Museu Livre de Glúten

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Se você gosta de artes e é celíaco, tem alergia ao trigo ou simplesmente acha que não comer glúten é uma opção mais saudável (não é), não deixe de conferir o Museu Livre de Glúten, um tumblr que retira tudo que contém glúten de várias obras de arte – não só de pinturas –, deixando-as mais palatáveis a quem sofre de intolerância a cereais como trigo, cevada e centeio.

Codex Leicester

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Codex Leicester, também batizado de Codex Hammer, é o mais famoso caderno científico de Leonardo da Vinci. No decorrer de 72 páginas, o manuscrito, que apresenta a característica escrita espelhada do autor, aborda temas como astronomia, as propriedades da água e de fósseis. Além disso, as observações são apoiadas por desenhos e diagramas do italiano.

Desde a morte de seu autor, em 1519, poucos foram os seus donos. Após mais de duzentos anos nas mãos da mesma família, o manuscrito foi adquirido em leilão por mais de 5 milhões de dólares pelo empresário Armand Hammer, em 1980. Hammer investiu na tradução do documento para o inglês, contratando para o projeto o historiador italiano Carlo Pedretti, que precisou de sete anos para finalizá-lo.

Em 1994, novamente, o documento foi colocado à venda em leilão. Dessa vez, acabou vendido por mais de 30 milhões de dólares, fazendo do manuscrito o mais caro da história. O comprador? Bill Gates. Três anos após comprá-lo, o fundador da Microsoft o escaneou e o tornou acessível ao público. Partes do códice podem ser folheadas aqui, e é possível comprar uma versão digital por 20 euros aqui.

Do afresco ao óleo

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No período do renascimento da arte ocidental – se é que isso realmente existiu –, as técnicas de pintura mais difundidas eram o Afresco, pintura mural baseada na aplicação de tinta a uma argamassa de gesso, e a Têmpera, método de tintas misturadas a uma preparação com gema de ovo em uma superfície de madeira. Apenas mais tarde, no século 16, o uso do Óleo Sobre Tela se popularizou, tornando-se a técnica de escolha para pintores até o século 20, quando o modernismo resolveu chutar o pau do cavalete.

Neste fresco de Giotto, além das cores já empalidecidas e traços grosseiros, é possível ver as diferentes “mãos” de tinta (em volta dos anjos no céu, principalmente)

O Afresco foi muito utilizado principalmente na decoração de igrejas e de villas (casas de campo da nobreza e burguesia). Embora fosse uma maneira prática de embelezar paredes, o gesso secava rápido e pouco podia ser pintado de cada vez. Além disso, a cada dia a tinta se fixava de maneira diferente. Assim, ficavam visíveis as giornatas, diferentes dias de trabalho que eram evidenciados pela diferença abrupta de cores – como neste detalhe da Expulsão de Adão e Eva, de Masaccio. Seus corpos aparecem contornados por uma camada mais forte de tinta. Com o passar dos anos (séculos, melhor dizendo), ficou também claro que as cores das pinturas desbotavam com facilidade. Mas é evidente que há exemplos irretocáveis de afrescos que mais parecem pinturas a óleo, como a obra-prima de Michelangelo, a Capela Sistina.

Na Têmpera, cada traço conta: os fios da barba e as rugas desse Santo André de Simone Martini foram traçados um a um

Para imagens portáteis ou no mínimo móveis, a técnica mais comumente empregada era a Têmpera. Por ser a base de gema de ovo, a tinta nesse caso também seca muito rápido – mais ainda do que no afresco. Não havia como misturar cores a fim de criar um degradê, por exemplo. Dessa forma, os artistas usavam hachuras para modelar a luz nos personagens, isto é, linhas paralelas finas que ficam mais próximas ou distantes progressivamente, criando a ilusão de volume e de iluminação.

