1962: um bom ano para gênios

Extraído da edição 113 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?! Repito: não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas. Só os imbecis não as têm.

Nelson Rodrigues

Pois bem.

Se na Enclave #112 tentamos analisar a interseção entre a Lolita (1955) de Vladimir Nabokov (1899-1977) e sua correspondente de Stanley Kubrick (1928-1999) – lançada em 1962 –, hoje derretemos o tema de forma breve e superficial, mas satisfatória para nos acalmarmos e finalmente mudarmos de assunto.

Voltemos àquele ano, o eixo comum entre nossos quatro personagens desta edição. Crise dos mísseis, Copa do Mundo, Don Draper bebendo e traindo.

Conforme comentamos, já lidamos com dois gênios em estágios diferentes da vida. Em 1962, ano de lançamento de Lolita (o filme), Nabokov vivia seu ápice – escritores não são jogadores de futebol, portanto 63 anos parece a idade certa para começar a colher frutos. Recém-mudado para a Suíça (onde viveria até seus últimos dias), ele lançaria nada menos que Fogo Pálido, outra obra-prima, para suceder Lolita.

Por sua vez, Stanley Kubrick, um nome promissor, sem dúvidas ainda não era Stanley Kubrick. Essa virada de chave aceleraria com seu trabalho seguinte, Dr. Strangelove (1964), e se consolidaria com o pináculo 2001: Uma Odisseia no Espaço, talvez o filme mais impressionante da história. No lançamento de Lolita, o jovem Kubrick estava prestes a completar 34 anos.

  • O que queremos dizer com impressionante? A definição mais pura e simples possível, o fator “wow!”, a indignação de “meu Deus, como eles fizeram isso?! E como fizeram isso na década de 1960?”.
  • Outro fator a motivar este texto foi a leitura do ótimo livro de Michael Benson. Recomendamos com ênfase a qualquer interessado por 2001.

Porém, entre os vários gênios daquela década, dois eram, além de indiscutivelmente gênios, indiscutivelmente brasileiros. Estamos falando, é claro, de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé (1940-2022), e de Antonio Carlos Brasileiro (!) de Almeida Jobim, o Tom (1927-1994). Para eles, 1962 foi um ano de decolagens.

Constelação brasileira, aparentemente em 1966.

Como a Coreia do Sul hoje, o Brasil vivia seu ápice de popularidade. Era o sujeito descolado da escola, aquele cuja confiança os outros tentam emular sem sucesso. Bossa nova, Copa do Mundo, Juscelino, Maria Esther Bueno, Garrincha, Clarice, Guimarães Rosa, João Gilberto etc. – até Palma de Ouro. Seus movimentos vingavam em diversas frentes e, àquela altura, parecia que a coisa ia.

Não se trata de saudosismo (nunca), e sim de constatar o óbvio. A confiança é subjetiva e imensurável, e é provável que toda a minha geração morra sem conhecer um país confiante. (O que será que aconteceu logo depois, naquela mesma década, para frear tudo isso? 😒)

Pelé, nosso maior símbolo mundial, havia conduzido a seleção a seu primeiro título mundial em 1958, antes mesmo de completar 18 anos.

Na Copa seguinte, aos 22 – idade ótima para um atleta, péssima para um escritor – embora estivesse voando, machucou-se no segundo jogo, um empate em 0x0 contra a Tchecoslováquia. Foi substituído por Amarildo e viu Garrincha brilhar na campanha do bicampeonato, encerrada contra a mesma Tchecoslováquia (3×1).

No mesmo ano, ele ainda seria campeão paulista, brasileiro (então Taça Brasil), da Libertadores e Intercontinental (mundial). Neste último, destruiu com três gols o Benfica de Eusébio lá em Portugal (2×5).

Vale lembrar que Pelé só disputou três Libertadores: ganhou duas e parou em uma semifinal. Àquela época, era mais vantajoso fazer excursões mundiais – o Santos era praticamente um circo itinerante – do que se enlamear na competição continental, ainda sem transmissão televisiva.

1962 também foi um ano definidor para Tom Jobim por ao menos dois motivos. Primeiro, a histórica sequência de shows com João Gilberto, Vinicius de Moraes e Os Cariocas no restaurante Au Bon Gourmet, em que lançaram, entre outras joias, ‘Garota de Ipanema’. Depois, o absolutamente caótico show em Nova York que apresentou diversos músicos brasileiros a jazzistas de primeira linha dos EUA.

Separando apenas esses dois eventos, já encadeamos o sucesso posterior de Jobim. Em 1967, a consagração mundial viria após a parceria com Frank Sinatra. Ao longo de sua carreira, Tom viveria entre Rio de Janeiro e Nova York gravando obras-primas muito além de bossa nova, como Stone Flower (1970) e Matita Perê (1973).

