Baú: Vladimir Nabokov

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Em qualquer era que Sebastian tivesse nascido, ele ficaria igualmente divertido e infeliz, alegre e apreensivo, como uma criança numa pantomima de vez em quando pensa no dentista de amanhã. E a razão de seu desconforto não era que ele fosse moral numa era imoral, ou imoral numa era moral, nem era a sensação paralisante de sua juventude não florir com a naturalidade suficiente num mundo que era uma sucessão muito rápida de funerais e fogos de artifício; era simplesmente a sua consciência de que o ritmo de seu ser interior era tão mais rico do que o de outras algumas. Mesmo então, bem no final de seu período em Cambridge, e talvez antes também, ele sabia que seu menor pensamento ou sensação tinha sempre pelo menos uma dimensão a mais do que os de seus vizinhos. Ele podia ter se vangloriado disso se houvesse qualquer coisa melodramática em sua natureza. Como não havia, só lhe restava sentir a estranheza de ser um cristal entre vidros, uma esfera entre círculos (mas tudo isso não era nada comparado ao que ele experimentou ao finalmente mergulhar em sua tarefa literária).

Vladimir Nabokov, A verdadeira vida de Sebastian Knight, 1941 (Ed. Alfaguara, 2010).

Adam Worth, Napoleão do crime (parte I)

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Leitores das aventuras de Sherlock Holmes já ouviram – ou melhor, leram – essa descrição. Não é por acaso, afinal trataremos da maior inspiração para o arquivilão prof. Moriarty.

O criminoso mais brilhante do século 19 foi um baita cavalheiro, de certa forma. Adam Worth, possivelmente nascido Wirth, provavelmente nascido Werth, certamente nascido na Alemanha (em 1844), migrou cedo com sua família para os Estados Unidos.

Quando a Guerra Civil Americana estourou, em 1865, Worth já era um adolescente promissor na arte da falcatrua: ele se consolidou como um bounty jumper (saltador de recompensa, em tradução livre). Ou seja, sua atuação consistia em alistar-se tanto na União como na Confederação, e então sumir.

Conforme relata Ben Macintyre em O Napoleão do Crime (Cia. das Letras, 2000), fonte das informações e das citações deste texto:

Durante os meses seguintes, Worth estabeleceu um sistema: ele se alistava num regimento qualquer, sob nome falso, recebia a gratificação que estivesse sendo oferecida, em seguida desertava. Assim foi que vagou de um lado do esparramado exército a outro, mudando de nome a cada parada e desenvolvendo um talento para a farsa que, mais tarde, tornar-se-ia uma profissão em tempo integral.

A prática, além de obviamente malvista, era criminosa. Bounty jumpers costumavam utilizar tantas identidades quanto possível, e Worth havia contado com a sorte ao ser erroneamente declarado morto, quando ainda lutava (a princípio, de verdade) pela União, em 1862.

Após a guerra – encerrada em 1865 –, Worth se estabeleceu em Nova York, que acolhia quilingues e sevandijas de todos os tipos (o filme Gangues de Nova York, baseado em livro homônimo de não ficção de 1927, se passa basicamente nesse cenário).

As coisas começaram a decolar para Adam Worth. Primeiro praticando pickpocketing (crimes de carteirista), depois como líder de gangue. Logo foi preso, e mais rapidamente ainda fugiu. Um universo se abriu para o malandro quando Fredericka Mandelbaum o acolheu.

Poderosa matriarca do submundo, “Marm” era uma receptadora/interceptadora extraordinária, servindo como um verdadeiro sistema de conexão entre mercadorias roubadas e eventuais compradores. Perfeitamente encaixado nessa equação, Worth passou a roubar bancos, atividade na qual se destacaria pelo resto da vida.

Nesse ramo, compôs sua obra-prima (até então, vamos com calma!) em 1869, ao lado do parceiro americano Charles Bullard, o Piano Charley, e do irlandês Big Ike Marsh. Juntos, eles assaltaram o Boylston National Bank, em Boston. Para fazê-lo, elaboraram um plano engenhoso:

Fazendo-se passar por William A. Judson e Co., negociantes de tônicos de saúde, os parceiros alugaram o prédio adjacente ao banco e puseram uma divisória na frente da janela na qual estavam expostas “umas duzentas garrafas contendo, segundo os rótulos, quantidades de ‘Tônico Oriental Gray'”. “As garrafas tinham o um propósito duplo (…); o de mostrar o negócio e o de evitar que o público visse o lugar” (…).
Depois de calcular cuidadosamente o ponto onde a parede da loja era contígua ao cofre de aço do banco, os ladrões começaram a cavar. Durante uma semana, trabalhando apenas à noite, Worth, Bullard e Marsh empilharam o entulho nos fundos da loja até que, finalmente, “o cofre ficou exposto”.