Aí chegamos ao Óleo Sobre Tela. O óleo deixa a tinta, digamos, mais maleável – por demorar a secar, possibilita a mistura entre pigmentos e a criação de novas cores intermediárias. Sendo translúcido, permite também que várias camadas diferentes de tinta reflitam quando sob a luz. Além disso, com essa técnica os traços desenhados não são mais definitivos, possibilitando a modificação da tela após a aplicação das tintas. O exemplo mais célebre dessas novas explorações por esse método é a Tempestade, de Giorgione. Nesse quadro, o pintor italiano cria, com diferentes tons de azul, uma atmosfera complexa e carregada e, aproveitando-se da liberdade que o óleo lhe deu: Giorgione chegou a substituir completamente o personagem da esquerda, que antes de ser um pastor (ou soldado) era uma mulher nua sentada.

A imagem de raio-X (à esquerda) revela a personagem original

Narcocorridos

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O envolvimento da música com a criminalidade não é de maneira alguma uma novidade, muito menos uma surpresa. Movimentos como o hip-hop (difundido dos EUA a todos os cantos do mundo) e o funk proibidão das favelas cariocas são exemplos desta ligação, e nomes como 50 Cent, Snoop Dogg e dos conterrâneos Mc Cidinho e Doca são facilmente relembrados quando o tema entra em questão. No entanto, dentre os diversos gêneros que abraçam o crime e a violência como matéria-prima para sua arte, os narcocorridos, apesar de pouco populares no Brasil, têm uma relação estranha com um dos mais famosos gêneros literários – e uma cronologia pra lá de curiosa.

Originado do tradicional norteño-corrido, o qual por muito tempo se apropriou da temática da revolução mexicana para homenagear heróis revolucionários e que, por sua vez, foi inspirado pelo romance espanhol (vide Dom Quixote, herói um tanto peculiar), os narcocorridos também buscam mimosear “heróis” muito subversivos: os narcotraficantes. Tendo como casa o México, o gênero musical se espalhou por toda a América, e por isso nomes como o do colombiano Pablo Escobar (ouça El Patrón) ou do maior narco da atualidade, Chapo Guzmán (veja esta lista), são frequentes nas líricas proibidas dos narcocorridos, que sempre se utilizam de acontecimentos reais para dar corpo às suas letras.

Acontece que nem só de ídolos e figurões do submundo vivem os corridos. O documentário Narco Cultura mostra como traficantes “menores” buscam cantores do gênero para encomendar canções que falem de si mesmos e de suas pequenas vitórias – nada mais justo do que um gênero musical criminal se vender por mucha plata. Os narcocorridos são apenas um aspecto da abrangente cultura narcotraficante, que há muito tempo já se vê como uma forma e aspiração de vida para muitos – e é contextualizado um pouquinho melhor aqui.

 

[por Mateus Senna]

Science and Invention

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Se eles soubessem o quanto meu Skype ainda trava

Por razões distintas, Hugo Gernsback se consolidou como um nome crucial para a ficção científica. Foi ele o criador da Amazing Stories, primeira revista dedicada ao gênero, em 1926. O feito lhe rendeu uma homenagem por meio do Prêmio Hugo, que até hoje recompensa anualmente as melhores produções literárias de ficção científica. Ainda antes disso, contudo, Gernsback já havia desenvolvido algo bastante notável.

Em 1913, o amante das novas tecnologias deu vida à Electrical Experimenter, que sete anos depois passou a ser Science and Invention. Focado em artigos científicos, a Experimenter contou até com a participação de Nikola Tesla, inventor conhecido pela genialidade proporcional à excentricidade (E POR TER SIDO INTERPRETADO PELO BOWIE). Com ambos os nomes, a revista, publicada mensalmente, notabilizou-se por previsões ousadas, especulando sobre avanços tecnológicos e seus possíveis usos.

Destinada a cientistas e inventores, as publicações não só foram importantes para a época, como nos oferecem o entretenimento de observá-las hoje, oito décadas depois. A Science and Invention permaneceu sob os cuidados de Gernsback até 1929, quando este faliu e a passou ao comando de Arthur H. Lynch – o qual viu sua última edição sair em agosto de 1931. Hugo Gernsback ganhou o apelido de “pai da ficção científica” e morreu em 1967, três dias após completar 83 anos.

Todas as capas da Science and Invention podem ser conferidas aqui – vale a pena ver.

Pinturas negras, Francisco Goya

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“Duelo a garrotazos”, 1820-1823 (Museu do Prado).

