Silvio Demétrio: No mínimo

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Aqui mais uma vez eu e você estamos. Você aí do lado de fora da página e eu daqui dentro desse silêncio. Apenas uma voz que se deixa imaginar pelos seus olhos. Algo que nunca será superado é a sensação de se abrir um livro ou jornal impresso como quem descortina uma cena. A página é um palco imaterial. Uma tela. O silêncio. A iminência. Um véu que se levanta para ver mais além. Vidência e sinestesia. Mundos que se pode tocar com o avesso das pálpebras. Eu e você já estamos lá, exatamente agora. Esse lugar sagrado que existe no intervalo entre o que poderia ser e o talvez. Aquilo que se cogita. Aquilo que se agita e insiste por entre as palavras. Não dá para misturar isso com essa mesquinhez que se chama realidade. A miséria da vida como mero fato finito. Aquilo que se deixa caber numa planilha de ganhos e despesas. A arte é aquilo que a vida pode ser para além dela mesma. A grandeza da vida. O que faz valer a pena cada fôlego que se respira. É só para os raros. Afinal de contas, nem todos vivem. Essa é a história. O sentido. Ele não existe porque deve ser produzido. Ser a mais. Devir.

É que tudo passa a ser. Tudo se move. Tudo se passa ao ser. Uma página é uma potência. E para trabalhar com algo assim se exige muita sensibilidade. Porque qualquer movimento brusco ou indelicado pode por tudo a perder. É necessário despir-se de qualquer avareza. A arte é da mesma natureza da generosidade. É por isso que não existe “Eu”. “Eu é um outro”, como no verso de Rimbaud. Não pode existir “Eu”. Senão tudo dança.

Encrusta-se alguma prosódia clandestina assim quando se tem de falar na transversal sobre uma das muitas pedras que se espalham pelos caminhos de alguém que leva no heroísmo uma publicação como o RelevO. Vejam só: até agosto fica bonito quando se deixa a arte ser o que ela é. A edição desse mês está pura dinamite. É lindo ver isso acontecendo. Quem não se sente muito pequeno dividindo uma mesma encadernação com talentos como Luci Collin? A diagramação está atenta para o que a poesia sempre nos ensinou graficamente. Os espaços em branco são tão importantes quanto. Isso é respeito pelo leitor. Pelos olhos que tornam essas virtualidades e potências das páginas num mundo de vozes que constroem algum sentido de toda essa algazarra (como são lindas as palavras que nos legaram os mouros).

Em tempos de uma imprensa lamentável que transformam rifles de paintball em fuzis terroristas com um golpe de recorte é que se vê o quanto é crucial aprender com a poesia a se respeitar o todo — e isso inclui do leitor ao referente. Nunca se precisou tanto de poesia e arte. Por destino e sorte nosso RelevO ganha uma abrangência maior, passando a circular em mais cidades. Um verbo precioso: transbordar. Ir para além dos limites. Exceder as fronteiras. Desterritorializar-se. Mais além, mais além.

Quem não saca isso não percebe o quanto é minúsculo o toma-lá-dá-cá que se propõe insidiosamente à redação quase que diariamente. Algo como “eu te mando um texto e você me dá uma assinatura”. Literatura, poesia e arte sempre nasceram de gestos heroicos. A equipe que produz o periódico passa por grandes pauleiras em absoluto silêncio. É porque isso não interessa nem aos leitores e muito menos à própria equipe. Problemas são coisas que se desconstroem. E se deixa lá. No vácuo escuro. Porque o que interessa é “ocupar espaço e poetar conforme o caso”, como poderíamos entortar algo que o Torquato Neto deve ter escrito em algum momento. Assinaturas do jornal são de responsabilidade da administração. Não existe qualquer poesia e arte nesse campo. Administradores apenas administram, quase sem nenhuma poesia. E é por isso que existem as páginas pagas. Mesmo assim, todos os valores do RelevO são módicos (daí a resistência da poesia até nesse detalhe de ordem administrativa). Desconheço outra publicação que consiga imprimir tanta personalidade aos anúncios. Todos são criações de artistas gráficos que fazem tudo no mesmo espírito de toda a equipe e colaboradores: pelo prazer que rima com a generosidade de ver acontecer.

Aqui tudo é símbolo. O domínio do arbitrário como exercício libertário. Deixe acontecer que tudo rola. “Deixe sangrar” como Gal Costa em “A Todo Vapor”, disco emblemático produzido pelo saudoso Waly Salomão, de quem sempre me lembro do aviso: “Cave Canen”, “cuidado com o cão”. Beware of Darkness. Ele me dizia dos perigos dessa fogueira das veleidades chamada mundinho literário. Baudelaire atualizado para uma realidade pequenomesquinha: quando um homem visita outro que está enfermo é só para certificar-se da superioridade de sua própria saúde. Bicho, não vá perder-se por aí. O perigo é você engrossar o coro dos contentes que agora batem panelas e agridem atrizes pelas esquinas do lado de fora do teatro.

Abaixo o lamentável, o postiço. O ilegítimo. Chega de picaretagem. Chega de tristeza. “Gente é feita para brilhar”. Sucesso é coisa careta. O barato é o sentido. Como o sapo de Bashô que pulou no tanque. Uma pedra que rompe a superfície e a transforma por reverberar em movimento o som que já não é mais do que a memória do próprio salto. Fiquemos à espreita de algo. Esse é o método. A atenção. Dos ouvidos aos olhos. O tato. Aspire. Do ar queira. Cogite. Mas também desobedeça.

