Baú: Michael Lewis

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Greg Lippmann imaginou o mercado hipotecário subprime como um grande cabo de guerra financeiro: em uma ponta estava a máquina de Wall Street provendo os empréstimos, empacotando os títulos e reempacotando os piores títulos em CDOs. Quando ficou sem empréstimos, essa máquina criou falsos títulos do nada. Na outra ponta, seu nobre exército de vendedores a descoberto apostou contra os empréstimos. Os otimistas versus os pessimistas. Os fantasiosos versus os realistas. os vendedores de CDSs versus os compradores. Os errados versus os certos. A metáfora estava certa até certo ponto: este ponto. Agora, a metáfora era de dois homens amarrados dentro de um barco, lutando até a morte. Um homem mata o outro, empurra seu corpo inerte lançando-o ao mar – somente para descobrir que ele mesmo foi puxado para fora. “Operar vendido em 2007 e ganhar dinheiro com isso foi divertido, porque éramos os ‘vendidos bandidos‘”, disse Steve Eisman. “Em 2008, era o sistema financeiro inteiro que estava em risco. Ainda operávamos vendido. Mas você não quer que o sistema quebre. É como se o dilúvio estivesse prestes a acontecer e você fosse Noé. Você está na arca. Sim, você está bem. Mas não está feliz olhando para o dilúvio. Este não é um momento feliz para Noé”.

Michael Lewis, A Jogada do Século (The Big Short), 2010. Ed. Best Seller, 2011.

Baú: John Milton

Extraído da edição 72 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

É esta a região, o solo, o clima,
Disse o arcanjo perdido, o assento
A trocar pelo Céu, as trevas tristes
Pela celeste luz? Seja, já que ele
Que agora é soberano usa e manda
O que entende; à parte está melhor
Quem lhe igualou razão, força fez súpera
Acima dos seus pares. Adeus campos
Que o gozo sempre habita, ave horrores,
Mundo Infernal, e tu profundo Inferno
Recebe o novo dono, o que traz
Mente por tempo ou espaço não trocável.
A mente é em si mesma o seu lugar,
Faz do inferno Céu, faz do Céu inferno.
Que importa onde se eu mesmo o for,
Ou o que seja, logo que não seja
Inferior ao que deu fama ao trovão?
Aqui seremos livres; o magnânimo
Não alçou cá a inveja, nem daqui
Nos levará. A salvo reinaremos,
Que é digna ambição mesmo se no inferno:
Melhor reinar no inferno que no Céu
Servir. Mas por que deixarmos amigos,
Os sócios e parceiros da falência,
No lago do letargo aturdidos,
E não os chamar a dividir parte
Nesta infeliz mansão; ou uma vez
Sãos os braços malsãos, tentar ainda
O Céu reaver, ou mais perder no inferno?

John Milton (Paraíso Perdido, 1674, Livro 1; trad. Daniel Jonas, Editora 34, 2016).

Baú: Kenneth Clark

Extraído da edição 71 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O que é civilização? Não sei. Por enquanto, não consigo defini-la em termos abstratos. Mas acho que, vendo-a, posso reconhecê-la, e olho para ela neste momento. Ruskin disse: “As grandes nações escrevam sua autobiografia em três livros: o de seus feitos, o de suas palavras e o de sua arte. Para entender um é preciso ler os outros; contudo, o mais autêntico é o terceiro”. Acho que ele tem razão! Escritores e políticos podem expressar vários sentimentos nobres, mas estes não passam do que podemos chamar de declarações de intenções. Se eu tivesse que escolher o que expressa melhor a verdade da sociedade, se o discurso de um Ministro da Habitação ou as construções reais da época, diria que são as construções.

Isso não significa que a história da civilização seja a história da arte. Longe disso. As sociedades primitivas também podem produzir grandes obras de arte; de fato, a grande limitação da sociedade primitiva confere à sua arte ornamental uma concentração e uma vitalidade peculiares. Lá pelo século IX, podia-se ver, olhando o Sena, a proa de uma embarcação viking subindo o rio. Hoje, no Museu Britânico, ninguém lhe pode negar o vigor de uma obra de arte, mas deve ter sido bem menos atraente para a mãe de família que tentava acomodar os filhos em sua cabana; aliás, deve ter sido tão ameaçadora para a sua civilização quanto o periscópio de um submarino atômico.

Kenneth Clark (Civilização, ed. Martins Fontes, 1995).

