Baú: Ross Macdonald

Extraído da edição 91 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando vi meu provável cliente no pátio ensolarado do lado de fora do snack bar, não tive dificuldade em reconhecê-lo. Ele parecia uma fortuna afastada umas três gerações de sua origem. Embora não pudesse ter mais vinte e poucos anos, seu rosto era macilento e contrito. O rosto de um rapaz de meia-idade. Sob o terno bem-talhado, vestia uma camada de gordura – uma armadura facilmente penetrável. Possuía o tipo de olhos castanhos e suaves que com frequência são míopes.

Quando cheguei perto de sua mesa, ele levantou-se depressa, quase derrubando a cerveja.

— Deve ser o senhor Archer.

Respondi que sim.

— Estou contente em vê-lo — disse ele, estendendo-me uma grande mão amorfa. — Vou pedir alguma coisa para o senhor. O prato quente de segunda-feira é cozido à New England.

— Não, obrigado. Almocei antes de sair de Los Angeles. Mas aceito uma xícara de café…

Ele foi até o bar e trouxe o café para mim. Na figueira que cobria uma parede do pátio, um casal de tentilhões discutia questões de família. O macho, que tinha a fronte salpicada de vermelho, levantou voo rumo a alguma missão. Meu olhar o acompanhou pela faixa de céu azul até perdê-lo de vista.

Ross Macdonald, Dinheiro sujo, 1966 [Ed. Companhia das Letras, 1989].

Baú: Sêneca contra o cinismo

Extraído da edição 90 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Num dos trechos mais ferozes da carta, Sêneca afirma que “é antinatural torturar o próprio corpo” (SÊNECA, 2014, p. 11). Isso mostra sua opinião em relação a duas noções capitais ao cinismo: a ideia da vida conforme a natureza e a ideia de áskesis. Ao dizer que o objetivo do estoicismo é viver de acordo com a natureza (2014, p. 11), e depois fazer tal asserção, é clara a oposição que Sêneca faz ao que o cinismo crê ser uma vida natural e também ao seu método de atingi-la.
Para viver naturalmente segundo a doutrina estoica, ao contrário do que afirmavam os cínicos, não era necessária renúncia à vida social, mudança de hábitos alimentares, descaso com a higiene e tortura física. Tais preceitos pertenciam à escola de Diógenes, e o próprio os seguia à risca. Conta-se que Diógenes comia comida crua, depois de ter observado os animais (2008, p. 171). Ele fazia isso acreditando estar vivendo conforme a natureza. Evidentemente, ao adentramos mais no terreno do cinismo, podemos encontrar razões muito mais razoáveis que esta para justificar tal ação.
Entretanto, isso ilustra bem os propósitos de Sêneca e revela uma das maiores diferenças entre o estoicismo e o cinismo. Enquanto o cinismo nega todo e qualquer tipo de luxo e opulência, o estoicismo acredita que tais coisas são indiferentes. Como quando Diógenes, ao ver duas crianças bebendo água com as mãos, jogou sua caneca fora (2008, p.161): para o cinismo, a caneca era um exagero, dado que se podia beber água da mesma maneira sem ela – a caneca é um objeto supérfluo que nos amolece e enfraquece; ela é um pequeno mal que perpetua a ilusão e o vício em nosso espírito. Já para o estoicismo, não! A caneca é um indiferente, que mediante um uso sensato pode nos trazer benefícios. Quem usa a caneca racionalmente usa-a bem, enquanto quem a usa irracionalmente, usa-a mal.

George Felipe Bernardes Barbosa Borges. A radicalidade do cinismo: análise da carta V de Sêneca, 2018.

