Autor: Jornal RelevO
Em defesa de Babilônia
Extraído da edição 114 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Sábado à tarde, sol e… shopping. O cenário do inferno: poucos contextos são tão desprazerosos e te despertam tanto para os males da sociedade quanto um shopping lotado. Tudo é brega, triste e, principalmente, cheio. Até o estacionamento é caro – e árduo. Todos os olhares compõem antíteses de beleza, uma atrás da outra.
Era a única sessão de Babilônia restante em Curitiba, e eu já chegava à sala parcialmente arrependido. Ademais, sabia que permaneceria mais de três horas naquele lugar, portanto o custo de oportunidade era muito alto (deslocamento + estacionamento + ingresso + desgosto + tempo).
Então Babilônia começou – a primeira das duas vezes em que eu me submeteria àqueles mágicos 189 minutos.
É época de Oscar (acho eu, recebendo gotas do tema após este cair com peso na piscina aberta, respingando nos inocentes ao redor), um dos assuntos mais desinteressantes da civilização. Importar-se com o Oscar é por si só uma postura tão entediante que este enclave sequer procurará argumentar sua posição.
Paralelamente, ou por outro lado, ou de forma contraditória, adoramos virar os olhos para a crítica, esse Leviatã imaterial maníaco-depressivo eternamente atrapalhado pela própria miopia. É divertido, embora angustiante, indignar-se com o louvor a algum produto medíocre, questionar ferramentas (os tomates, os bots, o rabo preso) ou defender ferrenhamente uma injustiça, imaginando-se à frente de seu tempo – sem se levar muito a sério, por favor.
Enfim, tentar compreender os mecanismos de raciocínio que elevam ou repudiam uma obra (seja musical, seja audiovisual, seja gastronômica) é um baita exercício de compreensão da cultura, da sociedade e de comportamentos miméticos.
Também já é senso comum estabelecer a fase melancólica de Hollywood – e, vale registrar, não necessariamente do cinema (injusta sinédoque…) –, escrava de franquias mastodônticas, reciclagens extremas, algoritmos famintos e, queiramos ou não, esterilidade de produções tão politicamente corretas (outro subtópico que não temos interesse em desenvolver).
Pois bem, queremos filmes mais originais, autorais, cujos diretores (simbolicamente) nos estapeiem e proclamem “cala a boca, eu sei o que tô fazendo”. Ao menos dizemos isso em voz alta. Para nossa sorte, recebemos um destes com Babilônia (2022), de Damien Chazelle (Whiplash, La La Land, First Man).
Babilônia é uma pedrada épica cujos vários atos retratam a passagem do cinema mudo para o sonoro, partindo de 1926. O filme tem muito de Era uma vez na América (1984); Boogie Nights (1997); Eyes Wide Shut (1999); A Grande Beleza (2013); O Grande Gatsby (2013); Lobo de Wall Street (2013) e Era uma vez em Hollywood (2019) – e talvez por ter um tanto de tudo, sem recortes, tenha chegado a seus 189 minutos.
- Era uma vez na América: crescimento de um grupo; música-tema em variações; melancolia do tempo e suas mudanças; longa duração.
- Boogie Nights: por dentro de uma indústria; ascensão e decadência dos envolvidos nessa indústria; produções e vaidade.
- Eyes Wide Shut: um dos capítulos, especialmente, é 100% De Olhos Bem Fechados.
- A Grande Beleza: festa; glamour; decadência; beleza vs. vazio.
- O Grande Gatsby: período parecido, euforia parecida; Tobey Maguire. Muito superior, Babilônia é o que Baz Luhrmann gostaria de ter feito com seu Gatsby.
- Lobo de Wall Street: gente rica se drogando; apogeu e queda; euforia.
- Era uma vez em Hollywood: os filmes por dentro; passado de Hollywood; Margot Robbie e Brad Pitt.
No entanto, Babilônia teve uma recepção crítica… morna, no mínimo. “Polarizada”. Acreditamos que o Leviatã míope se arrependerá dentro de alguns anos, portanto registramos nossa breve defesa (sem spoilers).
- O ato inicial do filme, uma festa megalomaníaca (à Grande Beleza), é um pináculo de montagem, edição e figurino sozinho mais interessante que a maioria das produções de grande orçamento a terem saído do papel. Há camadas e camadas e camadas: ao público basta perder-se e admirar a sequência.
- A trilha sonora é monumental, praticamente um personagem. Quem assina é Justin Hurwitz, também encarregado da função em Whiplash, La La Land e First Man. Tal entrosamento justifica como Chazelle consegue potencializar o trabalho de seu escudeiro por meio de uma edição, then again, primorosa. A estratégia Morricônica de estabelecer um tema e desenvolvê-lo em variações seguindo o desenvolvimento dos personagens encaixa precisamente com a filme.
- Mais sobre a trilha aqui.
- Os atores estão voando. Entre os protagonistas, Margot Robbie impressiona no papel de Nellie, a estrela selvagem adentrando um novo universo de glamour, cocaína, sujeira e vaidade. Diego Calva nos cativa como Manny Torres, o imigrante ligeiro. Brad Pitt faz o que sempre fez e, justamente, quando se precisa de um personagem-Brad-Pitt na tela, ele ainda é o mais indicado. Menções honrosas a Jovan Adepo (trompetista Sidney) e Jean Smart, cuja personagem representa, vejam só, a crítica.
- Aqui uma relação entre os personagens e suas contrapartes históricas.
- Há um desenvolvimento concreto, progressivo e realista dos personagens – o que justifica e faz valer os 189 minutos. Trata-se de épocas diferentes, cenários distintos, mudanças drásticas e desfechos variados: não teria graça pincelar tudo isso. Sob a perspectiva de Manny, Babilônia é praticamente um Bildungsroman. A virada de chave do cinema mudo elevou e derrubou muita gente. Absorvemos isso testemunhando o contexto inicial com calma. Nos situamos, então realmente enxergamos o impacto da mudança. Da mesma forma, a produção não fecha os olhos para a diversidade sociocultural da época e seus respectivos preconceitos. Só não o faz com o didatismo enfadonho com que muitos filmes-massa-amorfa parecem dirigir-se ao Twitter.
- Todas as cenas retratando produções cinematográficas – isto é, a dificuldade técnica de gravá-las cem anos atrás, em cenários externos ou internos – são extraordinárias, sem tirar nem por. O silêncio, o improviso, a magia. Esses momentos complementam a conclusão anterior: entendemos a magia, portanto, depois disso, a mudança nos afeta e conseguimos sentir os personagens.
- A cena final (novamente, sem spoilers) é um derretimento imperdível; o dedo médio de confiança absoluta do diretor; a autoria em seu êxtase. O fim que merecemos depois de uma jornada divertida, melancólica, megalomaníaca, engraçada, trágica, bela. De chorar. De chorar. Quem se rendeu não esquece.
It’s insane that Babylon offered audiences the opportunity of experiencing this amount of ecstasy in a movie theater and they were dumb enough to say no. This is why we can’t have nice things. pic.twitter.com/wzuCcTo52p
— Edgar Ortega (@edgorteg) January 31, 2023
Convenhamos, nenhum desses argumentos é grande coisa (“show, don’t tell”). Assista ao filme com som alto e coração limpo, depois diga-nos o que achou (por favor!). Três horas não são nada. Por fim, se quiser argumentos ainda piores, saiba que Babilônia foi indicado a três categorias do Oscar. Viva o Oscar!
Baú: Truman Capote
Extraído da edição 114 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
Certa vez, convidaram-me para um casamento; a noiva sugeriu que eu viajasse de Nova Iorque para norte no carro de dois outros convidados, um casal cujos elementos davam pelos nomes de Mr. e Mrs. Roberts e que eu não conhecia. Era um dia frio de abril, e, durante a viagem de carro até ao Connecticut, os Roberts, um casal de quarenta e poucos anos, pareceram-me bastante simpáticos — não eram pessoas com quem me apetecesse passar um fim de semana prolongado, mas não eram maus de todo.
