Palais Idéal du Facteur Cheval

Extraído da edição 13 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Enquanto percorria sua rota diária em uma tarde de abril de 1879, o carteiro Ferdinand Cheval tropeçou em uma pedra de aspecto curioso e se encantou por sua beleza. Decidiu levá-la para casa, mesmo sem ter muita ideia do que faria com ela.

A partir do dia seguinte, ele passou a notar no seu caminho as diversas rochas e formas esculpidas pela natureza, decidindo coletar o que lhe chamasse a atenção para construir, no terreno ao lado de sua casa, no sudeste da França, um palácio: o Palais Idéal du Facteur Cheval.

Idealizado primeiro como um templo à natureza, depois como seu local de sepultura, a obra é o resultado de 33 anos – 10 mil dias – de trabalho quase cotidiano e de aperfeiçoamento contínuo. É, segundo o próprio artista, o “Panteão de um herói obscuro”.

Embora alguns desenhos tenham sido idealizados, não há um projeto definido. A expansão da construção acontecia de forma desordenada e orgânica, seguindo a imaginação de seu criador e os diferentes materiais encontrados a cada dia.

O simbolismo e as referências das esculturas e estruturas vêm da Bíblia (da qual Cheval era leitor ávido), das tradições hindu e egípcia e dos numerosos cartões postais e revistas aos quais ele tinha acesso por sua profissão de carteiro.

Entre os elementos mais marcantes estão Os Três Gigantes (simbolizando Arquimedes, Júlio César e o líder militar gaulês Vercingetorix); a Mesquita; o Pecado Original e o Templo Egípcio, inicialmente previsto como o local de seu enterro.

O palácio sempre chamou a atenção do público. Já nos primeiros anos de trabalho, vizinhos visitavam Cheval e achavam graça da ideia maluca de construir de pedregulhos e argamassa. Mas isso apenas o deixou mais motivado e certo de que sua obra era única.

Entre seus admiradores, figuravam os surrealistas André Breton e Max Ernst (que pintou o quadro O Carteiro Cheval em 1932), além de Picasso e, claro, os milhares de turistas que vão todos os anos à cidade de Hauterives para testemunhar esse exemplo único de Arte Bruta e arquitetura Naïve.

Carla Dias: Mais prazer, por favor

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2015 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Compartilhar discos, filmes e livros com os amigos, não somente por meio de indicação ou empréstimo, mas também os presenteando com esses itens, faz parte da minha realidade desde que comecei a trabalhar. 

Sim, faz tempo. 

Independente do meio ou da linguagem, compartilhar gosto pode ser ação catedrática. Durante o processo, aprendemos que o que nos agrada pode ou não agradar ao outro. Ainda assim, é um processo que nos oferece a chance de conhecermos algo novo, como doador ou receptor do conhecimento.

A cada edição do RelevO, conheço alguém novo capaz de me fascinar, o que sempre é um prazer. Dessa forma, tenho dialogado com universos díspares e interessantes. É pessoal a tarefa de passar adiante aquilo que verdadeiramente nos toca e julgamos merecedor de um amigo conhecer. Em uma época em que falar mal é praticamente rotina, passar um gosto adiante pode trazer frescor ao espírito de muitos.

A ilustração de capa de maio estava uma lindeza. Obrigada ao Daniel Imaeda por isso, quem deu cara à coleção de excelente material. Durante a jornada da edição passada, Adriana Sydor me inspirou a me apaixonar pela sua casa que ainda será, mas que também já é. Em “Sonhos de arquitetar”, Sydor nos mostra sua casa interior em busca do espaço externo, espalhando-se por código postal equivalente aos devaneios da autora. “O que não for janela, bem pode ser vidro, o que não for porta, transparência.” Belo texto para a sala de estar de qualquer espírito inclinado ao aconchego.

