitar o proselitismo e a demagogia. Também conseguimos nos divertir. Parafraseando Paulo Leminski – o que, incrível e ironicamente, talvez nunca tenha acontecido nesse jornal de alma e CEP curitibanos –, isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar ao buraco. Uma boa leitura a todos.
Coluna de ombudsman extraída da edição agosto de 2023 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Só a inocência e a ignorância são
Felizes, mas não o sabem. São-no ou não?
Que é ser sem no saber? Ser, como a pedra,
Um lugar, nada mais.
“Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa.
(Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa). Lisboa: Ática, 1952
— Tudo o que eu vou fazer tá errado. Tudo o que eu faço tá errado (3x). Tudo o que eu penso tá errado. Tudo o que eu faço tá errado. Se eu faço isso, tá errado. Se eu faço aquilo, tá errado. Se eu converso com Fulano, tá errado. Se eu pego esse trem aqui, tá errado. Se eu fecho a porta, tá errado. Se eu converso com o outro, tá errado. Se eu converso com outra pessoa, tá errado. Tudo tá errado. Fala o que é que eu acertei até hoje? Nada. Nada.
— Inclusive esse momento agora, eu acho que você tá errado.
Caio e Rodolfo, BBB21
Car_s leitor_s, a literatura é uma coisa linda. É linda de verdade, agora é muito sério. Novas possibilidades se abrindo à frente dos olhos, universos em constante construção, transversalidades com outras áreas do conhecimento, os encontros e afetos, a profundidade, a cultura, a representatividade, as toadas de muitas bandeiras importantes. É mesmo bonito. Demais. Por isso mesmo, aproveitando para trazer novamente um texto sobre as pessoas que fazem esse campo — e dando nomes aos bois, às vezes; e denunciando, a todo o tempo — porque literatura já as próximas páginas vão trazer sempre, e sempre muito bem. E antes dele, faço um convite-sugestão que trago como lema pessoal e que pode servir para alguém: evitar ao máximo ser mais uma dessas tantas pessoas chatas para estragar tudo isso, que é tão bom e bonito, com (por falta — no momento — de outro nome em português) o famigerado gatekeeping. Também chamado de “se você não é X, não pode entrar”, “se você não leu Y, não pode entrar”, ou até “não pode se sentar conosco na hora da merenda”.
Há uns 15 anos, quando eu passava tardes inteiras escrevendo um ou outro textinho para criar coragem de publicar no Recanto das Letras (eventualmente rolou), achava que os escritores eram todos super gente boa. Que cumprimentavam o porteiro, agradeciam o carteiro, olhavam o pedreiro com admiração e não repulsa, não tinham preconceito, eram pessoas gentis e bem educadas. Todos. Até receber as primeiras críticas de marmanjos que tinham idade para ser meus avós e que não diziam nada a respeito do texto. Só que eu ainda tinha que “comer muito arroz com feijão para chamar esse textinho aí de crônica”, mas sem explicar o motivo; de gente me cobrando leituras, dizendo que eu não pertencia àquele lugar, que aqueles assuntos eram desinteressantes. Mas de uma maneira bem porca, arrogante, mesmo. Cobra criada de internet, não me abalava com essas coisas, não. E já achava que essa coragem seria só por causa da tela, do anonimato. Fui começando a conhecê-los pessoalmente, agora já adulta, e não mudou muita coisa, não, da desilusão que eu tive quando criança. Porque as cobranças agora se aprofundam — já que uma pessoa cresce e tem que seguir exatamente o caminho padrão que todo mundo seguiu, é claro — para leituras obrigatórias (e não só de livros literários, é dos acadêmicos também, e filosofia, sociologia, política, psicanálise, aromaterapia, tudo), que aparentemente todo mundo leu menos você; de não conhecer isso ou aquilo. E do BBB. Ai, caramba do BBB, das discussões ao redor do BBB todo ano… “Ai, eu tenho alergia, não vejo, coisa de gente burra, programa baixo, inculto, pobre e vulgar, da plebe, tenho mais o que fazer!” e vai lá passar horas no Face.
Pobre escritor que um dia resolve dizer que assistiu ao BBB da noite passada. Que não perde um episódio da novela das sete. Que chora com propaganda, ouve Biel do Furduncinho, fala “iorgute”. Não pode, não, uai. Onde é que já se viu alguém que quer ser escritor se prestar a esse serviço? Tem que assistir a filme difícil todo dia, ler 200 páginas/hora com um linguajar refinadíssimo. Ter tempo para isso e para ser dum azedume horroroso nas redes sociais. Essas pessoas adoram dizer que não perdem tempo com bobagens. E talvez não percam. Mas o que é bobagem, mesmo?
Bobagem é esse cansaço, que não teria razão de ser se as pessoas não se incomodassem tanto com coisa besta. Essa necessidade de dizer que o que é popular é burro ou de/para gente burra. Isso porque ainda não falei direito das obrigações de leitura, que é o que deu o mote ao título. Chega a um ponto em que a gente se sente tão sem graça de estar por fora das referências e citações da pessoa que a gente finge. “Conhece o Fulanóvski?”. “Ah, li sim, claro”. Depois do primeiro “mas ele é cineasta”, passei a dizer só que “conheço vagamente”. Já me calhou de ter fingido que conhecia tal coisa e a pessoa dizer que tinha acabado de inventar aquele nome. Pedi mil desculpas, mas que a cobrança e o climão pelo desconhecimento já davam tanto cabo de mim que passei a mentir sobre tudo o que é conversa intelectual. Depois disso, meio que vou dosando, só falando que li as coisas de que já ouvi falar, ao menos. E não precisaria mentir tanto se as pessoas ficassem de boa com o fato de você não conhecer todas as coisas. “Já leu o Fulanóvski?”. “Não, não conheço…”. “Como assim não conhece? Não deu na ementa do seu curso? Nossa, mas é leitura obrigatória!”. Com um ar assim de quem viu fantasma, sabe? Que constrangedor, gente. Parem com isso, que coisa desagradável… É só falar “ah, tudo bem” e dar um resumo bacana do que se trata aquilo. Apresentar, deixar a pessoa curiosa para ler. Simples, né? É tão gostoso apresentar coisas novas para as pessoas. Deveria ser uma experiência legal, de partilha, não de hierarquia. Ah, e já que adoram recomendar leituras, leiam o ambiente, também; porque se não despertou interesse, para que ficar dissertando sobre algo que não tá assim tão interessante para alguém?
Querid_s leitor_s, assistam a reality shows duvidosos depois de terminar de ler aquele calhamaço daquela obra completa. Vão aprender a dançar a música da sanfoninha da Anitta depois de voltar daquele evento maroto. Mas é o costume: se não quiser, também não precisa.
