Poucos elementos ficaram tão associados a Alfred Hitchcock quanto as aberturas do designer gráfico Saul Bass (1920-1996). Este, por sinal, vai muito além dos créditos do diretor inglês, tendo trabalhado com diretores variados e deixado sua marca em muitos pôsteres – e logotipos – ao longo de sua carreira.
Se hoje o cinema e a televisão oferecem créditos dinâmicos, envolventes e com uma tipografia que flutua, captura nosso olhar e conta uma história, muito disso é mérito de Bass.
Até então, os créditos (iniciais ou finais) eram basicamente estáticos, mas esse designer americano identificou a oportunidade de unir forma e conteúdo de uma maneira tão característica que, hoje, forma um gênero próprio.
Ele chamou atenção com um de seus primeiros trabalhos no cinema, o que aconteceu na abertura do noirO Homem do Braço de Ouro (1955, já em domínio público), de Otto Preminger, com Frank Sinatra e Kim Novak (que viria a estrelar Um Corpo que Cai [Vertigo] em 1958).
Aliás, Saul Bass faria os créditos de Pelos Bairros do Vício (Walk on the Wild Side) em 1962, também adaptado de romance de Nelson Algren, autor d’O Homem do Braço de Ouro.
Com Hitchcock, a parceria trouxe resultados marcantes: Um Corpo que Cai,Intriga Internacional(1959, imagem que abre o texto) e Psicose(1960). Só o altíssimo nível. Este editor andou revendo os dois primeiros, daí a lembrança. É impossível deixar passar a contribuição de Bass – ou não perceber sua evidente influência sobre a área, que hoje dedica uma enorme atenção às sequências de título.
Com Martin Scorsese, já na década de 1990 – e com Elaine Bass, sua parceira criativa e esposa –, Bass colaborou em outros filmes notáveis: Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), Cabo do Medo (1991), A Época da Inocência (1993) e Cassino (1995).
Saul Bass morreu de LNH (linfoma não Hodgkin) aos 75 anos, em 1996.
Neste vídeo, vemos uma compilação de vários dos créditos criados por Saul Bass. Essencial.
Além de sua influência eminente (com e mesmo), duas homenagens a Bass são muito explícitas: as aberturas do filme Prenda-me se for Capaz (2002) e da série Mad Men (2007-2015). Sobre esta última, aqui vemos uma discussão bastante aprofundada.
Linkamos no começo do texto, mas vale o reforço: pôsteres e logotipos.
Ninguém escrevia como David Nasser. E ninguém tão sem escrúpulos. Em 1946, induzira o deputado Barreto Pinto a posar de fraque e cueca em seu apartamento no leme para o fotógrafo Jean Manzon, e fez disso uma reportagem de inacreditáveis doze páginas em O Cruzeiro – do que resultou a cassação do mandato de Barreto Pinto em 1949. Como repórter de O Cruzeiro, metade do que David apresentava como fato não passava de ficção – e, na outra metade, o que pontificava no texto era ele, não o assunto. Fazia-se íntimo de cantores, compositores e políticos com quem nunca trocara mais que um bom-dia. E era insuperável na ofensa e na infâmia. À custa disso, e por ter o patrão Assis Chateaubriand às suas costas, construiu o mito de repórter mais poderoso do país.
Mas o poder de David se limitava à página impressa. Fisicamente, ele era uma antologia de mazelas. Nascera muito abaixo do peso, com paralisia parcial nas pernas e problemas de visão. Só começara a andar aos três anos, com a ajuda de aparelhos, e chegara à idade adulta com problemas de coordenação motora. Não conseguia caminhar em linha reta, nem se vestir, nem se abotoar sozinho. À mesa, nas refeições, fazia uma lambança: com dificuldade para cortar os alimentos e levá-los à boca, escorria o alimento pelo próprio peito ou sujava quem se sentasse perto dele. Não admira que evitasse certos ambientes – devia ser o único jornalista do Rio que não ia ao Vogue ou a boate alguma. Talvez por isso falasse delas com desprezo.
O destino natural das “memórias” de Herivelto [Martins] seria O Cruzeiro, revista de que David era o principal nome. Mas, sabendo com quem lidavam, os diretores executivos da revista, Accioly Neto e José Amadio, as recusaram – afinal, por que O Cruzeiro se disporia a massacrar uma cantora tão querida e popular como Dalva de Oliveira? David não se alterou. Levou a série para o vespertino Diário da Noite, outro importante órgão dos Diários Associados, e, em 22 artigos que se estenderam por cinco semanas, dedicou-se a moer Dalva. Os títulos só faltavam saltar da página – “Boa cantora, péssima esposa”; “Dalva, rainha do despudor”; “Meu lar era um botequim”; “[Dalva] Não é mãe; teve filhos” – e garantiram a onipresença do Diário da Noite em todos os trens da Central, bondes e lotações naquele período.
Ruy Castro.A noite do meu bem, 2015 (ed. Companhia das Letras).
Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).