De personagens da Warner, passando pela frequente incoerência do animal-humano, Bolívar Escobar fala sobre uma curiosidade coletiva: quem come quem? Por quê? Como chegamos a isso? “Um abraço é um ato solipsista não importa em quais deuses você não acredite” se debruça na cadeia alimentar, questionamentos e nas declarações de cientistas, assim como no devaneio sobre a função deles, claro. “Os cientistas só devem estudar aquilo que faz parte do universo. O que não faz deve ser estudado pelos artistas e pelos malucos.”

Sou apreciadora dos oráculos. Posso até me relacionar com os tais ligeiramente com o pé no imaginário, mas tenho sincero respeito por eles. Em “Dizem que os orientais”, Julia Raiz fala sobre a forma como os orientais embrulhavam os livros sagrados – dos oráculos aos obscuros – em tecidos ricos. Então, ela menciona como uma tribo africana lida com seus mortos. Dos oráculos aos rituais, passando por uma reflexão profunda inspirada por um corte na mão, ela chega ao que lhe inquieta: a morte de um ente querido. Um texto delicado, com quê de desamparo. “Bom, dizem que os orientais embrulham tais livros em tecido rico como a seda ou o veludo ou com outros tecidos ricos dos quais não conheço o nome.”

Quem nunca tentou explicar a saudade, prepare- se, porque isso um dia vai acontecer. Alguns dos que já tentaram, acabaram por criar primorosos poemas, como o “para falantes doutras línguas”, de Ricardo Escudeiro: “atadura que não estanca nada/ essa foto na palma/ há espaços ainda/ em tempo de serem jamais/ uma derradeira vez habitados”.

Ainda sobre desnudar-se em poesia, “Ode à mulher que não goza”, de Sissa Stecanella, expõe verdades sobre mulheres que se submetem ao falseado prazer como se estivessem a se esbaldar no verdadeiro: “Ode à mulher que não goza/ Que toda orgulhosa se diz importante/ Deita-se na cama, faz cara de freira, se finge de morta/ Abre as pernas, gemidos alheios,/ Dá-se por contente, com seu amante precoce”. Minhas caras – e meus caros –, como dizem por aí, a vida é muito, mas muito curta para gastarmos a dita no faz de conta. Sendo assim, por favor, gozem na maior veracidade. Caso não dê certo, não perca a vida, mude de parceiro. 

Não tenho qualquer talento para colorir. Pense em alguém incapaz de combinar cores decentemente, ou em uma indecência com certo grau de coerência. Eu mesma. E se era o _ m do mundo quando criança, a versão adulta só piorou a falta de talento. Então, para que insistir? Ainda assim, fiquei tentada a encarar o “RelevO de Colorir para Adultos”. Definitivamente, colorir não é comigo. Alguém coloriu e se sentiu mais feliz?

Maio trouxe uma edição muito interessante do periódico, daquelas que inspiram mergulhos mais profundos e há humor envolvido. Pacha Urbano trouxe aos nossos leitores as tirinhas de “As Fantásticas Traumáticas Aventuras do Filho do Freud”, revigorando aquela máxima de que o humor tem o poder de explicitar seriedade com a maior graça e entendimento. Quem não conhece essa vertente do trabalho do Pacha Urbano, sugiro uma pesquisa. É material bom e que vale o tempo do leitor.

Não há como comentar tudo o que apreciei na edição passada. Sendo assim, finalizo com as palavras de Gigi Godoi em “velha queda”, que tocou em assunto que me pega sempre de jeito, a paixão por determinadas palavras, que às vezes me leva a ter de evitá-las para que os textos não soem como reprise: “tenho velha queda por certas palavras/ elas preenchem o buraco da minha expectativa…”.

Neuromancer: o game não realizado

Extraído da edição 10 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

No rol de grandes projetos que nunca saíram do papel, um game chama atenção. Trata-se de uma adaptação do romance Neuromancer cheia de peculiaridades, a primeira delas cabendo ao envolvimento de Timothy Leary, psicólogo famoso por pesquisar potenciais efeitos do LSD. Professor em Harvard, Leary foi um dos responsáveis pelo experimento que possibilitou um grupo de controle a utilizar psilocibina (dos cogumelos alucinógenos) em uma capela, visando à resposta para a possibilidade de enteógenos favorecerem experiências religiosas (aparentemente… Sim).