Enquanto eles dormem nós sonhamos. Em honra e homenagem ao que podemos ser: não acorde. O que significa que é para não dormir no ponto. Quem cobra favor é porque antes de tudo suborna a si mesmo. Vamos ser de verdade. Para além dessa vontade minúscula e enferma de encher o próprio bucho com a carniça dos desejos mortos de alguém. Abutragem. Urubulice. Neologismos-traquitanas disfarçados de palavras-valises.

Que esse agosto seja leve e lindo e que dessa viagem o RelevO da paisagem, uma promessa de aventura e fé no sentido. Cresceremos na mesma medida que nos tornarmos menores. Como Alice. Beba-me. Leia-me. Decifra-me ou te devoro. Assim como fiz com Silvio Demétrio nesse texto. Para você que me leu até aqui o universo e tudo o mais. O máximo.

Sorriso arcaico

Extraído da edição 37 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O Sorriso Arcaico é uma expressão facial encontrada principalmente em esculturas do período arcaico da Grécia Antiga, entre 650 e 480 a.C. Não há consenso sobre o motivo pelo qual os artistas da época esculpiam os rostos assim, mas alguns conceitos estão bem estabelecidos.

O período arcaico se desenvolveu após o colapso das civilizações micênicas e a “era das trevas” que a sucedeu. Foi um período de renascimento das artes, no qual os gregos tiveram que “reaprender” a representar o corpo humano. Por isso, a escultura arcaica se caracteriza por uma grande rigidez em sua forma.

Sua influência mais perceptível vem da arte egípcia e de seu estilo monumental. No Egito Antigo, as representações artísticas eram restritas às divindades. O sujeito – um faraó ou um deus antropozoomórfico – deveria demonstrar sua transcendentalidade; e sua expressão facial e corporal, um retrato de sua eternidade.

A mesma expressão de ausência e eternidade já podia ser vista no Egito Antigo, como mostra esse busto de Nefertiti.

Esse era provavelmente o papel do sorriso arcaico: conferir um aspecto não natural à obra; indicar que aquilo à mostra não era humano, e sim sobrenatural. É como acontece na iconografia bizantina: não há uma representação fiel do mundo material, mas sim um símbolo de uma perfeição celestial que não pode ser alcançada na Terra. Além disso, esse sorriso contido reflete um estado de bem-estar e felicidade plena.

De fato, nenhuma das figuras apresentadas neste texto parece ter a menor das preocupações. Inclusive, uma das teorias de historiadores da arte é de que essa expressão simboliza a felicidade por meio da ignorância, já que as estátuas realmente têm um ar um tanto avoado.

Outra teoria defende que a escolha dessa boca levemente curvada, com lábios apertados, seria simplesmente uma questão técnica: era difícil talhar detalhes nas cabeças tipicamente arcaicas, em formato de bloco.

Nem guerreiros feridos escapavam do sorriso clássico, como mostra essa figura do Templo de Aphaia.

Contemporâneos aos gregos arcaicos e vizinhos dos romanos, os etruscos também usavam o mesmo recurso, como podemos visualizar no sensacional Apulu de Veii, de 500 a.C. Independentemente de sua razão de ser, o sorriso arcaico permanece como um ótimo recurso para identificar a origem temporal e espacial das esculturas que o ostentam.

Comparando com obras também gregas, mas de outras épocas, ficam claras as discrepâncias: distingue-se da escultura grega Clássica e de seus semblantes mais sérios e serenos, e ainda mais da expressividade intensa da escultura da época Helenística.

Silvio Demétrio: O fiel

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um dos mitos mais interessantes da imprensa é o jornal “Libération”, o “Libé”, como carinhosamente e conhecido por seus leitores. É que em 1973 o jornal teve como um de seus fundadores a figura de Jean-Paul Sartre (ele foi seu editor durante algum tempo). A reverberação do maio de 68 ainda era muito forte e a publicação nasceu com uma alma profundamente marcada por um desejo libertário. Em sua primeira fase, não abria espaço para publicidade. Sua receita baseava-se na venda em bancas e no público assinante, equação cujo resultado qualitativo era uma independência radical em relação a condição editorial dos outros jornais. E assim o foi por quase uma década. No começo da década de 1980, o modelo arcou-se a concessões e passou a abrigar anúncios publicitários. No entanto, o mito já tinha nascido. A ideia de um jornal como uma entidade autônoma e independente. Hoje o “Libé” e um jornal convencional do ponto de vista empresarial – desde 2005 conta em seu quadro de acionistas com os 37% de Edouard de Rothschild. Sim, o Libération alimenta-se hoje de seu mito fundador.

Outro mito é a retumbante joia editorial da contracultura, a “Rolling Stone” (a americana). Nascida na florida San Francisco dos cabelos longos da década de 1960, hoje a publicação não e nem mais sombra do que foi em seus áureos dias de fúria contracultural. O que antes era independência e organicidade com as transformações culturais de seu tempo transformou-se numa tradicional publicação gerida por um espirito empresarial que a transformou numa franchising. Sim, a convencional publicação brasileira que ostenta hoje a logo da franchising anima-se de toda essa complacência normalzinha – só lembrando a heroica luta de Luiz Carlos Maciel, nos anos 1970, publicando uma versão nossa e verdadeira da “Rolling Stone”, que realmente tinha alma de pedra rolante. Maciel, o também jardineiro da Flor do Mal que Torquato Neto tanto amava.