Algumas das obras mais icônicas de Francisco Goya constam entre as Pinturas negras. É muito provável que você já tenha se deparado com “Saturno devorando um filho“, “Dois velhos comendo sopa” e “A romaria de Santo Isidoro“, por exemplo.

As temáticas sombrias, aliadas a cores soturnas, um tanto ocres, hoje são vistas como epítome visual de morte – entre outras representações. O interessante é que você, e eu, e nós todos, poderíamos nunca ter visto qualquer um dos 14 extraordinários trabalhos: Goya não fez a mínima questão de disponibilizá-los.

Francisco Goya, pois, desenvolveu as Pinturas negras já idoso, surdo e recluso. Em 1819, aos 72 anos, vivendo em uma casa nos entornos de Madri, o espanhol passou a desenvolver essas peças, provavelmente após o susto de uma doença séria (o qual, por sua vez, inspirou este autorretrato).

A residência de dois andares, conhecida como Vila do Surdo – coincidentemente, não por conta dele, mas graças a um dono anterior –, abrigou todas as composições. Porque elas foram criadas diretamente nas paredes.

Uma hipótese sobre a disposição dessas telas foi elaborada da seguinte forma, na imagem abaixo. (Inclusive, projeção em 3D aqui.)

Nenhuma das pinturas, aliás, recebeu título: os nomes foram dados mais de 50 anos depois da morte do artista e, portanto, não são oficiais. Em 1823, Goya deixou o lar (e, consequentemente, as obras) para seu neto Mariano, mudando-se para Bordéus – Bordô –, na França.

Até o fim de sua vida, o público não teve qualquer conhecimento delas, e o Museu do Prado, de Madri, só as conseguiu em 1881, isto é, mais de meio século depois da morte de Francisco Goya (1828). O processo de transferência havia começado na década de 1870.

Se boa parte dos gênios adquire reconhecimento após o óbito, o caso das Pinturas negras se torna intrigante porque, afinal, elas só foram vistas décadas depois. Como genialidade pouca é bobagem, Los desastres de la guerra, outra grande série de Goya, passou pelo mesmo processo de composição privada, sendo divulgada 35 anos depois do falecimento do pintor.

Ganho ou morro

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“Ganho ou morro”. Reza a lenda que o maratonista português Francisco Lázaro proferiu essa frase logo antes de correr nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. Verídica ou não, a sentença se confirmou, ainda que Lázaro não tenha se consagrado vencedor da prova.

Lázaro, natural de Lisboa, havia ganhado maratonas seguidamente em Portugal e, portanto, chegou confiante à ensolarada Estocolmo. Carpinteiro, corria na sua cidade após o trabalho, desprovido de qualquer treinador. Na Olimpíada, foi porta-bandeira na delegação de seis lusitanos. Não completou a derradeira prova de 14 de julho pois, no meio do caminho, morreu – o primeiro atleta a fazê-lo durante uma prova olímpica.

O português era esperado por seus colegas no 35º quilômetro, mas não apareceu. Em percurso inverso, foi encontrado no 30º, então foi logo levado ao hospital. Francisco Lázaro sucumbiu na madrugada, após diagnóstico de meningite.

Entretanto, a narrativa de sua morte é discutida até hoje: já atribuíram sua queda a uma insolação, a uma desidratação e ao fato de o corredor ter coberto o corpo de sebo para se proteger do sol. Uma hipótese mais recente credita a tragédia à mistura fatal de substâncias que deveriam complementar-lhe o treino.

Sobre o assunto, recomendamos este ótimo texto.

Fraude de Sokal

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Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica”, de Alan Sokal (1996), é um dos artigos científicos mais importantes já publicados. Nele, o físico americano questiona a gravitação quântica, propondo uma interpretação desta como mera construção social e linguística.

O periódico acadêmico de estudos culturais Social Text (Universidade de Duke, EUA), assumidamente pós-moderno, logo o acolheu. No texto, Sokal subverte a realidade externa e as leis da natureza a um construto, fruto do “dogma imposto pelo hegemonia do pós-Iluminismo sobre o panorama intelectual ocidental”.