Baú: Stanley Kubrick

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O que há de melhor em um filme é quando o efeito é criado pelas imagens e pela música. A linguagem, quando a utilizamos, deve ser, claro, a mais inteligente e imaginativa possível, mas eu ficaria bem interessado em fazer um filme sem nenhuma palavra, se pudesse achar um meio de fazê-lo. Poderíamos imaginar um filme no qual as imagens e a música seriam utilizadas de maneira poética ou musical, no qual se faria uma espécie de enunciados visuais implícitos em vez de declarações verbais explícitas: digo que poderíamos imaginar, pois não posso imaginá-lo a ponto de escrever realmente uma história assim, mas acho que, se isso fosse feito, o cinema seria utilizado ao máximo. Ele seria então totalmente diferente de qualquer outra forma de arte, do teatro, do romance ou até mesmo da poesia.

Stanley Kubrick (Michael Ciment, Conversas com Kubrick, Cosac Naify, 2010, p. 123).

Baú: Rudyard Kipling

Extraído da edição 69 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Na cidade grande, havia um grupo de sobreviventes locais, de um contingente sul-americano, que vieram da Guerra. Eles eram alegres e sinceros, mas cada um devia carregar a própria amargura ou nostalgia por baixo de toda a jovialidade e do riso. “Brincadeiras à parte, que tipo de vida era esta para eles?”. E a resposta, com todas inserções e alusões locais, era: “É uma vida boa. Esta é uma vida boa. É claro que temos reclamações, mas no geral é uma vida tão boa quanto se pode esperar. Não há porquê afligir-se, e não há razão para desuniões, se o dinheiro levar a isso. Mas está repleta de tentações, você sabe, independente de ter-se dinheiro ou não”. Deveria-se contentar com isso. Em outra parte, um grupo distinto era formado por alguns homens, mulheres e crianças inglesas à vontade, após um dia de trabalho, em um lindo clube. Ali parecia que nos aproximávamos um pouco mais dos vestígios e meio segredos da vida. Mas as convenções – tanto pior – proíbem interrogar os passantes e perguntar a eles: “Como você vive na realidade? O que acha das coisas daqui – negócios, comércio, empregados, doenças infantis, educação e tudo o mais?”. Assim o rio de rostos fluía com suficiente placidez, e podia-se apenas imaginar o que jazia por baixo da superfície e reentrâncias.

Os brasileiros que encontrei eram interessados e completamente a par dos assuntos externos, mas estes não compunham seu mundo essencial. O Deus deles – eles caçoavam – era brasileiro. Ele dava a eles tudo o que queriam e um pouco mais. Por exemplo, uma vez quando a colheita do café excedeu os limites, Ele enviou uma geada no momento certo, que podou um quarto e equilibrou confortavelmente o mercado. E as vastas terras do interior do país estavam repletas de tudo o que se poderia querer, esperando para ser usado no devido tempo. Durante a Guerra, quando foram obrigados a prover por si mesmos metais, fibras e coisas assim, mostraram uma amostra a um índio e perguntaram: “Onde se pode encontrar mais disto?”. Então ele pôde guiá-los até lá. Mas possuir tais coisas, eles davam a entender, não implicava desenvolvimento imediato pelas concessionárias. O Brasil era um país gigantesco, com metade ou um terço inexplorado. Ele cuidaria de si mesmo no tempo certo. Pouco depois, fantasiei qualquer coisa nos bastidores, existiu uma linhagem de proprietários de terras com aversão ao mero comprador e vendedor de mercadorias, que sugeria uma origem aristocrática para a construção nacional.

Rudyard Kipling, Um mundo à parte (em Crônicas do Brasil, 1927), tradução ed. Landmark, 2006.

 

Baú: Bertrand Russell

Extraído da edição 68 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Mas num homem idoso que conheceu as alegrias e mágoas humanas, e que atingiu alguma obra que estivesse propenso a realizar, o medo da morte é algo abjeto e ignóbil. A melhor maneira de superá-lo – ao menos assim me parece ser – é tornar seus interesses gradualmente cada vez mais amplos e mais impessoais, até que pouco a pouco os muros do ego se afastem, e sua vida se torne crescentemente fundida à vida universal.

A existência de um indivíduo deve ser como um rio – pequeno no começo, estreitamente contido em suas margens, e correndo apaixonadamente através de pedregulhos e quedas. Gradualmente o rio se alarga, as margens se afastam, as águas correm mais calmas, e no fim, sem uma quebra visível, as águas misturam-se com o mar; e sem dor perdem sua individualidade. O homem que, na idade avançada, pode ver sua vida dessa forma, não sofrerá com o medo da morte, pois o que é importante para ele continuará.

Bertrand Russell, Como envelhecer (em Retratos da memória e outros ensaios, 1956).