Existe um repositório extraordinário da música brasileira no século 20 alimentado, catalogado e conduzido por um alemão – há praticamente dez anos. Trata-se do Brazilliance, trabalho realmente inacreditável de Andreas Dünnewald.
Descobri o Brazilliance por acaso, parando em uma página que fornecia o histórico de lançamentos da música ‘Lamento no morro’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com artistas, capas e tudo. Dois pontos chamaram atenção de imediato: a catalogação impecável da informação e a acessibilidade aos materiais. Isto é, além de informação, é possível escutar cada uma das versões elencadas.
Há mais de 170 páginas como a de ‘Lamento no morro’, encorpando o mapeamento da música brasileira no século 20, principalmente no que tange ao samba-canção e à bossa nova. Também há 13 mixtapes finíssimas, separadas por tema (From the Vault), e índices de artistas e músicas. Ademais, Dünnewald é autor de Brazilliance (2011, ed. Conte Verlag), livro que compila 1.111 capas de discos brasileiros lançados entre 1952 e 1977.
Subitamente hipnotizado pela iniciativa, entrei em contato com o responsável pela proeza, tentando compreender quem é ele e o que impulsiona uma atividade tão cuidadosa, precisa e completa. Consegui entrevistá-lo: a primeira parte da interação foi publicada na edição de maio do RelevO (já enviada pelos Correios); a segunda estará na edição de junho.
Uma vez em circulação, não deixaremos de juntar ambas as partes nessa grande rede. Brazilliance é o tipo de projeto maluco que merece todo tipo de atenção possível, e a Enclave humildemente sugere que qualquer indivíduo com o mínimo interesse pela música brasileira o confira e invista um tempo percorrendo seu acervo.
E o que, afinal, haveria de mover tamanho empenho advindo de Frankfurt? Um fascínio pela cultura local, algum grande contato pessoal, alguma memória interligada ao nosso país? “Não, nunca fui ao Brasil e quase nunca conheci brasileiros”, disse-me Andreas Dünnewald. Por isso mesmo, Brazilliance não parece explicável. Que saibamos aproveitá-lo!
[Angus] Campbell queria saber o que deixava as pessoas felizes. Seu livro, The Sense of Well-being in America [O bem-estar nos Estados Unidos, em tradução livre], publicado em 1891, começa afirmando que as pessoas, em geral, eram mais felizes do que a maioria dos psicólogos presumia. No entanto, algumas estavam se saindo melhor do que outras nisso. E o que as diferenciava não era obrigatoriamente o nível de renda, o local em que moravam ou o grau de instrução, porque muita gente em cada uma dessas categorias era cronicamente infeliz.
O mais poderoso denominador comum da felicidade era simples. Campbell o resumiu da seguinte maneira:
Ter uma forte sensação de estar no controle da própria vida é um indicador mais confiável de sentimentos positivos de bem-estar do que qualquer uma das condições objetivas da vida a que costumamos prestar atenção.
Mais do que o seu salário. Mais do que o tamanho da sua casa. Mais do que o prestígio do seu trabalho. Poder fazer o que quer, com as pessoas com que se quer é a maior variável de estilo de vida que proporciona felicidade às pessoas.
O grande valor intrínseco do dinheiro – e nunca é demais repetir isso – é a capacidade que ele nos dá de termos controle sobre o nosso tempo. A capacidade de obter, pouco a pouco, um nível de independência e de autonomia que vem de ativos não gastos e que nos proporcionam maior controle sobre o que e quando podemos fazer. (…)
Ter o controle do próprio tempo é o maior dividendo que o dinheiro pode pagar.
Morgan Housel. A psicologia financeira, 2020 (ed. HarperCollins, 2021).
O terceiro movimento da Suite bergamasque (1905), de Claude Debussy (1862-1918), atende por ‘Clair de lune‘ (luar) e teve como inspiração o poema homônimo de Paul Verlaine (disponível aqui).
E esse pedaço, esse breve e notável movimento, certamente é uma das criações musicais mais sublimes de sempre. Você já deve ter escutado ‘Clair de lune’ por aí, conscientemente ou não. Se já conhece, vale reencontrar. Se não conhece, não custa dedicar uns minutos, pois há muito a se ganhar.
A Enclave de hoje, portanto, prefere mostrar a descrever. Limitamo-nos a traduzir ‘Clair de lune’ como uma contemplação da solidão; uma brisa noturna; um chamado às belezas da dor.
Deixamos algumas sugestões nos seguintes links. Com certeza há muito mais pela internet.
Entre Freud e Marx, um afirmando o pan-sexualismo, outro o pan-economismo, estou mais com o último. Em inúmeras ocasiões da vida o sexo não está presente. Nem direta, nem indiretamente. Nem materialmente, nem por inferência. Nem na superfície, nem nas profundidades do psíquico. Já o sentido econômico da vida é total e universal. Sem seu sentido econômico a vida não existe. Sem economia (representada por qualquer esforço humano, horas-trabalho) não se nasce nem se morre. E nas horas de confronto entre sexo e necessidade econômica Freud perde para Marx de goleada. Coloquem diante de um jovem que passou tempo indeterminado abandonado no deserto, uma linda mulher e um magnífico prato de comida e ele só será atraído pela mulher depois de encher o estômago. Pode-se dar uma colher de chá a Freud apenas afirmando que quando um homem tem fome não há nada mais sensual do que a nudez de um franguinho no espeto.