Editorial extraído da edição de agosto de 2023 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link.Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Na condição de reféns e adoradores dos ciclos de 30 dias em que vivemos, chegamos em agosto, delimitando, assim, a última edição do ano 13. Na condição de limpadores de calhas que somos, de tentar desentupi-las enquanto o tempo está firme, estamos na lida há quase uma década e meia. De fato, os nossos anos editoriais se encerram no mês 7 por conta da fundação do Jornal, em 3 de setembro de 2010, uma data um tanto convencional, pois não sabemos dizer com tanta precisão assim quando publicamos a primeira edição.
Como falamos muito de passado e de dificuldades do presente, o que esperar de nós para o futuro, além de seguir publicando e enfrentando ciclos? Pode parecer banal, mas, dentro da lógica dos hábitos que circundam um periódico de circulação mensal, surgem sempre novas ideias ou simplesmente novos jeitos de fazer (para evitarmos a monotonia). Esta edição que você tem em mãos é um exemplo visual disso e ilustra bem nossos propósitos.
Desde a primeira edição, o RelevO aposta em publicar artistas pouco óbvios e que possam ser adaptados à nossa plataforma, isto é, o papel-jornal – que tem suas especificidades e, vamos lá, suas manias. Gostamos muito de traços mais minimalistas, por exemplo, não porque seja a corrente que nos conecta com o Sublime…, e sim por motivos de impressão, que tende a escurecer os traços originais. Também não somos um jornal em p&b somente por acharmos bonito: o custo é consideravelmente menor.
Pela mesma via, fugimos da fotografia, ou melhor, usamos com parcimônia pelo potencial de desfoque, de apagamento e de perda de intensidade da imagem na mudança do digital para o analógico. Foram raras as edições em que ficamos realmente contentes com a migração de plataforma. Por outro lado, também recebemos pouco material fotográfico interessante, que atenda às nossas fugas da obviedade imagética. Em 2023, recebemos fotos de cachoeiras, um ensaio de pets, retratos de missa e alguns nudes que não eram nudes convencionais, pois classificados como intervenção sensorial-artística pelo performer.
Nesta edição, resolvemos voltar ao tempo que nos enovela e capturar alguns artistas de um período sem filtros tão potentes a partir de comandos direcionados. Perguntamos, procuramos, observamos, achamos imagens boas em alta resolução. Foi uma resposta à IA (não foi) auxiliada pela própria IA, que nos guiou. O resultado são pinturas que se conectam aos textos por intervalos de mais de 400 anos e conferiram ineditamente um peso singular ao nosso projeto. Elas têm como eixo o flamengo (não o do Rio). Talvez façamos mais vezes, mas sem regularidade definida. Se você for pintor, gravurista, quadrinista, entre outras modalidades possíveis de expressão pela imagem, nos encaminhe seu material, mesmo.
Por fim, quase de passagem, estamos, mês a mês, voltando à distribuição pré-pandemia do RelevO —para se ver o efeito do período em nossa logística. Em agosto, estamos novamente retornando para Santa Catarina, com a abertura (e reabertura) de 15 livrarias e pontos culturais, que distribuirão gratuitamente o nosso periódico. Quem banca isso? Você, assinante, que, com seu aporte acima da assinatura básica (R$ 70), permite que realoquemos recursos para outros espaços. A partir de uma parceria local, também começamos a distribuir exemplares para toda a rede de escolas municipais de Curitiba, com mais de 180 unidades. Em virtude disso tudo, subimos nossa tiragem para 4 mil exemplares, assimilando um prejuízo um pouco acima do nosso habitual.
Sonhamos, entre o nosso cobertor mensal de entradas e saídas e a nossa busca desvairada por tocar nas vestes do paraíso, com cinco direções:
Mandar o RelevO para todas as bibliotecas públicas e comunitárias do Brasil.
Enviar o Jornal para ao menos 15 pontos culturais de cada estado. Hoje, conseguimos fazer isso em apenas quatro.
Participar mais ativamente do circuito de feiras para ampliar a distribuição direta do periódico.
Ter apenas 1 (UM!) financiador que nos perguntasse “com este valor aqui vocês realmente conseguirão ser o jornal de literatura com maior distribuição do Brasil?”. Sim, acredite. E este valor não chega nem ao triplo do que gastamos hoje.
Na limitada e esvaziada cabeça deste editor, uma música – entre tantas outras – costuma ser especialmente acionada no estado padrão da cognição. Sem esforço, sem tentativa, sem direcionamento.
Muito provavelmente, fui apresentado a ela por meio do filme Lost Highway (Estrada Perdida, 1997), de David Lynch1. A quem já assistiu, ela toca naquela cena. A quem não assistiu, sugiro ir diretamente ao filme e ignorar o vídeo abaixo — que sequer é um notável spoiler, mas estraga o encantamento do primeiro contato. (Não ajuda que, neste momento, o filme não esteja disponível em nenhum serviço de streaming.)
De todo modo, a composição a que me refiro é ‘Something wicked this way comes’ (“algo sinistro vem nessa direção”), do inglês Barry Adamson (ouça melhor aqui ou no player mais abaixo). Já no título, trata-se de uma colagem de Macbeth, também usada por Ray Bradbury:
2nd Witch:
By the pricking of my thumbs,
Something wicked this way comes. [Knocking]
Open locks,
Whoever knocks!
[Enter Macbeth]
Macbeth:
How now, you secret, black, and midnight hags!
What is’t you do?
E neste mundo onde tudo é colagem (ou remix2), o “algo perverso” de Adamson é composto primordialmente de samples. Vamos a outra colagem, agora menos shakespeariana (eufemismo para “tiramos do ChatGPT”):
Um sample musical refere-se a um trecho de áudio retirado de uma gravação existente e incorporado em uma nova composição musical. Esses trechos podem ser retirados de qualquer fonte sonora, como músicas, discursos, filmes, sons ambientes e qualquer outra forma de registro de áudio. A prática de utilizar samples é bastante comum na produção musical contemporânea e tem sido uma parte essencial da cultura da música eletrônica, hip-hop, rap e outros gêneros.
A partir da técnica de sample, um trecho tão curto repetido, esticado ou dobrado se soma a outros trechos nada relacionados e, juntos, eles compõem a base de outro terreno. Ou, como resumiu Elvis Costello, “você pega os pedaços quebrados de outra emoção e faz um brinquedo novo”.
O exercício que faremos hoje poderia ser testado com uma infinidade de músicas. Poderia valer verdadeiras teses com discos como Endtroducing (DJ Shadow, 1996), Since I Left You (The Avalanches, 2000) ou Donuts (J Dilla, 2006), se é que essas teses já não existem. Enfim, há exemplos mais expressivos, que não apagam a beleza que dissecaremos aqui3.