O artigo inteiro, no entanto, não passa de uma imensa ladainha. Alan Sokal queria provar que, uma vez alinhado ideologicamente com o corpo editorial, qualquer baboseira serviria. A ponto de o autor recorrer a afirmações completamente desprovidas de sentido, por sua vez pautadas em teóricos nada relacionados. Nas palavras dele,

Ao longo do artigo, utilizo conceitos científicos e matemáticos de tal modo que poucos cientistas ou matemáticos os podem levar a sério. Por exemplo, sugiro que o “campo morfogenético” – uma ideia bizarra da New Age devida a Rupert Sheldrake – constitui uma teoria de ponta da gravidade quântica. Isto é pura invenção; nem mesmo Sheldrake faz tal afirmação. Afirmo que as especulações psicoanalíticas de Lacan foram confirmadas por trabalhos recentes na teoria do campo quântica. Mesmo leitores não cientistas podem perguntar-se que raio tem a teoria quântica a ver com a psicanálise; no meu artigo não dou nenhum argumento para apoiar tal relação. Em suma, escrevi intencionalmente o artigo de tal modo que um físico ou matemático competente (ou mesmo alguém com conhecimento razoável) percebesse que era uma fraude. Evidentemente, os editores de Social Text publicaram calmamente um artigo sobre física quântica sem se preocuparem em consultar alguém com conhecimentos nessa matéria.
A fraude acabou revelada – por ele mesmo – em outra publicação subsequente. Segundo Sokal, politicamente alinhado à “velha esquerda”, a “nova esquerda” teria criado uma “subcultura acadêmica auto-perpetuada que tipicamente ignora (ou desdenha de) críticas externas fundamentadas” – daí sua motivação em desmascará-la. A algum lugar, parece que ele chegou.

Sorriso arcaico

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O Sorriso Arcaico é uma expressão facial encontrada principalmente em esculturas do período arcaico da Grécia Antiga, entre 650 e 480 a.C. Não há consenso sobre o motivo pelo qual os artistas da época esculpiam os rostos assim, mas alguns conceitos estão bem estabelecidos.

O período arcaico se desenvolveu após o colapso das civilizações micênicas e a “era das trevas” que a sucedeu. Foi um período de renascimento das artes, no qual os gregos tiveram que “reaprender” a representar o corpo humano. Por isso, a escultura arcaica se caracteriza por uma grande rigidez em sua forma.

Sua influência mais perceptível vem da arte egípcia e de seu estilo monumental. No Egito Antigo, as representações artísticas eram restritas às divindades. O sujeito – um faraó ou um deus antropozoomórfico – deveria demonstrar sua transcendentalidade; e sua expressão facial e corporal, um retrato de sua eternidade.

A mesma expressão de ausência e eternidade já podia ser vista no Egito Antigo, como mostra esse busto de Nefertiti.

Esse era provavelmente o papel do sorriso arcaico: conferir um aspecto não natural à obra; indicar que aquilo à mostra não era humano, e sim sobrenatural. É como acontece na iconografia bizantina: não há uma representação fiel do mundo material, mas sim um símbolo de uma perfeição celestial que não pode ser alcançada na Terra. Além disso, esse sorriso contido reflete um estado de bem-estar e felicidade plena.

De fato, nenhuma das figuras apresentadas neste texto parece ter a menor das preocupações. Inclusive, uma das teorias de historiadores da arte é de que essa expressão simboliza a felicidade por meio da ignorância, já que as estátuas realmente têm um ar um tanto avoado.

Outra teoria defende que a escolha dessa boca levemente curvada, com lábios apertados, seria simplesmente uma questão técnica: era difícil talhar detalhes nas cabeças tipicamente arcaicas, em formato de bloco.

Nem guerreiros feridos escapavam do sorriso clássico, como mostra essa figura do Templo de Aphaia.

Contemporâneos aos gregos arcaicos e vizinhos dos romanos, os etruscos também usavam o mesmo recurso, como podemos visualizar no sensacional Apulu de Veii, de 500 a.C. Independentemente de sua razão de ser, o sorriso arcaico permanece como um ótimo recurso para identificar a origem temporal e espacial das esculturas que o ostentam.

Comparando com obras também gregas, mas de outras épocas, ficam claras as discrepâncias: distingue-se da escultura grega Clássica e de seus semblantes mais sérios e serenos, e ainda mais da expressividade intensa da escultura da época Helenística.