[Obras Completas, p. 6, 1970.]
Num país em que o salário mínimo não atinge ¼ da população, criar conceituações morais, falar em drogas, vícios, excessos sexuais ou morais é inútil e ridículo. É aconselhar as pessoas a fugirem de tentações que jamais se darão ao trabalho de tentá-las.
[Conversa com Carlos Drummond de Andrade, 1973.]
Millôr Fernandes.Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr, 1973, Ed. Nórdica.
Que experiência reassistir a Colateral (2004), blockbuster de Michael Mann (no momento desta publicação, disponível na Netflix). Acredito que muitos o tenham encarado no mesmo contexto deste editor, isto é, há muito tempo. Dois amigos contaram o mesmo relato: “vi com meu pai no cinema”.
Lembro de ter visto Colateral, mas pouco me lembrava. Na miríade de opções disponíveis para assistir a um clique, sem pensar muito, decidi reassistir. Esta newsletter, como salientamos no texto sobre After Hours (1985) – uma beleza relativamente esquecida de Martin Scorsese –, gosta muito de cenários noturnos e dos desdobramentos narrativos típicos deles.
Pois lembro de gostar de Colateral e de considerá-lo um bom filme. Acontece que, agora sem risco de ser traído pela memória, sei que Colateral não é um bom filme, mas um neo-noir extraordinário (néon-noir?).
A premissa é simples: a noite do taxista Max (Jamie Foxx) acaba entrelaçada com a do matador de aluguel Vincent (Tom Cruise). O assassino precisa do motorista para ir de um trabalho a outro; sem querer, sua ocupação acaba revelada ao condutor, que – ameaçado – não pode interromper seu itinerário. Completam a película Jada Pinkett Smith, Mark Ruffalo e Javier Bardem.
A partir disso, testemunhamos um roteiro impecável, redondo e fechado (quase simétrico!) como o ouroboros. Ele é carregado por dois personagens carismáticos e brilhantemente interpretados por Foxx e Cruise. O primeiro traz humor ao drama com reações/expressões sutis; o segundo, bom, quem não dá o braço a torcer por Tom Cruise dentro de campo só pode fazê-lo por implicância.
Afinal, Vincent é o pivô do filme. Fardado com um terno cinza (como Robert De Niro em Heat, a outra obra-prima de Michael Mann), o vilão é um lobo completo: seu cabelo e, principalmente, sua visão de mundo são cinza. Por sua vez, Max, apesar de competente e esperto, vive entre o medo e o comodismo. Para impedir Vincent, portanto, ele precisa ser mais Vincent.
Conforme a narrativa avança (sem spoilers), identificamos as fraquezas dos dois protagonistas – e como eles se complementam. O desenvolvimento de Max é espetacular: gradual, divertido, coerente. Por meio de sinais visuais, falas e ações (num bolo só), ele é compreensível o suficiente para gerar uma aula de semiótica, mas não explícito e mastigado a ponto de acabar com a fluidez da descoberta.
Mann pincela essa narrativa com cenas noturnas belíssimas, carregadas de contemplação. Viajamos com o táxi, vemos as luzes de Los Angeles e nos surpreendemos quando o diretor assim deseja. Como toda grande obra, seu drama não anula diálogos genuinamente engraçados. Colateral, enfim, é um filmaço em que os personagens avançam com (e graças ao) enredo.
Eu digo por razões dialéticas: a proximidade do mar, o fato do João [Gilberto] ser baiano, o fato do Vinicius [de Moraes] ser um homem culto. Eu acho que houve uma série de circunstâncias para que isso [bossa nova] acontecesse. No Rio de Janeiro ainda existe uma influência climática, uma vagabundagem, certa folga que favorece a criação. Aqui é o pindorama. Você não pode compor “No rancho fundo” em Nova Iorque, não pode. Você pode compor como memória: Guimarães Rosa, por exemplo, escreveu grande parte de sua obra na Alemanha, João Cabral de Mello Neto em Barcelona. Mas o que eles traziam dentro? Quer dizer, o sujeito escreve como memória. É possível que eu vá pra Moscou, fique num quarto de hotel e faça um choro autenticamente carioca. Mas isso é pelo que eu tenho dentro da cabeça. Você não pode se descartar do seu meio. Eu nunca fiz outra música que não música brasileira, porque é o melhor que a gente sabe fazer. (…)
O Villa-Lobos, por exemplo, dizia que era o último dos grandes músicos. Tive a felicidade de conhecê-lo e creio que ele queria dizer com isso, que um músico no sentido que ele foi cada vez se torna mais difícil no mundo de hoje, entende? A música passa a se tornar uma arte visual, ligada a gestos, roupas, imagens, atitudes, política e tudo o mais. A gente pergunta: mas qual é o meio de se ouvir uma sinfonia? Radinho de pilha ou televisão? Esses dois meios são inadequados. Como você vai ouvir a Sagração da primavera no radinho do carro? Você pode, mas está perdendo 90% do conteúdo sonoro.