Baú: Mauá, por Jorge Caldeira

Extraído da edição 89 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Essas ideias do capitalismo triunfante contrariavam frontalmente toda a formação pregressa do adolescente, regida pelos valores tradicional do paternalismo. Mas eram atraentes para um menino sempre solitário, dono de seu nariz desde criança. Ler algo como “cada pessoa é, sob todos os pontos de vista, mais apta e capaz de cuidar de si que qualquer outra pessoa” num texto de [Jeremy] Bentham parecia para ele uma descrição da natureza de sua vida. Abraçando essas ideias Irineu [Evangelista de Sousa] se fazia adulto, mas um adulto de difícil enquadramento. Precisava se comportar de acordo com tudo isso. Tentando ser o que lia, passou a cultivar sua barba rala, e usar casacas pretas como um inglês sisudo. Acabou meio perdido na cidade. Naquele momento, seria muito difícil para algum gaúcho que o conhecesse de infância achar nele alguma coisa do menino de família patriarcal que um dia tinha sido. Quase só se interessava por negócios, um assunto indigesto na grande maioria das conversas brasileiras. Se nos tempos de Pereira de Almeida [comerciante e antigo chefe] ele já sofria com o fato de ser um brasileiro enfiado num mundo “português”, agora era definitivamente um tipo raro. Até mesmo os antigos colegas da praça carioca estranhavam quando ele pronunciava seu próprio nome. Dizia “Eirneo”, com um sotaque carregado. Tinha mudado tanto que até passou a fazer contas em inglês.
O que o levava para longe no mundo da infância e dos colegas de adolescência não bastava para torná-lo mais palatável no novo ambiente. Os ingleses eram muito ciosos de suas origens, e não se deixavam levar por imitações. Muitos comerciantes e caixeiros o consideravam apenas uma versão ainda mais esquisita das esquisitices de seu patrão, e com bondade poderiam até perder algum tempo discutindo certos detalhes de sua pronúncia. Mas essas considerações duravam pouco, e podiam ser encerradas tranquilamente com uma velha frase de ocasião: “Very peculiar“. Sem saber muito para onde ir, tinha um único grande amigo, tão deslocado como ele: João Henrique Reynell de Castro. Filho de um médico judeu que teve de trocar de nome e se converter ao cristianismo para chegar ao cargo de físico-mor de dom João VI, Castro tinha sido mandado de Portugal por um dos irmãos de [Richard] Carruthers para trabalhar com ele. Não se adaptara ao cristianismo, nem a Portugal – e também não estava muito satisfeito com o Brasil. Acabou se aproximando de Irineu porque os dois tinham algo em comum, além do deslocamento: sonhavam com fortunas, grandes jogadas – e também com a Inglaterra. Reynell de Castro queria ir embora para lá, cumprir seu destino de aventureiro errante. Acabou em Manchester, mas a amizade ficou. Irineu nunca deixou de lhe escrever, sempre começando as cartas com o epíteto “My dearest friend“, mesmo quando Reynell de Castro criava problemas nos negócios que faziam juntos, realizando os sonhos de fazer fortuna da adolescência.

Jorge Caldeira. Mauá: empresário do império, 1995 (ed. Companhia das Letras, 2011).