Entupir ou não entupir, eis a contradição. Entupir de anúncios. Engasgar as páginas com a necessidade de grana. Esta parece ser a grande questão. Até onde se pode ir sem comprometer aquilo que torna uma publicação viva. Difícil balança cujo fiel oscila entre o público leitor e o público anunciante. Não se vive sem ambos, e ambos deveriam entender que não se pode excluir tanto um como o outro. O fiel dessa balança oscila entre a ameaça de derrocada de todo romantismo que peca pela falta de continuidade, assim como a sobrevivência esvaziada de crítica porque só atende aos interesses de quem está pagando pelo espaço publicitário. Jornalismo é o supremo paradoxo entre o público e o privado. Não é diferente quando o assunto é literatura e cultura em geral.

Valha-me são Pierre Bourdieu para evocar a noção de campo. O jornalismo é um campo. E, como tal, é palco de disputas simbólicas. Qualquer resultado nesse sentido será sempre provisório. Inconstante. Instável. E isso é bom. Saudável. Editar é uma arte do equilíbrio, essa tara por atravessar precipícios a passos sustentados por barbantes. E quase voar. É necessário saber voar para além da gravidade das demandas dos dois lados da balança. E construir a confiança de que o público leitor e os anunciantes vão estar ali, sustentando um sistema sempre instável como a vida de um trapezista. E só assim que se pode ser justo tanto com quem paga pelo conteúdo quanto com quem paga pelo espaço. É certo que esse último paga mais, isto porque, para além do espaço comprado, está pagando pela atenção do público. Esta só existe quando o jornal consegue estabelecer uma justa medida de ambos os interesses.

Ao que parece, o RelevO é uma publicação com alma. Senhores(as) anunciantes, não nos esvaziem daquilo que anima o desejo do público leitor que vocês também querem conquistar. Da mesma forma, senhores(ras) leitores(as), continuem a nos prestar seu apoio com o carinho com que viram cada uma dessas páginas. Elas foram criadas uma a uma antes de serem reproduzidas por uma maquinaria infernal dessas que nos transformam todos em robôs superprodutivos. Aos assinantes, sempre a nossa saudação mais cara, porque estamos o mais próximo o possível. E com os assinantes que se constrói a imagem desse equilíbrio: um leitor que acima de tudo também paga, mas que não esgota seu significado nesse ato. E um leitor orgânico porque indiretamente participa mais de perto de todo o processo de produção. Um assinante e quem dá um voto de confiança. Identifica-se. Só lembrando aqui a vinculação do “Libération” com um certo imaginário de maio de 68, tornando-se, durante muito tempo, sua leitura quase que uma credencial crítica. Ostentar um exemplar do jornal em espaço público era ingressar numa ordem simbólica libertaria. De certa maneira e guardadas as diferenças, a alma do bravo RelevO é assim também.

Escolhi o assunto porque essa e a grande luta anônima que se trava no silêncio dos intervalos que separam as edições. Tempos incertos. Tempos de crise. Jornalismo vive de crise e incertezas. O resto é marketing. Jornalismo é risco. Tem que pagar para ver. Por mais que se tente, não se consegue fechar planilhas nesse universo. Se elas se fecham absolutas, sem nenhuma imprecisão, é porque o jornalismo já contraiu a peste. O RelevO é o que e porque manteve-se no imponderável equilíbrio sobre essa linha ao longo do seu tempo de existência até aqui. E vai continuar assim até onde for possível: pautando-se pelo interesse tanto de seus leitores quanto de seus anunciantes sob o fiel de uma balança que se constrói com a arte de entrelaçar palavras. As artes do texto. São elas que unem todos os nossos interesses num só desejo. Vamos todos celebrar. A linguagem é uma grande festa!

Craig Ferguson, o bom caótico

Extraído da edição 36 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Geoff Peterson, Craig Ferguson e Secretariat.

De Johnny Carson a Rafinha Bastos, passando por Jô Soares e David Letterman, você já deve ter observado como a estrutura de talk shows noturnos costuma ser parecidíssima: uma mesa; convidados; monólogos; diálogos nem sempre espontâneosbanda fixa e um auxiliar coadjuvante. Ainda que existam exceções, a forma é quase sempre idêntica.

Em meio a essa hiper-realidade de famosos sorridentes e fragmentos hiperativos, o escocês Craig Ferguson se consolidou como um apresentador singular. Sua criatura, The Late Late Show with Craig Ferguson (2004-2015), da americana CBS, não perdia chances de rir do próprio gênero.

Ferguson, afinal, sempre adotou uma abordagem um tanto anárquica no formato inteiro. Após anos recebendo reclamações pela ausência de um coadjuvante, seu companheiro no comando do programa era Geoff Peterson, um “robô gay” de movimentos limitados dublado por Josh Robert Thompson.

Também não havia banda, mas existia Secretariat, um elemento fantasiado de cavalo cuja função consistia em dançar com o apresentador – isso acontecia com frequência. Fantasias e fantoches, aliás, não faltavam nos segmentos absurdos, bem como silêncios constrangedores. Quando membros da plateia participavam, eles realmente não tinham ideia do desdobramento da conversa.

E os entrevistados também não. Craig Ferguson claramente não se preparava para as entrevistas, segundo ele para manter uma curiosidade genuína nos convidados (ou, quem sabe, por preguiça). Essa entrevista com Robin Williams, por exemplo, exibe dois lunáticos à vontade. Simbolicamente, Ferguson passou a rasgar aqueles cartões preparatórios de que todo apresentador dispõe.

Da mesma forma, eram frequentes suas alusões à superficialidade do formato. Por exemplo, ao papel de parede noturno e à gravação dos episódios, que de noturna nada tinha.

Entretanto, o escocês não se consagrou só pelo humor: além do carisma invejável, Ferguson expunha um bom senso pouco visto na televisão (e em qualquer lugar, sejamos justos). Alguns de seus monólogos são especialmente marcantes, como aquele em que compartilha ter tido sérios problemas com o álcool ou as homenagens a paimãe, diante de suas respectivas mortes.