  • É natural que nenhum brasileiro sinta vontade de escutar ‘Garota de Ipanema’, afinal qualquer superexposição dessacraliza. Isso nos afasta de uma beleza ímpar, mas, principalmente, nos faz esquecer o feito que constitui tamanho sucesso mundial.
  • The Girl From Ipanema is a far weirder song than you thought”.

Então voltamos a 1962, ano em que filtramos gênios. À Enclave, hoje interessam esses quatro – poderiam ser tantos outros e tantas outras, poderiam ser outras épocas. Tudo é recorte, e pensar num mundo com Nabokov, Jobim, Kubrick e Pelé em ação traz o tipo de melancolia alegre que nos satisfaz para iniciar a semana.

Lolitas de Nabokubrick

Extraído da edição 112 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, é o melhor livro que este editor leu em 2022, ainda que dezembro inteiro possa surpreendê-lo. Não esperava menos. Quem já teve contato com qualquer coisa escrita por Nabokov entende que o sujeito era basicamente um ET. Ademais, esse clássico contemporâneo dispensa apresentações, em que pese o fato de sua temática por si só ter-lhe fomentado a fama.

Por fim, quem também já teve contato com qualquer coisa dirigida por Stanley Kubrick entende que se trata de outro ET, talvez literalmente. E um jovem Kubrick, após o épico Spartacus (1960), assumiu a tarefa ingrata, hercúlea, espinhosa de adaptar Lolita (1962, hoje disponível no HBO Max). Por sua vez, a Enclave é basicamente uma newsletter sobre adaptações (releituras, reinterpretações, deslocamentos). Concluímos que o encontro Nabokubricko é um prato cheio.

Premissas

Muito já se falou – escreveu, argumentou, esmiuçou – sobre Lolita, em ambientes muito mais confiáveis que este. Porém, vale listar algumas considerações que elucidem, do nosso ponto de vista, por que esse romance é tão desgraçado. A despeito de detalhes muito conhecidos, principalmente para quem leu, partiremos de um leitor menos familiarizado (ou lembrado).

Lolita acompanha as memórias de Humbert Humbert, professor de meia-idade, em uma história já encerrada no momento da narração. Chegamos a ela por meio de um (fictício) editor de livros de psicologia. Nas mãos erradas, metalinguagem pode ser uma bomba de tédio; para Nabokov, é sempre um tempero. “Humbert Humbert” já é um pseudônimo dentro da história.

A partir disso, acompanhamos a trajetória e os devaneios de Humbert, um narrador absolutamente não confiável. Este é um dos cernes do livro: Lolita é, essencialmente, uma história que contém tudo aquilo que conhecemos dentro da perspectiva de seu maior infrator, e apenas dele.

Para tanto, está em boas mãos – nas melhores possíveis. Nabokov transformaria uma história de bingo na igreja na narrativa mais interessante do planeta se a mediasse por um narrador padre inseguro.

Pois bem, assim conhecemos a menina Dolores Haze, “Lolita” apenas na mente torpe de Humbert. Ou melhor, tentamos, pois tudo que ela pensa, sente ou executa nos é relatado pelo narrador que por ela se apaixona e que dela abusa. Não detalharemos o enredo em si.

Mas Lolita, o romance, nos oferece algumas surpresas; não por acaso é tão aclamado. A primeira delas, talvez menos lembrada: como qualquer obra-prima, o livro contém lampejos brutais de humor. Há duplos sentidos, jogos de palavras, azedumes do narrador – rimos dele, não com ele –, xadrez verbal com camadas de interpretação (Nabokov era um estrangeiro nos Estados Unidos e, naturalmente, na língua inglesa, na qual escreveu o livro). Ao longo da jornada de Humbert e Dolores pelo país, há inúmeros códigos à disposição do leitor-desbravador.

E aos poucos, Dolor’osamente (tssssc), nos apegamos ao narrador, um pedófilo manipulador, cretino e triste. Esse é o grau de qualidade da escrita da Nabokov, que brinca com sua arte, esfregando na nossa cara que conseguiria ganhar uma Libertadores com um time da Copa Kaiser. É como se ele nos desafiasse, provocando: “qual é a maneira mais difícil de eu te convencer? Um pedófilo neurótico professor de literatura é o suficiente para vocês? Pois bem”.

Parece piada, mas é bem provável que esse tenha sido o ponto de partida do escritor, um estudioso dos problemas de xadrez.

Ao fim de Lolita – emocionados, frustrados, raivosos, confusos –, experienciamos o suficiente para compreender com um só golpe a beleza da palavra escrita.

Adaptando o inadaptável

Which is why adaptar Lolita é uma tarefa tremendamente estúpida. Kubrick já sabia disso, vide o próprio cartaz da produção:

“Como foi que fizeram um filme de Lolita?”; fotografia de Bert Stern.