No copo-d’água, todavia, o álcool correu a rodos, e os meus motoristas emborcaram, diria eu, um bom terço do total. Foram os últimos a abandonar a festa, cerca das onze da noite, e a ideia de os acompanhar deixou-me alarmado; sabia que eles estavam bêbedos, mas não me apercebera até que ponto. Tínhamos percorrido uns trinta quilómetros, com o carro a guinar bastante e Mr. e Mrs. Roberts a insultarem-se mutuamente, fazendo uso da mais extraordinária linguagem (tratou-se, sem dúvida, de um momento saído de Quem tem medo de Virginia Woolf?), quando Mr. Roberts, como seria de esperar, se enganou no caminho e se perdeu numa estrada rural sombria. Eu pedi-lhes uma e outra vez, e por fim pus-me a suplicar que parassem o carro e me deixassem sair, mas eles estavam tão embrenhados nas suas invetivas que me ignoraram. No fim de contas, o carro imobilizou-se de forma espontânea (temporariamente) quando foi embater contra o tronco de uma árvore. Aproveitei a oportunidade para sair de rompante pela porta traseira e corri para o meio da floresta. Pouco depois, o amaldiçoado veículo arrancou, deixando-me sozinho na escuridão gélida. Estou certo de que os donos do carro nem deram pela minha falta; sabe Deus que eu não senti a falta deles.
Truman Capote, Uma candeia numa janela. Música para camaleões (1980, ed. Livros do Brasil; trad. Paulo Faria, 2015).
Amanda Vital: Ombudswoman 3: não faz mal, limpa com jornal
Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Jingle bell, jingle bell
Acabou o papel
Não faz mal, não faz mal
Limpa com jornal
Autor desconhecido
Com a diferença de que o jornal definitivamente não está caro pra chuchu. Setentinha por um ano de literatura de qualidade, pô?! Mas aviso aos navegantes, sedentos por uma boa discórdia, isso não é para definir qualquer tipo de supremacia do físico sobre o digital — essa é uma guerra longa, não cabe em 8000 caracteres. É que nessa guerra, existe uma trincheira cortando dois campos. De um lado, os defensores do “apenas digital” são os defensores de uma democratização maior e mais ampla da literatura, já que e-books e plataformas digitais podem ser acessadas em qualquer lugar do mundo, tornando conexões e intercâmbios ainda mais possíveis. Do outro, os defensores do “apenas físico” são os defensores de algo que já funciona historicamente falando (para ser um bocado mais precisa, o primeiro livro impresso do mundo começou a ser produzido na década de 1450; o primeiro jornal impresso em gráfica, em 1605) e que, caso aconteça alguma pane geral nos sistemas informáticos, o físico que já existe não deixa de existir, nem fica inacessível. E há a trincheira, de onde falo, colaborando em meios impressos e virtuais. Só defende, não ataca, observando todas as discussões, as demandas, os problemas, as qualidades, as bombas e as alfinetadas. É um nome chique para “em cima do muro”? Não, porque é uma trincheira.
E para não dizerem que aqui é só amargura, rancor e acidez, deixo aqui uma pequena lista do bem — sei que vocês adoram listas — das qualidades de cada um dos lados, observadas daqui, desse lado T (de trincheira, hehe. Sacou?):
No físico: 1. Como eu já mencionei, não corre-se o risco de, com uma possível pane nos computadores (que não, não é teoria da conspiração, calminha aí com o ceticismo, porque já existem panes informáticas em sistemas aeroportuários, governamentais…, para afetar o uso pessoal é um saltinho), os materiais se destruam — o acervo físico está sempre aí;
2. A experiência de leitura é, de fato, mais agradável como um todo — não precisa nem adicionar fontes para isso, acho, né? — porque mexe com sentidos para além dos olhos, e isso é uma experiência muito rica, sim;
3. A depender do armazenamento do acervo (biblioteca pessoal, pública, livraria, sebo…), o papel pode demorar centenas de anos para se deteriorar — ao contrário de alguns sistemas, que tornam-se obsoletos com o passar do tempo e “envelhecem mal”, com problemas de armazenamento, de memória, atualizações e essas coisas todas;
4. É sempre uma mãozinha a mais para que gráficas, tipografias e imprensas não caiam na obsolescência também — gráficas vão sempre imprimir cartões de visita, cartazes, camisetas, agendas…, mas não se restringiria apenas a esse material (e ainda há as quase totalmente especialistas em livros);
5. O impresso é democrático e agregador, muito coletivo e com possibilidade de leituras em grupo, acessível a regiões e a indivíduos com dificuldades de acesso à informática, quanto mais à internet;
6. Não seria buscado apenas por quem está procurando algo específico (um jornal sobre uma mesa de café pode ser lido por pessoas que não buscaram por aquilo — ao contrário de tablets, raramente deixados em mesas de café, ainda bem para seus donos);
7. O impresso também atravessa oceanos, tal como o virtual, e não se restringe apenas ao ambiente nacional, como fazem parecer (o RelevO, mesmo, viaja mais que nós todos juntos);
8. Mantém a história de acervos e bibliotecas sempre ativa, preservando histórias e mantendo ativo o trabalho físico também dos bibliotecários;
9. O físico tem qualquer coisa de fixo, de imutável, de perpetuar-se — isso em si já é poético, e aqui falamos de sensibilidades também;
10. Papel não acaba a bateria, nem ter de colocar para carregar, nem tem notificações pipocando ao redor (vai enganar bobo quem diz que desliga notificações e vibrações, tá? Eu vejo vocês online!), nem precisa de suportes específicos para isso, fazendo lucrar monopólios.
No digital: 1. Em um viés de qualidade de vida individual — não digo do coletivo porque as tecnologias para isso ainda estão em andamento —, organizar a biblioteca pessoal é prático (para quem sabe mexer nisso, claro), então não há estante, não há grande peso, cabe tudo na mochila, bem prático, fofo e minimalista, de fazer Marie Kondo salivar de regozijo;
2. A disponibilização de conteúdos é mais rápida, não precisa esperar por uma impressão;
3. Quaisquer correções que sejam necessárias, é só editar, corrigir e já está editado (não é uma vantagem a 100%, porque isso acaba dando margem a alguma corrupção de conteúdo pós-publicação, mas vários portais deixam uma data de edição e até alguma errata “à moda antiga”, o que é legal);
4. Pode-se manipular o texto com alguma facilidade e comodidade: fazer marcações, copiar e colar, comparar, postar aquela legendinha marota no Instagram, pegar aquela citação excelente para a epígrafe do seu livro, enfim, se rabiscar, não é fixo;
5. Tende a ser econômico, porque não tem a conta da gráfica e do envio, só da edição;
6. Essa deveria ter sido a primeira da lista logo, porque é das mais importantes: é mais acessível a pessoas cegas, com possibilidade de texto transposto para áudio;
7. Alguns suportes de leitura são à prova d’água: você pode ler na chuva!;
8. É possível aumentar a fonte para uma leitura mais cômoda;
9. Um material publicado na América Latina pode ser lido na China quase instantaneamente;
10. Das coisas mais óbvias, mas: é sustentável e bom para a preservação do meio ambiente.
Em suma, se você está num periódico impresso, vão te cobrá-lo em arquivo digital; se você trabalha em uma revista virtual, vão te cobrar a versão física dela (como já nos aconteceu muitas vezes na Mallarmargens). No primeiro, a pessoa quer um teste, uma amostra grátis para experimentar, já que “procura e não acha uma digitalizaçãozinha disso sequer, eu não sei cumé quié!”. Na segunda, não aceita que o portal tenha alguma credibilidade só por não funcionar impresso. Sempre tem alguém que não está satisfeito, nem vê como possível a coexistência das duas coisas. “Ah, eu só leio no papel, isso aí nem deve ter ISSN”. “Ah, eu só leio se tiver como favoritar, minha vida é muito corrida gerindo os imóveis que alugo a estudantes universitários falidos por 900 paus”. E muita cobrança no lombo do editor.