Pois bem, sobre ‘Something wicked this way comes’. Há algo de hipnótico nessa joia, o que certamente chamou a atenção meditativa de Lynch a ponto de convencê-lo a inseri-la em seu filme (e de conquistar meu cérebro pouco perspicaz). A composição é direta: logo no primeiro segundo, conhecemos o loop da batida que nos acompanhará ao longo da jornada de quatro minutos e meio.
Segundo o Who Sampled, bíblia para esse tipo de atividade, a música de Barry Adamson contém quatro samples reconhecíveis, na seguinte ordem de aparição (clique nos títulos para ouvir):
A base de ‘Something wicked’ é, claramente, ‘Spooky’, de Gary Walker (um dos Walker Brothers). Basta ouvir ambas para testemunhar – evitaremos a redundância da explicação. Se cultivássemos a ideia ingênua e tola de fidelidade artística, poderíamos ser levados a crer que Barry Adamson copiou (num mau sentido) uma música original alheia. E quem sabe até desmerecêssemos essa reutilização, embora bastante incrementada a seu modo.
Porém, se nos atentarmos a ‘Spooky’, perceberemos (ou descobriremos) que se trata de um cover: a versão original (ou inicial…) pertence ao grupo Classics IV. Então concluiremos, talvez com menos julgamento, que Gary Walker & the Rain também são copiadores!
A brincadeira não se encerra aqui. O vocal onírico de ‘Something wicked’ (tcha-ra-ra-ra…) pertence à francesa Françoise Hardy, em ‘Le temps des souvenirs’, que, quem diria, adaptou a seu modo – afrancesando e enchendo de charme – a música ‘Just call and I’ll be there’, de P. J. Proby (1964). Outra copiadora! Mas só se pode copiar a quem se ama…
Por fim, na primeira pausa de ‘Something wicked’ (1min11s), antes de o loop recomeçar, escutamos um trecho de ‘Blue lines’, do Massive Attack (1991). O grupo de Bristol não nos decepcionaria (jamais), uma vez que sua música contém dois samples gritantes: ‘Sneakin’ in the back’, de Tom Scott & The L.A. Express (1974); e a guitarra de ‘Rock Creek Park’, dos Blackbyrds (1975). Pior: se destrincharmos cada uma das músicas citadas, chegaremos em outro enorme jardim de veredas que se bifurcam. ‘Sneakin’ in the back’, por exemplo, já foi sampleada nada menos que 251 vezes – incluindo em ‘Capítulo 4, Versículo 3’, dos Racionais MC’s.
E assim retornamos a ‘Something wicked this way comes’, agora cônscios de sua arquitetura múltipla, hipertextual. Misturando um pouco de Gary Walker, Jack McDuff, Françoise Hardy e Massive Attack, nasce um novo filho – misterioso, inebriante, ativo.
Para criar a trilha sonora do lobby da minha mente, Barry Adamson recortou peças e as juntou a seu gosto. Não fez nada de novo (“Then again, who does?”) e, ao mesmo tempo, tudo que fez foi novo. Não existe criação pura no tecido recursivo da criatividade.
Confesso que não acredito no tempo. Gosto de dobrar meu tapete mágico depois do uso, de forma a sobrepor uma parte do padrão sobre outra. As visitas que tropecem. E o maior prazer da intemporalidade – numa paisagem escolhida ao acaso – é quando paro entre borboletas raras e as plantas de que se alimentam. Isso é êxtase, e por trás do êxtase há algo mais, que é difícil de explicar. É como um vácuo momentâneo para dentro do qual corre tudo quanto amo. Uma sensação de unicidade com sol e pedra. Um arrepio de gratidão a quem possa interessar – ao gênero contrapontista do destino humano ou aos fantasmas ternos agradando um mortal de sorte.
Vladimir Nabokov. Fala, Memória, 1967 (trad. José Rubens Siqueira; Alfaguara, 2014).
Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2023 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Olá! Somos a Panelinha Literária Inc., e agradecemos que tenha adquirido um de nossos produtos mais vendidos, a incrível skin de “Escritor Contemporâneo Padrãozinho”, esse último lançamento de grande sucesso entre os círculos literários. Aproveitamos para ofertar uma skin também disponível em versão NFT, bastando digitar o código “NuncaGanheiPrêmio” em nosso site para resgatá-la e ativá-la no metaverso.
Esta skin é composta por:
1. Um microfone com má sonoplastia predefinida, para ler seus poemas geniais (ainda que não eram, agora vão ser — geniais, surrealistas e subestimados!);
2. Cara de bunda (não modificável);
3. Três divórcios (de preferência com meses de distância entre cada um) e uma esposa-troféu (opcional);
4. Um widget chamado “Ego de Escritor Contemporâneo Padrãozinho”, que deve ser inserido pela extremidade final do intestino e inflado manualmente.
Sejam bem-vindos, portanto, ao manual de sua nova skin, que também coincide com o manual de como participar de eventos literários; afinal, o produto não terá efeito se seu primeiro teste não for em um evento.
OBSERVAÇÕES IMPORTANTES ANTES DO USO DO PRODUTO:
1. Para ativar o produto, basta dizer “Foucault, Derrida, Deleuze!”, 3 (três) vezes, com um leve sotaque bêbado e/ou senil. Se ainda não sabe fazer o sotaque organicamente, não se preocupe, basta adquirir a skin “Escritor Contemporâneo Bêbado”. Gesticulações excessivas — com as mãos colidindo em pessoas que estejam portando uma taça de vinho tinto — garantem uma ativação mais rápida do produto.
2. Para mais êxito do produto (sobretudo de seu widget), confira se tem presentes, na sua estante, ao menos 5 (cinco) livros de autores bielorrussos ou de alguma nacionalidade considerada “exótica” para o Brasil. É obrigatório que sejam originais. Se não souber ler em língua estrangeira, pedimos que adquira os livros em sebos, para dar o tom de que estão gastos porque você os leu.
3. A bateria de sua skin vai durar mais se você curtiu, na última hora, ao menos 15 (quinze) poemas no Facebook sem ter lido um único verso, a segundos de sua postagem. Vale também 3 (três) corações em fotos de perfil de autoras mulheres (postadas há meses, para comprovar o stalking e o não-ligar para o trabalho literário delas, é natural).
4. Também para maiores êxitos, é necessário que não tenha recebido nenhum (zero) prêmio literário e tenha escrito ao menos 1 (um) texto passivo-agressivo dizendo que não estava amargurado nem magoado, mas estava, muito. Bônus se tiver dito mal dos vencedores — direta ou indiretamente, mas preferimos indiretamente, com uma “codificação” que só você acha que deu certo — e chorado em posição fetal ao abrir a lista de finalistas.