Baú: ninguém escrevia como David Nasser

Extraído da edição 88 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Ninguém escrevia como David Nasser. E ninguém tão sem escrúpulos. Em 1946, induzira o deputado Barreto Pinto a posar de fraque e cueca em seu apartamento no leme para o fotógrafo Jean Manzon, e fez disso uma reportagem de inacreditáveis doze páginas em O Cruzeiro – do que resultou a cassação do mandato de Barreto Pinto em 1949. Como repórter de O Cruzeiro, metade do que David apresentava como fato não passava de ficção – e, na outra metade, o que pontificava no texto era ele, não o assunto. Fazia-se íntimo de cantores, compositores e políticos com quem nunca trocara mais que um bom-dia. E era insuperável na ofensa e na infâmia. À custa disso, e por ter o patrão Assis Chateaubriand às suas costas, construiu o mito de repórter mais poderoso do país.
Mas o poder de David se limitava à página impressa. Fisicamente, ele era uma antologia de mazelas. Nascera muito abaixo do peso, com paralisia parcial nas pernas e problemas de visão. Só começara a andar aos três anos, com a ajuda de aparelhos, e chegara à idade adulta com problemas de coordenação motora. Não conseguia caminhar em linha reta, nem se vestir, nem se abotoar sozinho. À mesa, nas refeições, fazia uma lambança: com dificuldade para cortar os alimentos e levá-los à boca, escorria o alimento pelo próprio peito ou sujava quem se sentasse perto dele. Não admira que evitasse certos ambientes – devia ser o único jornalista do Rio que não ia ao Vogue ou a boate alguma. Talvez por isso falasse delas com desprezo.
O destino natural das “memórias” de Herivelto [Martins] seria O Cruzeiro, revista de que David era o principal nome. Mas, sabendo com quem lidavam, os diretores executivos da revista, Accioly Neto e José Amadio, as recusaram – afinal, por que O Cruzeiro se disporia a massacrar uma cantora tão querida e popular como Dalva de Oliveira? David não se alterou. Levou a série para o vespertino Diário da Noite, outro importante órgão dos Diários Associados, e, em 22 artigos que se estenderam por cinco semanas, dedicou-se a moer Dalva. Os títulos só faltavam saltar da página – “Boa cantora, péssima esposa”; “Dalva, rainha do despudor”; “Meu lar era um botequim”; “[Dalva] Não é mãe; teve filhos” – e garantiram a onipresença do Diário da Noite em todos os trens da Central, bondes e lotações naquele período.

Ruy Castro. A noite do meu bem, 2015 (ed. Companhia das Letras).

Baú: Morgan Housel

Extraído da edição 87 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

[Angus] Campbell queria saber o que deixava as pessoas felizes. Seu livro, The Sense of Well-being in America [O bem-estar nos Estados Unidos, em tradução livre], publicado em 1891, começa afirmando que as pessoas, em geral, eram mais felizes do que a maioria dos psicólogos presumia. No entanto, algumas estavam se saindo melhor do que outras nisso. E o que as diferenciava não era obrigatoriamente o nível de renda, o local em que moravam ou o grau de instrução, porque muita gente em cada uma dessas categorias era cronicamente infeliz.

O mais poderoso denominador comum da felicidade era simples. Campbell o resumiu da seguinte maneira:

Ter uma forte sensação de estar no controle da própria vida é um indicador mais confiável de sentimentos positivos de bem-estar do que qualquer uma das condições objetivas da vida a que costumamos prestar atenção.

Mais do que o seu salário. Mais do que o tamanho da sua casa. Mais do que o prestígio do seu trabalho. Poder fazer o que quer, com as pessoas com que se quer é a maior variável de estilo de vida que proporciona felicidade às pessoas.

O grande valor intrínseco do dinheiro – e nunca é demais repetir isso – é a capacidade que ele nos dá de termos controle sobre o nosso tempo. A capacidade de obter, pouco a pouco, um nível de independência e de autonomia que vem de ativos não gastos e que nos proporcionam maior controle sobre o que e quando podemos fazer. (…)

Ter o controle do próprio tempo é o maior dividendo que o dinheiro pode pagar.

Morgan Housel. A psicologia financeira, 2020 (ed. HarperCollins, 2021).

Baú: Millôr Fernandes

Extraído da edição 86 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Entre Freud e Marx, um afirmando o pan-sexualismo, outro o pan-economismo, estou mais com o último. Em inúmeras ocasiões da vida o sexo não está presente. Nem direta, nem indiretamente. Nem materialmente, nem por inferência. Nem na superfície, nem nas profundidades do psíquico. Já o sentido econômico da vida é total e universal. Sem seu sentido econômico a vida não existe. Sem economia (representada por qualquer esforço humano, horas-trabalho) não se nasce nem se morre. E nas horas de confronto entre sexo e necessidade econômica Freud perde para Marx de goleada. Coloquem diante de um jovem que passou tempo indeterminado abandonado no deserto, uma linda mulher e um magnífico prato de comida e ele só será atraído pela mulher depois de encher o estômago. Pode-se dar uma colher de chá a Freud apenas afirmando que quando um homem tem fome não há nada mais sensual do que a nudez de um franguinho no espeto.