Craig Ferguson, o bom caótico

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Geoff Peterson, Craig Ferguson e Secretariat.

De Johnny Carson a Rafinha Bastos, passando por Jô Soares e David Letterman, você já deve ter observado como a estrutura de talk shows noturnos costuma ser parecidíssima: uma mesa; convidados; monólogos; diálogos nem sempre espontâneosbanda fixa e um auxiliar coadjuvante. Ainda que existam exceções, a forma é quase sempre idêntica.

Em meio a essa hiper-realidade de famosos sorridentes e fragmentos hiperativos, o escocês Craig Ferguson se consolidou como um apresentador singular. Sua criatura, The Late Late Show with Craig Ferguson (2004-2015), da americana CBS, não perdia chances de rir do próprio gênero.

Ferguson, afinal, sempre adotou uma abordagem um tanto anárquica no formato inteiro. Após anos recebendo reclamações pela ausência de um coadjuvante, seu companheiro no comando do programa era Geoff Peterson, um “robô gay” de movimentos limitados dublado por Josh Robert Thompson.

Também não havia banda, mas existia Secretariat, um elemento fantasiado de cavalo cuja função consistia em dançar com o apresentador – isso acontecia com frequência. Fantasias e fantoches, aliás, não faltavam nos segmentos absurdos, bem como silêncios constrangedores. Quando membros da plateia participavam, eles realmente não tinham ideia do desdobramento da conversa.

E os entrevistados também não. Craig Ferguson claramente não se preparava para as entrevistas, segundo ele para manter uma curiosidade genuína nos convidados (ou, quem sabe, por preguiça). Essa entrevista com Robin Williams, por exemplo, exibe dois lunáticos à vontade. Simbolicamente, Ferguson passou a rasgar aqueles cartões preparatórios de que todo apresentador dispõe.

Da mesma forma, eram frequentes suas alusões à superficialidade do formato. Por exemplo, ao papel de parede noturno e à gravação dos episódios, que de noturna nada tinha.

Entretanto, o escocês não se consagrou só pelo humor: além do carisma invejável, Ferguson expunha um bom senso pouco visto na televisão (e em qualquer lugar, sejamos justos). Alguns de seus monólogos são especialmente marcantes, como aquele em que compartilha ter tido sérios problemas com o álcool ou as homenagens a paimãe, diante de suas respectivas mortes.

Sempre desprovido de demagogia, pretensão e proselitismo, Craig Ferguson tratou sua própria função com escárnio até encerrar o Late Late Show, em 2015. Por seus não tão numerosos fãs, segue adorado. Hoje, assistir às cenas de seu programa traz aquela confusa, porém genuína sensação de saudades de algo não testemunhado em primeira mão.

Alan Smithee, diretor

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Com dezenas e dezenas de filmes creditados desde a década de 1960, Alan (Allen) Smithee é, facilmente, um dos diretores mais polêmicos da história do cinema. Isso porque, longe de alguma prisão por estupro ou de um eventual relacionamento com a enteada, Alan Smithee não existe. Ao menos não fora do IMDB.

Só Matando foi lançado em 1969, e, com ele, um problema. O longa-metragem contou com dois diretores: o primeiro deles, substituído durante o processo, não queria que seu nome assinasse a produção; o segundo, bom, também não. Como o uso de pseudônimos não era permitido, foi necessário um acordo para que o Directors Guild of America (DGA) liberasse a oficialização de Allen Smithee, espantalho criativo de um filme surpreendentemente elogiado.

O nome foi desenvolvido a partir de ‘Al Smith’, considerado comum demais. Allen se tornou Alan, e, desde então, diretores vêm assumindo o pseudônimo, de imediato ou de forma retroativa, quando alegam não terem tido liberdade suficiente na edição de uma obra, principalmente ao admitirem que o resultado final é um grande dejeto.

A palhaçada esfriou após An Alan Smithee film: Burn Hollywood Burn (1998), filme metalinguístico com Eric Idle, do Monty Python, no papel principal. Idle interpreta Alan Smithee – rá! –, diretor de cinema querendo apagar seu nome de um longa-metragem, mas impossibilitado por, afinal, chamar-se Alan Smithee. A película foi um fracasso absoluto de público e crítica, e o diretor Arthur Hiller, alegando interferências diretas na edição, assinou como… Pois é.

