Quem comanda o departamento de RH dos demônios? A resposta cabe à demonologia.
Se os anjos dispõem de uma hierarquia digna de multinacional do Vale do Silício, nada mais justo do que organizar o time de vendas entre os representantes do tinhoso. Para tanto, autores diversos já propuseram suas devidas classificações, cada qual separando uma logística para agregar esse elenco de estrelas, como Lúcifer, Leviatã e um ou outro goblin sarrafeiro.
Assim, anjos maléficos foram divididos ao longo da história com base em características diferentes. No século 16, Peter Binsfeld separou um demônio por pecado capital. O Belfegor, por exemplo, simbolizava a preguiça, enquanto Asmodeus indicava luxúria. Ele não foi o primeiro a pensar num mapa de conceito para capirotos, tampouco o primeiro a relacioná-los aos pecados capitais. Se a ideia de sete príncipes do inferno saiu daí, não fazemos ideia.
Antes de Binsfeld, aliás, Alphonso de Spina aparentemente havia listado 133.306.688 demônios – isso em 1467. Contabilizados nesse número ridiculamente especifico estavam íncubos, goblins, espíritos familiares, cambions (filhos de humanos com íncubos) e quem sabe até eu e você, diante da quantidade alarmante. Até o Rei Jaime I, quando era Jaime VI, Rei da Escócia, organizou sua demonologia. Anos mais tarde, ele viria a patrocinar a tradução da Bíblia do latim para o inglês, talvez a mais popular do universo.
São várias as tabelas de Excel sugeridas ao (ou pelo) capeta ao longo da história – isso que nós apenas beliscamos a tradição cristã. Fica nosso empurrãozinho às trevas.
Publicado originalmente na edição #35, em junho de 2016.
Na cidade grande, havia um grupo de sobreviventes locais, de um contingente sul-americano, que vieram da Guerra. Eles eram alegres e sinceros, mas cada um devia carregar a própria amargura ou nostalgia por baixo de toda a jovialidade e do riso. “Brincadeiras à parte, que tipo de vida era esta para eles?”. E a resposta, com todas inserções e alusões locais, era: “É uma vida boa. Esta é uma vida boa. É claro que temos reclamações, mas no geral é uma vida tão boa quanto se pode esperar. Não há porquê afligir-se, e não há razão para desuniões, se o dinheiro levar a isso. Mas está repleta de tentações, você sabe, independente de ter-se dinheiro ou não”. Deveria-se contentar com isso. Em outra parte, um grupo distinto era formado por alguns homens, mulheres e crianças inglesas à vontade, após um dia de trabalho, em um lindo clube. Ali parecia que nos aproximávamos um pouco mais dos vestígios e meio segredos da vida. Mas as convenções – tanto pior – proíbem interrogar os passantes e perguntar a eles: “Como você vive na realidade? O que acha das coisas daqui – negócios, comércio, empregados, doenças infantis, educação e tudo o mais?”. Assim o rio de rostos fluía com suficiente placidez, e podia-se apenas imaginar o que jazia por baixo da superfície e reentrâncias.
Os brasileiros que encontrei eram interessados e completamente a par dos assuntos externos, mas estes não compunham seu mundo essencial. O Deus deles – eles caçoavam – era brasileiro. Ele dava a eles tudo o que queriam e um pouco mais. Por exemplo, uma vez quando a colheita do café excedeu os limites, Ele enviou uma geada no momento certo, que podou um quarto e equilibrou confortavelmente o mercado. E as vastas terras do interior do país estavam repletas de tudo o que se poderia querer, esperando para ser usado no devido tempo. Durante a Guerra, quando foram obrigados a prover por si mesmos metais, fibras e coisas assim, mostraram uma amostra a um índio e perguntaram: “Onde se pode encontrar mais disto?”. Então ele pôde guiá-los até lá. Mas possuir tais coisas, eles davam a entender, não implicava desenvolvimento imediato pelas concessionárias. O Brasil era um país gigantesco, com metade ou um terço inexplorado. Ele cuidaria de si mesmo no tempo certo. Pouco depois, fantasiei qualquer coisa nos bastidores, existiu uma linhagem de proprietários de terras com aversão ao mero comprador e vendedor de mercadorias, que sugeria uma origem aristocrática para a construção nacional.
O filme Pacto de sangue (Double Indemnity, 1944), adaptação de uma excelente novela de James M. Cain (1943), marcou o cinema tão logo foi lançado. Ali se consagrava a estética do noir americano, levantando o sarrafo para inúmeros filmes que viriam a copiá-lo.