Pioneiro em estudos de cibernética, trans-humanismo, experiências místicas e podendo influenciar diretamente de Aldous Huxley a John Lennon, o gênio-doidão já se aventurava no terreno da criação de games nos anos 1980, tendo desenvolvido o curioso Mind Mirror em 1985. Com os direitos de Neuromancer comprados, sua adaptação contaria com a ajuda de nada menos que William S. Burroughs para o roteiro.

Além dele, Keith Haring se responsabilizaria pela parte visual, enquanto a banda Devo, famosa por suas ideias ousadas no pós-punk, cuidaria da trilha sonora. Por sua vez, Helmut Newton contribuiria com a fotografia. Diz-se ainda que haveria várias participações especiais, como a de David Byrne, retratado na imagem de abertura, uma das poucas desenvolvidas.

O projeto, descoberto tão somente após os arquivos de Leary serem abertos, poucos anos atrás, tinha tudo para se encaixar com o romance de William Gibson, obra responsável pela introdução do cyberpunk na cultura popular (e inspiração inegável para um colosso de derivadas, vide Matrix). Sem sair do papel, o game possibilitaria caminhos diferentes em sua narrativa. Eventualmente, Leary repassaria os direitos para a Interplay, que de fato lançou um jogo inspirado no livro, no final da década de 80. As semelhanças, no entanto, limitam-se à trilha sonora do Devo – esse você pode jogar clicando aqui.

Baú: T. S. Eliot

Extraído da edição 10 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Você tem que olhar tantas coisas inferiores o tempo todo que, como um degustador de chá ou fabricante de chocolate, pode perder seu apetite pela literatura como um todo. O público raramente se dá conta de que nove décimos do tempo de um editor são utilizados com o trabalho de manuscritos rejeitados, projetos que não se concretizam e aqueles terríveis casos incertos de escritores que são quase, mas não definitivamente bons o bastante.

T. S. Eliot, 1953.

Carla Dias: Espalhando palavras e poesia

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2015 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em uma época permeada por urgências, atenção faz significativa diferença. As redes sociais são vedetes dessas urgências. Tudo é rápido e contínuo para abastecer o espectador, desculpem-me, o internauta com todas as informações possíveis. Dá trabalho desviar das informações que não fazem mais do que nos levar a gastar tempo. Mas quem não gosta de preguiçar o pensamento, vez ou outra?

Recebemos uma mensagem de um leitor justamente sobre a falta de presença nas redes sociais. Porém, é preciso compreender que alimentar as redes sociais, a fim de atender à voracidade contemporânea, é trabalho que exige tempo que muitos de nós preferimos dedicar à criação, seja do poema, do conto, da crônica, da ilustração.

Veja bem, eu acho bem coerente o posicionamento do leitor; é a realidade que vivemos. Porém, acredito que o RelevO é, primeiramente, um jornal literário, mensal, que você pode adquirir impresso ao se tornar assinante ou se tiver a sorte de frequentar um dos pontos de distribuição gratuita, além da opção da leitura online. Além do mais, foi lançada a newsletter semanal Enclave, que tenho certeza, deixará o leitor mais feliz com a presença do periódico nas redes sociais.

Sendo assim, se você é apreciador do produto, não se intimide: assuma seu apreço, assine a versão impressa, compartilhe o jornal e a newsletter nas redes sociais. Colabore para que mais pessoas tenham acesso a esse trabalho que é feito com o maior prazer pela equipe do jornal. Ajude-nos a fazer como o leitor que nos escreveu sugeriu: espalhe-o.