Sempre desprovido de demagogia, pretensão e proselitismo, Craig Ferguson tratou sua própria função com escárnio até encerrar o Late Late Show, em 2015. Por seus não tão numerosos fãs, segue adorado. Hoje, assistir às cenas de seu programa traz aquela confusa, porém genuína sensação de saudades de algo não testemunhado em primeira mão.

Alan Smithee, diretor

Extraído da edição 36 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Com dezenas e dezenas de filmes creditados desde a década de 1960, Alan (Allen) Smithee é, facilmente, um dos diretores mais polêmicos da história do cinema. Isso porque, longe de alguma prisão por estupro ou de um eventual relacionamento com a enteada, Alan Smithee não existe. Ao menos não fora do IMDB.

Só Matando foi lançado em 1969, e, com ele, um problema. O longa-metragem contou com dois diretores: o primeiro deles, substituído durante o processo, não queria que seu nome assinasse a produção; o segundo, bom, também não. Como o uso de pseudônimos não era permitido, foi necessário um acordo para que o Directors Guild of America (DGA) liberasse a oficialização de Allen Smithee, espantalho criativo de um filme surpreendentemente elogiado.

O nome foi desenvolvido a partir de ‘Al Smith’, considerado comum demais. Allen se tornou Alan, e, desde então, diretores vêm assumindo o pseudônimo, de imediato ou de forma retroativa, quando alegam não terem tido liberdade suficiente na edição de uma obra, principalmente ao admitirem que o resultado final é um grande dejeto.

A palhaçada esfriou após An Alan Smithee film: Burn Hollywood Burn (1998), filme metalinguístico com Eric Idle, do Monty Python, no papel principal. Idle interpreta Alan Smithee – rá! –, diretor de cinema querendo apagar seu nome de um longa-metragem, mas impossibilitado por, afinal, chamar-se Alan Smithee. A película foi um fracasso absoluto de público e crítica, e o diretor Arthur Hiller, alegando interferências diretas na edição, assinou como… Pois é.

Castor de Andrade

Extraído da edição 36 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quem pensa que o Brasil se resume a futebol, carnaval e corrupção, deveria conhecer a história de Castor de Andrade, um homem que dedicou sua vida, lutou e venceu nesses três campos.

Castor de Andrade foi o bicheiro mais conhecido do Brasil. Costuma-se apontá-lo como o MAIOR e MAIS PODEROSO bicheiro do país, mas a falta de um prêmio oficial da categoria ou mesmo de uma revista especializada me faz preferir o critério de popularidade. Nasceu em 1926 no Rio de Janeiro, já filho e neto de contraventores ligados ao jogo do bicho. Tudo teria começado com a sua avó materna Eurídice que, após ter ficado viúva, teve a ideia de começar o seu próprio jogo do bicho na sua residência – uma casinha de sapê localizada na Rua Fonseca, no bairro do Bangu.

Seu pai pertencia a uma família que, a princípio, não tinha ligação alguma com os jogos de azar. Por influência da família da mãe, contudo, acabou entrando no negócio da contravenção. Seu Zizinho fez fortuna com o jogo do bicho, proporcionando uma infância regrada ao menino Castor, que mais tarde não apenas herdaria o negócio todo, como também multiplicaria por muito o faturamento.

Castor de Andrade foi um bicheiro amado e respeitado porque usou o dinheiro do bicho para dar alegria ao povo nas duas coisas que mais lhe interessam: futebol e carnaval. É também uma grande ingenuidade achar que Castor de Andrade usou o dinheiro do bicho para de fato dar alegria ao povo nas duas coisas que mais lhe interessam, quando na verdade carnaval e futebol são caminhos bastante conhecidos (e eficientes) para se lavar dinheiro. Mas ele deu.

No futebol, perseverou à frente do Bangu. Um clube tão modesto que, quando incrivelmente chegou à final do Campeonato Brasileiro de 1985, não despertou raiva dos rivais cariocas, mas simpatia. A final foi no Estádio do Maracanã, com mais de 100 mil espectadores – a maioria torcedores de outras equipes cariocas – apoiando o Bangu. A equipe acabou derrotada nos pênaltis para o Coritiba, um time que jamais havia ganhado um Brasileiro, nunca venceu de novo e provavelmente nunca mais vai ganhar.

Castor de Andrade foi presidente de honra do Bangu e maior financiador do time exatamente nessa época. Foi muito querido pela torcida, que não se importava nem um pouco com algumas histórias estranhas que aconteceram na Era Castor, como a de um torcedor misterioso que faleceu e deixou uma herança de aproximadamente 500 bilhões de cruzeiros para o clube carioca. O adepto era professor de matemática, solteiro e a sua suposta fortuna era desconhecida mesmo pelos mais chegados. Ele sequer era sócio do Bangu.

No Carnaval carioca, teve ainda mais reconhecimento. Foi pentacampeão patrocinando a escola Unidos de Padre Miguel (sempre-10-na-bateria-saudoso-mestre-andré-sempre-soube-o-que-queria) entre os anos 1970 e 1980.

Castor de Andrade acabou falecendo vítima de um infarto fulminante em 1997, quando descumpria, como de costume, a ordem de prisão domiciliar. Ele havia sido preso em 1994, utilizando bigode falso e cabelos pintados, enquanto visitava o Salão do Automóvel  em São Paulo. “Foi aquela vaidade de ver o Jaguar, o Rolls-Royce, a Lotus”, teria lamentado.