Castor de Andrade

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Quem pensa que o Brasil se resume a futebol, carnaval e corrupção, deveria conhecer a história de Castor de Andrade, um homem que dedicou sua vida, lutou e venceu nesses três campos.

Castor de Andrade foi o bicheiro mais conhecido do Brasil. Costuma-se apontá-lo como o MAIOR e MAIS PODEROSO bicheiro do país, mas a falta de um prêmio oficial da categoria ou mesmo de uma revista especializada me faz preferir o critério de popularidade. Nasceu em 1926 no Rio de Janeiro, já filho e neto de contraventores ligados ao jogo do bicho. Tudo teria começado com a sua avó materna Eurídice que, após ter ficado viúva, teve a ideia de começar o seu próprio jogo do bicho na sua residência – uma casinha de sapê localizada na Rua Fonseca, no bairro do Bangu.

Seu pai pertencia a uma família que, a princípio, não tinha ligação alguma com os jogos de azar. Por influência da família da mãe, contudo, acabou entrando no negócio da contravenção. Seu Zizinho fez fortuna com o jogo do bicho, proporcionando uma infância regrada ao menino Castor, que mais tarde não apenas herdaria o negócio todo, como também multiplicaria por muito o faturamento.

Castor de Andrade foi um bicheiro amado e respeitado porque usou o dinheiro do bicho para dar alegria ao povo nas duas coisas que mais lhe interessam: futebol e carnaval. É também uma grande ingenuidade achar que Castor de Andrade usou o dinheiro do bicho para de fato dar alegria ao povo nas duas coisas que mais lhe interessam, quando na verdade carnaval e futebol são caminhos bastante conhecidos (e eficientes) para se lavar dinheiro. Mas ele deu.

No futebol, perseverou à frente do Bangu. Um clube tão modesto que, quando incrivelmente chegou à final do Campeonato Brasileiro de 1985, não despertou raiva dos rivais cariocas, mas simpatia. A final foi no Estádio do Maracanã, com mais de 100 mil espectadores – a maioria torcedores de outras equipes cariocas – apoiando o Bangu. A equipe acabou derrotada nos pênaltis para o Coritiba, um time que jamais havia ganhado um Brasileiro, nunca venceu de novo e provavelmente nunca mais vai ganhar.

Castor de Andrade foi presidente de honra do Bangu e maior financiador do time exatamente nessa época. Foi muito querido pela torcida, que não se importava nem um pouco com algumas histórias estranhas que aconteceram na Era Castor, como a de um torcedor misterioso que faleceu e deixou uma herança de aproximadamente 500 bilhões de cruzeiros para o clube carioca. O adepto era professor de matemática, solteiro e a sua suposta fortuna era desconhecida mesmo pelos mais chegados. Ele sequer era sócio do Bangu.

No Carnaval carioca, teve ainda mais reconhecimento. Foi pentacampeão patrocinando a escola Unidos de Padre Miguel (sempre-10-na-bateria-saudoso-mestre-andré-sempre-soube-o-que-queria) entre os anos 1970 e 1980.

Castor de Andrade acabou falecendo vítima de um infarto fulminante em 1997, quando descumpria, como de costume, a ordem de prisão domiciliar. Ele havia sido preso em 1994, utilizando bigode falso e cabelos pintados, enquanto visitava o Salão do Automóvel  em São Paulo. “Foi aquela vaidade de ver o Jaguar, o Rolls-Royce, a Lotus”, teria lamentado.

Após a morte de Castor de Andrade, o império do jogo do bicho aos poucos ruiu: o bicheiro exercia muita influência sobre policiais e políticos da época, além de “apagar” outros bicheiros com muita discrição. Sua morte deu início a uma disputa intensa entre os seus herdeiros. Mais de 50 mortes aconteceram desde então, na briga pelo controle do império do jogo do bicho e das máquinas caça-níquel espalhadas pelo Rio de Janeiro.