A edição de abril chegou com as ótimas ilustrações de Anderson Resende, criaturas que se embrenham pelas palavras alheias e pontuaram com questionamento o olhar do leitor. Adorei a capa.

Gosto muito de Daniel Mazza. “Os ossos” apenas endossa esse minha benquerença. Para mim, o autor reduz a todos aos ossos, aos quais creditamos o final de quem somos, mas mostrando que são eles que carregam nossa história. É antropológico e emocional: “A eloquência dos ossos, silenciosa/ Traz muito mais verdades do que provérbios/E salmos. Sábia é a voz dos ossos mudos”.

Após ler o texto “Her e As Ficções Homogêneas – ensaio em narrativa capitalista, gênero e cinema”, de Rubens Akira Kuana, tive de repensar não somente a minha impressão sobre o filme, mas aspectos da minha própria existência. Coerente, Kuana aborda a distância que alimentamos de nós mesmos a troco do que nem sempre sabemos nos será útil.

Em “Menos, por favor”, Marianna Moraes Faria cita muitas formas de sermos preconceituosos ao fazermos de conta que não: “Olha só esse cara, a mulher dele tem quase a idade da minha tia, parecem mãe e filho. Olha lá, que merda, vão casar. Ele só quer o dinheiro dela, lógico”. Trata-se da lógica dos intolerantes, que também se apresenta no “Agora que sou escritor”, de Mateus Ribeirete: “Quanto às dedicatórias, dos contos dos outros 15 participantes, escrevi “não li”. Sobre o conto de um Mateus Senna, escrevi “não li e não gostei”.

No trecho publicado do livro “Poesia Brasileira Contemporânea – Crítica e Política”, Renato Rezende aborda a crítica de poesia brasileira, baseando-se também em questões voltadas à resistência da linguagem, que saiu da clareza da sua definição para navegar em outras formas de arte, como a canção. A poesia na música. “É preciso, portanto, enfrentar a escuridão e as contradições do nosso tempo, identificar outras chaves de leitura e novas brechas e bordas para pensar a nossa poesia.”

Obviamente, esse passeio não incita o fim da poesia, mas pede por mais atenção. São para poucos os escassos espaços dedicados a tal linguagem, e quase sempre relegados aos poetas que movimentam o mercado. Aliás, é esse mercado que carece de ser ampliado; a poesia pode até não ter lugar definido no atual cenário literário, mas definitivamente continua a dar origem a grandes poetas e a gerar significativas e inspiradoras obras.

Prosa e poesia primorosas – e capazes de atiçar questionamento – estavam estampadas nas páginas do RelevO de abril. Foram tantas de uma e de outra que me encantaram, que tive trabalho para selecionar algumas para falar a respeito. Eu gosto de ter trabalho.

Porém, devo confessar que a presença marcante da poesia – ainda que lembrada na prosa –, pela qual tenho profundo apreço, e que me acompanha desde o primeiro questionamento, fez a edição passada entrar para o hall das mais queridas. Ouso dizer, meu caro Renato Rezende, que, talvez, não sejamos nós – leitores, escritores e críticos – os responsáveis por definir onde cabe a poesia. Ela mesma se apodera dos espaços. Sendo assim, investigá-la pode ser tão interessante quanto consumi-la, a alma entregue a esse compromisso.

Não poderia deixar de mencionar a parceria entre o blog Obscenidade Digital e o RelevO, divulgada na edição passada e estreando nesta, com texto de Gabriel Protski. A cada edição, um texto da equipe do coletivo curitibano. Que essa parceria nos renda ótimas leituras.

A Paixão de Joana D’Arc

Extraído da edição 8 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O filme A Paixão de Joana D’Arc (1928) – como você pode imaginar – conta a história do julgamento e condenação pela inquisição inglesa da francesa, sob acusação de heresia.

Usando os registros originais do processo, o diretor, Carl Theodor Dreyer, recria os últimos momentos da vida da jovem que ouvia vozes e inspirou seu exército a numerosas vitórias na Guerra dos Cem Anos com uma crueza perturbadora.