5. O mestrado em alguma área de Letras é obrigatório. A famosa “carteirada”, como “você sabe com quem está falando?” e humilhações a estagiários(as), sobretudo envolvendo machismo e paternalismo, é um fator preferencial para garantir o bom trabalho de seu novo produto.
6. Esta é uma das perguntas mais frequentes: sim, é preciso que tenha publicado ao menos 1 (um) livro com arte de capa mediana em edição de autor, após longos conflitos com o(a) editor(a) e com o(a) designer de sua editora anterior para que saísse de acordo com a sua concepção estética bastante refinada e superior. Nós acreditamos nisso. Nós acreditamos em você.
PASSO-A-PASSO:
1. DATA. Antes de ativar o produto, tenha em mente — e em seu calendário — o próximo evento literário para participar e, enfim, fazer a estreia de sua skin. Saraus menores e slams não contam, são proporcionalmente muito pequenos e corre-se o risco de uma expulsão. Estamos almejando eventos maiores, como coquetéis de academias literárias, lançamentos de autores relativamente conhecidos e eventos culturais em cidades a mais de 100 (cem) quilômetros de distância de sua residência (excluem-se moradores do eixo Rio-São Paulo).
2. APARÊNCIA. Separe suas roupas mais pseudocult possíveis. Chapéus, sobretudos pretos e castanhos (bônus se o local for quente), mocassins, bolsas a tiracolo — mas em couro legítimo. Corte seu cabelo em franjinha, se for mulher. Óculos escuros, sempre, mesmo à noite. O objetivo é parecer o mais inacessível possível, evitando que plebeus (também chamados “leitores comuns, que não escrevem, só leem, mesmo”) se aproximem de você, frustrando a estreia do produto.
3. MATERIAL. É obrigatório trazer consigo ao menos 3 (três) livros autorais publicados, todos em sua mala de couro (ver tópico 2). Antologias também contam como livros, desde que tenha sua seção marcada com marcador de páginas. Leve seus poemas mais conceituais ou sua prosa poética incompreensível — textos que ninguém entende a não ser você, para poder usufruir da característica de “subestimado” de seu produto.
4. MATERIAL NÃO-FÍSICO. Na bagagem mental, é imprescindível trazer referências e citações — sobretudo citações — com você. Mas nada de literatura ou estudos de cultura. Deixe para trás o Pound, o Benjamin, o Barthes. Psicanálise e teatro é o que está na moda agora entre os literatos, ainda que poetas e estudiosos de poesia. Estamos pensando em Artaud, Lacan, Freud. Não precisa ter lido nenhum deles, não se preocupe.
5. TRANSPORTE. Alguns eventos maiores proporcionam transporte para o local do evento. Aceite sempre, mesmo que isso tire a vaga de alguém que não tenha dinheiro para ir até lá. Pobres? Fora. O transporte é o começo do networking, e isso é mais importante do que qualquer outra circunstância empática. Chegue algumas horas antes, ninguém tem paciência para atrasadinhos. Foda-se se você precisa tomar 3 (três) ônibus para chegar ali. Acorde às 4 (quatro) horas da manhã.
6. NETWORKING. Dizíamos que o transporte é o começo do networking —e é. Faça uma busca detalhada dos participantes do evento antes do dia, para saber a feição e o currículo de cada um. Procure sempre os editores (mas não nos independentes, esses fracassados; queremos de editora média-alta para cima) e os professores universitários, esses podem colocar estagiários para fazer pesquisas sobre seu trabalho literário (e creditar como se fossem deles, claro). Também pode arriscar um caso amoroso com alguma escritora jovem nesse trajeto. O próximo ponto tem uma informação crucial para isso.
7. VINHO. Deixe para trás toda a sua medicação de hipertireoidismo: eventos exigem que você fique bêbado (se esse passo for muito complicado, a skin “Escritor Contemporâneo Bêbado” é a ideal para você) para flertar — também chamado “assediar”, mas não gostamos dessa palavra — com as escritoras jovens e as estudantes universitárias que apareçam por lá. E para poder suportar aquele poeta chato mais velho que fica colando no seu pé toda vez.
8. LEITURAS MISTERIOSAS. Ensaie as suas leituras para o mais dramático possível. A partir do momento em que você pisa nesses eventos, você se transforma em um diseur de poesia. Atue, preferencialmente sem saber atuar. Não precisa decorar o texto; na verdade, as mãos trêmulas segurando o livro ou o papel, ainda após os ensaios, são um fator preferencial.
9. AFTER PARTY. Essa parte é mais importante do que o evento em si. Aqui você encontra o networking mais pesado de todos. É a parte que você consegue o WhatsApp daquele cara famoso que vai divulgar o seu livro. Daquela novinha com daddy issues que romantiza bastante a sua existência boêmia. Você é o diabinho no ombro direito.
10. A DESPEDIDA. Você agora está totalmente sem saco para os abraços e beijinhos de senhoras de meia idade, mas recomponha-se. É preciso ser mais simpático do que quando você chegou. Sorria sem culpa de não ter feito nada. A culpa é da skin.
POSSÍVEIS SEQUELAS APÓS O USO:
1. Uma intimação por assédio sexual (severa). 2. Um linchamento no Facebook (média). 3. Pedidos ignorados de divulgação e promoção de sua obra devido a insistência e chatice pós-bebedeira dos indivíduos que assim prometeram (branda). Faça uso de skins apenas sob indicação. Mas se não quiser, não precisa.
Editorial extraído da edição de julho de 2023 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link.Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Prompt: Escrever sobre a importância dos leitores que divulgam presencialmente o Jornal, distribuem seus exemplares, presenteiam com assinaturas e nos marcam nas redes sociais, ampliando, assim, a nossa malha de contatos e de circulação.
Resultado: Um mundo de risadas e negócios florescentes: No universo dos clientes divulgadores, o exagero é a moeda corrente e a diversão é o objetivo final. Eles transformam o mundano em uma comédia desenfreada, inspirando outros a seguir seu exemplo. Enquanto empresas colhem os benefícios da divulgação entusiasmada, todos nós desfrutamos de risadas e momentos de leveza em um mundo que muitas vezes é excessivamente sério.
Prompt. Contar aos leitores sobre os nossos planos de aprender a programar (não fazer programa) para compreender melhor as possibilidades de expansão do mundo digital, além de, finalmente, ter uma presença nas redes sociais mais coerente com o potencial todo envolvido.
Resultado: A Importância da Programação de Tecnologia para Escritores: aprender programação de tecnologia pode trazer uma série de benefícios para escritores, ampliando suas habilidades e oportunidades no mundo literário. Além de oferecer uma compreensão mais profunda sobre o funcionamento dos dispositivos e sistemas digitais, a programação pode melhorar a produtividade, permitir a criação de projetos interativos e abrir portas para novas formas de contar histórias
Prompt: Combinar uma citação do Conde de Lautréamont [“Belo como o encontro fortuito entre uma máquina de costura e um guarda-chuva em uma mesa de dissecação”] com outra de André Breton [“O homem que não consegue visualizar um cavalo galopando sobre um tomate é um idiota”]; inserir uma camada do filme A vida de Brian.