A música exige uma atenção por parte do ouvinte que hoje em dia não tem mais tempo. Ainda outro dia li no jornal que tudo que tem mais de cinco minutos de existência deve ser destruído. Quer dizer, toda obra que exige muito tempo, como um romance por exemplo. Você vê, nós pensamos hoje em dia em termos de leitura dinâmica, de informação, de passar a vista em quatro ou cinco jornais, três revistas e se libertar daquilo o mais rapidamente possível e, ao mesmo tempo, estar informado para estar por dentro, não é? Eu não creio que essas coisas levem à criatividade. O indivíduo que sofre de superinformação, de superalimentação, de supertrabalho, de superócio, ele está sempre dirigido, entende? E as pessoas são dirigidas muito facilmente, o que é lamentável descobrir, não é fato? (…)
Sinto uma padronização e diversificação de quase tudo. Muitas vezes, os jovens que se dizem livres e que almejam a liberdade estão todos se vestindo igual, tendo as mesmas atitudes, o que nos faz supor que eles não sejam tão livres assim. (…) O sujeito acreditar em ideias é um problema, o raciocínio comparativo é falso. O dar nome às coisas prejudica a compreensão: quer dizer eu chamo Maria de Maria, e penso que conheço Maria, quando Maria não é nada disso.
Antonio Carlos Jobim, 1968 (!). Encontros: Tom Jobim. Frederico Coelho e Daniel Caetano (org.). Azougue Editorial, 2011.
A atriz Jessica Walter morreu em 25 de março, isto é, há dez dias. Ela teve uma carreira longeva, com destaque para Play Misty for Me (Perversa Paixão, 1971), em que sua personagem, Evelyn, persegue Clint Eastwood, por sinal em sua estreia como diretor. Também ganhou um Emmy em 1975, com a série (e a protagonista) Amy Prentiss (1974).
Como a maioria da minha geração, no entanto, conheci Jessica Walter graças a Arrested Development (2003), brilhante série de comédia que acompanha os Bluth, uma família decadente e picareta em busca de algum alinhamento interno.
Arrested Development acabou precocemente (2006) e retornou desnecessariamente (2013, depois 2018). Nesse meio tempo, influenciou qualquer produção audiovisual que visasse a fazer alguém rir. Criada por Mitchell Hurwitz e narrada por Ron Howard (aquele), a série atingiu uma execução absoluta em sua proposta errática.
Hurwitz criou personagens tão problemáticos como marcantes, com frases igualmente marcantes e dramas visíveis, expostos em comentários banhados no mais absoluto cinismo. Isso tudo rodando por meio de um elenco muito acima da média, capaz de conferir o dinamismo necessário para o roteiro funcionar.
Afinal, em sua produção original (2003-06), o que havia de incomparável em Arrested Development era o ritmo. Este é justamente o que afasta quem (ainda) não a compreende, mas encanta quem compra a ideia. Uma vez que o espectador entra no ritmo dessa dança, ele se vê diante de uma miríade de caminhos para rir (inclusive com piadas escondidas).
E Lucille Bluth, interpretada por Jessica Walter, é consistentemente a personagem mais engraçada da série mais engraçada de sua época. Lucille é a matriarca alcoólatra, cruel, elitista, controladora, ciumenta, xenófoba e racista da família.
O que poderia gerar uma caricatura unidimensional ganha aquele contorno de carisma que apenas a execução primorosa proporciona. Com suas caras e bocas, sua entonação, seu alcance e seu timing, Jessica Walter elevou a personagem a um nível em que é simplesmente impossível detestar Lucille Bluth, não importa quão detestável ela seja.
Não à toa, em Archer(2009–), a personagem Malory Archer, mãe do protagonista – e dublada por Walter –, é praticamente uma reprodução de Lucille Bluth (e, outra vez, rouba qualquer cena). Porque todo mundo conhece alguma Lucille, mas ninguém conhece essa Lucille. Tal amálgama de perversão e sagacidade só é possível com Jessica Walter.
Nos acostumamos com a morte das figuras que admiramos; a verdade é que, a essa altura (da vida pessoal e da civilização), ela impacta cada vez menos. Mas algumas, rompendo com a lógica do afeto, marcam mais que o esperado. A de Jessica Walter sensibiliza por alguns motivos imediatos:
Sentimos uma espécie de carinho latente e inesgotável por quem é capaz de nos fazer rir.
Ela era um componente extraordinário de (ao menos) uma obra extraordinária.
A atriz visivelmente não compartilhava dos traços de personalidade de Lucille/Malory, o que só reforça sua qualidade.
Descanse em paz, Jessica. I’ll be in the hospital bar.