[Obras Completas, p. 6, 1970.]

Num país em que o salário mínimo não atinge ¼ da população, criar conceituações morais, falar em drogas, vícios, excessos sexuais ou morais é inútil e ridículo. É aconselhar as pessoas a fugirem de tentações que jamais se darão ao trabalho de tentá-las.

 [Conversa com Carlos Drummond de Andrade, 1973.]

Millôr Fernandes. Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr, 1973, Ed. Nórdica.

Baú: Tom Jobim

Extraído da edição 85 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Eu digo por razões dialéticas: a proximidade do mar, o fato do João [Gilberto] ser baiano, o fato do Vinicius [de Moraes] ser um homem culto. Eu acho que houve uma série de circunstâncias para que isso [bossa nova] acontecesse. No Rio de Janeiro ainda existe uma influência climática, uma vagabundagem, certa folga que favorece a criação. Aqui é o pindorama. Você não pode compor “No rancho fundo” em Nova Iorque, não pode. Você pode compor como memória: Guimarães Rosa, por exemplo, escreveu grande parte de sua obra na Alemanha, João Cabral de Mello Neto em Barcelona. Mas o que eles traziam dentro? Quer dizer, o sujeito escreve como memória. É possível que eu vá pra Moscou, fique num quarto de hotel e faça um choro autenticamente carioca. Mas isso é pelo que eu tenho dentro da cabeça. Você não pode se descartar do seu meio. Eu nunca fiz outra música que não música brasileira, porque é o melhor que a gente sabe fazer. (…)
O Villa-Lobos, por exemplo, dizia que era o último dos grandes músicos. Tive a felicidade de conhecê-lo e creio que ele queria dizer com isso, que um músico no sentido que ele foi cada vez se torna mais difícil no mundo de hoje, entende? A música passa a se tornar uma arte visual, ligada a gestos, roupas, imagens, atitudes, política e tudo o mais. A gente pergunta: mas qual é o meio de se ouvir uma sinfonia? Radinho de pilha ou televisão? Esses dois meios são inadequados. Como você vai ouvir a Sagração da primavera no radinho do carro? Você pode, mas está perdendo 90% do conteúdo sonoro.
A música exige uma atenção por parte do ouvinte que hoje em dia não tem mais tempo. Ainda outro dia li no jornal que tudo que tem mais de cinco minutos de existência deve ser destruído. Quer dizer, toda obra que exige muito tempo, como um romance por exemplo. Você vê, nós pensamos hoje em dia em termos de leitura dinâmica, de informação, de passar a vista em quatro ou cinco jornais, três revistas e se libertar daquilo o mais rapidamente possível e, ao mesmo tempo, estar informado para estar por dentro, não é? Eu não creio que essas coisas levem à criatividade. O indivíduo que sofre de superinformação, de superalimentação, de supertrabalho, de superócio, ele está sempre dirigido, entende? E as pessoas são dirigidas muito facilmente, o que é lamentável descobrir, não é fato? (…)
Sinto uma padronização e diversificação de quase tudo. Muitas vezes, os jovens que se dizem livres e que almejam a liberdade estão todos se vestindo igual, tendo as mesmas atitudes, o que nos faz supor que eles não sejam tão livres assim. (…) O sujeito acreditar em ideias é um problema, o raciocínio comparativo é falso. O dar nome às coisas prejudica a compreensão: quer dizer eu chamo Maria de Maria, e penso que conheço Maria, quando Maria não é nada disso.

Antonio Carlos Jobim, 1968 (!). Encontros: Tom Jobim. Frederico Coelho e Daniel Caetano (org.). Azougue Editorial, 2011.