Afinal, estamos falando de uma suprassumo da palavra escrita. O que acontece na narrativa é menos esteticamente relevante que o efeito da narração. Como transportar esse efeito para o cinema (ou transformá-lo em outra coisa)? E, principalmente, por quê? Ademais, como expor o relacionamento de um marmanjo com uma garota de 12 anos?

Stanley Kubrick também gostava de um desafio – e de xadrez.

You’re gonna take my queen”, antecipa Charlotte, mãe de Dolores.

O responsável pelo roteiro é o próprio Kubrick, que editou pesadamente o material de Nabokov (ainda que este o assine). Sua Lolita pode ser classificada como uma comédia – a presença do gênio Peter Sellers, capaz de roubar qualquer cena, corrobora essa mudança de ênfase.

No longa-metragem, famoso pela iconografia consagrada no cartaz – isto é, o pirulito e o óculos (que sequer aparece no filme) –, Dolores tem mais que os 12 anos do romance. Ela também é chamada de “Lolita” pelos demais personagens, não só Humbert, e dispõe de uma malícia da qual devemos desconfiar plenamente no livro, afinal só a acessamos via Humbert.

Sue Lyon, aos 14 anos no início das gravações, faz um trabalho extraordinário como enfant terrible, para desespero da mãe, Charlotte (Shelley Winters). E para desespero de Sue Lyon, que nunca conseguiu se desvencilhar “do filme que causou minha destruição como pessoa”.

Dessa combinação emerge a ideia de “lolita” na cultura popular, isto é, da jovem adolescente sedutora – uma figura injusta em relação ao romance.

Por fim, Kubrick sabiamente inverte a ordem (ou o foco) dos acontecimentos – também não detalharemos –, dando muito mais destaque ao personagem de Peter Sellers. O diretor omite qualquer relação explícita entre Humbert e Dolores, promovendo apenas sinais indiretos, embora suficientemente claros.

Ao assistir a Lolita, não lembrava que o filme havia sido gravado em preto e branco. Essa não era uma condição em 1962, mas uma preferência de boa parte dos diretores porque a tecnologia colorida ainda não era tão sólida. Com isso em mente, chama atenção (para surpresa de ninguém) como Kubrick aproveita o máximo de cada quadro, com tomadas longas e diversas camadas visuais em perspectiva. Por exemplo, a cena do baile na escola ou as cenas nos quartos de hotel, com janelas ao fundo.

A trilha sonora de Nelson Riddle (que alguns anos depois faria os arranjos de The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, segundo disco de Tom, que por sua vez recusaria compor a trilha de A Pantera cor-de-rosa [1963], que por sua vez consagraria mundialmente Peter Sellers como o inspetor Jacques Clouseau, um ano depois de brilhar em Lolita… [que por sua vez, 10 anos depois, declararia seu amor à música de Jobim no Sunday Times]) e, pera lá, só um momento, nos perdemos tentando conectar os pontos do planeta, afinal esta seção se chama hipertexto.

A trilha sonora de Nelson Riddle, marcada pela música-tema da protagonista, é por si só um sopro de ar fresco que converge com o tom da obra: Lolita é um filme mais leve, muito menos desafiador que o livro. Esse traço não é um intrinsecamente um defeito, embora exponha a dificuldade de lidar com um material tão complexo. Diante do desafio – e segurando as expectativas –, o resultado surpreende.

All in all, o romance é uma obra-prima, a quinta-essência de sua mídia. O longa-metragem é um bom filme nas mãos de um gênio ainda em desenvolvimento (pois não é nem o quinto em sua essencial filmografia). O encontro Nabokubricko não corresponde ao suprassumo de ambos, mas, não tendo anulado um ao outro, é suficiente para se sustentar. Ler Lolita é uma experiência extraordinária; assistir, no mínimo, vale a pena.

Duna é o espetáculo que Duna merece

Extraído da edição 101 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Que saudades de ir ao cinema! À minha direita, um sujeito trata o saco de pipoca como se precisasse nocauteá-lo, então a degusta com a ferocidade de um cão a descobrir um novo osso.

À minha esquerda, um bombonière humano com uma relação infinita de chocolates, todos encapsulados em plástico e guardados em outra sacola plástica, na qual é preciso navegar constantemente à procura do próximo doce.

À minha frente, impulsos assassinos controlados, depois distraídos por uma tela gigantesca a anunciar: “Duna, primeira parte“.

Talvez você já tenha cansado de ouvir sobre Duna; talvez lhe falte um último empurrão para ver o filme com os próprios olhos; talvez você não tenha qualquer interesse no assunto. Mas Duna, do franco-canadense Denis Villeneuve, é o principal assunto do cinema hoje, muito por conta da escassez de lançamentos em função da pandemia.