O golpe de 10 de novembro foi o triunfo do desejo de Vargas, evidente havia muito tempo, de permanecer no cargo além do mandato legal, que expiraria em 1938. Desde 1935 ele empurrava os adversários para uma posição em que lhe fosse possível desacreditá-los ou refreá-los, ao mesmo tempo que, cuidadosamente, cultivava o apoio de bem estabelecidos grupos de poder, como os cafeicultores e a cúpula militar. Para apaziguar os cafeicultores, por exemplo, em outubro de 1937 Vargas havia baixado o teto dos preços do café brasileiro, num esforço para aumentar as vendas (e, quem sabe, a renda total das exportações) no exterior. No que dizia respeito aos militares, o comando do Exército planejava uma solução autoritária para a crise política brasileira desde a revolta comunista de novembro de 1935. A cúpula militar achava que o Brasil não tinha capacidade para aguentar a confusão e a indecisão da disputa política aberta, e amedrontava-se com a possibilidade de novos avanços dos radicais de esquerda – que, se um dia chegassem ao poder, poderiam acabar com o papel de árbitro supremo dos conflitos políticos exercido pelas Forças Armadas. No fim das contas, o golpe de 1937 foi possível porque a classe média, esse pequeno mas importante grupo social capaz de assegurar o equilíbrio de qualquer sistema de eleições livres restrito a eleitores alfabetizados, estava confusa e dividida. Alguns eleitores de classe média continuavam leais a seu tradicional constitucionalismo liberal, e depositaram suas esperanças em Salles Oliveira na campanha de 1937. Outros, perdida a confiança em seu liberalismo original, voltaram-se para o radicalismo de esquerda ou de direita. Ao fazer isso, admitiram na prática que a fórmula liberal já não se aplicava ao Brasil e que estavam, portanto, preparados, ainda que inconscientemente, a aceitar, quase sem protesto, o tipo especial de autoritarismo que Vargas impôs, de súbito, em novembro de 1937. O golpe de novembro de 1937 fechou o sistema político. E todas as questões de força eleitoral nas eleições marcadas para janeiro de 1938 se tornaram acadêmicas.
Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), 1967 (Companhia das Letras, 2010).
Nosso hipertexto de hoje é um tanto azedo e resmungão – ao menos em sua primeira metade –, mas não deve ser levado tão a sério, isto é, ainda menos que o usual.
1.
A Enclave é uma grande fã de ficção científica, por isso mesmo se vê um pouco cansada de ficção científica. Com a herança maldita da (promissora, porém intragável) Black Mirror e seus episódios projetados como grafites do Banksy, parece que tudo ficou “distópico”, afinal “Facebook” ou tanto faz.
Seguindo a mesma linha, alguns devem ter assistido a Electric Dreams, espécie de Black Mirror genérica e supostamente adaptada das obras de Philip K. Dick – um escritor cheio de defeitos, mas jamais acusado de falta de diversão, ao contrário de Electric Dreams (também promissora, bem mais intragável).
Assistimos a quatro dos dez episódios produzidos pelo Channel 4. Ou cinco, ou seis, pois é sempre difícil pormenorizar o esquecível. Certamente não conferiremos os outros seis (ou cinco, ou quatro), porque há pouquíssimo a se ganhar ali.
Nos últimos anos, também houve o lançamento deAltered Carbon. Chuva! Néon! Detetives! O que poderia dar errado? Também não conseguimos ir além de dois episódios, dada a fraqueza dos personagens, da trama, dos atores e da crítica social explícita demais para gerar qualquer reação. Mas yeah, distopia!
Perdidos entre efeitos especiais e metáforas baratas, roteiristas, diretores e produtores esquecem que, por exemplo, Firefly(2002) é uma das melhores séries de ficção científica de todos os tempos mesmo parecendo uma novela do SBT.
2.
No entanto, um sopro de ar fresco vem arejando esse segmento tão querido: trata-se da série Tales from the Loop, lançada ano passado pela Amazon Prime. Ficamos curiosos ao ler que ela seria um anti-Black Mirror.
Para aproveitar a contextualização do texto de Beatriz Amendola, “a série criada por Nathaniel Halpern (‘Legion’, ‘The Killing’) tem um passo mais contemplativo, com viagens no tempo e idas a outros mundos servindo para explorar temas tão reais quanto universais, como luto, família e solidão. Seu olhar para a existência humana é mais delicado e, também, mais esperançoso. É quase um anti-‘Black Mirror’.”
Tales from the Loop parte de um universo concebido pelo sueco Simon Stålenhag, cujas telas – como a que abre este texto – circulam pela internet há algum tempo. Você pode (e deveria!) vê-las aqui.
Stålenhag visualizou e conseguiu expressar um retrofuturismo analógico e elegante (portanto, o oposto de Stranger Things… brincadeira, essa a gente nem viu). O loop em questão corresponde a um acelerador de partículas em uma cidade (bastante rural) da Suécia.