Baú: Megan Abbott

Extraído da edição 67 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O hardboiled é diferente do noir, embora ambos sejam usados de maneira intercambiável. O argumento comum é de que os romances hardboiled são uma extensão do wild west e das narrativas pioneiras do século 19. A vastidão dá lugar à cidade, e o herói é geralmente um tipo de personagem derrubado, um detetive ou policial. No fim, tudo é uma bagunça e pessoas morreram, mas o herói fez a coisa certa ou algo próximo disso – e a ordem foi, até certo ponto, restabelecida. Law and Order é um ótimo exemplo da fórmula hardboiled em uma montagem contemporânea.

O noir é diferente. No noir, todo mundo é derrubado, e certo e errado não são claramente definidos – talvez nem mesmo atingíveis. Nesse sentido, o noir dialoga poderosamente conosco agora, quando certas estruturas de autoridade não fazem mais sentido e nos perguntamos: ‘por que nós deveríamos obedecê-las?’. O noir prosperou nos anos 1940, depois da Depressão e da Segunda Guerra, e nos anos 1970, com Watergate e o Vietnã, por razões similares.

Megan Abbott, LitHub, 2018.

Baú: Antonio Paim

Extraído da edição 66 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em síntese, o Estado brasileiro é uma realidade extremamente complexa para esgotar-se em termos dicotômicos e admitir soluções simplistas.

A elite técnica, constituída no seio do Estado, corresponde a uma aspiração secular de nossa civilização. Tudo leva a crer, por isto mesmo, que não se trate de uma criação transitória.

É provável que seu conflito com a máquina patrimonialista tradicional não possa ser solucionado antes que sejam eliminados os múltiplos focos de pobreza ainda subsistente em nossa realidade social. Essa situação de carência, não se deve perder de vista, é que tem facultado uma sólida base social ao patrimonialismo brasileiro. Assim, o conflito e a tensão entre os técnicos e a burocracia estatal tampouco podem ser encarados como fenômenos transitórios.

Antonio Paim, A Querela do Estatismo, 1998, p. 157 (Senado Federal).

 

Baú: Richard Yates

Extraído da edição 65 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

E ela jamais conseguira explicar, nem mesmo compreender, que o que adorava não era o emprego – qualquer emprego serviria –, nem mesmo a independência que o emprego lhe propiciava (embora isso fosse importante para uma mulher sempre à beira do divórcio). No fundo, o que ela adorava e precisava era do trabalho em si. “Trabalho duro”, seu pai sempre dissera, “é o melhor remédio para todos os males do homem… e da mulher”, e ela sempre acreditara nisso. A pressão, a agitação e as luzes do escritório, o almoço rápido entregue numa bandeja, o despacho de papeis, e o atendimento de chamadas telefônicas, o cansaço das horas extras e o grande alívio de tirar os sapatos à noite, num cansaço que sempre a deixava inerte, com força apenas para tomar duas aspirinas, um banho quente, comer um jantar leve e cair na cama – eis a essência do que ela adorava; era isso que a fortificava contra as pressões do casamento e da maternidade. Sem isso, conforme costumava dizer, teria enlouquecido.

Richard Yates, Foi Apenas um Sonho (Rua da Revolução), 1961. Edição brasileira da Alfaguara, 2009.

Baú: John Updike sobre Dostoiévski

Extraído da edição 64 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Ele estava sempre escrevendo por dinheiro, não apenas pelo dinheiro, mas porque estava desesperado para pagar dívidas. E ele escrevia rápido. E colocava sua dor nas páginas, sua necessidade de respostas, a busca por esperança e a tentativa de obter sentido nas coisas. Sua raiva, sua amargura, suas recriminações. Você não saberia dizer se ele lutava com suas forças ou fraquezas. Ele não escrevia como alguém que tenta criar um grande romance. Ele escrevia como alguém que tenta sobreviver.

John Updike sobre Dostoiévski. Extraído do perfil do escritor André Balaio, que traduziu o trecho do podcast The History of Literature. Obrigado, André!