Restou cortar o cofre, o que não foi tarefa fácil, tendo sido pacientemente realizada com a realização de inúmeros furos pequenos, os quais formaram um buraco de apenas 45 x 30 centímetros, pelo qual Worth entrou. De lá, começou a retirar o tesouro, que dormia guardado em baús de lata. Pela manhã, os três sumiram em uma carruagem, então pegaram um trem para Nova York.

O roubo – de cerca de 200 mil dólares – foi, sob qualquer critério, estrondoso, chocando a sociedade (e, naturalmente, trazendo dores de cabeça para a dupla protagonista na ação). Marsh logo retornou à Irlanda, onde bebeu seu dinheiro. Então voltou aos EUA e foi preso tentando assaltar outro banco.

Worth e Bullard, cientes dos riscos envolvidos – a agência Pinkerton, precursora do FBI, passou a persegui-los – decidiram rumar à Europa. Antes disso, colheram os frutos do roubo ao Boylston National Bank:

Agindo com rapidez, o par despachou os papéis roubados para um advogado (…) com instruções para esperar alguns meses, depois vender os títulos por uma fração do valor real e remeter os lucros no tempo devido. Na época esse era um método amplamente aceito de se recuperar propriedade roubada, sob as vistas da polícia, que muitas vezes ajudava a negociar o retorno dos títulos, para vantagem tanto dos donos quanto dos ladrões. “Tudo que [os ladrões] precisam fazer é entrar ‘num acordo’, o que significa abrir mão de parte dos lucros, e depois dedicar suas horas de lazer a planejas novas vilanias”, observou o Boston Sunday Times.

No Velho Continente, a vida dupla de Adam Worth começou, ou melhor, desenvolveu-se como nunca. Ali ele morreu novamente: o gentleman Henry J. Raymond – um bon-vivant, um aristocrata – tomou seu lugar. E a história de Worth/Raymond ainda notabilizaria diversos episódios, todos pitorescos.

> PARTE 2 <

Baú: Toquinho

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Todo músico tem a sua ‘Aquarela’. Essa música não tem muita explicação porque ela é uma antimúsica. É uma música grande, tem uma letra enorme, não tem refrão e fala de uma maneira fatalista que tudo vai acabar. Tudo vai se descolorir. O mundo vai acabar. E virou uma música infantil porque as crianças detectaram nela um começo lúdico. “Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo”… Mas, na segunda parte dela, ela fala da morte. Então é uma música que não tinha que fazer sucesso. E ela fez sucesso no mundo inteiro e em várias línguas que eu gravei. Ela tem 37 anos de vida e hoje é tocada. ‘Aquarela’ tem um carisma inexplicável para mim. Canções como essas ficam maiores do que seus compositores. Ela já não pertence a mim. É assim que é a vida. Você faz a música e a joga para o mundo, que nem um filho. E depois que está no mundo, a vida dele já não te pertence. São filhos que estão aí mundo afora e às vezes voltam para te ver.

Toquinho, 2020.

Mère Louise, um cabaré western em Copacabana

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Mère Louise, na esquina à direita, no início do século 20.
Foto: Augusto Malta. Fonte: Rio de Janeiro Aqui.

1907, Rio de Janeiro, Copacabana. Muito perto de onde seria o Forte de Copacabana, que ainda não existia (ele foi inaugurado em 1914), exatamente na esquina das atuais R. Francisco Otaviano e Av. Atlântica. Ali funcionava o Mère Louise, restaurante de frutos do mar administrado pela francesa Louise Chabas.

“Restaurante” é uma simplificação. O Mère Louise era um verdadeiro cabaré parisiense, um café dançante à beira-mar carioca. Lembrando que o Rio de Janeiro ainda era a capital do Brasil – e seguia um forte processo de urbanização.