Pacto de sangue dispunha de uma colaboração estelar por trás das câmeras: ao diretor Billy Wilder, juntou-se ninguém menos que Raymond Chandler como roteirista. E se a qualidade do resultado era indiscutível, a produção contou com um entrave: Wilder e Chandler não poderiam ser mais diferentes um do outro.
Simplificando (talvez demais), a relação entre os dois parece representar o desconforto que emerge quando um extrovertido e um introvertido não se batem.
Wilder, nascido (Samuel) na Áustria-Hungria, era 18 anos mais novo e havia escapado da Segunda Guerra (sua família – de judeus poloneses –, não). Chandler havia lutado na Primeira Guerra e, apesar de nascido nos Estados Unidos, tinha formação (e personalidade tipicamente) inglesa, afinal havia vivido da infância até o início da vida adulta na Inglaterra.
Wilder afirmou que Chandler parecia um contador – e que o escritor carregava a acidez típica dos alcoólatras. O diretor era adepto de um certo antagonismo entre colaboradores. Segundo ele, “se duas pessoas pensam parecido, é como se dois homens puxassem o mesmo lado da corda. Se você vai colaborar, precisa de um oponente para equilibrar as coisas”.
Chandler, novo em Hollywood, detestava Wilder. Já respeitado pelo romance Sono eterno (1939) quando foi contratado pela Paramount, o escritor chegou a se demitir da produção, relatando uma série de reclamações à produtora a respeito do diretor. A mais curiosa certamente se referia ao fato de Billy Wilder usar uma bengala e apontá-la para o roteirista enquanto conversavam.
Em carta de 1950 a seu editor inglês, Jamie Hamilton, Chandler escreveu: “Fui para Hollywood em 1943 para trabalhar com Billy Wilder em Pacto de sangue. Foi uma verdadeira tortura, e provavelmente encurtou a minha vida, mas com essa experiência aprendi, sobre a arte de escrever para o cinema, tudo que eu era capaz de aprender, e que não é grande coisa.”
No romance A irmã mais nova (1949), Chandler claramente se utilizou da experiência para descrever o momento em que seu notável protagonista, Philip Marlowe, interage com um produtor de Hollywood:
Ele caminhou até um vaso alto e cilíndrico no canto da sala. Dali, tirou uma bengala de malaca, entre várias que havia. Começou a ir e voltar pelo tapete, balançando com habilidade a bengala, paralela ao pé direito.
Fiquei sentado, terminei meu cigarro e respirei fundo: ‘Tem coisas que só podem acontecer em Hollywood’, resmunguei.
Ele deu uma elegante meia-volta e me olhou. ‘Perdão?’…
‘Por exemplo: um homem aparentemente dotado de sanidade mental andando para lá e para cá dentro de casa, imitando o andar das pessoas de Piccadilly e segurando uma vara de domar macacos.’
Ele assentiu.
James M. Cain adorou a adaptação de seu romance. Público e crítica também: Pacto de sangue foi indicado em sete categorias do Oscar de 1945 e, muito mais importante que isso, consagrou-se na estética cinematográfica. Naquele mesmo ano, Chandler escreveu o ensaio “Writers in Hollywood“, no qual reclamou de sequer ter sido convidado para uma coletiva de imprensa sobre a produção.
Wilder respondeu “não o convidamos? Como poderíamos? Ele estava bêbado embaixo da mesa do [bar] Lucy’s”. Farrapo humano (The Lost Weekend, 1945), o filme seguinte do diretor, contou com Ray Milland interpretando o protagonista Don Birnam, um escritor alcoólatra.
Em 1910, a Marinha Real Britânica virou piada. Isso porque seu maior encouraçado teve a honra de receber o príncipe da Abissínia, o Império Etíope. A bordo do HMS Dreadnought, com toda a pomposidade que lhe era reservada, deleitavam-se quatro membros da realeza, guiados por dois funcionários do Ministério das Relações Exteriores. Nada de errado até então, exceto pelo fato de que a suposta delegação era apenas um grupo de amigos de rosto pintado, barba falsa, proferindo uma língua desprovida de sentido.
“Eu tive a ideia, mas a execução foi trabalho dos seis”, contou posteriormenteHorace de Vere Cole, poeta que entraria para a história com suas brincadeiras arriscadas — ele já havia visitado Cambridge como um sultão de Zanzibar. Além de Cole, o grupo contava com Virginia Woolf, o pintor Duncan Grant e outros entes próximos ao famoso Bloomsbury Group.