E para os que leem até aqui, mês passado tivemos muita coisa boa cá por essas bandas, com destaque para a arte e o trabalho de fotografia & colagem incrível de Noah Mancini; de toda a poesia publicada, o poema curto da Enilda Pacheco foi uma boa escolha de curadoria, a poesia jogando com o verbete de dicionário, que é algo atemporal e bom quando bem feito, com originalidade, sem cair no óbvio — o que acredito que aconteceu, com contraste, ritmo de quebra de versos e enjambement, contraste, tudo em três versos!; o trabalho de tradução do Degrazia é muito especial, por ser um ótimo poeta também, ele aplicou um ritmo um pouco diferente do original, fugindo da tradução literal e indo por um caminho inventivo, mas na medida, numa boa medida, só um bocadinho aqui e acolá para a transposição de sentido para português; e de prosa, o texto que mais me ficou foi “Biscoito?”, de Silva — uma esquete literária deliciosa, com os elementos do exagero e do absurdo bem-humorados e com essa comunicação mais familiar e cotidiana, que permite que a gente prossiga legal na leitura, sem se encolher na poltrona com algum cringe (em suma, texto que fala como a gente fala); com menção honrosíssima para o trecho da Tatiana Lazzarotto, que faz algo parecido, mas não com diálogo, com descrição; e para o conto de Carolina Fellet, outro que passa pelo coloquial, mas com elementos de prosa poética.
Boa ressaca de carnaval a tod_s. Sejam impressos! Mas se não quiser, não precisa.
O papel do papel, o ChatGPT, os escreventes
Editorial extraído da edição de março de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
A presente edição do RelevO, de março de 2023, não foi escrita por inteligência artificial (IA), mas teve o auxílio dela. Tal qual a aparição de um craque na base de um clube decadente, o surgimento do ChatGPT no fim de 2022 trouxe à tona uma série de reflexões sobre o fazer artístico —a nossa edição especial da Copa do Mundo teve capa de IA, por exemplo. E ficou ótima. Será o fim do artista? No plano prático, diversas revistas e concursos literários espalhados pelo mundo passam pelo desafio de avaliar ou excluir textos enviados com auxílio de tais ferramentas. Logo será a nossa vez de lidar com isso.
Estamos vivendo o início do fim dos escritores e dos artistas? Certamente que não. Certamente que sim. Quem já se aventurou no ChatGPT e saiu emulando estilos de autores e autoras consagradas pôde verificar que a fluência e a beleza textual ainda são de uma carruagem no asfalto. Contudo, sabemos que a IA irá melhorar, o que nos traz outro questionamento: e os escritores? Permanecerão cada vez mais distantes das transformações do mundo e descrevendo árvores por três páginas? Lógico que exageramos. O argumento, inclusive, acabaria com Marcel Proust. Mas só tivemos um Marcel Proust…
Longe de nós querer transferir aos escritores a tarefa de avançar junto das AIs. É impossível, tanto por processamento quanto por aprendizado. O que nos interessa, na condição de veículo de curadoria de um segmento cultural, é pensar em como os escritores lidarão com ferramentas que podem escrever melhor que eles. Ou melhor do melhor: que podem ser medíocres com muito mais qualidade.
Daqui do nosso cercadinho de muitas incertezas e na continuidade de procedimentos, enxergamos com bons olhos a chegada de uma ferramenta que tensione a nossa existência. Poderá, em breve, uma IA selecionar os textos enviados para a nossa caixa de entrada apenas pelos padrões de escolha dos editores ao longo de 13 anos? Poderá a IA descartar automaticamente do processo de avaliação textos que tenham erros crassos (e involuntários) de língua portuguesa? Gostaríamos.
Diferentemente de uma IA, o ser humano é escravo e senhor de sua temporalidade – e não avança apenas com atualizações. Como medir as transformações internas de uma pessoa que teve um filho pela primeira vez? É possível quantificar (ou realmente descrever) em algoritmos a experiência do primeiro amor? E a sensação de receber uma encomenda pelos Correios? Ainda somos nós, ainda somos nós. E nunca fomos mais humanos.
Entre infinitas razões, criamos para também nos questionar sobre a nossa própria existência — e por utilidade, valor sempre em confronto com o mundo exterior. Pedimos ao ChatGPT que escrevesse um editorial que refletisse sobre a utilidade de um jornal de literatura no mundo contemporâneo. O comando foi simplório, já que poderíamos dialogar em perspectivas bem mais profundas. A resposta foi didática:
Um jornal de literatura pode ter várias utilidades no mundo contemporâneo, mesmo com o avanço da tecnologia e das redes sociais. Algumas das principais utilidades são:
- Promover a literatura: Um jornal de literatura pode ser uma excelente plataforma para promover a literatura, tanto nacional quanto internacional. Ele pode destacar obras e autores relevantes, estimular a leitura e ajudar a formar novos leitores.
- Fornecer análises críticas: Um jornal de literatura pode fornecer análises críticas de livros, oferecendo aos leitores uma visão mais aprofundada e reflexiva sobre as obras. Isso ajuda a enriquecer o debate literário e a estimular a produção de obras cada vez melhores.
- Divulgar eventos literários: Um jornal de literatura pode divulgar eventos literários, como lançamentos de livros, feiras de livros e encontros com autores. Isso ajuda a aproximar os leitores dos escritores e a fomentar o diálogo entre eles.
- Fortalecer a comunidade literária: Um jornal de literatura pode ajudar a fortalecer a comunidade literária, criando um espaço para a troca de ideias e experiências entre autores, leitores, editores e outros profissionais do mundo literário.
- Preservar a cultura: Um jornal de literatura pode ajudar a preservar a cultura, registrando a produção literária de uma época e documentando os eventos e acontecimentos importantes do mundo literário. Isso é importante para a posteridade e para que as próximas gerações tenham acesso às obras e ao legado dos escritores.
Para nós, não se trata de uma resposta vazia, afinal ela captura um bom tanto das identidades possíveis de nosso periódico, o que muitas vezes frustra os leitores em busca de um norteamento claro. Mas também é fria, protocolar, semelhante a um editorial cansado. Em suma, será divertido acompanhar o rumo disso tudo. Certamente continuaremos nos divertindo, aspecto básico de nossa existência (chatbots sonham com risadas elétricas?).
Uma boa leitura a todos.
Edição de fevereiro de 2023
Amanda Vital: Ombudswoman 2: é preciso ter estilo
Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
es·ti·lo (latim stilus, -i, instrumento com haste pontiaguda, instrumento para escrever nas tábuas enceradas)
“estilo”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021
Car_s leitor_s, tem uma coisa que me pega aos pouquinhos — cada vez um pouco mais — lendo a seção de cartas do Jornal. É um argumento-questionamento que vem aparecendo intermitentemente já há algum tempo, e não me lembro se os ombudsmen/women anteriores falaram sobre isso. Se sim, venho endossar o coro. Falo desse argumento que une tanto o possível leitor que não quer assinar o Jornal (e precisa dar uma justificativa qualquer) até o autor que foi rejeitado e quer cancelar a assinatura (e não quer ver o editor nem pintado de ouro): “ah, é que o RelevO não faz muito meu estilo”. Eu não queria deixar isso passar na minha curta estadia por aqui — e ainda vou falar de rejeição de textos e sobre jornal impresso, numa outra altura, que também queria poder dar um pitaco ou dois. Mas já agora, pergunto: o que é, na realidade de um jornal literário generalista, ter um estilo? Como ele é alcançado? O que é preciso fazer para receber um rótulo de estilo? Ter esse rótulo é necessariamente saudável e bom?