Após a morte de Castor de Andrade, o império do jogo do bicho aos poucos ruiu: o bicheiro exercia muita influência sobre policiais e políticos da época, além de “apagar” outros bicheiros com muita discrição. Sua morte deu início a uma disputa intensa entre os seus herdeiros. Mais de 50 mortes aconteceram desde então, na briga pelo controle do império do jogo do bicho e das máquinas caça-níquel espalhadas pelo Rio de Janeiro.

Grandes momentos de Castor de Andrade

  • Durante o desfile de 1990, quando abordado por um repórter da Globo curioso pela ausência do bicheiro  na avenida em anos anteriores, respondeu na lata, sem a menor cerimônia: “há dois anos que eu não frequento a Passarela do Samba por motivos óbvios. Eu estive em cana”.
  • No Carnaval seguinte, durante a comemoração do bicampeonato da Mocidade, respondeu a uma repórter da TV Manchete que, enquanto os outros celebravam, ele estava “preparando  a grana pra eles gastarem” no ano seguinte. “Procuro fazer da melhor forma possível porque a minha comunidade merece todo esse sacrifício”.
  • Em 1986, comandou um treino do Bangu enquanto o treinador Moisés viajava ao Equador para assistir o Barcelona de Guayaquil, que seria o primeiro adversário na inédita participação do clube na Taça Libertadores da América daquele ano.
  • Conforme contou a Jô Soares, um assaltante o ameaçou com um revólver e conseguiu entrar em sua casa. Entraram mais dois: o terceiro do grupo, porém, reconheceu Castor. Todos correram de lá.

[por Matheus Chequim]

Marrom-múmia

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Vendedor de múmias no Egito (1875).

O uso de múmias pelo Ocidente teve seu início na Idade Média, por volta do século 13, pela crença (errada, diga-se de passagem) de que os corpos embalsamados continham altas concentrações de betume, substância utilizada desde a Grécia Antiga para tratar uma variedade de problemas de saúde, desde dores de dente até disenterias.

No século 16, o comércio internacional de múmias estava bem estabelecido. A demanda de ingleses, espanhóis, franceses e alemães por restos mortais milenares de egípcios fez florescer um mercado insólito. Tanto viajantes quanto locais passaram a saquear tumbas e revender seus conteúdos – por preços baixíssimos, inclusive – na cidade do Cairo, para que fossem triturados e enviados para toda a Europa.

O consumo do extrato de múmia pelas propriedades medicinais estava em descenso por volta dos anos 1800, e não por acaso: diversos médicos alertavam para a associação do uso do extrato a diarreias, vômitos e infecções (quem diria que aplicar pedaços de cadáveres em decomposição em feridas poderia fazer mal, não é mesmo?), e seu uso passou a ser malvisto.

Com as expedições napoleônicas de conquista do Egito, no entanto, o interesse pela cultura faraônica atingiu um novo ápice, abrindo portas para pesquisas científicas, arqueológicas e para o turismo.

Sabendo que os europeus usavam múmia em pó para comer, beber e esfregá-lo em si mesmos, não será surpresa aprender que eles também o utilizavam para pintar. “Marrom-múmia“, ou Caput Mortuum, era um pigmento feito com extrato de múmia misturado a terra e mirra fabricado desde o século 16 e vendido aos pintores das belas artes.

Como tinha boa transparência, esse marrom era usado para sombreamento e tons de pele. Entretanto, sua composição fazia com que a tinta quebrasse facilmente, além de afetar as cores ao seu redor por conter amônia e partículas de gordura.

Alguns artistas renomados a ter o marrom-múmia em suas paletas incluem Delacroix, Sir Lawrence Alma-Tadema e Edward Burne-Jones. Este último, ao descobrir a origem do seu marrom favorito, realizou um enterro cerimonial à moda egípcia do frasco de pigmento, que pôde enfim descansar em paz.

Ao final do século 19, o método exótico de fabricação do marrom-múmia tornou-se mais conhecido pelos artistas. Além disso, o respeito pelo valor científico e arqueológico das múmias passou a ser regra. O resultado foi a crescente rejeição dessa tinta, que só foi “extinta” em 1964, quando a firma inglesa Roberson descontinuou sua produção por falta de matéria-prima.

Baú: Bastiat

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Mas, geralmente, a lei é feita por um homem ou uma classe de homens. E como seus efeitos só se fazem sentir se houver sanção e o apoio de uma força dominante é inevitável que, em definitivo, esta força seja colocada nas mãos dos que legislam. Este fenômeno inevitável, combinado com a funesta tendência que constatamos existir no coração do homem, explica a perversão mais ou menos universal da lei. Compreende-se então por que, em vez de ser um freio contra a injustiça, ela se torna um instrumento da injustiça, talvez o mais invencível. Compreende-se por que, segundo o poder do legislador, ela destrói, em proveito próprio, e em diversos graus, no resto da humanidade, a individualidade, através da escravidão; a liberdade, através da opressão; a propriedade, através da espoliação.

(…) Quando a lei e a moral estão em contradição, o cidadão se acha na cruel alternativa de perder a noção de moral ou de perder o respeito à lei, duas infelicidades tão grandes tanto uma quanto a outra e entre as quais é difícil escolher. Fazer imperar a justiça está tão inerente à natureza da lei, que lei e justiça formam um todo no espírito das massas. Temos todos forte inclinação a considerar o que é legal como legítimo, a tal ponto que são muitos os que falsamente consideram como certo que toda a justiça emana da lei. Basta que a lei ordene e consagre a espoliação para que esta pareça justa e sagrada diante de muitas consciências. A escravidão, a restrição, o monopólio acham defensores não somente entre os que deles tiram proveito como entre os que sofrem as suas consequências.