A série parte desse cenário, sem se preocupar com grandes explicações, mas sem abandonar a coesão narrativa. Visualmente, é criativa e estimulante, e a trilha sonora – de Philip Glass e Paul Leonard-Morgan – é encantadora por si só. Inclusive, você pode (e deveria!) ouvi-la mesmo sem assistir à produção.
Embora cada um dos apenas oito episódios se concentre em um personagem ou núcleo distinto, esses indivíduos retornam, trafegando sutilmente ao longo da temporada. Aos poucos, montamos um quebra-cabeça suficiente para apreciar as peças soltas e encaixadas dessa obra convicta em sua lentidão, mas jamais desinteressante.
Até porque sutileza talvez seja o ponto principal: embora contemple viagens no tempo e autômatos, a série tem em sua doce melancolia a catarse mais valiosa.
Tales from the Loop, enfim, consegue um feito raro, não só para a ficção científica: produzir beleza. O que sempre foi e sempre será mais difícil do que projetar qualquer simbolismo manjado, efeitos especiais brilhantes ou o cinismo absoluto. A Enclave recomenda – e ressalta que azedos e resmungões fornecem bons filtros.
Veja – O senhor teve contato pessoal com artistas como o americano Andy Warhol. Quais suas impressões dele? Robert Hughes – Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até produziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dúvida de que é a reputação mais ridiculamente superestimada do século XX.
Veja – E quanto ao francês Marcel Duchamp? Hughes – Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primeiro artista em minha lista dos mais importantes de sua época. Sua elevação à condição de figura “seminal” nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de idéias notáveis. Pessoalmente, prefiro um pintor como o francês Pierre Bonnard. Muita gente considera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um trabalho de Duchamp. Além disso, a influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi liberadora, mas também catastrófica.
Veja – Por quê? Hughes – Porque ser o pai dessa bobagem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para compreender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos infantis. Ou precisa ler uma bula para entender o que o artista quis dizer.
Em noites de confinamento – voluntário ou por inércia –, a imagem das ruas vazias da cidade têm me lembrado de After Hours (Depois de Horas), não um disco recente, mas o filme de Martin Scorsese, lançado em 1985.
After Hours me fez gostar de cinema, isto é, não de “ver um filme”, mas de apreciar a imagem, a edição, a trilha sonora, as pontas amarradas de uma história; enxergar aquela arte como uma linguagem própria. O estalo começou ali, na adolescência.
Trata-se, claro, de conclusões retroativas: não tive uma epifania e/ou passei a dedicar a vida ao Expressionismo alemão no Ensino Médio (nem agora). Mas o território começava a ganhar um mapa; um esboço de mapa. Por isso, Depois de Horas, além de seu valor intrínseco, puxa um valor afetivo.
Como toda curiosidade genuína, esta nasceu com a guarda baixa, não contaminada pela pretensão. Lembro de ligar a televisão (cinza, de tubo) no início da madrugada e, por acaso, parar no canal que transmitia After Hours.
Não sabia que aquele era um filme de Scorsese, o que tampouco faria diferença, porque ‘scorsese’ podia muito bem ser o nome de um molho, à época. Também não saberia descrever a função de um diretor. Hoje, me impressiona quanto não ouço grandes menções à película quando o assunto é a filmografia desse brilhante contador de histórias.
No entanto, havia uma magnetismo naquelas imagens, mesmo que jurássicas do ponto de vista de um adolescente. Tudo se passava à noite, porém uma noite estranha, com personagens fascinantes, pitorescos. Nenhum cenário ou sujeito daquela trama poderia existir sob a luz do dia.
Exceto o protagonista, Paul, interpretado por Griffin Dunne (recentemente, ele apareceu na extraordinária Succession). Paul é um eterno deslocado no enredo, atirado como uma bola de pinball entre um desconforto e outro – o que faz de sua jornada tão cativante.
Em Nova York, nosso herói conhece uma mulher e combina de encontrá-la após o trabalho. A partir daí, surgem problemas que, ao invés de soluções, acarretam novos problemas. Até porque a verdadeira protagonista de After Hours sequer é Paul, mas a própria noite, com seu eterno mistério e a não linearidade exclusiva às sombras.
Flutuando por cenários típicos de Edward Hopper, mas com enorme sensibilidade cômica, Scorsese costurou um filme de Alfred Hitchcock a seu modo – podemos chamar de paródia. São premissas literalmente fascinantes, pois geram um deslumbramento, uma curiosidade que leva à aproximação.
Talvez esse efeito seja amplificado agora, quando não conseguimos nós mesmos testemunhar qualquer não linearidade na magia da noite. Afinal, não há magia: travados no tempo, resta o resgate de elementos queridos. After Hours é um deles.
Começo de imediato com meu interrogatório:
— Garrincha, por quanto tempo você foi o cozinheiro preferido de João [Gilberto]?
— Pouco mais de cinco anos, mais ou menos.
(…)
— E como era quando João ligava?