Baú: Thomas E. Skidmore

Extraído da edição 84 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O golpe de 10 de novembro foi o triunfo do desejo de Vargas, evidente havia muito tempo, de permanecer no cargo além do mandato legal, que expiraria em 1938. Desde 1935 ele empurrava os adversários para uma posição em que lhe fosse possível desacreditá-los ou refreá-los, ao mesmo tempo que, cuidadosamente, cultivava o apoio de bem estabelecidos grupos de poder, como os cafeicultores e a cúpula militar. Para apaziguar os cafeicultores, por exemplo, em outubro de 1937 Vargas havia baixado o teto dos preços do café brasileiro, num esforço para aumentar as vendas (e, quem sabe, a renda total das exportações) no exterior. No que dizia respeito aos militares, o comando do Exército planejava uma solução autoritária para a crise política brasileira desde a revolta comunista de novembro de 1935. A cúpula militar achava que o Brasil não tinha capacidade para aguentar a confusão e a indecisão da disputa política aberta, e amedrontava-se com a possibilidade de novos avanços dos radicais de esquerda – que, se um dia chegassem ao poder, poderiam acabar com o papel de árbitro supremo dos conflitos políticos exercido pelas Forças Armadas. No fim das contas, o golpe de 1937 foi possível porque a classe média, esse pequeno mas importante grupo social capaz de assegurar o equilíbrio de qualquer sistema de eleições livres restrito a eleitores alfabetizados, estava confusa e dividida. Alguns eleitores de classe média continuavam leais a seu tradicional constitucionalismo liberal, e depositaram suas esperanças em Salles Oliveira na campanha de 1937. Outros, perdida a confiança em seu liberalismo original, voltaram-se para o radicalismo de esquerda ou de direita. Ao fazer isso, admitiram na prática que a fórmula liberal já não se aplicava ao Brasil e que estavam, portanto, preparados, ainda que inconscientemente, a aceitar, quase sem protesto, o tipo especial de autoritarismo que Vargas impôs, de súbito, em novembro de 1937. O golpe de novembro de 1937 fechou o sistema político. E todas as questões de força eleitoral nas eleições marcadas para janeiro de 1938 se tornaram acadêmicas.

Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), 1967 (Companhia das Letras, 2010).

Baú: Robert Hughes

Extraído da edição 83 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Veja – O senhor teve contato pessoal com artistas como o americano Andy Warhol. Quais suas impressões dele?
Robert Hughes – Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até produziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dúvida de que é a reputação mais ridiculamente superestimada do século XX.

Veja – E quanto ao francês Marcel Duchamp?
Hughes – Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primeiro artista em minha lista dos mais importantes de sua época. Sua elevação à condição de figura “seminal” nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de idéias notáveis. Pessoalmente, prefiro um pintor como o francês Pierre Bonnard. Muita gente considera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um trabalho de Duchamp. Além disso, a influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi liberadora, mas também catastrófica.

Veja – Por quê?
Hughes – Porque ser o pai dessa bobagem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para compreender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos infantis. Ou precisa ler uma bula para entender o que o artista quis dizer.

O guardião da arte. Veja entrevista: Robert Hughes, 21/04/2007.