Minha reflexão vale o que vale. Mas penso que a partir do momento em que um veículo de literatura define sua curadoria, e aqui simplifico bastante por ter muitas outras subjetividades embaixo disso, em 1. o material ter um traço de qualidade marcante; e 2. todos são bem-vindos, renomados ou não, cabe uma pluralidade de estilos dentro dessas duas premissas. Do soneto ao verso livre, da prosa contemporânea experimental ao fragmento de romance tradicional com ares mais clássicos, do tradutor literal ao inventivo, do ensaio acadêmico catedrático ao literário mais híbrido.
E fujamos das formas, também, e digamos do conteúdo — do esporrado que sai daquele conto erótico do escritor frequentador de sarau temporão em taberninhas (aquele que geralmente pega o microfone pra ler um Bukowski, uma Hilda Hilst ou um beat norte-americano), do poeta escrito a partir de slam de uma feminista de rua intervencionista (muitos dizem “panfletário” para tentar diminuir essa possibilidade de existência da poesia, porque “ai, meu Deus, feministas não-acadêmicas querendo espaço aqui no templo sagrado da poesia, falando de liberdade sexual, de igualdade de direitos e de pelos nas axilas, assim, como se não fosse nada de mais, isso é um absurdo”), das diferentes formas de beber de fontes — e todas as fontes são potáveis e próprias para consumo.
No veículo generalista, a literatura é viva e vai sendo universal em seu melhor, abrangente mas sem cirandinha, porque aquela premissa 1 é, no fundo, seu próprio estilo editorial. E é um passo mais à frente após décadas de suplementos literários feitos apenas por convite, restritos a elites literárias, privilegiando amigos, políticos e familiares. E que, vamos ser sinceros, esses é que publicavam sempre mais do mesmo: a seleção de textos não circulava muito, reclusa a algumas dezenas de autores.
Por isso, o conceito de “jornal generalista” me aparece em mente: porque vejo esses jornais e revistas, físicos ou digitais, como veículos amplamente democráticos e abertos a todos os públicos, que não querem ser especializados num determinado recorte (ex: publicar só autores modernistas, só autores concretistas, só autores contemporâneos, só sonetos de amor, etc), sim, mas isso tudo faz sentido em termos de estilo mesmo assim. Porque existe o fator curadoria que não deixa tudo virar farofa da Gkay, com a seleção de bons textos que as pessoas podem gostar de descobrir (e é saudável e bom descobrir coisas novas), porque são e estão fazendo o presente na literatura. Porque a curadoria editorial é e está fazendo o presente da crítica literária no país. Essa crítica que “anda tão sumida, cadê ela?”, e segue assim, nos bastidores. Esse estilo que rabisca as tábuas enceradas e vai grafando fragmentos da história da literatura.
A Camila Passatuto, excelente poeta, aparece na última edição com um ensaio — que não quero dizer “sobre a obra de”, mas que “parte da obra de” Lucas Verzola, para a dissertação, entre as diversas provocações da obra, do “consumir-produzir literatura”, da produção entre empecilhos do contemporâneo. E deu muito certo. A transição entre estilos é o necessário para canalizar um ímpeto que seria para um canal já atravessado com alguma frequência, na escrita e na reflexão, em um outro exercício que pega emprestado o traquejo do trajeto anterior. Lúcido, esclarecedor e com uma abertura bonita que a Camila tem sobre a literatura em ação.
O delicioso “brincadeirinhas”, de Camila Lourenço, é a justa medida entre a denúncia da disparidade de visão da sociedade sobre meninas e meninos da mesma idade e o alívio de uma brincadeirinha consensual das primeiras experiências — chegamos a um ponto em que se é consensual, é um alívio —, que também anda lado a lado com isso. O “eu acho que senti o arrepio primeiro”, a experiência amorosa do início da juventude descrita sem maldade, sem exagero e sem condenação (sem, no fundo, a “mão invisível” do conservadorismo enraizado), da perspectiva da menina, do domínio. Que mais meninas (acredito que o texto também possa ser lido por jovens, sem problema algum) tenham mais exemplos como esse texto, com literatura “a sério” e não só os mesmos livros de autoajuda e montagens rápidas de Instagram para alcançarmos um controle cada vez maior sobre o nosso corpo, as nossas vontades, os nossos sentimentos.
Outra decisão crítica super acertada foi a poesia da Carolina Bataier, que parece ter sido escolhida a dedo para dar mais um sacode gostoso em quem não conseguiria, por exemplo, lendo “O que fazer com um poema guardado”, enxergar ritmo (que há), originalidade (também) e trabalho (igualmente). Quantos vão passar por esse poema sem perceber o sarcasmo, a denúncia, sem se questionar “por que será que o encadeamento dessas sequências, dessas imagens entre um e outro verso, foi feito dessa forma?”. Ah, porque é quase poema-recorte atrelado à oralidade, “é tudo feito ao calhas”, como diriam em terras lusitanas. Mas Carolina pegou nas situações mais inusitadas para se depositar-ler-publicar-botar para fora um poema. Apanha-o como um boneco de papel, manipula as palavras a sua maneira. Ali, o poema disserta (ui, o perigo do poema descritivo destruidor da nobreza poética!), propõe, tira sarro. Manda na autoria, manda em tudo. E tudo, absolutamente tudo é válido, menos deixá-lo na gaveta. A metapoesia feita sem precisar de palavras mirabolantes.
Ainda em poesia, Davi Koteck — que tem uma produção excelente em poesia e em edição, com a ótima revista Rusga (se ainda não está em circulação, que isto aqui seja um incentivo para retomá-la) — flerta com o realismo mágico e o nonsense, construindo camadas para construir um ciclo que volta ao início (“Não tenho mais vontade de ser feliz”/“na minha cabeça parece que eu não mando”) nessa vivência do contemporâneo que é ora apática, ora com faíscas de qualquer coisa nova, fora do comum, que nos puxe um bocadinho mais para o estado de euforia.
Para a contracapa, foi selecionado o centenário português Eugénio de Andrade, com “Canção” (que, salvo engano, acredito que parte dele tenha virado mesmo uma canção de uma banda portuguesa), de seu livro Primeiros poemas, encerrando a edição com essa reminiscência curtinha tão bonita, uma gota dum orvalho feito de metades proporcionais entre a metáfora-imagem e o cotidiano-oralidade.
O que quero com tudo isso? Além do costumeiro costumer service, apenas provocar com algumas centelhas de birra contra o tradicionalismo excessivo e a favor do caminho bonito que a literatura tem alcançado de ora equilibrar o novo e o velho, ora mandar tudo à merda para fazer estilos do zero. Mas o que eu quero, mesmo, é desejar uma boa continuidade de começo de ano para todo mundo. E por falar em estilo, sejamos um bocadinho mais rebeldes. Mas se não quiser, não precisa.
Jornal de papel como experiência coletiva
Editorial extraído da edição de fevereiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Tivemos quase 170 edições para observar e comprovar: um jornal impresso de papel e de literatura não existiria sem uma comunidade. Ao longo de quase 13 anos, passamos por diversas intempéries da vida: jornal com ares de jornal de faculdade, jornal de um desempregado pós-faculdade, jornal com ambições nacionais, jornal que se organiza como o esquema tático de um clube emergente, mas de pouca torcida— sabendo que briga primeiro contra a ZR e depois se estabiliza na busca por vaga em competições intermediárias. Lidamos com o aumento de custos de tudo, com uma pandemia que matou quase 700 mil brasileiros (inclusive colaboradores e assinantes), com a diminuição de nossa arrecadação, enfim: passamos por diversos ciclos que nos trouxeram alguns padrões comportamentais, por assim dizer, e que, sobretudo, nos trouxeram até aqui.