Primeiro porque as falas seguem os documentos do tribunal, o que confere um tom hiper-realista à composição, mas sobretudo pelos elementos cênicos e estéticos: reducionista, o cineasta dinamarquês se livra de diversas convenções e se limita ao essencial para contar a história. Seus close-ups são extremos, e seus ângulos, vertiginosos; o cenário e figurino são os mais simples quanto possível e os atores não usam maquiagem, algo inédito no cinema mudo.

A isso, soma-se a performance impecável – considerada uma das mais importantes e icônicas da história do cinema – de Renée Jeanne Falconetti, em seu primeiro e único papel nas películas.

Essa atuação intensa foi resultado de muito escrutínio do diretor, que regravava cenas numerosas vezes para conseguir exatamente as expressões que procurava na atriz. A expressividade de Falconetti é sinergicamente amplificada pelo enquadramento fechado e a mise-en-scène minimalista.

A influência de Dreyer no cinema pode ser vista até hoje em diversos cantos da sétima arte, mas quem mais diretamente bebeu de sua fonte foi o movimento Dogma 95, de Lars Von Trier e Thomas Vinterberg.

Fã confesso, Von Trier é adepto desse estilo autolimitador, visto pelas numerosas regras autoimpostas em seus filmes – notadamente em Dogville (2003), que, sem cenário, desenvolve muitos dos temas explorados primeiramente pelo dinamarquês.

Detetive Conan Doyle

Extraído da edição 8 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Conhecido por criar Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle acumula fatos curiosos para mais de uma vida. (Por sinal, “Doyle” é seu único sobrenome – “Conan” é apenas um nome do meio). Além de ter se envolvido com a popularização do ski e com a crença na existência de fadas, Sir Arthur também influenciou diretamente duas absolvições criminais de seu tempo.

Em uma delas, o advogado George Edalji foi condenado à prisão por supostamente mutilar animais – cavalos, especificamente. Cartas anônimas enviadas à polícia foram atribuídas a Edalji, que, contando com o empurrãozinho de preconceito alheio em relação à sua origem indiana, não teve escapatória quando um pônei foi encontrado em más condições no vilarejo de Great Wyrley, onde morava.

Perseguido desde a infância por cartas anônimas de ódio, não tardou para que Edalji conseguisse um mandato de sete anos de prisão, isso em 1904.

Houve, no entanto, uma campanha de apoio à absolvição de Edalji, e Conan Doyle foi um de seus maiores porta-vozes. O escritor chegou a visitar a cena do crime e estudar todos os depoimentos relacionados ao caso, emulando sua criação mais famosa.

George Edalji, segundo Conan Doyle, não teria condições de maltratar animais à noite e ainda fugir da polícia, dadas as suas claras limitações visuais (um argumento não utilizado por Edalji em sua defesa, tamanha a descrença de que ele seria de fato condenado).

As cartas e as mutilações a animais continuaram mesmo com o advogado já preso, o que contribuiu para a verificação do caso. Em 1907, Edalji foi solto. Essa narrativa inspirou o romance Arthur & George, de Julian Barnes, e uma subsequente série de televisão.

Utermohlen: representação do Alzheimer

Extraído da edição 7 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Durante sua vida, o artista William Utermohlen (1933-2007) não foi genial. Suas telas não estão nos maiores museus do mundo e seu nome não tem grande relevância para historiadores de arte. Há uma situação singular, no entanto, que fez com que ele produzisse alguns dos trabalhos mais chocantes da arte contemporânea.

Aos 61 anos, o americano foi diagnosticado com Doença de Alzheimer, a demência mais frequente em todo o mundo. Seu sintoma mais conhecido e precoce é a perda de memória. Com o agravamento da doença, porém, o paciente pode sofrer de alucinações visuais, agressividade, perda de coordenação motora, além do constante declínio cognitivo.