E Duna (1965), o romance de Frank Herbert que lhe serve como base, é um livraço. Enredos, personagens, conceitos: uma miríade de informações parte de Arrakis, o planeta desértico governado pela Casa Atreides, para compor uma verdadeira picadilha galática.

Tecendo a ficção científica com feudalismo, Herbert misturou tecnologia, transcendência e pluralismo cultural de maneira cativante. Não à toa, esse universo, tão grande como amarrado – a criatividade do autor é puramente invejável –, acarretou uma saga de publicações, e estas inspiraram diversas outras franquias.

Com um parâmetro simplificado, podemos dizer que Duna sempre foi o “Star Wars para adultos” (digo isso de maneira não depreciativa). George Lucas certamente bebeu dessa fonte.

Porém, a adaptação de David Lynch, de 1984, é esquisita (digo isso de maneira depreciativa) por vários motivos, alguns dos quais – não todos – fora do controle do diretor (“Meu, ele mistura muito bem essa coisa do inconsciente, abstrato com essa tecnologia estrambólica, polipotética, parafernálica, meu”).

Por sua vez, o Duna de Alejandro Jodorowsky seria o maior, melhor, mais espetacular, mais incrível filme da história, segundo Alejandro Jodorowsky. Contudo, o projeto acabou engavetado, alimentando o mito acerca do título, que seguia à procura de um filme capaz de traduzir sua devida potência.

E assim chegamos ao Duna a que podemos assistir nos cinemas no fim de 2021. Para fazê-lo, por sinal, não li absolutamente nada sobre o filme; nem uma crítica; zero. Acompanhei a produção anos atrás, então procurei me desinteressar para não criar expectativas – mesmo confiando em Villeneuve, ou melhor, “no De“.

Mais que um excelente filme, Duna é uma experiência cinematográfica incrível. Ideal para grudar os olhos em uma tela gigante, ficar meio surdo e esquecer o indivíduo nefasto amassando uma sacola plástica ao seu lado.

Protagonizada por um monte de ator famoso mais um monte de famoso ator, a obra é expositiva o suficiente para dar conta da parcela do romance a que se propõe. Ainda assim, flui bem o bastante para entregar pancadaria, belas cores, belos cenários, belos trajes e um capricho sonoro capaz de tensionar seus músculos na cadeira.

Duna, finalmente, tem um espetáculo digno de Duna – o melhor blockbuster possível diante de seu texto fonte. Nem fãs nem curiosos se decepcionarão. A segunda parte já foi confirmada para 2023.

Baú: Thomas Pynchon

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Em certos dias, ir de carro para Santa Monica era como ter alucinações sem se dar a todo o trabalho de adquirir e depois ingerir uma droga qualquer, embora em certos dias, sem sobra de dúvida, qualquer droga fosse melhor que ir de carro para Santa Monica.

Hoje, depois de uma volta enganosamente ensolarada e monótona pelas propriedades da Companhia Hughes – uma espécie de smörgasbord de zonas de combate americanas em potencial, espécimes de tipos de terrenos que iam de montanhas e desertos a pântanos e florestas e coisa e tal, todos ali, segundo a lógica da paranoia, para servir à regulagem fina de sistemas de radar de combate – passando por Westchester e a Marina até Venice, Doc chegou à via de entrada de Santa Monica, onde começou o seu mais recente exercício mental. De repente ele estava em algum planeta onde o vento pode soprar simultaneamente em duas direções, trazendo neblina do oceano e areia do deserto ao mesmo tempo, obrigando o motorista incauto a reduzir a marcha assim que entrava nessa atmosfera alienígena, com a luz do sol obscurecida, a visibilidade reduzida a meio quarteirão, e todas as cores, inclusive as dos sinais de trânsito, desviadas radicalmente para outro ponto do espectro.

Thomas Pynchon, Vício Inerente, 2009 (Companhia das Letras, trad.
Caetano W. Galindo, 2010).

Tarantino romancista

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No fim de junho, Quentin Tarantino publicou Era uma vez em Hollywood, novelização de seu filme homônimo (2019).

Assisti a Era uma vez em Hollywood no cinema, o que já parece há uma eternidade, tratando-se de 2019. Lembro de ter gostado, mas com algum estranhamento. A sensação de não saber exatamente o que agradou, o que desagradou; a confusão que requer nada além de tempo para indicar direções.

Passados alguns dias, o filme não saía da minha cabeça. Mas não necessariamente o que acontecia nele, em termos de eventos e movimentos, e sim cenários, transições; Clith (Brad Pitt) dirigindo; Sharon Tate (Margot Robbie) dirigindo.

Isso bastou para abraçar aquele universo – Los Angeles, fevereiro de 1969 – (re)criado por Tarantino com enorme afeto. Quando o livro do diretor foi anunciado, soube que daria uma chance de braços abertos. Principalmente após ouvir Quentin Tarantino falar sobre a própria obra: é difícil não se convencer pela paixão irrestrita com que ele, como uma criança na sorveteria – já cheia de açúcar –, trata o próprio trabalho.