Segundo Ruy Castro, em A Noite do Meu Bem, o estabelecimento funcionava “ao estilo de um saloon do Oeste americano, com varanda, portas em vaivém dando para o salão, piano, balcão, espelho e mesas, tudo em torno de uma cadeira de balanço da qual Madame Louise controlava o movimento. Apesar do ambiente mais propício a vaqueiros, seus clientes eram a nata letrada e boêmia do Rio: políticos, ministros de Estado, diplomatas, artistas e jornalistas, alguns acompanhados de ‘amigas’ ou admiradoras”.

Havia shows, havia comida, havia diplomacia e baixaria. Mas, principalmente, havia serviço – à noite, permanecia sempre aberto – e havia logística – os bondes próximos rodavam até as duas da manhã (podemos ver trilhos na imagem que abre o texto). A seguinte imagem, também do incrível Augusto Malta e também retirada do canal Rio de Janeiro Aqui, mostra o cabaré mais de perto, já num cenário mais urbanizado, com iluminação. Nela, vemos a Av. Atlântica e a praia à direita.

Para as emergências, também havia quartos. “Louise conhecia a todos pelo nome e ia de mesa em mesa, falando com cada um. Tal intimidade tornava natural que, em emergências, ela cedesse – pela escorchante diária de 6 mil-réis – discretos aposentos nos fundos para quem precisasse ‘repousar'”, ainda de acordo com Castro.

Movimentado por figurões, o estabelecimento era visado. As brigas eram comuns; os tiroteios, pouco raros. A atratividade da região também trazia um problema um tanto incontornável: alguns clientes, depois de encher o bucho e a cara, entravam no mar. O resultado é óbvio.

Idosa – mas, principalmente, cansada de confusões e de calotes –, Louise Chabas vendeu o local em 1911. O Mère Louise sobreviveu até o início da década de 1930, quando foi demolido e deu lugar ao Cassino Atlântico. Hoje, ali existe o Shopping Cassino Atlântico. Chabas se aposentou, instalou-se num asilo, desistiu da aposentadoria e administrou outros estabelecimentos. Morreu em 1918, aos 73 anos.

Dezoito menos um

O que este civil garboso faz no meio dos militares da Revolta do Forte de Copacabana, em 1922? Qual é a relação desse evento com o Mère Louise? Pela última vez (hoje!), emprestamos um trecho de Ruy Castro:

Na tarde do dia 5 de julho de 1922, em que dezoito oficiais e soldados rebeldes deixaram o Forte de Copacabana para se bater até a morte contra as forças do governo de Epitácio Pessoa – os “18 do Forte” –, o Mère Louise não tinha por que se meter. Aliás, tudo recomendava a neutralidade. Mas, quando os militares passaram pela sua porta, um de seus clientes, o gaúcho Otavio Corrêa, veio lá de dentro, chegou à calçada e lhes fez um aceno. Estava aderindo à rebelião e queria uma arma. O tenente Newton Prado acedeu e entregou-lhe um fuzil Mauser. Corrêa juntou-se a eles e, na mais famosa foto que se fez da marcha, pode-se vê-lo de terno escuro e chapéu-chile – o único civil da foto –, na primeira fila. Talvez por isso tenha sido um dos primeiros a ser abatido, antes mesmo que chegassem à rua Bolívar. Com isso, o Mère Louise tinha agora um mártir.

Nem sempre o espírito de quem acaba de ser motivado por Cristiano Ronaldo gera resultado.

Baú: Fernando Schüler

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Sempre desconfiei dos que atribuem coerência demais à trajetória dos atores políticos. O jogo do poder frequentemente adquire uma lógica própria, há o erro, há o desvio, o exagero e, por fim, há sempre muita teoria disponível para interpretar e ajustar a realidade. O fato é que [Carlos] Lacerda fez do “golpismo democrático” a marca maior de sua personalidade política. Aquela que produziu o “lacerdismo”, uma arte, um pecado da política brasileira, que consiste em pôr em xeque as instituições da República quando interessa. Uma arte sem ideologia, frequentemente feita de bons argumentos. Pecado que ninguém mais, felizmente, soube cometer como Lacerda.