Passamos, de fato, do meio do ano. Aqui estamos e permanecemos, entre a planilha e o delírio, movendo um jornal de papel que nada mais faz do que investir nas ligações diferentes de palavras e imagens. Orgânico ou sintético, quem sabe tudo não seja estímulo e resposta.
Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2023 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Car_s leitor_s, vocês não estão exaust_s da vida burguesa que tem aparecido nos romances, nos poemas, nos contos? É tão estranho pegar num livro e se deparar com um jantar com comida flambada e espumante, a combinação de uma viagem pra Paris na mesma semana com umas amigas (como se não tivesse todo o rolê de ter que combinar com todo mundo, ver que dia fulana pode, marcar folga, fazer uma pesquisa de preço mais barato e marcar pra dali a uns 6 ou 7 meses, ou algo assim), uma corrida na orla da praia logo de manhã sem um sustinho— nem falo de assalto, poderia ser uma topada numa pedra, sabe? —, um galã chamado Pierre Albuquerque ou Brad Alcântara, do nada, no Brasil… Já é tão comum que chega a ser estranho. Porque é tudo falado com uma naturalidade, imagina! É normalíssimo a dona Cindy Bittencourt dar de presente uns bombons de licor de cereja da Indonésia oxidada e conservada a frio com chocolate suíço 70% cacau orgânico biológico e hidropônico para a sua mãe, “que ela gosta tanto, são seus favoritos”! Romance de vida de herdeiro (infelizmente — e sobretudo — de herdeirA), sem boleto pra pagar, sem mercado pra fazer, que não chora pela alta do preço dos tomates, que freta um jatinho em 5 minutos. Que não é fudido. O máximo que pode acontecer nessas histórias é talvez não ter pão integral para comer no lanche. Descobrir que um gostosão rico que a protagonista conheceu numa balada (de rico, novamente), cujo mapa astral suuuuper bate com o dela — inclusive, ela fez ali mesmo, no meio da boate, e o rapaz nem fugiu, vê só! —, tem uma ex que ele não supera. São uns problemas ridículos apresentados como se fossem problemões. Eu só consigo imaginar que quem escreve isso não precisa sair para trabalhar, mesmo. O romance de herdeiro não fica só no romance, é literalmente escrito por quem não precisa acordar às 5h40 pra pegar condução. Pede almoço e jantar pelo aplicativo. Paga “mocinho” para ir ao correio por si. Tem um gato bengal. Não dá bom dia para a faxineira do prédio. Engraçado é que a gente consegue “ler” isso nos personagens que a pessoa cria, porque também é tudo um bando de gente chata e entojada, com diálogo medíocre, que acha que a vida gira em torno do próprio umbigo. Não sei se cheguei a mencionar por aqui a classe do rico que paga pessoas (literalmente paga) para estar no meio literário, oferece jantares em restaurantes chiques, elabora eventos inteiros com um nome bem pseudocult para uma galera que ninguém conhece, faz seu networking safado para caber bem grandão na rodinha, suuuuper aclamado e respeitado em seu terninho feito sob medida, enquanto escreve, sei lá, num estilo meio Cesário Verde meets escritório do papai para o rapazinho no ócio leite com pera e iogurte dietético.
Acho que quase todos os textos do RelevO da edição anterior se ligam por essa linha mágica que é a vida real, a vida acontecendo. E isso não é necessariamente chato, vamos parar com essa teoriazinha, também, né? “Ah, não quero ler nada que me lembre a minha vida, que já é tão enfadonha”, poxa… O problema não é da literatura ser “do cotidiano”, é seu. Tem gente tão, mas tão chata que não aguenta ler um “asfalto”, um “cocô” num poema, costumam ser os mesmos que criticam poesia descritiva/narrativa porque “não é poesia, é prosa poética”; bando de gente que não superou que as caretices são minoria agora, a trupe dos agarradinhos ao mundo mágico do lirismo pretensioso dos que nunca lavaram um copo na vida porque a esposa faz tudo em casa. Nem tudo o que é distante da nossa vida cotidiana é legal; na verdade, acontece muito o contrário (e isso também pode ser lido por “nem toda literatura fantástica é legal”, muita não é, só imita o Tolkien e vem de uma galera que passa os dias no WattPad lendo adolescentes tristes e iludidos para pegar inspiração), a coisa ser tão desconexa da realidade que chega a ser um saco. E nem todos os cotidianos são os nossos. Porque também não é todo dia que a gente tromba, pessoalmente, com a poetinha arrogante de bairro que escreve uns poemas ridículos de tão senso comum que são — e com uma sacanagem merecida (olha o guilty pleasure e a sedezinha de vingança aí!) com ela —, com as clientes-sinhás-nossas-senhoras da manicure, com as vizinhas adúlteras de meia-idade se confessando ao padre, com o Alzheimer da dona Linda. Tem que vir alguém contar isso e mandar para o nosso querido jornal. Contar da perspectiva do fudido, mesmo. Nem toda literatura é para fugir, para salvar, para ir longe. Muita é pra geral ficar puto, sair com dor de cabeça, ler como se fosse o desabafo de alguém que tá farto, assim como quem a lê. “Mas até tem rico que sabe escrever”, é verdade. Ainda mais antigamente; eram os que mais publicavam, tinham o dinheiro e os contatos certos, e o talento — boas vezes — também; tinham a escolaridade certa, o tempo de leitura certo, o “modo de ver o(s) mundo(s) que não o seu próprio” também, e isso tem lá a sua graça. Atualmente também tem. Isso não é um manifesto contra os ricos, é contra os bestas, mesmo.