Baú: Iris Murdoch

Extraído da edição 63 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

A escrita literária é uma arte, um aspecto de uma forma de arte. Pode ser modesta ou grandiosa, mas, se é literatura, tem uma intenção artística – sua linguagem é usada de uma maneira particularmente elaborada em relação ao “trabalho”, longo ou curto, do qual compõe uma parte. Então não há somente um estilo literário ou o estilo literário ideal, embora, claro, haja escrita boa e ruim. (…) Modos literários são bastante naturais a nós, bem próximos da vida ordinária e da maneira com que vivemos como seres reflexivos. Nem toda literatura é ficção, mas a maior parte dela é ou envolve ficção, invenção, máscaras, papéis, faz de conta, imaginação e contação de história. Quando voltamos para casa e “contamos nosso dia”, estamos moldando um material artisticamente no formato de uma história. (Essas histórias costumam ser engraçadas, por sinal.) De certo modo, nós, como usuários da palavra, existimos em uma atmosfera literária; vivemos e respiramos literatura; somos todos artistas literários; estamos constantemente empregando linguagem para formatar de modo interessante nossa experiência – que talvez originalmente fosse maçante ou incoerente. Quão longe essa formatação envolve ofensas à verdade é um problema que qualquer artista deve enfrentar. Um motivo profundo para fazer literatura ou arte de qualquer tipo é o desejo de enfrentar a falta de forma do mundo e animar-se por construir formas a partir do que seria apenas uma massa de pedregulho sem sentido.

Iris Murdoch, 1977 [extraído da newsletter semanal do BrainPickings].

Baú: Nabokov vs. Freud

Extraído da edição 62 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Sr. Nabokov, você nos diria por que detesta o dr. Freud?

Eu o considero cru, eu o considero medieval; não quero um sujeito de meia-idade de Viena com um guarda-chuva infligindo seus sonhos sobre mim. Eu não tenho os sonhos que ele discute em seus livros. Eu não vejo guarda-chuvas em meus sonhos. Ou balões.

Creio que o artista criativo seja um exilado no próprio estudo, no próprio quarto, no círculo de sua lâmpada. Ele é bastante solitário ali; ele é o lobo solitário. No momento em que se junta a alguém e compartilha seu segredo, ele compartilha seu mistério; ele compartilha seu deus com outra pessoa.

Vladimir Nabokov, 1966.

Baú: João Braga

Extraído da edição 60 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

A origem etimológica desta palavra é do sânscrito bel et za e quer dizer ‘a casa onde Deus brilha’, ou seja, a beleza está associada ao divino. Trata-se de um valor imaterial impregnado no objeto material que tem a capacidade de sensibilizar o olhar de quem observa, proporcionando-lhe a experiência estética. É algo que mexe conosco e até mesmo chega a nos perturbar, no sentido positivo de nos proporcionar uma sensação de encantamento e agradabilidade. É a presença do invisível que se faz visível e nos toca; é mistério e simplicidade ao mesmo tempo. É harmonia, é transcendência.

João Braga, Tenho dito: histórias e reflexões de moda. Ed. Estação das Letras e Cores, 2015.

Baú: simplicidade

Extraído da edição 59 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Tudo é muito simples na guerra, mas a mais simples das coisas é difícil.

Carl von Clausewitz (1780-1831).

Qualquer um consegue tocar estranho, isso é fácil. O difícil é tocar simples como Bach. Fazer do simples complicado é lugar-comum. Fazer do complicado simples – incrivelmente simples – isso é criatividade.

Charles Mingus (1922-1979).

“Jogar futebol é muito simples, mas jogar o futebol simples é a coisa mais difícil que existe.”

Johan Cruyff (1947-2016).

Baú: Henry David Thoreau

Extraído da edição 58 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Viver muito ao ar livre, ao sol e ao vento sem dúvida produzirá uma certa aspereza de caráter – fará com que uma pele mais grossa cubra alguma das qualidades mais refinadas de nossa natureza, como ocorre no rosto e nas mãos, ou como o duro trabalho manual rouba dos dedos um pouco de sua delicadeza de toque. Assim, a permanência em casa, por sua vez, pode produzir uma brandura e uma maciez, para não dizer fineza, de pele, acompanhada por uma sensibilidade aguçada a certas impressões. Talvez fôssemos mais suscetíveis a algumas influências importantes para o nosso crescimento intelectual e moral se sobre nós o sol e o vento tivessem batido um pouco menos; e sem dúvida é uma questão importante dosar com equilíbrio a pele fina e a pele grossa. Mas penso que haverá oportunamente uma descamação – que o remédio natural deve ser encontrado na proporção que a noite mantém com o dia, o inverno com o verão, o pensamento com a experiência. Haverá então tanto mais ar e luz do sol em nossos pensamentos. As palmas calejadas das mãos do operário entendem-se melhor com os finos tecidos do autorrespeito e do heroísmo, cujo toque comove o coração, do que os dedos lânguidos e indolentes. Não passa de sentimentalismo o que faz alguém ficar deitado o dia inteiro e se julgar imaculado, longe dos calos e da pele curtida da experiência.

Henry David Thoreau, Caminhar (1862 – n’A Desobediência Civil, Ed. Penguin, 2012).