Um telegrama previamente enviado avisava que os abissínios chegariam acompanhados por um secretário do governo. Apesar das barbas falsas e da pintura facial, o grupo — aceito como uma família real — só correu riscos mesmo quando teve que negar um banquete de luxo, pois parte da maquiagem já se apagava, ou, no caso das barbas, descolava.
Para se comunicar, eles falavam uma língua completamente improvisada, o que também gerou momentos de tensão. Nada que riscasse a credibilidade da delegação de brincalhões: eles passaram o dia no encouraçado e voltaram para casa vitoriosos. O mesmo não pode ser dito da Marinha Real Britânica, que se tornou motivo de chacota.
O grupo havia prometido não contar nada aos jornais, mas Cole, o fanfarrão-mor, contatou o Daily Mirror, enviando inclusive a foto que haviam tirado no Dreadnought. “Quando vi a foto no Mirror, não tive a menor dúvida de que ele havia repassado a história”, relatou Adrian Stephen, irmão de Woolf. Que rolê!
[Publicado originalmente na edição #17, em agosto de 2015]
Mas num homem idoso que conheceu as alegrias e mágoas humanas, e que atingiu alguma obra que estivesse propenso a realizar, o medo da morte é algo abjeto e ignóbil. A melhor maneira de superá-lo – ao menos assim me parece ser – é tornar seus interesses gradualmente cada vez mais amplos e mais impessoais, até que pouco a pouco os muros do ego se afastem, e sua vida se torne crescentemente fundida à vida universal.
A existência de um indivíduo deve ser como um rio – pequeno no começo, estreitamente contido em suas margens, e correndo apaixonadamente através de pedregulhos e quedas. Gradualmente o rio se alarga, as margens se afastam, as águas correm mais calmas, e no fim, sem uma quebra visível, as águas misturam-se com o mar; e sem dor perdem sua individualidade. O homem que, na idade avançada, pode ver sua vida dessa forma, não sofrerá com o medo da morte, pois o que é importante para ele continuará.
Bertrand Russell, Como envelhecer (em Retratos da memória e outros ensaios, 1956).
Marcos Vasconcellos, Roniquito Chevalier, Nelson Motta, Chico Buarque e Lucio Rangel. Foto/Arquivo Notibras.
Uma parte significativa do cânone artístico brasileiro foi produzida entre as décadas de 1950 e 1970, golpes e “milagres econômicos” concomitantes. Por sua vez, grande parte desse cânone foi produzida em um espaço geográfico bem delimitado: a zona sul da cidade do Rio de Janeiro (que, convém lembrar, foi a capital do Brasil até 1960).
Antes da comunicação digital e num Rio já segregado, mas ainda não tão populoso, nada mais natural que todo mundo se encontrasse em algum bar no fim da tarde pra tomar um chope porque, afinal, você está no Rio de Janeiro.
E é, de fato, o que acontecia: numa espécie de Friends da bossa nova, era bastante provável encontrar num bar como o Antonio’s, num happy hour de quinta ou sexta-feira, figuras como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos batendo ponto.
Um dos baluartes dessa boemia carioca dos bons tempos é uma figura que ficou menos conhecida que os artistas produtivos do entorno, mas que certamente deve tê-los inspirado (ou provocado, ao menos) com sua erudição e sua natureza absolutamente caótica: Ronald Russell Wallace de Chevalier, o Roniquito.
Economista de formação e talvez um dos intelectuais mais brilhantes de uma geração, Roniquito coleciona anedotas e é conhecido pela natureza dual expressada na comparação com o médico e o monstro de Stevenson: sóbrio, era Dr. Roni, um homem muito culto e gentilíssimo. Uma ou duas doses depois – e a biografia póstuma, mesmo comumente aliviando pro lado do alcoolista, dá conta de que ele bebia muito e todo dia –, transformava-se em Mr. Quito.
Daí em diante, era na base do berro: Roniquito apontava o queixo para alguma vítima incauta e abria fogo, ácido, um agente do caos, a voz embriagada no coro da tragédia carioca. Para Fernando Sabino, de certa feita, perguntou quem ele achava que fosse melhor: Sabino ou Nelson Rodrigues.
Sabino, querendo escapar de qualquer discussão, logo respondeu que Rodrigues era muito melhor que ele, naturalmente, ao que Roniquito respondeu: “Larga de ser bobo, Fernando. Quem é você para julgar Nelson Rodrigues?”.
Como bêbado, também apanhou muito. Outra de suas histórias é a de estar apanhando de um brutamontes que, em cima dele caído, perguntou “Basta ou quer mais?” e recebeu a resposta “É claro que basta, imbecil!”.