A edição passada foi muito, muito boa, apesar de ter pouca poesia originalmente em português, mais tradução, mas as traduções também estão excelentes. Tivemos o conto “A Poeta”, de João Alexandre (acredito que esse protagonista tenha vingado todos aqueles que gostariam de tentar mostrar alguma farsa por trás dos poemas curtinhos e suas autorias — eu estive em alguns grupos desses poetas dos “curtinhos” na minha adolescência e olha, o plágio, a apropriação de ditados amplamente conhecidos e populares para si, como se fossem de autoria del_s, com assinatura estilizada e tudo; a mania de superioridade d’A Poeta em questão são reais, bem reais, e agem como se estivessem escrevendo o suprassumo da literatura contemporânea, e são só coisas que ouviram na rua —, mas aqui deixo um adendo, porque vi alguns desses poetas crescerem, e apesar do início ter sido meio duvidoso, evoluíram bem em suas respectivas literaturas. Nem tudo é amargura, né?); “Maria do Rosário”, de Iara Sydenstricker (muito bom, fez um cruzamento bem legal entre denúncia e beleza, e teve um ótimo fechamento); Audre Lorde, traduzida por Rafael de Arruda Sobral (que traduz bem até a forma, ele é um ótimo tradutor; há trabalhos dele em revistas como Mallarmargens e Escamandro, pra quem quiser ler mais); “A beata”, de João Paulo de Barros (aquela dose genial de exposição da hipocrisia das beatas católicas, sempre bem vinda, e uma escrita boa, gostosa demais de ler); Friedrich Holderlin, esse querido atemporal que meu-deus-do-céu como o homem escrevia bem, traduzido por João Paulo Andrade; uma seleção de poemas de Ivan Junqueira por Lucas Silos (muito boa curadoria); e o conto (ou crônica, pode-se considerar, também) “Helena, sharmuta”, por Jennifer Cabral. Também contamos com o projeto gráfico muito bom do André, com ilustrações de um puta bom gosto.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Manuel Bandeira
Porque não tem graça nenhuma o lirismo que não seja libertação, tem? Car_s leitor_s, nos vemos no próximo texto. Sejamos livres! Mas se não quiser, não precisa.
Editorial extraído da edição de junho de 2023 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link.Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
O Jornal RelevO, em um esforço quase acima de suas capacidades papelísticas, não mencionará, em seu texto-apertura de junho, as causas e os efeitos de nossas dificuldades financeiras. Falaremos de música.
Quando fundamos o Jornal, em agosto de 2010, desejávamos ser um periódico de cultura, sobretudo de literatura, principalmente pela relação (tóxica) do editor com a escrita, mas também queríamos publicar textos sobre música, cinema, teatro, ensaios, aleatoriedades (essa palavra boba…) divertidas para quem estivesse em busca de um texto saboroso.
Criando crônicas, perfis e obituários, o editor ocupava com regularidade um espaço que podia ser destinado a outros escritores e escritoras, usuários melhores da língua portuguesa. Felizmente, o hábito de preencher obrigatoriamente as páginas com o próprio nome foi abandonado com o tempo (ou com a maturidade). Aí já estávamos em 2014 e começamos a abrir espaço para o humor nas páginas centrais, sem precisar destacar quem escreveu, RG, CPF, se estudou na USP. Talvez tenha começado nesta época a nossa aversão a bios e a nossa busca por diversão sem pedigree.
Reparamos também, ao longo desses quase 13 anos, que sempre publicamos muitos textos com relação direta com a música, de relatos de festivais a trechos de canções na contracapa. Nunca assumimos essa faceta como um de nossos norteadores editoriais. Não sabemos dizer bem o porquê, mas sentimos que este é o momento de nos entendermos melhor com o passado e o futuro de nossos desejos, aprofundando nossa relação entre música e literatura.
A música sempre fez parte do Jornal como uma espécie de região sem fronteiras, aberta às experiências, uma ferramenta de conexão. Recentemente, em abril, publicamos um especial de quatro páginas sobre o Skank escrito pela Marceli Mengarda, responsável pela Burocrata Carimbos e projetista gráfica da página impressa da Enclave – que, aliás, trata de música com apuro (não confundir com apuração) e regularidade.
Queremos abrir, portanto, mais espaço em nossas páginas para relatos peculiares, quem sabe em um reencontro entre texto e ritmo. Notamos, ainda, uma notória falta de cobertura musical um pouco menos… como podemos dizer… caça-clique. (Não podemos esquecer o nosso peculiar projeto, o sensacional Brazilliance, descontinuado – por ora – para descanso do alemão.)
Nesta edição, trazemos um relato de quatro páginas sobre a nossa cobertura do C6 Fest, que aconteceu em São Paulo entre 19 e 21 de maio. O evento teve Kraftwerk e Underworld como os líderes da programação. De modo geral, gostamos muito de música, gostamos de música eletrônica e acreditamos que os relatos de quem estava lá podem proporcionar experiências interessantes para os nossos leitores. Esperamos que se divirtam.
Prompt: “Cassino medieval mas futurístico onde um homem russo aposta a vida na roleta (representado por Botticelli)” — DALL-E.
“Por mais ridículo que seja eu ter esperado obter tantas coisas na roleta, me parece ainda mais ridícula a opinião rotineira, aceita por todos, de que é tolice e absurdo esperar alguma coisa do jogo. E por que o jogo é pior do que qualquer outro meio de ganhar dinheiro, por exemplo, digamos, o comércio? É verdade que, de cem que jogam, só um ganha. Mas o que é que eu tenho a ver com isso?”
Não faz muito tempo que algo mudou na nossa relação com os esportes.
Casas de apostas conquistaram terreno na internet, então dominaram os espaços publicitários, depois os estádios de futebol, depois os uniformes. Compraram licenças de campeonatos. Palavras (esses sintomas infalíveis) emergiram: bet, green, odds. Com os atalhos tecnológicos de que dispomos, tornou-se estupidamente fácil apostar. Surgiram apostadores profissionais, grupos, consultorias – tudo muito normalizado (afinal já vemos nas taças, nos estádios, nos uniformes…).
Agora, para surpresa de provavelmente ninguém, descobrimos que as apostas também se apossaram de alguns atletas. Não atletas de várzea, sem contrato ou qualquer tipo de rede de proteção. Atletas de elite, jogadores de primeira divisão. A operação Penalidade Máxima tem se encarregado de investigar – e ainda estamos no começo do fio.
Sobre a febre
Apostas não são nem de longe uma invenção contemporânea. Ao contrário: foram necessários milênios até que alguém se dispusesse a teorizar sobre esse ato tão intrínseco à diversão humana, capaz de preceder até a escrita. Estamos falando de uma das atividades mais antigas da nossa espécie.
Antes de morrer [em 1576], Gerolamo Cardamo queimou 170 manuscritos não publicados. As pessoas que vasculharam suas posses encontraram 111 textos sobreviventes. Um deles, escrito décadas antes e aparentemente revisado muitas vezes, era um tratado em 32 capítulos curtos. Intitulado O livro dos jogos de azar, foi o primeiro na história a tratar da teoria da aleatoriedade. As pessoas já apostavam e lidavam com outras incertezas havia milhares de anos.