(…) De sorte que, se existir alguma lei que sancione a escravidão ou o monopólio, a opressão ou a espoliação sob qualquer forma, não haverá necessidade sequer de tocar no assunto, pois como se vai tocar no assunto sem abalar o respeito que tal lei inspira? E mais, será necessário ensinar moral e economia política do ponto de vista desta lei, isto é, na suposição de que ela é justa pelo simples fato de ser lei.

Frédéric Bastiat, A Lei, 1850.

Silvio Demétrio: Nada é sagrado, tudo pode ser dito

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Espero estar à altura. Ser ombudsman não é uma tarefa fácil. Ainda mais com a velocidade que a tecnologia hoje imprime ao tempo vivido. Criei-me em meio a uma geração de fronteira que impunha a imagem de um universo no qual o jornalismo estava ligado organicamente à celulose. Difícil é desapegar-se do papel. É que quando se fala em jornalismo impresso fica como metáfora a ideia de uma marca que se deixa. Uma “impressão” que se causa. Tudo isso numa paisagem cujo protagonista é o leitor. O jornalismo como algo que assinala as subjetividades: quimera que só se materializa quando ele é monstruosamente literário. Daí esse reencontro com o mundo do jornal ainda impresso como resistência quando recebo o convite de Ben-Hur Demeneck para sucedê-lo como ombudsman aqui no RelevO. Invisto-me então dos poderes do machado viking que me foi passado. 

Também não acredito nem no jornalismo e tampouco em qualquer literatura como haute culture. Daí o título que roubei de um livro de Raoul Vaneigen, figurinha carimbada do meio de 68 – “Nada é sagrado, tudo pode ser dito”. A reverência é a miséria da escravidão estética. Por pura coincidência e sincronicidade conheci a publicação alguns dias antes do convite. Um aluno meu da UEL havia chegado de Curitiba e me passou o exemplar. Não discuto com sinais dos deuses do chumbo e da celulose. Por natureza, todo aquele que escreve é um ser obsessivo (não é meu esse insight não, tunguei do Ricardo Piglia, o melhor dos escritores argentinos vivos). E não existe obsessão sem redundância e acaso. Porque redundância e acaso fecham a equação das coincidências – as flores do mal (conhecidas como oximoros) que povoam a “floresta de sinais” dessa zorra toda que fede a enxofre e poluição que se chama vertigem de estar vivo. É tudo meio gratuito mesmo. As coisas vão acontecendo e quando você se dá conta aqueles discos que você ainda considera novos já completaram mais de vinte anos. Para mim esse mandato dura ad nauseum, ou seja, até que vocês se enjoem de mim. Vai ser uma longa e estranha viagem. 

A primeira impressão que tive foi analógica. Tal como num disco de vinil, percorri o RelevO com olhos nos dedos, assim como numa agulha de um toca-discos se instalavam ouvidos. O inaudível atrito das pontas dos dedos sobre os sulcos da celulose do papel chegando ao oco que separa os ouvidos como caixa de ressonância. Quando amplificado esse som em imagens acústicas (valha-me São Saussure), o resultado me sabe ao bom e velho rock’n’roll. Não qualquer um, mas algo de cepa psicodesbundética. Uma longa jam session. Aquele santo graal que sempre se procura numa primeira página: “10 dicas para que seu cabelo continue uma bosta”. É isso. Nenhum outro jornal publicaria isso em sua capa hoje e sempre. Uma ruptura com a sentença bidimensional de Euclides para incorporar à página uma topografia, essa ciência do amor ao irregular. O legado de todo RelevO é a paisagem. O detalhe. A singularidade.

Manchete: a notícia morreu. Só existem os acontecimentos. Sem hora e local definidos. Sem a priori. Tempo de irrupção. Erupção. Lava. Lavra. Palavra. Porque um jornal também pode ser dionisíaco. Sugerir ao invés de nomear. Isso para não suprimir três quartos da pensão “O Prazer do Poema”. Porque o deus dos hebdomadários, diários, gazetas e pasquins também é Hermes, o deus mensageiro. Da aurora e do acaso. O deus da curvatura do tempo que se fecha sobre si ao longo de um dia. A luz do sol é curva. Oblíqua. Porque um texto sempre esconde na exata medida que também revela. Acima de tudo deve restar algo informe, uma “parte maldita” de tudo o que se escreve, o implícito, sublime feitiço de toda enunciação. O que se quer dizer? Um sujeito indeterminado. Hecceidade. Subjetivação sem sujeito. Irrupção do desejo como acontecimento e disparo do sentido sob a superfície fantasmática da linguagem.

Alguém com uma arma apontada para o leitor na capa. A última edição do RelevO (maio 2016). Estamos todos com as mãos ao alto. Aliás, já parou o leitor para pensar o quão é polida essa forma de interpelação dos assaltos que se cometem em língua portuguesa? “Mãos ao alto”. O que cansa no jornalismo convencional é que ele é potável. Falta ruído. Distorção. Faltam entranhas. É o império da rotina. Contra isso tudo só pode vencer a invenção. Sub-versão dos fatos pela maneira de dizer. 

Em verdade, não é viking. Meu machado é de Assis. Assim como São Francisco, despir-se de tudo o que é desnecessário. A mais preciosa das preposições de Italo Calvino, a leveza. Porque o mais difícil de se alcançar com a palavra é a simplicidade. Uma virtude estoica. Não o pouco. O raso. O apenas. Mas sim a potência do silêncio como luz que revela um mundo em cada palavra cavada na página. 