O RelevO não arrisca mais do que é capaz de manter. Temos dificuldades, mas você certamente nunca ouviu um “o RelevO não pode acabar”. Não queremos acabar; no entanto, também não queremos que o assinante pense que estamos prestes a acabar (muito menos que o país precisa de nós). Assim, estruturamos uma operação para tentar controlar o controlável: o tal Risco Brasil. Com operação enxuta, prestação pública de contas e uma possível retomada econômica — que podemos até constatar como certo otimismo para 2023 —, voltamos a expandir nossa circulação, o que resultou em dois meses de prejuízos (com o qual já contávamos). Aumentou nosso custo, ainda não aumentou nossa receita, porém isso era esperado.
Desde o começo de dezembro, voltamos a entrar em contato com livrarias, cafeterias e pontos culturais para fazer o envio gratuito do Jornal. Gratuito em partes: quem financia o envio são os assinantes que adquirem os planos especiais de apoio à nossa distribuição. Antes da pandemia, disparávamos o RelevO para mais de 300 pontos, algo sem dúvida acima da nossa capacidade logística de absorção. Não à toa, com a pandemia, interrompemos a circulação em pontos físicos e conseguimos, por outro lado, finalmente remunerar todas as pessoas que trabalham em nossa estrutura, da distribuição aos autores e autoras. Pagamos pouco, mas pagamos — em um meio encharcado de trocas de favores e cobranças para publicar (“todo dia um malandro e um otário…”).
A pandemia de dois anos apertou o cerco logístico e o financeiro. Tivemos queda de 20% de nosso faturamento. Ao mesmo tempo, aqui estamos, com novos planos e com aquilo que, sem dúvida, foi o que nos trouxe até fevereiro de 2023: a nossa comunidade. Atualmente, enviamos o jornal a 120 pontos espalhados pelo Brasil todo, além de 150 bibliotecas comunitárias. Nossa meta para 2023 é audaciosa: chegar a 600 pontos, mandando exemplares para todos os estados e, principalmente, para espaços fora dos grandes centros urbanos.
Entendemos que esse plano vai ao encontro de pilares institucionais muito caros para nós, como a descentralização e o acesso a quem não tem condições de nos assinar. Acreditamos que, com mais 200 assinantes, consigamos sustentar essa distribuição mensalmente — também estamos estudando a criação de uma associação de apoio à distribuição do RelevO, formada por contribuintes que sejam algo como o patrocinador master do Jornal. Em valores absolutos, precisamos de R$ 5 mil a mais para cobrir o Brasil todo com o nosso periódico.
O RelevO não é obra de um gênio, de um abnegado, de um filantropo, de um rico entediado, de quem faz cavadinha na hora de bater pênalti. Somos a soma de procedimentos com uma comunidade. Não somos uma experiência individual e não praticamos a arte do consenso, bastando verificar nossas cartas e os nossos ombudsmanatos. Acreditamos muito em produções e construções que agreguem o esforço de um grupo sem que isso represente a perda de uma suposta identidade. O grupo que representamos é o de nossos assinantes. Acreditamos que são vocês que nos escolhem, por R$ 70 ao ano ou mais, para ler um periódico de papel por mês. E agora queremos que isso chegue para mais pessoas — simples assim.
Uma boa leitura a todos.
1962: um bom ano para gênios
Extraído da edição 113 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?! Repito: não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas. Só os imbecis não as têm.
Nelson Rodrigues
Pois bem.
Se na Enclave #112 tentamos analisar a interseção entre a Lolita (1955) de Vladimir Nabokov (1899-1977) e sua correspondente de Stanley Kubrick (1928-1999) – lançada em 1962 –, hoje derretemos o tema de forma breve e superficial, mas satisfatória para nos acalmarmos e finalmente mudarmos de assunto.
Voltemos àquele ano, o eixo comum entre nossos quatro personagens desta edição. Crise dos mísseis, Copa do Mundo, Don Draper bebendo e traindo.
Conforme comentamos, já lidamos com dois gênios em estágios diferentes da vida. Em 1962, ano de lançamento de Lolita (o filme), Nabokov vivia seu ápice – escritores não são jogadores de futebol, portanto 63 anos parece a idade certa para começar a colher frutos. Recém-mudado para a Suíça (onde viveria até seus últimos dias), ele lançaria nada menos que Fogo Pálido, outra obra-prima, para suceder Lolita.
Por sua vez, Stanley Kubrick, um nome promissor, sem dúvidas ainda não era Stanley Kubrick. Essa virada de chave aceleraria com seu trabalho seguinte, Dr. Strangelove (1964), e se consolidaria com o pináculo 2001: Uma Odisseia no Espaço, talvez o filme mais impressionante da história. No lançamento de Lolita, o jovem Kubrick estava prestes a completar 34 anos.
- O que queremos dizer com impressionante? A definição mais pura e simples possível, o fator “wow!”, a indignação de “meu Deus, como eles fizeram isso?! E como fizeram isso na década de 1960?”.
- Outro fator a motivar este texto foi a leitura do ótimo livro de Michael Benson. Recomendamos com ênfase a qualquer interessado por 2001.
Porém, entre os vários gênios daquela década, dois eram, além de indiscutivelmente gênios, indiscutivelmente brasileiros. Estamos falando, é claro, de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé (1940-2022), e de Antonio Carlos Brasileiro (!) de Almeida Jobim, o Tom (1927-1994). Para eles, 1962 foi um ano de decolagens.

Como a Coreia do Sul hoje, o Brasil vivia seu ápice de popularidade. Era o sujeito descolado da escola, aquele cuja confiança os outros tentam emular sem sucesso. Bossa nova, Copa do Mundo, Juscelino, Maria Esther Bueno, Garrincha, Clarice, Guimarães Rosa, João Gilberto etc. – até Palma de Ouro. Seus movimentos vingavam em diversas frentes e, àquela altura, parecia que a coisa ia.
Não se trata de saudosismo (nunca), e sim de constatar o óbvio. A confiança é subjetiva e imensurável, e é provável que toda a minha geração morra sem conhecer um país confiante. (O que será que aconteceu logo depois, naquela mesma década, para frear tudo isso? 😒)
Pelé, nosso maior símbolo mundial, havia conduzido a seleção a seu primeiro título mundial em 1958, antes mesmo de completar 18 anos.
Na Copa seguinte, aos 22 – idade ótima para um atleta, péssima para um escritor – embora estivesse voando, machucou-se no segundo jogo, um empate em 0x0 contra a Tchecoslováquia. Foi substituído por Amarildo e viu Garrincha brilhar na campanha do bicampeonato, encerrada contra a mesma Tchecoslováquia (3×1).
No mesmo ano, ele ainda seria campeão paulista, brasileiro (então Taça Brasil), da Libertadores e Intercontinental (mundial). Neste último, destruiu com três gols o Benfica de Eusébio lá em Portugal (2×5).
Vale lembrar que Pelé só disputou três Libertadores: ganhou duas e parou em uma semifinal. Àquela época, era mais vantajoso fazer excursões mundiais – o Santos era praticamente um circo itinerante – do que se enlamear na competição continental, ainda sem transmissão televisiva.
1962 também foi um ano definidor para Tom Jobim por ao menos dois motivos. Primeiro, a histórica sequência de shows com João Gilberto, Vinicius de Moraes e Os Cariocas no restaurante Au Bon Gourmet, em que lançaram, entre outras joias, ‘Garota de Ipanema’. Depois, o absolutamente caótico show em Nova York que apresentou diversos músicos brasileiros a jazzistas de primeira linha dos EUA.
Separando apenas esses dois eventos, já encadeamos o sucesso posterior de Jobim. Em 1967, a consagração mundial viria após a parceria com Frank Sinatra. Ao longo de sua carreira, Tom viveria entre Rio de Janeiro e Nova York gravando obras-primas muito além de bossa nova, como Stone Flower (1970) e Matita Perê (1973).
- É natural que nenhum brasileiro sinta vontade de escutar ‘Garota de Ipanema’, afinal qualquer superexposição dessacraliza. Isso nos afasta de uma beleza ímpar, mas, principalmente, nos faz esquecer o feito que constitui tamanho sucesso mundial.