Baú: Marc Fischer

Extraído da edição 82 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Começo de imediato com meu interrogatório:
— Garrincha, por quanto tempo você foi o cozinheiro preferido de João [Gilberto]?
— Pouco mais de cinco anos, mais ou menos.
(…)
— E como era quando João ligava?
— Sempre a mesma coisa. Onze da noite, no Plataforma, o telefone tocava, e João dizia: “Boa noite, Garrincha”. E eu: “Boa noite, João”. Ele: “Como vai, Garrincha?”. “Tudo bem, João.” “E como vai sua esposa, Garrincha?” “Bem também, João.” “E as crianças, como estão?” “Todas bem, João.” “Adriana sarou?” “Sarou, sim. A gripe já passou.” “O que tem hoje no cardápio, Garrincha?” “Acabamos de receber peixe fresco, João. Um bacalhau maravilhoso, servido com legumes e arroz. É muito bom, acabei de experimentar, comi ainda agorinha.” “E o que mais tem, Garrincha?” “O de sempre, João: picanha, churrasco, costelinha, lombo de porco, costeleta de cordeiro, atum, perca, lagosta, peixe-espada.” “O peixe-espada está bom, Garrincha?” “Está excelente, João. Vou mandar grelhar e temperar com uma nova mistura que acabei de inventar. Você vai adorar.” “Vou querer o steak, Garrincha.” “Está bem, João.” Então, entre meia-noite e uma da manhã, o mesmo entregador levava quase sempre o mesmo prato para ele. Deixava o pedido no chão, diante da porta. E, no dia seguinte, a cena toda se repetia.
— Quanto tempo durava a conversa ao telefone?
— Uns quarenta minutos.
— E assim foi durante cinco anos?
— Assim foi durante cinco anos.
— Você nunca viu João pessoalmente?
— Não, nunca vi.
— O entregador chegou a ver ele?
— Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.
— Mas isso é piração, Garrincha.
— Isso é João Gilberto, meu senhor.

***

Depois, [Roberto Menescal] põe de lado o violão e diz:
— Então… Quer dizer que você quer se encontrar com João Gilberto?
— É.
— Pois tome cuidado — avisa Menescal.
— Por quê?
— João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.
— Como assim?
— De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre.
(…)
— Você parece ser imune a ele. Por quê?
— Eu me afastei na hora certa. Contato mesmo, a última vez que tivemos foi em Nova York, em 1962. Na época do concerto no Carnegie Hall.
— E o que aconteceu em Nova York?
— Olha, eu simplesmente me cansei do tipo. Estávamos circulando por Manhattan, porque João queria comprar um chapéu, um daqueles chapéus típicos, com uma pena do lado. Assim sendo, fomos a uma chapelaria. Uma chapelaria muito boa, com paredes de quatro metros de altura e um gigantesco sortimento de chapéus, que os vendedores foram trazendo para João, um atrás do outro. E João dizia: “Este é bonito, mas não tem esse modelo num cinza um pouco mais claro?”. E o vendedor: “Sim, podemos fazer”. João: “Não, não, melhor não. Gosto daquele ali em cima, se bem que… a pena deste aqui é muito mais bonita”. “Podemos trocar”, disse o vendedor, “fazemos o chapéu como o senhor preferir.” João: “Não sei… Não, me traga aquele outro ali, o da prateleira”. Passamos quatro horas naquela chapelaria, sem que ele comprasse o tal chapéu. Assim é João. Como uma criança. E nem vou contar a você quantas vezes ele já me telefonou no meio da noite, pedindo que eu levasse um violão para ele, um violão que nunca devolvia ou dava de presente a alguém, como se fosse dele, sem me agradecer, sem nem mesmo abrir a porta para apanhar o instrumento.
— Ele sempre foi assim ou ficou desse jeito?
— É assim desde que conheço ele.

Marc Fischer, Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto, 2011 (Companhia das Letras).

Baú: Vladimir Nabokov

Extraído da edição 81 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em qualquer era que Sebastian tivesse nascido, ele ficaria igualmente divertido e infeliz, alegre e apreensivo, como uma criança numa pantomima de vez em quando pensa no dentista de amanhã. E a razão de seu desconforto não era que ele fosse moral numa era imoral, ou imoral numa era moral, nem era a sensação paralisante de sua juventude não florir com a naturalidade suficiente num mundo que era uma sucessão muito rápida de funerais e fogos de artifício; era simplesmente a sua consciência de que o ritmo de seu ser interior era tão mais rico do que o de outras algumas. Mesmo então, bem no final de seu período em Cambridge, e talvez antes também, ele sabia que seu menor pensamento ou sensação tinha sempre pelo menos uma dimensão a mais do que os de seus vizinhos. Ele podia ter se vangloriado disso se houvesse qualquer coisa melodramática em sua natureza. Como não havia, só lhe restava sentir a estranheza de ser um cristal entre vidros, uma esfera entre círculos (mas tudo isso não era nada comparado ao que ele experimentou ao finalmente mergulhar em sua tarefa literária).