Pelas anedotas, dá pra pensar que ele era só um bebum mala como os que frequentavam o finado Condor Bar e Lanches com o pessoal do RelevO. A diferença é que Roniquito leu tudo no original e sabia demais, embora não tenha escrito nada (ou talvez justamente por isso).
Paulo Francis, um de seus célebres amigos, conjectura que, talvez, uma pessoa com tanto talento e instrução passar a vida enchendo o rabo de álcool e criando situações das quais poderia sair muito injuriado fisicamente fosse uma viração de mesa desejada, em algum nível, por toda a intelligentsia brasileira: “nosso horror é de tal ordem de vulgaridade que uma resposta vulgar de baderneiro seja mais adequada que ‘análises’.”
Roniquito trabalhou no Cepal, no BNH (onde não conseguiu se efetivar porque, em sua banca, demonstrou que a instituição iria falir em 15 anos se o modelo não fosse revisto; o tempo passou e o BNH continua vivo apenas na letra de uma música do Charlie Brown Jr.) e na Rede Globo, onde foi assessor de Walter Clark e cunhou a expressão aspone (uma sigla para ‘assessor de porra nenhuma‘).
Contundente e meio mala, Roniquito não passou incólume pela repressão do período ditatorial, mas conta-se que, bêbado, ele era tão eloquente que, certa vez, levado à 13ª DP, foi liberado mais rápido porque, além da ajuda de um tio, o delegado não aguentava mais seu discurso inflamado. Foi conselheiro de Carlos Lacerda e de Mário Henrique Simonsen, não sem antes debochar deles, o que fez com que fossem grandes amigos.
Na biografia escrita por sua irmã, Scarlet Moon de Chevalier, dedicada ao pessoal da comunidade do Orkut ‘Roniquito vive!’, outras tantas histórias e nomes dão corpo à lenda. Roniquito morreu em 1983, aos 46 anos, após alguns meses debilitado fisicamente por ter sido atropelado no caminho entre um bar e outro.
Algumas cirurgias depois, ele ainda se reuniu com arquitetos e urbanistas para reclamar da localização do Antonio’s, onde não conseguia entrar de cadeira de rodas: fosse do outro lado da rua, ele não teria sido atropelado.
O experimento de Rosenhan, de David Rosenhan, é certamente um dos mais curiosos estudos entre publicações científicas sérias. Isso porque o trabalho, divulgado em 1973 sob o título Sobre ser são em ambientes insanos, apresentou um método bastante direto de questionar a própria validade do diagnóstico psiquiátrico.
Para tanto, oito pessoas – Rosenhan incluso –, foram aceitas em 12 manicômios diferentes nos Estados Unidos após simularem alucinações auditivas de vozes que proferiam palavras vagas. Entre profissionais da área e gente nada relacionada, nenhum continha histórico de distúrbios mentais, e todos usaram pseudônimos. A instrução para o experimento era clara: uma vez dentro, todos se comportariam da maneira mais normal, saudável possível, desde cedo alegando não ouvir mais voz alguma. O diagnóstico caberia às instituições.
Essas instituições, demograficamente variadas, levaram de sete a 52 dias para liberar todos os pseudopacientes, gerando média de 19 dias de estada. Todos foram devolvidos à sociedade com o diagnóstico de esquizofrenia em remissão, fato utilizado para Rosenhan argumentar como doenças mentais são tratadas como irreversíveis e estigmatizantes. Nenhum dos infiltrados foi descoberto, ainda que tenha havido suspeitas (por parte de outros pacientes, e não de funcionários). O autor não poupou críticas ao tratamento recebido pelos internados.
No ambiente do manicômio, segundo Rosenhan, é impossível distinguir o são do insano. Verdade ou não, a relação do ser humano com a validação subjetiva certamente ficou um pouco mais exposta.
O hardboiled é diferente do noir, embora ambos sejam usados de maneira intercambiável. O argumento comum é de que os romances hardboiled são uma extensão do wild west e das narrativas pioneiras do século 19. A vastidão dá lugar à cidade, e o herói é geralmente um tipo de personagem derrubado, um detetive ou policial. No fim, tudo é uma bagunça e pessoas morreram, mas o herói fez a coisa certa ou algo próximo disso – e a ordem foi, até certo ponto, restabelecida. Law and Order é um ótimo exemplo da fórmula hardboiled em uma montagem contemporânea.
O noir é diferente. No noir, todo mundo é derrubado, e certo e errado não são claramente definidos – talvez nem mesmo atingíveis. Nesse sentido, o noir dialoga poderosamente conosco agora, quando certas estruturas de autoridade não fazem mais sentido e nos perguntamos: ‘por que nós deveríamos obedecê-las?’. O noir prosperou nos anos 1940, depois da Depressão e da Segunda Guerra, e nos anos 1970, com Watergate e o Vietnã, por razões similares.