Quem sabe o lacerdismo tivesse um componente estético. Lacerda foi, na definição de Rodrigo [Lacerda], alguém com a “trágica incapacidade de aceitar o mais ou menos, na terra do mais ou menos”. O ponto é que a democracia vive, em boa medida, do mais ou menos. Do acordo, da procura pelo consenso. A vida de Lacerda foi a recusa permanente do acordo. Talvez tenha sido seu personagem: o moralista da República. Atores políticos elegem seus personagens. Juscelino escolheu ser o otimista, o democrata, o “sonhador do Brasil”; Tancredo escolheu ser a tradução discreta do bom-senso. Lacerda fez sua escolha. Nunca pareceu arrependido, mesmo na derrota.

Fernando Schüler, 2014.

Baú: Howard Marks

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Ouvimos muito a respeito de projeções do “pior cenário”, mas elas muitas vezes acabam não sendo suficientemente negativas. Conto uma história do meu pai sobre o apostador que perdia regularmente. Um dia, o apostador escutou sobre uma corrida com apenas um cavalo, então ele apostou o dinheiro do aluguel. No meio da pista, o cavalo pulou a cerca e fugiu. Invariavelmente, as coisas podem ficar piores do que as pessoas esperam. Talvez “pior cenário” signifique “o pior que vimos no passado”. Mas isso não significa que as coisas não podem ficar piores no futuro. Em 2007, muitos “piores cenários” foram extrapolados.

Howards Marks, The Most Important Thing, 2013. Tradução nossa.

Baú: Clarice Lispector

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Quando eu me comunico com criança, é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com adulto, na verdade estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil… O adulto é triste e solitário. A criança tem a fantasia muito solta.

Clarice Lispector, 1977.

Baú: Chico Lopes

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Há algo de adolescente masturbador, sexualmente virginal ou travado e bobo nas maiores fantasias de Lovecraft, para ficar só nele, pai espiritual de toda essa gente. Livros (e filmes, claro) de terror, na verdade, impressionam mais, quando se os olha friamente, pela força que as superstições, as paranoias sexuais, os atavismos, as criações familiares rígidas e puritanas, as infantilidades persistentes, podem ter. A gente fica com a impressão de que esses autores simplesmente exorcizam, indefinidamente, infâncias povoadas por monstros que, se abertos o armário, se dissipariam, ou por criaturas demoníacas (sic) que, se o criador delas fosse mais sincero e mais audacioso ou menos indulgente com os próprios medos e hesitações, se dissolveriam depressa num ato sexual bem praticado, com o devido prazer e com o devido conhecimento de genitais que, em fantasias paranoicas, assumem até tentáculos e antenas e tecem enormes fantasias de grotesco com secreções, viscosidades, etc. O filme de terror típico sempre traz algum jovem crédulo ou tecnicamente ignorante (porque o gênero ficou decididamente adolescente) que tateia diante de uma realidade assustadora, punitiva, ligada à repressão sexual ou a algum terror racista ou xenofóbico, que lhe foi inculcado por uma educação torta, com base na excessiva correção WASP. Seus pais reais, com seus preconceitos, rigores e fanatismos (basta lembrar a mãe de Carrie, a Estranha) são muito mais horrendos e talvez sejam os únicos verdadeiros horrores a produzir outros tantos, de fantasia. A puerilidade desses livros e produções, que se prolonga e rende muito dinheiro, dá o que pensar. Para ficar apenas nos filmes que adaptam obras de Lovecraft, como são ruins! Quanto mais pomposo e “ciclópico” (é outro dos adjetivos constantes do autor) o horror, mais a tendência a ficar ridículo, risível, na tela. Só se assustam os pouco sofisticados.
Chico Lopes, Revista Germina, 2014.

Baú: Ben Macintyre

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Antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a Abwehr (que literalmente significa “defesa”) tinha reputação de ser o mais eficiente serviço de inteligência da Europa. Uma primeira avaliação do MI5, o serviço de segurança que controlava a contraespionagem no Reino Unido e em todo o império britânico, descreveu a Abwehr como “organização de primeira classe em treinamento e em pessoal”. Essa estimativa era claramente lisonjeira. Um dos aspectos mais importantes do serviços da inteligência nos países era como cada lado sabia pouco sobre o outro. Em 1939, o SIS, serviço secreto de inteligência britânico (também conhecido como MI6 e que opera em todas as áreas fora do território britânico), não sabia como o serviço de inteligência militar alemão se chamava e nem quem o dirigia. Em uma autoavaliação franca, escrita depois do fim da Segunda Guerra, o MI5 reconheceu que “na época da queda da França, a organização do serviço de segurança como um todo estava num estado que pode ser descrito apenas como caótico (…) tentando desenvolver meios de detectar agentes inimigos sem qualquer conhecimento interno de organização alemã”.