Grandes momentos de Castor de Andrade

  • Durante o desfile de 1990, quando abordado por um repórter da Globo curioso pela ausência do bicheiro  na avenida em anos anteriores, respondeu na lata, sem a menor cerimônia: “há dois anos que eu não frequento a Passarela do Samba por motivos óbvios. Eu estive em cana”.
  • No Carnaval seguinte, durante a comemoração do bicampeonato da Mocidade, respondeu a uma repórter da TV Manchete que, enquanto os outros celebravam, ele estava “preparando  a grana pra eles gastarem” no ano seguinte. “Procuro fazer da melhor forma possível porque a minha comunidade merece todo esse sacrifício”.
  • Em 1986, comandou um treino do Bangu enquanto o treinador Moisés viajava ao Equador para assistir o Barcelona de Guayaquil, que seria o primeiro adversário na inédita participação do clube na Taça Libertadores da América daquele ano.
  • Conforme contou a Jô Soares, um assaltante o ameaçou com um revólver e conseguiu entrar em sua casa. Entraram mais dois: o terceiro do grupo, porém, reconheceu Castor. Todos correram de lá.

[por Matheus Chequim]

Marrom-múmia

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Vendedor de múmias no Egito (1875).

O uso de múmias pelo Ocidente teve seu início na Idade Média, por volta do século 13, pela crença (errada, diga-se de passagem) de que os corpos embalsamados continham altas concentrações de betume, substância utilizada desde a Grécia Antiga para tratar uma variedade de problemas de saúde, desde dores de dente até disenterias.

No século 16, o comércio internacional de múmias estava bem estabelecido. A demanda de ingleses, espanhóis, franceses e alemães por restos mortais milenares de egípcios fez florescer um mercado insólito. Tanto viajantes quanto locais passaram a saquear tumbas e revender seus conteúdos – por preços baixíssimos, inclusive – na cidade do Cairo, para que fossem triturados e enviados para toda a Europa.

O consumo do extrato de múmia pelas propriedades medicinais estava em descenso por volta dos anos 1800, e não por acaso: diversos médicos alertavam para a associação do uso do extrato a diarreias, vômitos e infecções (quem diria que aplicar pedaços de cadáveres em decomposição em feridas poderia fazer mal, não é mesmo?), e seu uso passou a ser malvisto.

Com as expedições napoleônicas de conquista do Egito, no entanto, o interesse pela cultura faraônica atingiu um novo ápice, abrindo portas para pesquisas científicas, arqueológicas e para o turismo.

Sabendo que os europeus usavam múmia em pó para comer, beber e esfregá-lo em si mesmos, não será surpresa aprender que eles também o utilizavam para pintar. “Marrom-múmia“, ou Caput Mortuum, era um pigmento feito com extrato de múmia misturado a terra e mirra fabricado desde o século 16 e vendido aos pintores das belas artes.

Como tinha boa transparência, esse marrom era usado para sombreamento e tons de pele. Entretanto, sua composição fazia com que a tinta quebrasse facilmente, além de afetar as cores ao seu redor por conter amônia e partículas de gordura.

Alguns artistas renomados a ter o marrom-múmia em suas paletas incluem Delacroix, Sir Lawrence Alma-Tadema e Edward Burne-Jones. Este último, ao descobrir a origem do seu marrom favorito, realizou um enterro cerimonial à moda egípcia do frasco de pigmento, que pôde enfim descansar em paz.

Ao final do século 19, o método exótico de fabricação do marrom-múmia tornou-se mais conhecido pelos artistas. Além disso, o respeito pelo valor científico e arqueológico das múmias passou a ser regra. O resultado foi a crescente rejeição dessa tinta, que só foi “extinta” em 1964, quando a firma inglesa Roberson descontinuou sua produção por falta de matéria-prima.

Sacrifícios astecas

Extraído da edição 33 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando pensamos nos astecas, um dos povos mais instigantes a pisar nessa terra, é normal lembrar dos terríveis sacrifícios realizados aos deuses, por meio dos quais uma imensa gama de azarados, de prisioneiros a crianças, perdia a vida para que criaturas (ou criadores) celestes ganhassem uns agrados. No entanto, há muito mais sobre os astecas do que rituais sanguinolentos.

No entanto – de novo –, é justamente sobre rituais escabrosos que queremos discorrer. Entre militaria e religião, contextualizemos a brincadeira da imagem acima.