Em suma (e sem spoilers), o diretor se deu conta de que tinha personagens cativantes em mãos, interpretados por grandes atores. A partir disso, ele não precisaria construir uma grande história para além de um dia comum na vida de três personagens centrais: os fictícios Rick (Leonardo DiCaprio) e Cliff e a realíssima Sharon Tate, cujo assassinato traumatizou uma era.

Assistir ao filme com essa premissa em mente (e sem esperar, digamos, Cães de Aluguel) permite uma catarse deliciosa, o mero deixar-se levar por um universo construído com um carinho visivelmente pessoal.

Era uma vez em Hollywood, o livro, é uma extensão disso.

De início, portanto, Tarantino sequer trata a obra como um romance propriamente dito. Tal qual o longa-metragem, é um apanhado de momentos (às vezes cotidianos, banais) de seus personagens, os quais, por sinal, ele não se propõe a desenvolver. O livro é um filme com cenas estendidas, cenas extras e mais contexto (por sinal, haverá um extended cut).

Era uma vez em Hollywood, tanto o filme como o livro, é repleto de metalinguagem, mas não por ela mesma – nem como muleta crítica –, e sim simplesmente como um mecanismo para Tarantino desenvolver uma fan fiction do período desejado e se perder nele sem as chaves.

No romance, com ares de pulp fiction (o gênero, não o filme), Tarantino transita entre a história do cinema, opiniões sobre filmes (terceirizadas em personagens), eventos fictícios de personagens reais e demais eventos de personagens fictícios.

Ironicamente – e com absoluta consciência –, a maior narrativa do livro diz respeito à série Lancer, escrutinada pelo autor como um conto e temperada pela fluidez natural dos obsessivos.

Aqueles convencidos pelo filme têm muito a ganhar com Era uma vez em Hollywood, literatura despreocupada e rústica, mas totalmente ciente de seus objetivos – e com uma voz bem definida. Não se trata de “narrativa transmidiática”, malemal de narrativa. São momentos espalhados de personagens espalhados.

Por fim, testemunhamos um sujeito talentoso compartilhando conosco um período mágico (para ele) e traduzindo isso em duas mídias (portanto, linguagens) diferentes. Quentin Tarantino se perde, no melhor dos sentidos, em seu universo, abrindo a porta para nos emprestar um pouco desse encanto. O que mais podemos pedir?

Mad Men, dança da solidão

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Queríamos ter escrito este texto em maio, mas outros acabaram entrando na frente. Pois foi no quinto mês de 2015 que o universo pôde assistir ao último episódio de Mad Men (AMC, 2007, sete temporadas). Portanto, já faz seis anos que a série criada por Matthew Weiner encontrou seu desfecho. Como passa o tempo…

Mad Men acompanha Don Draper (Jon Hamm), diretor criativo em uma agência de publicidade, do início até o fim da década de 1960. A partir do protagonista garanhão, testemunhamos o desenvolvimento de seus colegas, familiares e – tão importante quanto – fantasmas do passado.

A série remete imediatamente a belas roupas, belos cenários, belos coquetéis e muitos cigarros, e trabalha diretamente com a ideia de identidade. Mas o ponto nevrálgico dessa obra-prima audiovisual, cuja elegância narrativa consegue superar a dos trajes, cenários e coquetéis, é mesmo a solidão.

Mad Men vive sempre sob um cinismo saudável. Isto é, não aquele absoluto, que não enxerga valor em nada (“Um cínico é um homem que sabe o preço de tudo, mas o valor de nada”, Oscar Wilde, 1892). A partir disso, a série nunca deixa de se configurar segundo a condição de que todo homem é uma ilha (logo, discordando de John Donne).

Não há intimidade que não possa ser traída; não há comunicação imune ao não dito; não há confiança inquebrável. No cerne de todas as suas relações, o ser humano permanece, em última instância, sozinho. Se a filosofia da série discorda de Donne, concorda com Joseph Conrad (1899): “Vivemos como sonhamos – sozinhos”.

Essa constatação não repele senso de humor, muito ao contrário. Mad Men é engraçada, exponencialmente engraçada conforme conhecemos seus personagens (e, consequentemente, suas fraquezas). Ao unir esses dois elementos e expressá-los sempre com sutileza – e, agora sim, em belos cenários, belos trajes e belos coquetéis –, a série se consolida como um produto inesquecível.

Da literatura americana do século 20, Matthew Weiner absorveu quatro influências bastante explícitas: A nascente (Ayn Rand, 1943); O homem no terno de flanela cinza (Sloan Wilson, 1955); Foi apenas um sonho (tradução adotada para Revolutionary road, Richard Yates, 1961) e os contos de John Cheever (compilados em The stories of John Cheever, 1978; no Brasil, em 28 contos de John Cheever).