É assim que agradeço pela chance de colaborar com esse grande barato que é o RelevO. Espaço para ecos que vêm de uma multiplicidade de outras grandes festas: nosso saudoso Nicolau, assim como o Joaquim; Grimpa e Revista Coyote; Revista Medusa; a Musa Paradisíaca; isso para ficar no quintal de casa.  Por cima do muro dá para ver o eco dos ecos de outros tempos: o jornal O Beijo, Bondinho e o Flor do Mal (do mestre Luiz Carlos Maciel), e por que não, até o San Francisco Oracle, o supremo jornal psicodélico de todos os tempos, editado por Allen Cohen. 

Tal qual César às margens do Rubycon, “alea jacta est”. O que também pode ser entendido como “se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora”. Chegou a hora e a vez do RelevO crescer. Para o alto e para baixo. Ao redor e dentro da cachola de qualquer um que se permita embaralhar com suas páginas. Como dizia Torquato Neto “o barato é ocupar o espaço e depois poetar conforme for”. Que seja então. Ainda. (sempre quis terminar um texto com parênteses, assim, explicando um final em fermata, em suspenção, para deixar no ar alguma promessa que só conto qual é na próxima edição – e eu só poderia hifenizar dentro de parênteses aqui, porque qualquer outro editor já teria me escorraçado – é por essas e outras que o RelevO é singular). 

Sacrifícios astecas

Extraído da edição 33 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando pensamos nos astecas, um dos povos mais instigantes a pisar nessa terra, é normal lembrar dos terríveis sacrifícios realizados aos deuses, por meio dos quais uma imensa gama de azarados, de prisioneiros a crianças, perdia a vida para que criaturas (ou criadores) celestes ganhassem uns agrados. No entanto, há muito mais sobre os astecas do que rituais sanguinolentos.

No entanto – de novo –, é justamente sobre rituais escabrosos que queremos discorrer. Entre militaria e religião, contextualizemos a brincadeira da imagem acima.

Na ilustração, o que se vê é a representação de uma atividade do Tlacaxipehualiztli, um festival que antecedia a estação de chuva, dedicado ao deus Xipe Totec – mais sobre ele em breve, porque vale a pena. Reparem que o sujeito à esquerda da imagem, qual o da direita, carrega um escudo e uma espada. O rapaz à direita, porém, é um guerreiro jaguar, isto é, pertence à elite militar asteca – o que naquela sociedade significava ter vencido na vida. O da esquerda, provavelmente prisioneiro de guerra.

E aí as coisas começam a ficar mais pesadas. A espada de madeira que o jaguar carrega – macuahuitl – contém lâminas de obsidiana, vidro vulcânico utilizado em diversos ornamentos da cultura mesoamericana. A espada que o prisioneiro carrega? Bom, as pontas apresentam penas. Se você já está se imaginando na situação do infeliz, vale se atentar que ele também está amarrado no tornozelo. (Nesta imagem, parte do relato de Diego Durán, a diferença é clara.)

Para piorar – e isso não é nem de longe a pior parte –, a ocasião costumava ser assistida por multidões. Para piorar de fato, em alguns sacrifícios o prisioneiro era atacado por um grupo inteiro de guerreiros, tanto jaguares como águias. Segundo Jacques Soustelle, geralmente os sacrificados – não só os do Tlacaxipehualiztli – encaravam de cabeça erguida seus fins iminentes, sem fugir ou chorar, o que não era bem visto no que tange às crenças do pós-vida.

Por fim, Xipe Totec. Se o Tlacaxipehualiztli era essa mistura de UFC, Lollapalooza e Jogos Mortais, o homenageado é um dos deuses mais queridos da Enclave. Para os astecas, Xipe Totec dispunha de responsabilidades diretas na agricultura, vegetação e mudança de estações; com ourives, prateiros e até doentes. Era representado por uma pele por sobre outra, ou seja, vestindo uma derme alheia.

Claro que, para honrá-lo, ainda durante o festival, algumas vítimas tinham sua pele esfolada para ser trajada por outro alguém. Mas sem problemas, pois o coração era arrancado antes de qualquer outra coisa.

Nessa imagem, o contexto é outro. Já a dor…

Ben-Hur Demeneck: Arte do efêmero

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O ombudsman recorre ao método de Bertolt Brecht para derrubar a “quarta parede” deste jornal literário diante do público. Para facilitar a demolição dos discursos, o representante dos leitores traz consigo um machado típico dos ancestrais vikings desse cargo escandinavo.

Convidados a se manifestar, os editores saem da sua condição de personagens para explicar como criam seu jogo de cena. MÉTODO: encadeamento de falas do núcleo editorial, obtidas a partir de um questionário comum e de entrevistas exclusivas. ELENCO: Daniel Zanella (DZ): o editor-chefe; Ricardo Pozzo (RP): o editor; Marceli Mengarda (MM): a diagramadora; e Mateus Ribeirete (MR): o revisor do jornal e editor da newsletter Enclave.

 

  1. Jogral autoral 

Primeira cena: o elenco olha para a plateia e responde ao subtexto: quais foram os autores que lhes tiraram a paz diante da literatura? Preparação dos atores: sessão de grito primal. Sequência das falas (que podem ser intercaladas): MR: Jorge Luis Borges, Douglas Adams, Valencio Xavier; DZ: Rubem Braga, Júlio Verne, Paulo César Pinheiro; MM: José Saramago, Fiódor Dostoievski; RP: Raduan Nassar, George Orwell; MM e RP, em uníssono: Guimaraes Rosa.

 

  1. O menestrel 

“Não gosto do ideal de jornalismo cultural como haute culture, seriedade de fraque, literatura de doutorzinho. Não deve existir um totem que não mereça ser derrubado. Ninguém e ‘inzoável’, nada e sagrado – principalmente nos mesmos (…) O que jamais faremos: usar dinheiro público” (DZ). 