A Abwehr se encontrava igualmente mal preparada. Hitler não havia esperado ou desejado entrar em guerra com a Inglaterra, e a maioria das operações de inteligência dos nazistas era dirigida para o leste. A rede de espionagem da Abwehr na Inglaterra era virtualmente inexistente. Quando os dois países se enquadraram para o conflito, uma estranha dança de sombras se iniciou entre os serviços de inteligência rivais: ambos começaram a construir freneticamente redes de espiões, quase que do zero, para uso imediato. Cada um atribuía ao outro extrema eficiência e preparativos bem adiantados, e ambos estavam errados.

Ben Macintyre, Agente Zigzag, 2007 (Ed. Record, 2010).

Baú: hippies em Woodstock (Ayn Rand)

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Antimaterialistas declarados cuja única manifestação de rebelião e individualismo toma a forma material das roupas que escolhem vestir são um espetáculo ridículo. De todo tipo de inconformismo, esse é o mais fácil de praticar – e o mais seguro.

Mas mesmo nessa questão, existe um componente psicológico especial: observe as roupas dos hippies. Não têm o objetivo de deixá-los atraentes, mas sim grotescos. Não têm o objetivo de despertar admiração, mas sim escárnio e pena. Ninguém se faz parecer uma caricatura a não ser que queira que sua aparência implore: “por favor, não me leve a sério”.

(…)

Seus encantamentos histéricos de adoração do “agora” eram sinceros: o momento imediato é tudo o que existe para a mentalidade de nível perceptivo, vinculada ao concreto, animalesca: compreender “amanhã” é uma enorme abstração, uma façanha intelectual disponível apenas ao nível conceitual (ou seja, racional) da consciência.

Ayn Rand, palestra “Apolo e Dionísio”, 1969. Tradução nossa.

Baú: economia budista (E.F. Schumacher)

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Enquanto o materialista está fundamentalmente interessado em bens, o budista está interessado em liberação. Mas o budismo é “caminho do meio”, portanto de maneira nenhuma antagônico ao bem-estar físico. Não é a riqueza que se antepõe à liberação, e sim o apego à riqueza; não a fruição das coisas agradáveis, e sim a “fissura” por elas. A chave da economia budista, portanto, é a simplicidade e a não violência. De uma perspectiva econômica, a maravilha do modo budista de viver é a racionalidade última do seu padrão – o agradavelmente menor levando a resultados extraordinariamente satisfatórios.

Para um economista moderno isso é uma coisa muito difícil de entender. Ele está acostumado a medir o “padrão de vida” por quantidades de consumo anual, tendo como certeza indiscutível que o homem que consome mais “é superior” ao homem que consome menos. Um economista budista consideraria esse enfoque excessivamente irracional: desde que o consumo é apenas um meio para o bem-estar do ser humano, o objetivo deveria ser obter o máximo de bem-estar com o mínimo de consumo. Portanto, se o propósito da roupa é obter uma certa quantidade de calor e uma aparência atraente, o desafio é conseguir isto com o mínimo de esforço possível, isto é, com a menor destruição anual de roupas possível e com o auxílio de um design que envolva a menor destruição possível. Quanto menos destruição tiver provocado, mais está liberado para o esforço da criatividade artística. (…) O que acaba de ser dito sobre roupas se aplica igualmente a qualquer uma das necessidades humanas. A propriedade e o consumo de bens são um meio para atingir um fim específico, e a economia budista é o estudo sistemático de como atingir determinados fins com a menor utilização de recursos. O agradavelmente menor levando a resultados extraordinariamente satisfatórios.

A economia moderna, por sua vez, considera o consumo como o único e válido objetivo de toda a atividade econômica, tomando os fatores de produção – terra, capital e trabalho – como meros meios. A primeira, em resumo, tenta maximizar as satisfações humanas pelo padrão ótimo de consumo, enquanto a última tenta maximizar o consumo pelo padrão ótimo do esforço produtivo. É fácil perceber que o esforço necessário para sustentar um modo de vida que busca atingir o padrão ótimo de esforço produtivo é obviamente muito menor do que aquele dispendido para sustentar um sistema que quer atingir o máximo de consumo. Não devemos ficar surpresos, pois, que a pressão e a tensão da vida sejam muito menores, digamos, em Burma do que nos USA, a despeito do fato de que a quantidade de máquinas poupadoras de trabalho usadas no primeiro país seja infinitamente menor do que no segundo.