— Sempre a mesma coisa. Onze da noite, no Plataforma, o telefone tocava, e João dizia: “Boa noite, Garrincha”. E eu: “Boa noite, João”. Ele: “Como vai, Garrincha?”. “Tudo bem, João.” “E como vai sua esposa, Garrincha?” “Bem também, João.” “E as crianças, como estão?” “Todas bem, João.” “Adriana sarou?” “Sarou, sim. A gripe já passou.” “O que tem hoje no cardápio, Garrincha?” “Acabamos de receber peixe fresco, João. Um bacalhau maravilhoso, servido com legumes e arroz. É muito bom, acabei de experimentar, comi ainda agorinha.” “E o que mais tem, Garrincha?” “O de sempre, João: picanha, churrasco, costelinha, lombo de porco, costeleta de cordeiro, atum, perca, lagosta, peixe-espada.” “O peixe-espada está bom, Garrincha?” “Está excelente, João. Vou mandar grelhar e temperar com uma nova mistura que acabei de inventar. Você vai adorar.” “Vou querer o steak, Garrincha.” “Está bem, João.” Então, entre meia-noite e uma da manhã, o mesmo entregador levava quase sempre o mesmo prato para ele. Deixava o pedido no chão, diante da porta. E, no dia seguinte, a cena toda se repetia.
— Quanto tempo durava a conversa ao telefone?
— Uns quarenta minutos.
— E assim foi durante cinco anos?
— Assim foi durante cinco anos.
— Você nunca viu João pessoalmente?
— Não, nunca vi.
— O entregador chegou a ver ele?
— Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.
— Mas isso é piração, Garrincha.
— Isso é João Gilberto, meu senhor.
***
Depois, [Roberto Menescal] põe de lado o violão e diz:
— Então… Quer dizer que você quer se encontrar com João Gilberto?
— É.
— Pois tome cuidado — avisa Menescal.
— Por quê?
— João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.
— Como assim?
— De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre.
(…)
— Você parece ser imune a ele. Por quê?
— Eu me afastei na hora certa. Contato mesmo, a última vez que tivemos foi em Nova York, em 1962. Na época do concerto no Carnegie Hall.
— E o que aconteceu em Nova York?
— Olha, eu simplesmente me cansei do tipo. Estávamos circulando por Manhattan, porque João queria comprar um chapéu, um daqueles chapéus típicos, com uma pena do lado. Assim sendo, fomos a uma chapelaria. Uma chapelaria muito boa, com paredes de quatro metros de altura e um gigantesco sortimento de chapéus, que os vendedores foram trazendo para João, um atrás do outro. E João dizia: “Este é bonito, mas não tem esse modelo num cinza um pouco mais claro?”. E o vendedor: “Sim, podemos fazer”. João: “Não, não, melhor não. Gosto daquele ali em cima, se bem que… a pena deste aqui é muito mais bonita”. “Podemos trocar”, disse o vendedor, “fazemos o chapéu como o senhor preferir.” João: “Não sei… Não, me traga aquele outro ali, o da prateleira”. Passamos quatro horas naquela chapelaria, sem que ele comprasse o tal chapéu. Assim é João. Como uma criança. E nem vou contar a você quantas vezes ele já me telefonou no meio da noite, pedindo que eu levasse um violão para ele, um violão que nunca devolvia ou dava de presente a alguém, como se fosse dele, sem me agradecer, sem nem mesmo abrir a porta para apanhar o instrumento.
— Ele sempre foi assim ou ficou desse jeito?
— É assim desde que conheço ele.
Marc Fischer, Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto, 2011 (Companhia das Letras).
Georgiana, Duquesa de Devonshire (1785-87), por Thomas Gainsborough. “Eu poderia acender meu cachimbo nos olhos dela”, irlandês bêbado desconhecido.
Na parte 1, começamos a narrar as peripécias de Adam Worth pautados pelo livro O Napoleão do Crime (1997), de Ben Macintyre.
Hoje, acompanharemos Henry J. Raymond, a identidade abraçada por Worth após deixar os Estados Unidos e rumar à Europa, em 1869. Se você tem a sensação de já ter ouvido esse nome em algum lugar, é porque Henry Jarvis Raymond (1820-1869) foi um dos fundadores do New York Times. A nova alcunha de Worth, portanto, já partia de uma piada com o recém-falecido – e homem ilustre da época.
Adam Worth e Piano Charley (agora Charles H. Wells), literalmente parceiros em crime, desembarcaram em Liverpool para morar no hotel Washington, onde se interessaram (ambos!) por uma funcionária do bar.
A irlandesa Kitty Flynn, uma ambiciosa jovem de origem pobre, passaria anos envolvida num triângulo amoroso que pareceu funcionar muito bem a um trio eternamente descolado dos padrões éticos ou morais vigentes. Em Liverpool, Worth roubaria as joias de uma loja de penhores após distrair o dono e copiar sua chave em cera. Moleza.
Ansioso, o trio se moveu para Paris no final de 1870, durante a Guerra Franco-Prussiana, onde (e quando) “uma mulher podia ser presa por fumar nos jardins das Tulherias, porém a imoralidade pessoal era quase de rigueur. A superfície era magnífica, mas a corrupção e a libertinagem desregradas”.