(…)
Para qualquer pessoa interessada em apostar nos tempos de Cardano, todas as cidades eram Las Vegas. Em toda parte eram feitas apostas – jogos de cartas, dados, gamão e até mesmo xadrez. (…) Assim, fazendo sua entrada no mundo das apostas, Cardano passou a jogar os jogos governados pelo puro acaso. Em pouco tempo, já tinha economizado mais de mil coroas para pagar seus estudos – mais do que ganharia em uma década com o estipêndio desejado por seu pai. Em 1520, matriculou-se como estudante em Pavia. Pouco depois, começou a escrever sua teoria das apostas.¹
Fiódor Dostoiévski era viciado em roleta. E embora perder R$ 60 numa aposta sobre número de escanteios num Avaí x Londrina não faça de nenhum de nós um Dostoiévski, é interessante pensar que a mente capaz de produzir Os Irmãos Karamázov carregou vícios semelhantes aos de, bom, quem assiste a (e perde dinheiro com) um Avaí x Londrina. Somos todos humanos, portanto escorregamos.
O gênio russo era tão enroscado com as apostas que, famosamente, escreveu O Jogador (1867) em menos de um mês para sanar – entre vários outros problemas financeiros – dívidas de jogo.
Para obter o dinheiro de que precisava com urgência, Dostoiévski assinou um contrato draconiano em que se comprometia a entregar um romance, com um número determinado de páginas, até o dia de 10 de novembro de 1866. Caso contrário, os direitos de todos os seus livros posteriores passariam ao editor por nove anos. Para piorar, todo o dinheiro que recebeu ao assinar esse contrato acabou perdido, logo depois, justamente numa viagem alemã de Wiesbaden, famosa por seus cassinos.²
Em primeira pessoa, O Jogador acompanha Alexei Ivanovich, tutor apaixonado que logo se vê, previsivelmente, enroscado com o cassino. O romance ficou mais famoso por este paratexto do que por seu conteúdo, mas se sustenta com as próprias pernas (e, bom, sofre por existir entre Crime e Castigo [1866] e O Idiota [1869]).
De Dostoiévski ao primo que vive em função de cartões amarelos na segunda divisão finlandesa, por que apostar é tão divertido? Duas explicações nos satisfazem:
Pesquisas com macacos descobriram que não é realmente o prazer que estimula a liberação de dopamina, mas a incerteza da recompensa. Quanto mais incerta a recompensa, mais dopamina é liberada em antecipação. Supõe-se que isso explique o vício em jogos de azar, e agora é de conhecimento geral que os feeds de mídia social foram criados com base nesse conceito.
(…)
Um artigo de 2016 que examina as causas estruturais do problema do jogo observa que: “… a participação em jogos de azar também é uma resposta à experiência de ser marginalizado. Para esses grupos, o jogo representa uma das poucas ações que eles podem tomar para lidar com a falta de oportunidades e liberdades que experimentam.³
Na visão deste humilde editor, o segundo parágrafo não poderia encaixar mais com o brasileiro – que, não por acaso, lidera com folga o ranking mundial de acessos a sites de apostas. Via de regra, somos um povo de fodidos sem oportunidade [eu e você, muito provavelmente, somos exceções]. Como não se empolgar com a possibilidade de conseguir um atalho em meio a uma selva de atrasos?⁴
Complementando o viés desse argumento:
Vindo de uma cidade que tinha mais casas de apostas do que livros (para roubar uma frase do falecido Nick Tosches) e onde as oportunidades de progressão eram tão cinzentas e imutáveis como o horizonte, apostar representava uma forma de um trabalhador ganhar alguma coisa com a sua inteligência, instintos e finesse, em vez de apenas com a força dos seus braços e a durabilidade das suas costas.⁵
Se a loteria é “um imposto sobre as pessoas ruins em matemática”, como definia Ambrose Bierce (1911), as apostas parecem fornecer uma recompensa – dopaminérgica – para a esperteza. E quem é que não se considera mais esperto que a média?
Prompt: “Um Dostoiévski furioso apostando num cassino colorido (representado por Jans van Eyck)” — DALL-E.
Algumas odds
Em uma ponta, observamos cidadãos viciados – isto é, clinicamente, sem margem de dúvida – arruinando a própria vida com apostas. Eles sempre estiveram entre nós, é claro. Porém, a facilidade de entrar na brincadeira, a miríade de opções (de sites, de modalidades, de variáveis dentro de um mesmo jogo), o encurtamento do intervalo entre estímulo e resposta: tudo isso tem transformado a aposta esportiva na “nova oxicodona”.
Em outra ponta, profissionais que já vivem o sonho, com anos à frente para fazerem o que amam, na curva ascendente da vida, tornam-se engrenagens desse casamento nefasto (mas intenso, cheio de paixão…) entre dopamina e esperteza. O primeiro grupo parece mais compreensível – ou já nos acostumamos com exemplos de autodestruição –, mas e o segundo?
Sobre arriscar tudo por muito pouco
Nos surpreendemos com jogadores de futebol de elite envolvendo-se com apostas tão trambiqueiras – não por uma questão ética, mas financeira. Afinal, estamos habituados com “pilantragem, estelionato ou apenas uma inocente carraspana” em nossa cultura quilingue, porém assusta saber que algum indivíduo com salário de três dígitos possa pôr tudo a perder por uma recompensa proporcionalmente tão baixa.
Por que um atleta se submete ao risco de arruinar a própria carreira, perder qualquer credibilidade, dever para criminosos – em caso de insucesso do acordo, por incompetência individual ou por algum infortúnio da partida –, trair os próprios companheiros e comprometer a instituição que paga seu salário (provavelmente, o maior de sua vida)? Vamos confabular por aqui, sem qualquer critério ou metodologia.
É famoso um discurso em que John Bogle, fundador do Vanguard Group (maior gestora de fundos de investimento do mundo), relembra um diálogo entre Kurt Vonnegut e Joseph Heller:
Numa festa oferecida por um bilionário em Shelter Island, o falecido Kurt Vonnegut informa a seu amigo, o escritor Joseph Heller, que o anfitrião, um gestor de fundos de investimento, ganhou mais dinheiro num único dia do que Heller ganhou com o seu popular romance Ardil-22 durante toda a sua história. Heller responde: “Sim, mas eu tenho algo que ele nunca terá… O suficiente”.
Morgan Housel⁶ resgata o discurso de Bogle como gancho para duas histórias de ruína: a de Rajat Gupta e a de Bernie Madoff. O primeiro, multimilionário após uma carreira como CEO na McKinsey – e já aposentado, com cargos na ONU e no Fórum Econômico Mundial, fazendo filantropia com Bill Gates –, jogou tudo no lixo ao se utilizar de informações privilegiadas para comprar ações do Goldman Sachs (que ele, justamente por conta dessas informações, sabia que logo estourariam). Terminou preso.
O segundo, talvez o maior trambiqueiro da história, realmente dispensa apresentações. Mas vale o registro de que, antes de comandar o maior esquema de pirâmide do planeta, Madoff já era extremamente bem-sucedido (de forma legítima, sem qualquer asterisco).