Um dia, escreveremos sobre a influência de cada uma delas. Por ora, restam a menção e as recomendações. No momento de publicação deste texto, Mad Men está disponível no Brasil pelo Prime Video e pelo Now, após deixar o catálogo da Netflix.

Passados 14 anos da estreia e seis do encerramento, não há qualquer sinal de envelhecimento. Tampouco haverá, pois Mad Men examina com enorme sensibilidade as fraquezas da natureza humana. E esta, como bem sabemos, nunca muda – “os seres humanos continuam os mesmos, com mais ou menos dentes podres” (2012).

Baú: Ross Macdonald

Extraído da edição 91 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando vi meu provável cliente no pátio ensolarado do lado de fora do snack bar, não tive dificuldade em reconhecê-lo. Ele parecia uma fortuna afastada umas três gerações de sua origem. Embora não pudesse ter mais vinte e poucos anos, seu rosto era macilento e contrito. O rosto de um rapaz de meia-idade. Sob o terno bem-talhado, vestia uma camada de gordura – uma armadura facilmente penetrável. Possuía o tipo de olhos castanhos e suaves que com frequência são míopes.

Quando cheguei perto de sua mesa, ele levantou-se depressa, quase derrubando a cerveja.

— Deve ser o senhor Archer.

Respondi que sim.

— Estou contente em vê-lo — disse ele, estendendo-me uma grande mão amorfa. — Vou pedir alguma coisa para o senhor. O prato quente de segunda-feira é cozido à New England.

— Não, obrigado. Almocei antes de sair de Los Angeles. Mas aceito uma xícara de café…

Ele foi até o bar e trouxe o café para mim. Na figueira que cobria uma parede do pátio, um casal de tentilhões discutia questões de família. O macho, que tinha a fronte salpicada de vermelho, levantou voo rumo a alguma missão. Meu olhar o acompanhou pela faixa de céu azul até perdê-lo de vista.

Ross Macdonald, Dinheiro sujo, 1966 [Ed. Companhia das Letras, 1989].

Baú: hippies em Woodstock (Ayn Rand)

Extraído da edição 78 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Antimaterialistas declarados cuja única manifestação de rebelião e individualismo toma a forma material das roupas que escolhem vestir são um espetáculo ridículo. De todo tipo de inconformismo, esse é o mais fácil de praticar – e o mais seguro.

Mas mesmo nessa questão, existe um componente psicológico especial: observe as roupas dos hippies. Não têm o objetivo de deixá-los atraentes, mas sim grotescos. Não têm o objetivo de despertar admiração, mas sim escárnio e pena. Ninguém se faz parecer uma caricatura a não ser que queira que sua aparência implore: “por favor, não me leve a sério”.

(…)

Seus encantamentos histéricos de adoração do “agora” eram sinceros: o momento imediato é tudo o que existe para a mentalidade de nível perceptivo, vinculada ao concreto, animalesca: compreender “amanhã” é uma enorme abstração, uma façanha intelectual disponível apenas ao nível conceitual (ou seja, racional) da consciência.

Ayn Rand, palestra “Apolo e Dionísio”, 1969. Tradução nossa.

Kim Philby: traição do século

Extraído da edição 15 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.

Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.

Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos, tornando-se um dos traidores mais famosos da história. “Para trair, você primeiro precisa pertencer. Eu nunca pertenci”, afirmou ele próximo de sua morte, em 1988. Uma das carreiras arruinadas pelo agente duplo foi a de John le Carré, que se utilizaria dessa experiência para escrever O Espião que Sabia Demais (1974), muito bem adaptado ao cinema em 2011.

Conturbado, enigmático ou apenas consistentemente filho da puta, Kim Philby comandou tragédias familiares, envolvendo várias esposas e várias esposas somadas a tragédias familiares. Sempre fiel à União Soviética, ele passou seus últimos anos em Moscou, supostamente melancólico e desiludido – e certamente embriagado.

Repleto de medalhas (e sem arrependimentos), teve um funeral de herói. Ele fazia parte do círculo hoje conhecido como Cambridge Five, cujos agentes duplos haviam sido recrutados ainda antes da Segunda Guerra Mundial (uma trama que perpassa o enredo do filme Jogo de Imitação, 2014, porém sem grande precisão histórica).

Sobre Philby, A Spy Among Friends (2014), de Ben Macintyre, é um belíssimo livro. O ex-colega John le Carré assina o posfácio.

Shahdaroba: Roy Orbison e o escapismo dos solitários (feat. David Lynch)

Extraído da edição 60 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Até pouquíssimo tempo atrás, as informações – ou melhor, impressões – sobre Roy Orbison estavam catalogadas de maneira equivocada na minha cabeça. Isto é, eu acreditava que o baladista americano – responsável por ‘In dreams‘, ‘Oh! Pretty woman‘, ‘Crying‘ e por participar do Traveling Wilburys – era muito mais antigo do que de fato foi.