“[Nossa] transparência de método e de finanças veio a partir da constatação de que muita gente do meio cultural vive a se lamentar de condições subumanas, mas não abre suas contas. Gosto de saber do tamanho do fracasso dos outros também. Não são poucos os casos de reclamões culturais de vida mansa” (DZ).

 

  1. Teatro épico

“A postura amadora e desapegada do RelevO nos favorece a não ter rabo preso, e isso atrai um público fiel. Somos uma várzea organizada, e essa leveza agrada – principalmente no meio literário, cujo senso de humor é inferior ao de uma endoscopia” (MR).

“Volta e meia entro em crise com esse chamado mundo literário, levado por alguns fatos como o de perceber que a literatura não tem importância alguma no correr cotidiano do mundo – a não ser para os que foram ou serão seduzidos por ela” (RP).

“A coisa menos ‘desperdiciosa’ da minha vida, até agora, foi a literatura e o que ela me trouxe. Concordo muito com o Leminski, quando ele diz que a poesia e um inutensílio. Acho que a literatura, no geral, é isso aí – um inutensílio” (MM).

“O escritor e um ser carente e o fracasso e sua moeda. O que fazemos, nos, do circuito cultural, e perfumar o fracasso. Isso deve incomodar aqueles de vida mais matemática, por assim dizer” (DZ).

 

  1. Fábula líquida 

“O mundo atual é cada vez mais superficial. E não se deve culpar as pessoas por isso, [pois] o sistema biológico não foi feito para essa avalanche de informações e imagens a qual estamos sendo submetidos – o que pode levar as pessoas a terem comportamentos contraditórios ao seu discurso” (RP).

“É legal o quanto recebemos de retorno dos leitores, mesmo (e talvez principalmente) o negativo. E bom saber que alguém se importa [com o nosso trabalho], a ponto de entrar em contato (…). Porém, sinto que o diálogo entre a newsletter e o jornal poderia ser melhor aproveitado” (MR).

“O que interessa para o RelevO e veicular trabalhos bons e relevantes [esteticamente] (…). Até me surpreendi de não ter tido mais feedback horrorizado de capas alegadamente chocantes. A exemplo da edição de dezembro de 2015, que não ficou nem no ISSUU de tanta imagem de vagina [estampada] na capa (…). No fundo, acho que temos pouco a perder. Então, dá para arriscar mesmo” (MM).

 

  1. Papel do jornal

“Ainda acredito no impresso como um organizador do cotidiano. Em meio a uma enxurrada de informações, excitações, vaidades e desejos por atenção, o impresso pode ser este espaço de concentração, de comunicação mais dirigida, de diálogo” (DZ).

“E preciso encorajar e incentivar mais mulheres a escrever (de preferência, sem dizer que são loucas), porque a diferença quantitativa e clara e, talvez, deva-se ao fato de que as mulheres nunca tenham tido muito espaço para isso” (MM).

“[Você acredita que o impresso continuará por muito tempo um eixo, um centralizador da movimentação cultural nesse mundo em que há tanta dispersão virtual?] Sim. Principalmente quando O EDITOR RESOLVER A MERDA DO ISSN! CARALHO, ZANELLA.” (MR).

 

  1. Olhando nos olhos 

O narrador expõe as respostas do núcleo editorial diante de um questionário feito sobre transparência. O recurso havia sido proposto, em 2007, pela Universidade de Maryland através de seu International Center for Media and the Public Agenda (ICMPA).

Cabe aos leitores se posicionar diante do autorretrato pintado pelos editores, que relacionaram de forma unanime o RelevO a três dos cinco procedimentos identificados a “Accountability”: (a) Correção de erros: existe disposição para reconhecer e retificar os erros cometidos; (b) Politica editorial: os leitores conseguem reconhecer quais são os valores que orientam o trabalho dos editores; e (c) Interatividade: os leitores têm canais para expressar seus comentários e críticas.

O quarto tópico – transparência publicitária – recebeu a maior parte dos votos (“o jornal expõe eventuais conflitos de interesses”), enquanto que a questão relativa a propriedade ficou próxima da marcação zero entre os editores (“os leitores sabem quem são os ‘donos’ do jornal”). Nesse momento, o apresentador discursa a plateia sobre a materialidade do mundo: segundo o estudo de Maryland (“Openness & Accountability”), apenas 11 dos 25 canais globais pesquisados publicavam ou transmitiam correções de matérias de maneira clara, e somente sete mantinham ombudsman. Uma realidade cruel e anunciada: “quando o assunto e transparência, até a BBC pode tomar umas aulinhas com o RelevO brasileiro”.

 

  1. Desfecho

Literatura, transparência e humor. Em sua última colaboração como ombudsman, o narrador afirma que é com essas três palavras que resume o jornal RelevO. Para ser mais claro, ele disserta: (a) literatura como cultura – antes mesmo de ser pensada como arte; (b) transparência como a exposição das escolhas editoriais em estética e “gestão”; e (c) humor – ora autoderrisório, ora ferramenta de liberdade de expressão.

O locutor convida ao palco seu substituto, o jornalista Silvio Demétrio. Elogia o “formalismo psicodélico e esquizoanalítico” de Demétrio e lhe entrega em mãos o machado viking dos ancestrais ombudsman. Embora tal cargo e objeto não estejam relacionados na Escandinávia, rendem uma metáfora para quem precisa invocar o poder dos leitores antes de partir ao meio as couraças da imprensa. O novo personagem recebe o amuleto e logo o tropicaliza, ao metralhar um discurso sobre Xangô na obra de Jorge Mautner. Cai o pano.