Certamente, não se trata de um prospecto agradável, mas infelizmente ainda não há cura ou tratamento efetivo para conter sua evolução. Diante do diagnóstico, o artista iniciou uma série de autorretratos que viriam a ser sua janela para o mundo, um insight da sua cada vez mais distante consciência.

O primeiro quadro da nova série, de 1995, mostra o pintor sentado, segurando firme a mesa à sua frente, como se tentasse se ancorar no meio do espaço vazio que o circunda. As obras seguintes se tornam gradativamente mais abstratas e sombrias, atestando a progressão de sua condição médica e nos levando a esse ambiente misterioso, efêmero, desconfortável e perturbador que é a demência.

O último autorretrato, já em 2000, é o mais devastador. No meio do vazio paira uma cabeça – ou o que era pra ser uma cabeça – sem olhos, orelha, boca ou nariz definidos; até mesmo o olhar, algo que estava sempre presente em suas telas encontra-se perdido. Não há sentido ou contato com o mundo externo.

Pouco tempo depois de realizar sua última obra, Utermohlen foi internado em um asilo, onde morreu em 2007.

Carla Dias: O fazer cultural e a apreciação de suas crias

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2015 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Espero que nesta edição estejam todos bem. Direitos garantidos, deveres em dia, percepção afiada e afinada com os fatos. O mundo anda meio complicado, mas vamos descomplicar o que for possível, que leveza nunca é demais e ainda colabora para que observemos a vida com mais cuidado e respeito.

Lendo o editorial da edição de março do RelevO, identifiquei-me com a posição de se fazer o que se faz bem, como este jornal, sem comprometer conteúdo. Tarefa árdua, porém gratificante.

Quem lida com o fazer cultural sabe: captação de recursos é trabalho hercúleo. E se o criador do projeto prezar pela sua originalidade, muito do que o torna singular pode se perder durante o processo de adequação à necessidade do mercado. Necessidade que nós mesmos criamos, ou seja, temos o poder de mudar o rumo dessa prosa, melhorar até mesmo o que nos parece impossível de ser melhorado.

Tem sido cada vez mais frequente que adaptações feitas para que projetos culturais se encaixem no perfil de seus patrocinadores acabem em devastadoras transformações, descaracterizando o que seria a essência do projeto. Para que aquele projeto que você ama sobreviva, é preciso amá-lo na prática. Compre os livros e os discos, vá aos shows e espetáculos teatrais, assine os jornais. Ame os projetos culturais que lhe apetecem. Somente assim é possível se manter a diversidade cultural e a originalidade do que resulta deles, seja um livro, um disco, um espetáculo teatral ou um jornal literário, entre outras tantas opções.

Antes de falar sobre a edição passada, quero dizer que há quem reivindique reportagens sobre literatura no periódico. Seria ótimo se elas fossem integradas ao jornal, mas não ao custo de termos menos páginas com obras literárias. Ler sobre literatura é importante, mas não tanto quanto ler literatura. Acho válido se forem incluídas páginas extras no RelevO para tal fim, mantendo o espaço atual para os escritores terem suas obras publicadas e os leitores aproveitarem a leitura.

Outra questão é a falta de material fotográfico. Particularmente, adoro pegar emprestadas obras de amigos fotógrafos e artistas plásticos para ilustrar os meus textos. Considerando não somente o meu gosto, mas o que de positivo isso pode trazer ao impresso, temos visto notáveis obras de artistas diversos ilustrando o jornal. Incluir material fotográfico me parece natural e, definitivamente, interessante.

Voltando à edição passada do RelevO, tenho de admitir que ela me surpreendeu muito e positivamente. Cristiano Castilho me ganhou com seu “Bogotá, dia 2”. O tom de diário de viagem, a crônica relatando a descoberta de lugares e pessoas, é sempre muito atraente, quando bem construída. “Amanhã farei um passeio de bicicleta com uma mexicana e uma ucraniana que moram na Alemanha.”