- “The Girl From Ipanema is a far weirder song than you thought”.
Então voltamos a 1962, ano em que filtramos gênios. À Enclave, hoje interessam esses quatro – poderiam ser tantos outros e tantas outras, poderiam ser outras épocas. Tudo é recorte, e pensar num mundo com Nabokov, Jobim, Kubrick e Pelé em ação traz o tipo de melancolia alegre que nos satisfaz para iniciar a semana.
Baú: Miguel de Cervantes
Extraído da edição 113 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
E [Sancho] mostrou a caçarola cheia de gansos e galinhas e, pegando uma, começou a comer com muita distinção e apetite, e depois disse:
— Pendure a contas nas habilidades de Basílio, pois vales tanto quanto tens e tens tanto quanto vales! Só há duas linhagens no mundo, como dizia a minha avó: a que tem e a que não tem, e ela se agarrava com a que tinha. E, nos dias de hoje, meu senhor dom Quixote, se respeita mais o haver que o saber: um burro coberto de ouro parece melhor que um cavalo encilhado com albarda. Assim sendo, repito que fico com Camacho. Nas caçarolas dele são fartos os ensopados de gansos e galinhas, lebres e coelhos; nas de Basílio, se é que vou botar a mão em alguma, ou mesmo o pé, só deve haver sopa de pedra.
— Acabaste tua arenga, Sancho? — disse dom Quixote.
— Acabei, sim — respondeu Sancho —, porque vejo que vossa mercê se amola com ela, pois, se isso não atrapalhasse, teria pano para três dias de mangas.
— Queira Deus, Sancho — replicou dom Quixote —, que eu não morra sem te ver mudo.
— No passo que vamos — respondeu Sancho —, antes que vossa mercê morra, eu estarei comendo grama pela raiz, e aí pode ser que eu fique mudo, que não diga uma palavra até o fim do mundo, ou pelo menos até o dia do juízo.
— Mesmo que isso aconteça assim, Sancho — respondeu dom Quixote —, nunca teu silêncio chegará aonde chegou o que falaste, falas e falarás em tua vida. Além disso, é muito mais que provável que chegue primeiro o dia de minha morte que o da tua; então não penso jamais te ver mudo, nem quando estejas bebendo ou dormindo, que é o que mais me admira.
— Por Deus, senhor — respondeu Sancho —, não dá para se fiar na Caveirosa, digo, na morte, que tanto come bodes como cordeiros; e, como ouvi nosso padre dizer, pisa com o mesmo pé nos palácios dos reis como nas cabanas humildes dos pobres. Essa senhora tem mais poder que melindres, não tem nojo de nada: come de tudo e tudo faz, e de todo tipo de pessoas, idades e posições enche seus alforjes. Não é ceifador que durma as sestas, porque a toda hora ceifa, e tanto apara a grama seca como a verde; e parece que não mastiga, mas que engole tudo que aparece pela frente, pois tem fome canina, que nunca se satisfaz; e, embora não tenha barriga, dá a entender que está hidrópica e tem sede para beber sozinha a vida de todos, como quem bebe um copo de água fria.
Basta, Sancho — disse dom Quixote nesse ponto. — Fica aí, em terra firme, pois na verdade o que disseste sobre a morte com tuas palavras grosseiras é o que poderia dizer de um bom pregador. Olha, Sancho, se tivesses bom senso como tens boa índole, poderias arranjar um emprego de pregador e ir-te por esse mundo dando lindos sermões.
— Prega bem quem vive bem — respondeu Sancho —, e outras teologias não sei.
— Nem precisa — disse dom Quixote. — Mas não consigo entender como, sendo o princípio da sabedoria o temor a Deus, tu, que tens mais medo de um lagarto que d’Ele, sabes tanto.
— Julgue vossa mercê suas cavalarias, senhor — respondeu Sancho —, mas não se meta a julgar os temores e valentias alheias, que sou pagão tão temente a Deus como qualquer cristão. E me deixe despachar logo essa canja, que o resto são palavras ociosas, de que irão nos pedir contas na outra vida.
Miguel de Cervantes, Dom Quixote, vol. 2, 1615 (trad. Ernani Ssó, Penguin/Companhia, 2012).
Edição de janeiro de 2023
Amanda Vital: Ombudswoman: que reajam os mercados!
Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Car_s leitor_s, é com uma confusão enorme e um cagaço maior ainda que dou início a esse cargo gostoso e mui belicoso do RelevO, o de ombudsman – no caso, ombudswoman (ou, se preferirem, palpiteira, pitaqueira, enxerida, “a mocinha ali”), por causa de uma pira do Nuno Rau de ter recomendado meu nome aos editores para a sucessão do cargo, que é rotativo. Ainda não sei o que deu na cabeça dele, mas vou tentar dar início a esse novo bom ciclo junto de vocês pelos próximos meses. Aproveito para agradecer imensamente a ele [Nuno] e aos editores deste espaço tão querido por nós, apesar de já ter deixado pagos uns cafés com pastéis de nata aqui no café local, a mais de 7 mil quilômetros de distância deles. E eles estão sabendo só agora. Mas vale o que vale, que esse tipo de coisa a gente não oferece a qualquer um.
Esse início é também muito simbólico politicamente falando: escrevo no primeiro número do Jornal desse ano de Lula, com uma nova e boa era se abrindo e o fogo da esperança aceso novamente, depois de um furacão perto de destruidor, no mínimo. Vivemos um período de alívio depois desses últimos quatro anos complicadíssimos com um fascista da qualidade de Bolsonaro no governo. É uma alegria, depois disso tudo, dizer que nosso presidente é Lula de novo. Mas muito se tem falado sobre o mercado reagir mal a isso, e a galera do neoliberalismo (que super funciona, confia) está alvoroçada com a ameaça do país em reduzir as desigualdades sociais, ter pobre almoçando e jantando de novo, essas frivolidades que ninguém quer saber. Olha, convido esses a rezar para os pneus a ver se o mercado ressuscita na forma de Jesus na goiabeira e abençoa a bolsa de vocês, capitalista como ele era. Por aqui, seguimos relativamente tranquilos. Mancando, porque uma pessoa vai comprar pão e tropeça em cinco pedindo intervenção militar, oito pedindo intervenção federal, três pedindo intervenção alienígena, uma Cássia Kis, dois lendo fake news num microfone abafado de acústica horrorosa e tosca… mas mancamos tranquilos. Relativamente.
E por acaso, em uma segunda boa sorte, me calhou uma edição bastante interessante para dissertar sobre, então vai ser meio difícil ser malvadona logo de cara (e o RelevO em si deixa a gente numa posição difícil de shibari, há sempre aquele traço de qualidade no que é publicado por cá). Começando pela capa excelente, uma espécie de Abaporu contemporânea construída com camadas de ícones. Alguns lembram ícones de programas de PC e de celular, por exemplo, de wi-fi, meteorologia… A arte na contracapa faz uma mistura d’O Grito de Van Gogh com o Desespero ou Autorretrato de Coubert, também numa versão contemporânea cheia de formas, curvas, preto no branco, em releituras e reconfigurações frescas e geniais. Tudo dialoga com muito do conteúdo igualmente fresco do número, que abre com biografias tinderescas encontradas no webnamoroverso, angariadas pelo Yuri Araújo, que fez uma curadoria de primeira. Até dá uma pontinha de saudade da juventude orkuteira, igualmente galanteadora e amostradinha, com aquelas biografias manhosas: “Naõ soou peerfeeita, neiim doona da veerdadee. Maaiis, soouu doona dee miim <3, doona dass miinhas voontaadees”. Ah, não faz essa cara, vai! A sua sobrinha usava uma igualzinha a essa!