Simplicidade e não violência estão obviamente ligadas bem de perto. O padrão ótimo de esforço produtivo, que é produzir um alto grau de satisfação humana com uma taxa relativamente baixa de consumo, permite às pessoas viver sem grandes pressões e tensões, e as possibilita preencher a injunção básica do ensinamento budista: “pare de fazer infernizações, tente fazer o bom”. Uma vez que os recursos naturais são limitados em todas as partes do mundo, as pessoas usando esses recursos para satisfazer suas necessidades de forma modesta com certeza estarão menos propensas a agarrar as gargantas uns dos outros do que aquelas que dependem de uma maior taxa de utilização desses recursos. Igualmente, as pessoas que vivem em comunidades locais altamente suficientes estão muito menos propensas a se meter em violência em larga escala do que aquelas pessoas cuja existência depende de sistemas mundiais de comércio.

E.F. Schumacher, Economia budista, 1966. Tradução: Luiz de Rezende Puech, 2006.

O escritório onde gostaríamos de procrastinar…

…ou até trabalhar. Elegantemente.

Extraído da edição 77 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

A essa altura de 2020, qualquer comentário sobre 2020 é redundante, repetitivo; uma retroalimentação entre cansativo e cansado. A Enclave te poupará (mas, principalmente, se poupará) de qualquer análise.

Mas houve bons momentos em 2020, naturalmente. Entre aqueles agradáveis e singelos na vida do editor, consta a descoberta acidental de um livro sobre o arquiteto Frank Lloyd Wright (Wright, 2006) escrito por seu aprendiz Bruce Books Pfeiffer (1930-2017) e editado pela Taschen.

O livro foi traduzido para o português (de Portugal), então distribuído no Brasil pela Paisagem. Não sei como foi parar no canto escuro de um sebo pouco charmoso do centro de Curitiba, onde eu havia entrado para buscar outra encomenda e, com a adição de 18 reais, saí com duas. (Aparentemente, ainda há opções baratas no mercado.)

De acordo com a folha de rosto, Wright: construir para a democracia foi impresso em Singapura, o que, em outra descoberta acidental, nos liga à última Enclave. Pois bem, se semana passada sonhamos com coquetéis no Atlas Bar, hoje trazemos a matriz da SC Johnson em Racine, Wisconsin (EUA).

Finalizado em 1939, o edifício contém esse escritório que você vê na abertura do nosso texto. Mas a criação de Wright vai muito além do escritório (embora este nos cative mais no atual momento): o edifício, complementado por uma torre de pesquisa em 1950, é tão singular como encantador, interna e externamente.

Segundo Pfeiffer (p. 57), “Na sala de trabalho principal, uma floresta de finas colunas brancas de betão eleva-se para se abrir em cima e formar o tecto, sendo os espaços entre os círculos cheios de clarabóias feitas de tubos de vidro. Nos cantos, onde as paredes normalmente encontram o tecto, estas param um pouco mais abaixo, sendo continuadas por tubos de vidro que se ligam às clarabóias”.

O Arch Daily descreve o Johnson Wax da seguinte forma:
  • “Estar no edifício é um pouco como estar em uma floresta. Um estacionamento mais baixo, com colunas menores, leva ao saguão. Quando alcança-se a Grande Sala, o céu se abre e você está cercado por esbeltas colunas cogumelos e raios de luz. (…) Wright forneceu espaço de trabalho quase utópico, auto-suficiente e um tanto quanto futurista. A atmosfera moderna e racional foi comunicada através de uma linguagem circular consistente, perfis de canto curvos, formas arredondadas em peças de mobiliários e o uso do vidro Pyrex, que se estendem além dos materiais de cobertura para divisórias de paredes e substituem as janelas convencionais.”

Tal como o bar em Singapura, as fotografias são autoexplicativas. Nesse escritório, gostaríamos de usar o YouTube, reclamar da falta ou do excesso de ar-condicionado, decidir onde almoçar, ouvir fofocas sobre o alto escalão corporativo (sem fomentá-las!), isto é, tudo aquilo que se faz num escritório.