Em contrapartida à pluralidade do texto de Castilho, Aline Valek direciona suas palavras a um único lugar. Em “Minha Ex”, a autora acerta ao falar sobre Brasília – onde viveu e de onde partiu – como se a cidade fosse sua ex, dando às memórias geográficas o mesmo tom das memórias afetivas. “Uma timeline plana, uma vida de uma nota só.” A conversa que a autora trava com a cidade torna agradável a leitura sobre voltar a um lugar que se julgava conhecer, para então descobrir que não o conhecia tão bem assim. O tipo de armadilha na qual costumamos cair, frequentemente, quando se trata dos nossos relacionamentos pessoais.

“Entre as Coisas” é um apreciável texto de Juliana Cunha sobre espaços necessários entre assuntos, pessoas e coisas importantes a se fazer. O respiro, o lugar onde devemos gastar o tempo ao nosso gosto.

Daniel Zanella, agora terei de assistir ao “Koyaanisqatsi”. Seu texto me convenceu, e ainda me deixou pensando sobre “… chuva discreta, que começa a escorrer nos vidros” e a música de Philip Glass.

A poesia também teve destaque. Porém, antes da poesia em si, há aquela boa mistura de prosa e poesia. “Destinatário”, de Flora Rocha, tem cadência e essência. Remeteu-me à lindeza dessa combinação que permite a nossa imaginação preencher as lacunas da realidade. “Anoiteceu inverno. A ventania uivava e as cortinas dançavam temor. Tomou um gole e inventou de enfrentar o vento.”

Edu Hoffman poderia inspirar quadros: “desembrulho cada palavra/feito bala/na agulha”. Davi Kinski demonstra intimidade com as palavras. Seu poema é para se ler e reler, que ali há uma variedade de matizes. Definitivamente, lerei outros poemas de sua autoria, que fiquei poeticamente curiosa. “Eu me dissolvo antes do fim/Eu pulo do trampolim/Para a cidade/For Sale.”

Aprecio o fazer poético de Cel Bentin. Gosto de como ele brinca com as palavras, criando espaço para que a imaginação do leitor se embrenhe nas sutilezas de sua poesia. “Inquieto Chiaroscuro [ou Palavra-obaluaê]” eu não conhecia. Fiquei feliz em conhecer. “De bloco em punho, garçons em cartografia/ projetam pedidos além da conta das mesas.” Como não se esbaldar em imaginação depois de ler tais palavras?

Carla Dias: Críticas são necessárias, ofensas são dispensáveis

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2015 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Quando Whisner Fraga me indicou para substituí-lo no RelevO, eu ri sozinha, antes de entrar em pânico. Ele é dos meus escritores preferidos, amigo pelo qual tenho imenso carinho e respeito, a quem sempre consulto – e escuto – quando se trata dos meus próprios escritos. O RelevO é um jornal pelo qual tenho real apreço, ao qual credito legítima importância no cenário da literatura nacional atual.

A primeira coisa que perguntei foi se ele acreditava que eu daria conta. Não me levem a mal, trata-se do exercício de se questionar o desconhecido, temendo não saber como lidar com ele. E por mais autoanálise que já tenha feito para amenizar o hábito, ainda uso esse recurso com frequência.

Todos os motivos que citei para me desqualificar estavam diretamente ligados ao fato de eu não ser ele. Pois bem, eu não sou o Whisner, mas ele me garantiu que isso é bom. Então, aceitei o desafio.

O que posso dizer em meu favor é que farei o melhor para beneficiar o RelevO. Espaços como este são essenciais para que a literatura se mantenha plural e inspiradora. Para que as pessoas, escritores e leitores, encontrem-se na prosa e na poesia, e na crítica descubram uma forma de aprimorar a relação entre ambos, contando com o periódico como o condutor.