Orbison estourou na virada da década de 1950 para 1960. Até 1964, já tinha lançado todas as músicas mencionadas, além de ‘Only the lonely‘. Essa fase foi certamente seu ápice – o “Caruso do rock” cairia num longo ostracismo no fim daquela década, permanecendo no esquecimento até os anos 1980. Na má fase profissional, ainda perderia a esposa em 1966 (acidente de moto) e os dois primeiros filhos em 1968 (incêndio residencial).

Minha impressão era de que este músico pertencia a uma época anterior. Isso porque Orbison dispunha de uma voz de senhor em um rosto de senhor. Mas Roy Orbison, nascido em 1936, tinha apenas 29 anos na imagem que abre este texto (retirada desta apresentação aqui). Na capa do disco In Dreams (1963), lançado aos 27 do cantor, a impressão de senioridade é ainda mais forte.

Enfim, isto de certa forma é irrelevante. Mas tem (mais ou menos) um ponto: o apogeu de Orbison está muito mais associado a um outro universo; um passado em preto e branco; um mundo pré-1968, com seus respectivos atrativos e problemas. Semioticamente, remete mais aos anos 1950 – isso confere um caráter idílico/onírico à sua obra.

Com isso, retomo justamente o álbum In Dreams (sonhos!), cujo tom onírico, portanto, precede a nostalgia que reforça este mesmo tom. Ou seja, antes de qualquer retrotopia, o disco já nasce com um aspecto de devaneio: o escapismo solitário a que (finalmente) nos referimos.

Redescobri Roy Orbison assistindo a Mad Men. No final da terceira temporada, ouvimos ‘Shahdaroba’, deste mesmo disco. Não darei detalhes sobre o enredo ou o impacto na cena em questão, porque todo indivíduo deveria assistir à série, e sou grato ao ser humano extraordinário que insistiu para que eu a visse.

‘Shahdaroba’, escrita por Cindy Walker, descreve um termo (supostamente do Antigo Egito) usado como subterfúgio para as ocasiões em que “um sonho morre” ou uma “cidade chora”, para quando “as lágrimas escorrem”. Shahdaroba “significa que o futuro será muito melhor que o passado”.

Roy Orbison era o introvertido talentoso cujas baladas lamurientas afagavam as dores pessoais. Era praticamente o oposto de um galã frenético como Elvis Presley (que, por sinal, considerava Orbison o melhor cantor do planeta). A Black & White Night, gravada em 1988 – ano de sua morte –, ilustra perfeitamente a dinâmica de suas apresentações: limpeza, refinamento técnico e uma voz extraordinária.

‘Shahdaroba’, tal qual a faixa-título, encapsula a natureza dos sonhos, a dor da realidade e, principalmente, a discrepância entre ambos. Às vezes – talvez principalmente neste momento –, todos precisamos de um lugar imaginário ao qual recorrer. Roy Orbison tem sido um grande amigo.


  • David Lynch teve papel determinante na redescoberta de Roy Orbison por parte das gerações posteriores a seus principais sucessos. Em Blue Velvet (1986), uma de suas cenas mais marcantes (com a habitual mistura entre o esquisito e o hipnotizante) tem ‘In dreams’ dublada pelos personagens – até Dennis Hopper surtar.
    • No ano seguinte, Orbison já gravava seu último álbum de estúdio, Mystery Girl, produzido por Jeff Lynne, que viria ser lançado em 1989 e obter enorme sucesso – mesmo que ele não tenha vivido para testemunhá-lo.
    • Dois anos depois (1988), gravava e lançava o primeiro disco com os Traveling Wilburys ao lado de Bob Dylan, George Harrison, Tom Petty e e Jeff Lynne.
  • De acordo com Lynch, Orbison inicialmente não gostou do uso de sua música no filme, mas reconsiderou sua opinião após revê-lo, seguindo a sugestão de amigos. Lynch e Orbison se conheceram depois disso, e o diretor – que também é músico – gravou e mixou uma nova versão de ‘In dreams’.
  • Llorando‘, uma verdadeira pancada cantada por Rebekah Del Rio naquela cena de Mullholland Drive (2001), é um cover de ‘Crying‘. Del Rio apareceu na terceira temporada de Twin Peaks com a balada ‘No stars‘, composta pelo próprio Lynch, a qual muito remete às composições de Roy Orbison.
  • Bom, meu, eu particularmente tenho paixão assim pelo David Lynch, meu. Ele é tu-do! Meu, ele mistura muito bem essa coisa do inconsciente, abstrato com essa tecnologia estrambólica, polipotética, parafernálica, meu. Meu, Blue Velvet, meu. Blue Velvet é tudo! Blue Velvet, meu. Blue Velvet. A história é sobre um amigo de um cunhado de um… que doou sangue e tinha uma batida de carro. E no final tinha alguma coisa sobre veludo azul, meu. Por isso que o filme é Blue Velvet! Nome do filme… Blue Velvet.”