Esta página institucional da SC Johnson contém um histórico e mais fotos, algumas bastante preciosas. O Atlas of Space, por sua vez, dispõe imagens inestimáveis aos interessados – em alta resolução. Dele, extraímos as fotografias no miolo deste texto. Outra página do Arch Daily (aqui, em inglês) apresenta mais imagens e mais detalhes da construção.

Baú: H.P. Lovecraft por Houellebecq

Extraído da edição 77 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Incapaz de deixar uma carta sem resposta, [H.P. Lovecraft] evitava seus devedores quando seus trabalhos de revisão literária não lhe eram pagos. Subestimando sistematicamente sua contribuição a novelas que, sem ele, nem sequer teriam sido publicadas, Lovecraft se comportará durante toda a sua vida como um autêntico gentleman.

De certo ele gostaria de se tornar escritor. Mas não se além a isso. Em 1925, num momento de desânimo, ele observa: “Estou quase decidido a não escrever mais contos, mas simplesmente sonhar quando estiver disposto a isso, sem me ater a uma coisa tão vulgar como transcrever meu sonho para um público de porcos. Concluí que a literatura não é um objetivo conveniente para um cavalheiro; e que a escrita deve sempre ser considerada uma arte elegante à qual devemos nos dedicar sem regularidade e com discernimento.”

Felizmente, ele continuará seus escritos, e seus melhores contos são posteriores a essa carta. Mas, até o fim, continuará sendo sobretudo um “velho gentleman benevolente, nativo de Providence (Rhode Island)”. E jamais, em tempo algum, escritor profissional.

Michel Houellebecq, H.P. Lovecraft: contra o mundo, contra a vida, 1991 (Ed. Nova Fronteira, 2020).

Atlas Bar, onde gostaríamos de encher a cara

Extraído da edição 76 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Fechamos este texto na sexta-feira à tarde, portanto não estranhem o conteúdo na segunda pela manhã.

Até porque 9h da manhã em Brasília são 20h em Singapura (com s), onde gostaríamos de estar – com ou sem chiclete – neste momento. Mais especificamente no imponente Parkview Square, mais especificamente no Atlas Bar.

Primeiro, o edifício. Inspirado no Chanin Building – este construído no fim da década de 1920 em Nova York –, o Parkview exala uma sofisticação art déco parte Gatsby, parte Gotham City, parte banda de jazz, parte Bioshock, parte possível excesso brega porém saudável.

Com 144 metros de altura, é apenas o 80º prédio mais alto de Singapura, mas certamente um dos mais fascinantes. Fica pertinho (5 minutos de carro, segundo o Google) do megalomaníaco Marina Bay Sands, um complexo difícil de resumir, fácil de enxergar e propício a gastar dinheiro – isto é, se você tem algum. O Parkview Square ficou pronto em 2002.

Nele, brilha o Atlas Bar, mais bem representado por imagens do que por palavras (aliás, mais fotos no Cool Hunter, de onde tiramos a primeira). Ele é, enfim, o bar onde gostaríamos de encher a cara elegantemente.

E é isso aí. A Enclave de hoje é bastante autoexplicativa.

Ok, é claro que dinheiro não traz necessariamente elegância (“a arte de não se fazer notar aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir”, Paul Valéry), o que não significa que ele a impeça. O Atlas Bar é o tipo de ambiente que faz você querer se vestir como um personagem de Mad Men; sua imponência intimida com reverência, não desdém.

E aquele acervo…

O bar dispõe de um dos maiores acervos de gin (com n ou m) do mundo, talvez o maior. É tão grande que os funcionários têm que basicamente voar para pegar certas garrafas (ou tinham, não sei confirmar se essa logística permanece). Entre as raridades, há até champanhe resgatado de naufrágio (e servido no Titanic, mas não resgatado de lá – aliás, eis aqui um belo vídeo do acervo do Atlas).

Mas esses materiais estupidamente caros nos interessam menos. Os apenas muito caros nos cativam mais, então quem dera sentar-se nesse salão espaçoso, sentir-se um espião na Guerra Fria (em plena “Disneylândia com pena de morte“) e saborear um lindo, refrescante e inflacionado whisky sour sob a meia-luz dos desejos – caros demais, distantes demais, inconvenientes demais – materializados.

Ah, segundo o site oficial, é proibido entrar de bermuda e/ou chinelo.