Crítica é uma forma interessante de se compreender o óbvio: nem sempre estamos certos. Autocrítica é a aceitação dessa obviedade, que nos leva a aproveitar, em nome do bem coletivo – ou mesmo daquele mais íntimo e definitivamente intransferível – a chance de aperfeiçoarmos o que julgávamos concluído, sem necessidade de qualquer retoque.

Tenho consciência de que nunca se defendeu ponto de vista tão fervorosamente como nos dias de hoje. A internet tem sido uma ferramenta poderosa durante esse processo de escancaro. Porém, confesso que aguardo pelo dia em que ofensas não tomarão o espaço das críticas, quando teremos aprendido que, ao tirarmos o respeito de cena, a vida desanda.

Lembro-me de uma mensagem que recebi de um leitor, sobre uma crônica que publiquei na internet há alguns anos. Ele começou dizendo que havia gostado da leitura, que a forma como eu escrevia lhe agradava, mas que, para o meu bem, melhor era eu encostar a barriga no fogão e servir ao meu marido. Eu pensei que fosse alguma brincadeira de mau gosto, mas a troca de mensagens me provou que não, ele era completamente avesso à literatura feita por mulheres, independente da qualidade da obra. Aquela era uma ofensa travestida de crítica. Não foi a primeira, tampouco a última vez que experimentei dela.

O ofensor é um personagem constante nas nossas vidas, e o preconceito, assim como a certeza absoluta e irretocável de ser o autor da opinião correta, conduzem a dele. Acho que ele deveria participar do 1º Campeonato RelevO de Modestos. Aprender a lidar com o elogio direcionado ao outro faz milagres.

Falando sobre a edição de fevereiro, posso dizer que o editorial se aproximou muito do que penso. Política de boa vizinhança – a diplomacia cotidiana – é necessária para que uma sociedade funcione, mas certamente prejudica quando o indivíduo deseja camuflar a aspereza original da sua verdadeira opinião. Precisamos aceitar que nem tudo o que dissermos nessa vida será palatável, principalmente quando remeter ao gosto, que nem sempre será o mesmo do vizinho.

Encantei-me pelos poemas de Alexandre Guarnieri. Depois de lê-los, não conseguia parar de pensar sobre as palavras que um corpo comporta. Desde sempre, as mãos, os olhos, a pele, e tantas outras partes do nosso corpo vêm inspirando a poesia de muitos. Porém, Guarnieri vai além, como se fosse um cirurgião curioso sobre o corpo que habita o espírito daquele que comete poesia.

Cláudia Lopes Bório expõe a insignificância de uma pessoa sendo contestada pela sua real importância. “Manorama” fala sobre uma mulher que mora à beira dos campos de arroz. Ela é responsável por cozinhar o arroz, diariamente, na hora certa, até o dia em que isso não acontece, o que resulta em sua morte. O ritmo que a autora impõe ao texto é de prosa poética, de delicadeza debruçada em melancolia.

Fiquei muito satisfeita com a publicação do “Esqueça tudo o que você sabe sobre HIV – Diário de um Jovem Soropositivo”. Nós tendemos a nos classificarmos como conhecedores dos fatos, mas andamos cada vez menos esclarecidos a respeito do que importa. Talvez seja hora de lidarmos com o outro com mais de delicadeza. Basta nos informarmos, antes de decidirmos pelo pior cenário. Evitarmos os rótulos.

Mais interessante e produtivo é dialogarmos. Nem sempre será como nos bate-papos que temos com os amigos, nos almoços que oferecemos em nossas casas, nos finais de semana. Nem sempre será afável, que verdade seja dita, melhor, quando a verdade é dita, às vezes ela amarga. Particularmente, sinto-me à vontade com o contraponto, e espero fazer minha parte de maneira positiva ao RelevO e aos seus leitores.

Sendo assim, agradeço ao Whisner Fraga pela indicação, ao Daniel Zanella pela aceitação e ao periódico como um todo pelo espaço. Quem tiver interesse em me escrever, meu contato é laila.dias@gmail.com.