Charles Manson & Dennis Wilson

Extraído da edição 44 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Wilson e Manson: boas vibrações.

Um antigo ditado assírio, datado de quando a Babilônia virou modinha, defende que o ateísmo recebe três grandes testes ao longo da vida: o leito de morte, a queda livre de um avião e o contato com Pet Sounds. Nas palavras do próprio Assurbanípal, “mano…… Beach Boys é lôco demais”. Mas não é do Pet Sounds, especificamente, que trataremos. Ah, não. O tópico que abre a Enclave de hoje traz uma dessas conexões inesperadas que a vida trata de abrir. Talvez uma nota 7 na escala Julian Assange-Pamela Anderson.

Acontece que Charles Mansonaquele Charles Manson, morou um certo tempo na casa de Dennis Wilson, baterista, compositor e único surfista de fato dos Beach Boys. Curiosamente, Wilson também era um Wilson, e, portanto, irmão de Brian e Carl, integrantes da banda californiana. O ano era 1968: conta-se que o músico encontrou duas moças peregrinando pela estrada e as levou à sua casa. No dia seguinte, lá estavam elas de novo, desta vez com mais uma dezena de pessoas, todas seguidoras de Manson – que ali também constava, literalmente beijando seus pés. A versão menos romântica narra que Manson descobriu a residência do baterista ao procurar maconha.

Quando um culto inteiro para no seu jardim, resta chamá-lo pra dentro e abrigá-lo. Ou tomar outra cem decisões melhores do que essa, mas, de todo modo, foi o que ocorreu. Como é de se imaginar, a residência de Charles Manson & Seguidores deve ter sido uma bela merda para Wilson. Ao todo, a hospedagem de quase duas dezenas de gente custou ao músico mais de 100 mil dólares, 21 mil deles torrados em um carro sem seguro, destruído pelos inquilinos. Muito dinheiro também foi gasto com penicilina para amenizar o constante problema da Família Manson com… gonorreia. Qual era o benefício em receber uma corja tão expressiva? Para Wilson, 17 mulheres constantemente nuas e dispostas a obedecer comandos.

Com essa união, Charles Manson visava a um desenvolvimento de sua carreira musical, utilizando-se do estúdio do irmão Brian. Wilson chegou a afirmar que o guru dispunha de ótimas ideias. Manson compôs ‘Cease to exist’, música que acabaria regravada pelos Beach Boys e lançada como ‘Never learn not to love‘, no lado B de ‘Bluebirds over the mountain’. Nenhum crédito foi concedido a Manson, que agiu de forma serena, ameaçando assassinar Wilson ao lhe presentear com uma bala. “Cada vez que você olhar para ela, quero que lembre de como seus filhos estão seguros”.

Dennis Wilson resolveu a saia justa de forma simples: bastou enfiar a porrada até dizer chega. Para se livrar da Família Manson, no entanto, o baterista simplesmente abandonou a casa onde o grupo já havia se instalado.

Alan Smithee, diretor

Extraído da edição 36 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Com dezenas e dezenas de filmes creditados desde a década de 1960, Alan (Allen) Smithee é, facilmente, um dos diretores mais polêmicos da história do cinema. Isso porque, longe de alguma prisão por estupro ou de um eventual relacionamento com a enteada, Alan Smithee não existe. Ao menos não fora do IMDB.

Só Matando foi lançado em 1969, e, com ele, um problema. O longa-metragem contou com dois diretores: o primeiro deles, substituído durante o processo, não queria que seu nome assinasse a produção; o segundo, bom, também não. Como o uso de pseudônimos não era permitido, foi necessário um acordo para que o Directors Guild of America (DGA) liberasse a oficialização de Allen Smithee, espantalho criativo de um filme surpreendentemente elogiado.

O nome foi desenvolvido a partir de ‘Al Smith’, considerado comum demais. Allen se tornou Alan, e, desde então, diretores vêm assumindo o pseudônimo, de imediato ou de forma retroativa, quando alegam não terem tido liberdade suficiente na edição de uma obra, principalmente ao admitirem que o resultado final é um grande dejeto.

A palhaçada esfriou após An Alan Smithee film: Burn Hollywood Burn (1998), filme metalinguístico com Eric Idle, do Monty Python, no papel principal. Idle interpreta Alan Smithee – rá! –, diretor de cinema querendo apagar seu nome de um longa-metragem, mas impossibilitado por, afinal, chamar-se Alan Smithee. A película foi um fracasso absoluto de público e crítica, e o diretor Arthur Hiller, alegando interferências diretas na edição, assinou como… Pois é.