Warren Buffett, talvez o sujeito mais entediante do Ocidente inteiro (e, justamente por isso, um dos mais sábios), sintetizou: “nada justifica arriscar algo que você já tem e do qual precisa por algo que você não tem e do qual não precisa”. Estamos falando de multimilionários – letrados, calejados, espertos – que fizeram o extremo oposto.
A partir disso, bifurcamos o raciocínio:
A ganância é um vício que o dinheiro não necessariamente cura.
Se um multimilionário é capaz de arriscar décadas de trabalho e reputação por muito pouco, por que um atleta sem formação, instrução ou assessoria (sentido amplo), ainda embalado pela tolice da juventude, provavelmente sustentando meia ou uma dúzia de familiares, não faria algo parecido – por uma recompensa até proporcionalmente maior?
Ademais, se pensarmos em elencos de 30 jogadores, são 600 atletas na Série A nacional. Quantos foram sondados e receberam propostas? Quantos recusaram? Esse número dificilmente será estimável. O ponto é que, de todo modo, não serão 600 os irresponsáveis, e um número de 10% (60), embora chocante, ainda é uma minoria restrita. (Lembrando que estamos falando da divisão de elite. O absurdo é exponencial – não há nada chocante em projetar acordos espúrios em jogos de série D, por exemplo, pois o contexto do atleta, muito mais próximo do chão de fábrica do que do Neymar, é completamente diferente).
Me pergunto do fundo do coração se a maioria desses jogadores sabe que é rica. No sentido de ter noção concreta de que, se ele recebe R$ 50 mil por mês (e um atleta de primeira divisão tende a receber muito mais), isso já o coloca no topo do topo do topo do país, em que pese a não linearidade (e a brevidade) de sua carreira. Afinal, para alguém criado com muito pouco, talvez R$ 50 mil seja só um número alto – que muitas vezes precisa ser usado, não guardado, seja por compensação psicológica, seja por falta de instrução, seja por penduricalhos humanos que agora o cercam como abutres.
Com esses pontos, longe de defender a postura dos jogadores – que, acima de tudo, cometeram uma estupidez sem tamanho e provavelmente jogarão suas carreiras já curtas no lixo –, procuro tentar compreender suas motivações. Muitas vezes, elas nem são tão complexas (as nossas são?). Cada um de nós guarda uma interseção nebulosa entre o ético, o prático e o moral, tudo isso temperado com (i)legalidade.
Afinal, digamos que você tenha a chance de ser recompensado por fazer algo ilegal, mas esse ato ilegal prejudique apenas, hm…, o Detran (talvez você faça mesmo sem a recompensa). Agora digamos que este mesmo ato ilegal prejudique de alguma forma seus melhores amigos. Obviamente, você encararia a oferta de outra forma. (E se prejudicar os colegas de trabalho? E se prejudicar os colegas de trabalho, mas você odeia seus colegas de trabalho? And so it goes).
Enfim, são apenas hipóteses para testar o raciocínio. Longe de almejar um raciocínio inédito, o ponto é: pessoas fazem merda o tempo todo. Acontece. Eu, você, Bernie Madoff e o lateral Pedrinho temos gatilhos e motivações duvidosas; não necessariamente racionais, não necessariamente razoáveis. Alguns testes de força com indivíduos distintos em ambientes diversos gerarão resultados improváveis, curiosos – nos quais nem um adicto supersticioso teria arriscado seu dinheiro.
¹ Mlodinow, Leonard. O Andar do Bêbado, 2008. Zahar (2018).
² Dostoiévski, Fiódor. O Jogador, 1867, Penguin-Companhia (2017). Apresentação e tradução de Rubens Figueiredo. A citação que abre este texto também pertence à edição (p. 30).
³ Meadows, Jesse. Dopamine: The Self-Improvement Mythos Of Our Age. Sluggish, 2023. Destaques nossos. Sobre o segundo ponto, é impressionante a relação com esta outra pesquisa aqui, que relaciona como, contraintuitivamente, fumantes pobres se importam menos com o aumento do preço do cigarro. “Mas a maioria dos participantes (de ambos os sexos, especialmente os mais velhos, os desempregados e os que moram sozinhos) também afirmou que o cigarro preenche um vazio em sua vida cotidiana: Eles fumam porque não têm mais nada para fazer, porque é a única atividade de lazer que podem pagar (paradoxalmente, alguns fumantes acreditam que economizam dinheiro fumando); por outro lado, lembraram que costumavam fumar menos quando tinham um emprego; eles também fumam porque se sentem solitários, para compensar um rompimento emocional ou uma demissão, ou para aliviar os sintomas de abstinência depois de parar de usar ‘drogas pesadas’. Em outras palavras, muitos fumantes entrevistados consideravam que fumar era ‘tudo o que lhes restava.” Esta e outras traduções do texto partiram do Deepl.
⁴ Vale lembrar que “Nas décadas de 1930 e 1940, o Brasil viveu a era de ouro dos cassinos. No auge, funcionavam mais de 70 casas de apostas no país — do Rio, capital da República, à minúscula São Lourenço, no sul de Minas. Nos salões, homens de terno e mulheres de longo apostavam dinheiro nas roletas e nas cartas de baralho. O fervilhante negócio dos cassinos ruiu repentinamente. Em 30 de abril de 1946, três meses depois de assumir a Presidência da República, o general Eurico Gaspar Dutra pegou o país de surpresa e, com um decreto-lei, ordenou o fim dos jogos de azar”. Fonte: Agência Senado.
Este site usa cookies para melhorar a sua experiência enquanto navega pelo site. Entre eles, os cookies categorizados como necessários são armazenados no seu navegador, pois são essenciais para o funcionamento das funcionalidades básicas do site. Também usamos cookies de terceiros que nos ajudam a analisar e entender como você usa este site. Esses cookies serão armazenados em seu navegador apenas com o seu consentimento. Você também tem a opção de cancelar esses cookies. Porém, a desativação de alguns deles pode afetar sua experiência de navegação.
Os cookies funcionais ajudam a realizar certas funcionalidades, como compartilhar o conteúdo do site em plataformas de mídia social, coletar feedbacks e outros recursos de terceiros.
Os cookies de desempenho são usados para entender e analisar os principais índices de desempenho do site, o que ajuda a fornecer uma melhor experiência do usuário para os visitantes.
Cookies de Analytics são usados para entender como os visitantes interagem com o site. Esses cookies ajudam a fornecer informações sobre as métricas do número de visitantes, taxa de rejeição, origem do tráfego etc.
Os cookies de publicidade são usados para fornecer aos visitantes anúncios e campanhas de marketing relevantes. Esses cookies rastreiam visitantes em sites e coletam informações para fornecer anúncios personalizados.
Os cookies necessários são absolutamente essenciais para o funcionamento adequado do site. Esses cookies garantem funcionalidades básicas e recursos de segurança do site, de forma anônima.