Vladimir Nabokov, A verdadeira vida de Sebastian Knight, 1941 (Ed. Alfaguara, 2010).

Baú: Toquinho

Extraído da edição 80 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Todo músico tem a sua ‘Aquarela’. Essa música não tem muita explicação porque ela é uma antimúsica. É uma música grande, tem uma letra enorme, não tem refrão e fala de uma maneira fatalista que tudo vai acabar. Tudo vai se descolorir. O mundo vai acabar. E virou uma música infantil porque as crianças detectaram nela um começo lúdico. “Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo”… Mas, na segunda parte dela, ela fala da morte. Então é uma música que não tinha que fazer sucesso. E ela fez sucesso no mundo inteiro e em várias línguas que eu gravei. Ela tem 37 anos de vida e hoje é tocada. ‘Aquarela’ tem um carisma inexplicável para mim. Canções como essas ficam maiores do que seus compositores. Ela já não pertence a mim. É assim que é a vida. Você faz a música e a joga para o mundo, que nem um filho. E depois que está no mundo, a vida dele já não te pertence. São filhos que estão aí mundo afora e às vezes voltam para te ver.

Toquinho, 2020.

Baú: Fernando Schüler

Extraído da edição 79 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Sempre desconfiei dos que atribuem coerência demais à trajetória dos atores políticos. O jogo do poder frequentemente adquire uma lógica própria, há o erro, há o desvio, o exagero e, por fim, há sempre muita teoria disponível para interpretar e ajustar a realidade. O fato é que [Carlos] Lacerda fez do “golpismo democrático” a marca maior de sua personalidade política. Aquela que produziu o “lacerdismo”, uma arte, um pecado da política brasileira, que consiste em pôr em xeque as instituições da República quando interessa. Uma arte sem ideologia, frequentemente feita de bons argumentos. Pecado que ninguém mais, felizmente, soube cometer como Lacerda.

Quem sabe o lacerdismo tivesse um componente estético. Lacerda foi, na definição de Rodrigo [Lacerda], alguém com a “trágica incapacidade de aceitar o mais ou menos, na terra do mais ou menos”. O ponto é que a democracia vive, em boa medida, do mais ou menos. Do acordo, da procura pelo consenso. A vida de Lacerda foi a recusa permanente do acordo. Talvez tenha sido seu personagem: o moralista da República. Atores políticos elegem seus personagens. Juscelino escolheu ser o otimista, o democrata, o “sonhador do Brasil”; Tancredo escolheu ser a tradução discreta do bom-senso. Lacerda fez sua escolha. Nunca pareceu arrependido, mesmo na derrota.

Fernando Schüler, 2014.

Baú: Howard Marks

Extraído da edição 78 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Ouvimos muito a respeito de projeções do “pior cenário”, mas elas muitas vezes acabam não sendo suficientemente negativas. Conto uma história do meu pai sobre o apostador que perdia regularmente. Um dia, o apostador escutou sobre uma corrida com apenas um cavalo, então ele apostou o dinheiro do aluguel. No meio da pista, o cavalo pulou a cerca e fugiu. Invariavelmente, as coisas podem ficar piores do que as pessoas esperam. Talvez “pior cenário” signifique “o pior que vimos no passado”. Mas isso não significa que as coisas não podem ficar piores no futuro. Em 2007, muitos “piores cenários” foram extrapolados.

Howards Marks, The Most Important Thing, 2013. Tradução nossa.