E por falar em cortejo, a linguiça (blumenau) do Dédallo Neves é uma delícia. Excelente crônica curta, simples e boa, que retrata uma simples linguicinha como um guilty pleasure do narrador – e que acaba sendo nosso guilty pleasure também durante a leitura. O mix de nojo e desejo funcionou muito bem, em doses bem medidas, nada em excesso (nada contra os excessos, aliás), com o equilíbrio do jogo entre culpa e prazer, descrições de objetos e de sensações muito boas e originais. Ainda nos prazeres gastronômicos, o número conta com uma ótima matéria sobre o “chef” Michel Lämb – o requisitado que ninguém requisitou – e fiquei curiosa para saber se Michel é inspiração para alguém existente, dessas mentes mirabolantes da cozinha minimalista e meio nojenta. Não resisto a uma boa tirada de onda dessas gourmetizações, enquanto moradora de um concelho em gentrificação constante, que tem abandonado os prédios centenários onde funcionavam cafés e tasquinhas e, agora, desmontam tudo, pintam a fachada de turquesa e adicionam logotipos de acrílico desenhados no Canva para seus restaurantes mexicanos e japoneses (de empresários que são tudo menos mexicanos e japoneses, nem sabem nada de coisa alguma), lojinhas de presentes inúteis e superfaturados ou espaços de coworking que cobram metade do seu rendimento mensal para uma semana de poltronas ovais, lustres coloridos, mesas de sinuca e cactos.
De volta à literatura – por amor da santa – , o poema da Ana Vilalta também me ganhou um bom bocado. O diálogo com Margaret Atwood é um bom exemplo de como o ritmo na poesia (da pontuação ou falta dela, das estruturas de frase/fala e das quebras de verso) é o diferencial entre prosa e poesia em uma linguagem mais discursiva usada nos dias de hoje. Não concordo com as críticas dos meus queridos colegas de que a poesia desce em qualidade quando cruzada com a prosa. Poesia discursiva, descritiva, em diálogos informais e feita em uma linguagem e um contexto atrelados ao cotidiano, “pé no chão”, pode, sim, ser excelente e um espanto de autenticidade e de novo. Pode, sim, conter as ferramentas ditas “essenciais” da poesia – não só ritmo, mas melodia, conteúdo, beleza, dança (Nuno foi quem me ensinou que não existem formas fixas, as palavras dançam). E pode emocionar, espantar, ter o que falar sobre. É que os semideuses se esquecem de que vivemos em um mundo coletivo e transversal. E gente falando da própria vivência – e da vivência dos seus – na literatura. E, ainda, gente falando de estupro, de sexualidade (ou assexualidade), da falta de comida no prato, da seca, da bebedeira, da bipolaridade, da pedofilia, da falta de políticas públicas… A louvação do belo e o esculpir da palavra são coisas muito bonitas, é inegável. Mas as outras possibilidades não podem ficar no ar ou se esconder dos críticos empoeirados de casacos de cabedal. Até porque, ao mesmo tempo, o poema do Eleazar tem uma proposta diferente e também é excelente, e justamente nele, o que me chama atenção é algo diferente: o jogo de sons bem feito (poema bom para se ler em voz alta, se fortalecendo na oralidade), de rimas (escura/rua, segundo/fecundo, reaparece/prece, até as rimas ocorridas internamente, como bar/ar), e os -s sibilando um pouco ou bastante, como se emulasse um espectro, a Coisa perambulante, vagante, perto e longe da gente. O poema torna essa Coisa uma imagem móvel não só através do que se diz sobre ela, mas sobre como o conjunto da fonética corrobora para isso. E olha que bonita essa outra perspectiva: falando em imagens, o poema da Rosa Lobato de Faria também se ilumina pelas construções de imagens; agora, pela forma como ela descreve o amor em cruzamento com o corpo: olhos, boca, pele, mãos, e como o amor acontece através de cada uma dessas partes; o que quebra a pieguice esperada do tema “amor” é que, pelo meio, são entrecortadas essas imagens moventes no caos, algumas surrealistas até (somos bons em surrealismo), “pomba assustada do coração”, “espelho doido dos olhos”, “todos os gritos (…) debaixo da roupa”. Já o poema da Goliarda Sapienza (com tradução de Valentina Cantori) reúne um pouco disso tudo: a beleza, o inesperado, o ritmo, o cotidiano – e o teatral, que ela salpicou também, a originalidade das imagens, o surreal.
Gastei os caracteres quase todos e quase não falei de prosa, mas deixo uma menção honrosa ao texto “O Filme”, do Andrey Derzette (essa palestra empreendedoresca pré-filme, super do nosso tempo, mas de leitura imersiva e cativante, ao mesmo tempo em que dá vontade de deitar o diretor na porrada). No mais, fico por aqui e desejo um começo de ano gostoso para todo mundo. Bebam muito, mas não façam merda. E sejam amigos (mas se não quiser, não precisa).
2023: um tônico e um euforizante
Editorial extraído da edição de janeiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
A edição de janeiro do RelevO chega com duas novidades. A primeira é a apresentação da nova ombudsman – ou ombudswoman. Depois do ciclo do poeta, arquiteto e professor de história da arte Nuno Rau por quase todo o ano de 2022, Amanda Vital é a nova detentora do cargo, um dos mais importantes do nosso Jornal. Ela é a 15° ocupante do cargo, podendo ficar de 3 a 9 meses na função.
Neste espaço, o ombudsman escreve sobre o RelevO, agindo como mediador entre o leitor e o jornal, apontando aspectos positivos ou negativos do veículo, considerando críticas, sugestões e reclamações ou, ainda, trazendo ponderações sobre o conteúdo publicado. Ao lado da Folha de S.Paulo e d’O Povo, de Fortaleza, somos os únicos jornais do Brasil com o serviço.
A coluna – enviada mensalmente por volta do dia 25 – não pode ser editada pela publicação, cabendo aos revisores apenas o apontamento e a possível correção de erros não intencionais. Amanda Vital é assistente editorial da editora Patuá e co-editora da revista Mallarmargens, além de mestra em Edição de Texto e autora do livro Passagem (Patuá, 2018).
A atual titular foi uma indicação do ombudsman anterior, que pode sugerir até três nomes para substituí-lo. Acreditamos que o olhar de Amanda Vital, insider do meio literário e agente em diversas frentes deste mesmo mercado, possa trazer discussões importantes sobre o Jornal, abrangendo as recepções de leitura e o contexto todo em que estamos inseridos.
A segunda novidade é mais discreta, mas igualmente importante. Reformulamos o nosso Conselho Editorial, adicionando novos nomes. Em 2022, perdemos a bibliotecária Jacqueline Carteri, uma das nossas maiores entusiastas em mais de 12 anos de Jornal. Jacqueline morreu precocemente e deixa um espaço que jamais será preenchido. Atualmente, oito pessoas compõem o grupo, que contempla desde apoiadores muito próximos ao Jornal a ex-ombudsmans que trouxeram colaborações fundamentais ao nosso processo de existir.
Para 2023, ambicionamos reunir presencialmente este Conselho para discutirmos aspectos sempre delicados do RelevO, como as relações entre a política editorial e o departamento financeiro, as dinâmicas do Jornal com os autores recusados para publicação e as naturais complicações de ser um veículo impresso de literatura em um país sempre à beira da convulsão (ou de virar um istmo e sair flutuando pelo mundo).
De modo geral, desejamos que o novo ano seja um pouco mais… equilibrado. Não procuramos a cura que Comte-Sponville menciona em A felicidade, desesperadamente: a pílula da felicidade. “Uma pilulazinha azul, cor-de-rosa ou verde, que bastaria tomar todas as manhãs para se sentir permanentemente (sem nenhum efeito secundário, sem viciar, sem dependência) num estado de completo bem-estar, de completa felicidade”. Apenas queremos continuar com o nosso trabalho, nos divertindo entre a transcendência e a vulgaridade, com menos cambalhotas financeiras para fechar a edição no azul.