Na ilustração, o que se vê é a representação de uma atividade do Tlacaxipehualiztli, um festival que antecedia a estação de chuva, dedicado ao deus Xipe Totec – mais sobre ele em breve, porque vale a pena. Reparem que o sujeito à esquerda da imagem, qual o da direita, carrega um escudo e uma espada. O rapaz à direita, porém, é um guerreiro jaguar, isto é, pertence à elite militar asteca – o que naquela sociedade significava ter vencido na vida. O da esquerda, provavelmente prisioneiro de guerra.

E aí as coisas começam a ficar mais pesadas. A espada de madeira que o jaguar carrega – macuahuitl – contém lâminas de obsidiana, vidro vulcânico utilizado em diversos ornamentos da cultura mesoamericana. A espada que o prisioneiro carrega? Bom, as pontas apresentam penas. Se você já está se imaginando na situação do infeliz, vale se atentar que ele também está amarrado no tornozelo. (Nesta imagem, parte do relato de Diego Durán, a diferença é clara.)

Para piorar – e isso não é nem de longe a pior parte –, a ocasião costumava ser assistida por multidões. Para piorar de fato, em alguns sacrifícios o prisioneiro era atacado por um grupo inteiro de guerreiros, tanto jaguares como águias. Segundo Jacques Soustelle, geralmente os sacrificados – não só os do Tlacaxipehualiztli – encaravam de cabeça erguida seus fins iminentes, sem fugir ou chorar, o que não era bem visto no que tange às crenças do pós-vida.

Por fim, Xipe Totec. Se o Tlacaxipehualiztli era essa mistura de UFC, Lollapalooza e Jogos Mortais, o homenageado é um dos deuses mais queridos da Enclave. Para os astecas, Xipe Totec dispunha de responsabilidades diretas na agricultura, vegetação e mudança de estações; com ourives, prateiros e até doentes. Era representado por uma pele por sobre outra, ou seja, vestindo uma derme alheia.

Claro que, para honrá-lo, ainda durante o festival, algumas vítimas tinham sua pele esfolada para ser trajada por outro alguém. Mas sem problemas, pois o coração era arrancado antes de qualquer outra coisa.

Nessa imagem, o contexto é outro. Já a dor…

Contrapposto

Extraído da edição 27 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

No século 15, com o desenvolvimento da Renascença, uma das maiores influências da antiguidade nas artes visuais foi o retorno do Naturalismo nas representações humanas. Nas estéticas prévias – o romanesco e o gótico – não havia a preocupação de criar espaço habitável e personagens realistas. A temática, afinal, era muito mais centrada num mundo celestial, não subordinado às leis da física.

Tomemos como exemplo a escultura arcaica grega. Nota-se a rigidez de sua pose. Os joelhos estão travados e os membros, paralelos. Não é uma posição que alguém conseguiria manter por muito tempo sem se sentir desconfortável. No gótico, por sua vez, tão pouca importância é dada a esse tratamento do corpo que normalmente a figura aparece completamente vestida, com poucas pistas dadas sobre o que está debaixo dos panos.

Vamos agora ao David de Donatello, de 1400-e-algo, estátua que abre este texto. Trata-se do primeiro freestanding – não suportado por outra escultura – nu esculpido desde a antiguidade. O garoto está claramente confortável: de fato, parece que ele está posando para o artista. Além da maior precisão na execução dos músculos e da expressão facial, o elemento que mais contribui com a naturalidade da obra é sua posição em contrapposto.

Contrapposto, pois, é o ato de apoiar o peso do corpo em uma só perna, enquanto a outra descansa com o joelho levemente inclinado. Isso cria um desvio nos eixos do quadril e dos ombros, dando ao mesmo tempo estabilidade e liberdade de movimento à figura. É a pose que tomamos inconscientemente ao ficarmos parados em pé. Esse recurso era amplamente utilizado na escultura greco-romana, e por isso foi um dos símbolos da retomada da tradição antiga pelos renascentistas.

Convidamos o leitor a prestar atenção: o contrapposto está em todo lugar. Vênus de Milo? Sim. David de Michelangelo? Também. Apollo Belvedere? Claro. Catálogo de moda genérico? Sim. Foto em grupo de formatura? Provavelmente.