Lá, o trio abriu um bar, cuja engenhosidade era tão cinematográfica que merece ser detalhada:
O American Bar era uma operação dupla. O segundo andar do prédio foi transformado numa espécie de clube para norte-americanos em visita à cidade, completo com as últimas edições dos jornais dos Estados Unidos e escaninhos de onde os expatriados podiam apanhar sua correspondência. (…) Nos andares superiores da casa, entretanto, a cena era bem diferente. Ali Worth e Bullard montaram uma operação de jogo em grande escala, bem equipada e totalmente ilegal. Importando crupiês dos Estados Unidos e especialistas em bacará, deram ao covil um lustro cosmopolita, mas foi Kitty quem acabou sendo a principal atração, porque “sua beleza e seus modos cativantes atraíam muitos visitantes norte-americanos” (…).
Havia um botão de alarme discreto, instalado atrás do bar, “que o barman apertava, tocando uma campainha nos salões de jogos acima sempre que a polícia ou qualquer pessoa suspeita entrasse”. Segundos depois de ter soado o alarme, Worth podia apresentar os andares superiores do número 2 da rue Scribe de forma tão calma e respeitável quanto os inferiores.
O ambiente, hoje um dos hotéis mais caros de Paris, funcionou por três anos, durante os quais a dupla mantinha roubos esporádicos (de diamantes, por exemplo) e o trio galgava espaço na nobreza local. Quando começaram a dar bandeira de suas atividades paralelas, os três venderam o bar e zarparam para Londres.
“Henry Raymond”, “Charles Wells” e Kitty Flynn se estabeleceram no Western Lodge, uma bela mansão onde Worth atingiria sua maturidade picareta e se converteria num verdadeiro líder do submundo, sempre marchando conforme a própria batida.
Personagem de traços peculiares – “orgulhava-se de um regime pessoal severo, abstinha-se de bebidas fortes, levantava-se cedo, trabalhava duro na profissão escolhida, fazia donativos às instituições de caridade, talvez até frequentasse a igreja e, ao mesmo tempo, quebrava todas as leis que pudesse encontrar e enriquecia-se com a riquesa dos outros” –, ali se concretizava o Napoleão do crime.
Usando seus associados de maior confiança, ele distribuía serviços criminosos, em geral em bases contratuais e através de outros intermediários, para homens (e mulheres) selecionados do submundo de Londres. Os vigaristas que executavam os trabalhos sabiam apenas que as ordens eram passadas de cima para baixo, que os lucros eram bons, o planejamento impecável e que os alvos – bancos, caixas de estações ferroviárias, residências de indivíduos ricos, correios, armazéns – eram selecionados pela mão de um grande mestre. O que eles nunca ficavam sabendo era o nome do homem no topo, nem mesmo o daqueles no meio da pirâmide de comando que Worth estruturara. (…) Worth estava praticamente imune (…). Sempre fanático pelo controle, Worth estabeleceu sua própria forma de omertà por força de sua personalidade, de sua rígida atenção aos detalhes, de sua supervisão severa mas sempre anônima de todas as operações e do gasto de uma proporção de seus lucros para garantir, se não a lealdade, pelo menos o silêncio. (…)
Sóbrio, trabalhador e leal, Worth era um criminoso de princípios, os quais impunha a sua quadrilha com disciplina rígida. Com exceção de Piano Charley, os bêbados eram excluídos e a violência terminantemente proibida. “Um homem com cérebro não tem o direito de carregar armas de fogo”, ele insistia.
Nesse contexto, Adam Worth roubou a Duquesa de Devonshire, tela de Thomas Gainsborough que você vê na abertura deste texto, em 1876. A duquesa havia sido perdida por décadas, então foi reencontrada, depois adquirida por William Agnew – o maior preço já pago por uma pintura, à época – e exposta na galeria do comprador na Old Bond Street, para deleite do público. O quadro já era objeto de disputa entre os Rothschild e os Morgan nos Estados Unidos.
Desesperando todos eles, de madrugada, Worth/Raymond subiu pela frente da galeria com auxílio de um capanga e se apoiou no parapeito da janela. Tudo isso enquanto o vigia dormia (bons tempos…).
Com um pé-de-cabra, forçou o batente da janela e entrou. Cortou o retrato da moldura com uma lâmina, enrolou-a cuidadosamente e saltou nos ombros de seu assistente para sumir com a duquesa e causar um alvoroço sem precedentes.
O quadro permaneceria com o Napoleão do crime por 25 anos, durante os quais ele a levaria em suas inúmeras viagens. Nesse período, Worth/Raymond, cada vez mais a figura viva da duplicidade, criaria uma enorme obsessão pela duquesa e se envolveria em uma negociação extremamente peculiar para devolvê-la.
Mas este texto já se estendeu muito: os detalhes, somados ao desfecho de Adam Worth e às suas influências na (Mori)arte, estão todos lá n‘O Napoleão do Crime (1997), que obviamente recomendamos.
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