Uma boa leitura a todos.
Edição de dezembro de 2022
Lolitas de Nabokubrick
Extraído da edição 112 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, é o melhor livro que este editor leu em 2022, ainda que dezembro inteiro possa surpreendê-lo. Não esperava menos. Quem já teve contato com qualquer coisa escrita por Nabokov entende que o sujeito era basicamente um ET. Ademais, esse clássico contemporâneo dispensa apresentações, em que pese o fato de sua temática por si só ter-lhe fomentado a fama.
Por fim, quem também já teve contato com qualquer coisa dirigida por Stanley Kubrick entende que se trata de outro ET, talvez literalmente. E um jovem Kubrick, após o épico Spartacus (1960), assumiu a tarefa ingrata, hercúlea, espinhosa de adaptar Lolita (1962, hoje disponível no HBO Max). Por sua vez, a Enclave é basicamente uma newsletter sobre adaptações (releituras, reinterpretações, deslocamentos). Concluímos que o encontro Nabokubricko é um prato cheio.
Premissas
Muito já se falou – escreveu, argumentou, esmiuçou – sobre Lolita, em ambientes muito mais confiáveis que este. Porém, vale listar algumas considerações que elucidem, do nosso ponto de vista, por que esse romance é tão desgraçado. A despeito de detalhes muito conhecidos, principalmente para quem leu, partiremos de um leitor menos familiarizado (ou lembrado).
Lolita acompanha as memórias de Humbert Humbert, professor de meia-idade, em uma história já encerrada no momento da narração. Chegamos a ela por meio de um (fictício) editor de livros de psicologia. Nas mãos erradas, metalinguagem pode ser uma bomba de tédio; para Nabokov, é sempre um tempero. “Humbert Humbert” já é um pseudônimo dentro da história.
A partir disso, acompanhamos a trajetória e os devaneios de Humbert, um narrador absolutamente não confiável. Este é um dos cernes do livro: Lolita é, essencialmente, uma história que contém tudo aquilo que conhecemos dentro da perspectiva de seu maior infrator, e apenas dele.
Para tanto, está em boas mãos – nas melhores possíveis. Nabokov transformaria uma história de bingo na igreja na narrativa mais interessante do planeta se a mediasse por um narrador padre inseguro.
- Vale lembrar que já tratamos de Fogo Pálido (1962), outra obra-prima de Nabokov que brinca com um narrador delirante.
Pois bem, assim conhecemos a menina Dolores Haze, “Lolita” apenas na mente torpe de Humbert. Ou melhor, tentamos, pois tudo que ela pensa, sente ou executa nos é relatado pelo narrador que por ela se apaixona e que dela abusa. Não detalharemos o enredo em si.
Mas Lolita, o romance, nos oferece algumas surpresas; não por acaso é tão aclamado. A primeira delas, talvez menos lembrada: como qualquer obra-prima, o livro contém lampejos brutais de humor. Há duplos sentidos, jogos de palavras, azedumes do narrador – rimos dele, não com ele –, xadrez verbal com camadas de interpretação (Nabokov era um estrangeiro nos Estados Unidos e, naturalmente, na língua inglesa, na qual escreveu o livro). Ao longo da jornada de Humbert e Dolores pelo país, há inúmeros códigos à disposição do leitor-desbravador.
E aos poucos, Dolor’osamente (tssssc), nos apegamos ao narrador, um pedófilo manipulador, cretino e triste. Esse é o grau de qualidade da escrita da Nabokov, que brinca com sua arte, esfregando na nossa cara que conseguiria ganhar uma Libertadores com um time da Copa Kaiser. É como se ele nos desafiasse, provocando: “qual é a maneira mais difícil de eu te convencer? Um pedófilo neurótico professor de literatura é o suficiente para vocês? Pois bem”.
Parece piada, mas é bem provável que esse tenha sido o ponto de partida do escritor, um estudioso dos problemas de xadrez.
Ao fim de Lolita – emocionados, frustrados, raivosos, confusos –, experienciamos o suficiente para compreender com um só golpe a beleza da palavra escrita.
Adaptando o inadaptável
Which is why adaptar Lolita é uma tarefa tremendamente estúpida. Kubrick já sabia disso, vide o próprio cartaz da produção:

Afinal, estamos falando de uma suprassumo da palavra escrita. O que acontece na narrativa é menos esteticamente relevante que o efeito da narração. Como transportar esse efeito para o cinema (ou transformá-lo em outra coisa)? E, principalmente, por quê? Ademais, como expor o relacionamento de um marmanjo com uma garota de 12 anos?
Stanley Kubrick também gostava de um desafio – e de xadrez.

O responsável pelo roteiro é o próprio Kubrick, que editou pesadamente o material de Nabokov (ainda que este o assine). Sua Lolita pode ser classificada como uma comédia – a presença do gênio Peter Sellers, capaz de roubar qualquer cena, corrobora essa mudança de ênfase.
No longa-metragem, famoso pela iconografia consagrada no cartaz – isto é, o pirulito e o óculos (que sequer aparece no filme) –, Dolores tem mais que os 12 anos do romance. Ela também é chamada de “Lolita” pelos demais personagens, não só Humbert, e dispõe de uma malícia da qual devemos desconfiar plenamente no livro, afinal só a acessamos via Humbert.
Sue Lyon, aos 14 anos no início das gravações, faz um trabalho extraordinário como enfant terrible, para desespero da mãe, Charlotte (Shelley Winters). E para desespero de Sue Lyon, que nunca conseguiu se desvencilhar “do filme que causou minha destruição como pessoa”.
Dessa combinação emerge a ideia de “lolita” na cultura popular, isto é, da jovem adolescente sedutora – uma figura injusta em relação ao romance.
Por fim, Kubrick sabiamente inverte a ordem (ou o foco) dos acontecimentos – também não detalharemos –, dando muito mais destaque ao personagem de Peter Sellers. O diretor omite qualquer relação explícita entre Humbert e Dolores, promovendo apenas sinais indiretos, embora suficientemente claros.
Ao assistir a Lolita, não lembrava que o filme havia sido gravado em preto e branco. Essa não era uma condição em 1962, mas uma preferência de boa parte dos diretores porque a tecnologia colorida ainda não era tão sólida. Com isso em mente, chama atenção (para surpresa de ninguém) como Kubrick aproveita o máximo de cada quadro, com tomadas longas e diversas camadas visuais em perspectiva. Por exemplo, a cena do baile na escola ou as cenas nos quartos de hotel, com janelas ao fundo.
A trilha sonora de Nelson Riddle (que alguns anos depois faria os arranjos de The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, segundo disco de Tom, que por sua vez recusaria compor a trilha de A Pantera cor-de-rosa [1963], que por sua vez consagraria mundialmente Peter Sellers como o inspetor Jacques Clouseau, um ano depois de brilhar em Lolita… [que por sua vez, 10 anos depois, declararia seu amor à música de Jobim no Sunday Times]) e, pera lá, só um momento, nos perdemos tentando conectar os pontos do planeta, afinal esta seção se chama hipertexto.
A trilha sonora de Nelson Riddle, marcada pela música-tema da protagonista, é por si só um sopro de ar fresco que converge com o tom da obra: Lolita é um filme mais leve, muito menos desafiador que o livro. Esse traço não é um intrinsecamente um defeito, embora exponha a dificuldade de lidar com um material tão complexo. Diante do desafio – e segurando as expectativas –, o resultado surpreende.
All in all, o romance é uma obra-prima, a quinta-essência de sua mídia. O longa-metragem é um bom filme nas mãos de um gênio ainda em desenvolvimento (pois não é nem o quinto em sua essencial filmografia). O encontro Nabokubricko não corresponde ao suprassumo de ambos, mas, não tendo anulado um ao outro, é suficiente para se sustentar. Ler Lolita é uma experiência extraordinária; assistir, no mínimo, vale a pena.