O RelevO começará a pagar seus escritores e escritoras a partir da edição de setembro. 135 edições depois, mais de 2000 pessoas publicadas, a uma edição de completar dez anos de existência, circulando mensalmente e de modo ininterrupto, finalmente começaremos a pagar os autores e autoras que publicarem no RelevO.
Não é uma remuneração de porte: R$ 60 por publicação, o equivalente a um ano de assinatura do jornal ou a uma boa oferta no Ifood. Contudo, esse é um passo importante na direção de valorizarmos mais a produção intelectual e fugirmos do regime de gratuidade, colaboracionismo e desvalorização da categoria. Passamos quase dez anos tendo o escritor, aquele que dá sentido ao nosso trabalho, como um colaborador, mandando muitos e-mails de negativas de publicação sem sequer oferecermos algo quando publicamos.
Agora vamos pagar quem publica conosco. Não vamos ter qualquer direito sobre o material do autor – vamos apenas pagar pelo direito de usá-lo – e não vamos aceitamos mais chamar quem publica conosco de colaborador.
Nossos passos sempre foram lentos e medidos. Acredito que a nossa estrutura conseguirá absorver os novos custos, em torno de 600 reais a mais por edição, principalmente por conhecermos tão bem quem nos financia e acredita em nosso projeto editorial. É um risco em tempos de crise sanitária e do setor cultural? Certamente. Mas tenha certeza de que para mim sempre foi difícil dormir sob um negócio que vem crescendo aos poucos e que sempre dependeu de quem escreve. É impossível não pensar no absurdo que é o negócio de escrever no Brasil. A lógica compulsória da gratuidade é terrível.
(E, bem, há projetos e projetos. O RelevO não remunerava antes porque realmente não conseguia: temos contas públicas na página 2 a comprovar isso, mas sei que tá cheio de tubarão do meio cultural que se especializa em precarizar o capital intelectual e constrói patrimônio assim, arregimentando colaboradores que trabalham de graça. Lembrando que não somos bancados por ninguém além de nossos próprios assinantes.)
Entramos, portanto, para a categoria das instituições que remuneram mal todo o seu capital intelectual envolvido. De acordo com nosso crescimento, vamos melhorar as remunerações. Obrigado a todos que nos proporcionaram isso tudo. Não teremos festa de comemoração, mas sou imensamente grato por estarmos aqui, vivos e contemporâneos. Considero este o passo mais importante da nossa trajetória de dez anos. Estou muito feliz mesmo.
Em tempo: quem quiser publicar conosco ou nos assinar pode entrar em contato respondendo a este e-mail. Mesmo com o site fora do ar, ainda temos acesso aos mais variados meios de pagamento.
Em síntese, o Estado brasileiro é uma realidade extremamente complexa para esgotar-se em termos dicotômicos e admitir soluções simplistas.
A elite técnica, constituída no seio do Estado, corresponde a uma aspiração secular de nossa civilização. Tudo leva a crer, por isto mesmo, que não se trate de uma criação transitória.
É provável que seu conflito com a máquina patrimonialista tradicional não possa ser solucionado antes que sejam eliminados os múltiplos focos de pobreza ainda subsistente em nossa realidade social. Essa situação de carência, não se deve perder de vista, é que tem facultado uma sólida base social ao patrimonialismo brasileiro. Assim, o conflito e a tensão entre os técnicos e a burocracia estatal tampouco podem ser encarados como fenômenos transitórios.
Antonio Paim, A Querela do Estatismo, 1998, p. 157 (Senado Federal).
Minha mãe provavelmente se envergonharia, mas apenas no último fim de semana conheci quem foi Paulo Sérgio (1944-1980) – o músico, não o atacante. (O atacante jogou com o Totti.)
A Enclave, como já reconhecemos, não escapa à sua natureza millennial. Há vantagens, como saber desinstalar tudo o que desacelera um Windows praticamente por instinto. E há desvantagens, como a falta de contato direto com elementos culturais renegados pela crítica.
Volta e meia, elementos assim – como o cantor Paulo Sérgio – são redescobertos pela internet, e então novas gerações se surpreendem, resgatam e reinterpretam o adormecido. Tratamos de algo parecido quando escrevemos sobre o city pop.
Em uma dessas mixtapesdifíceis de mapear por que exatamente surgem nas recomendações do YouTube, conheci Paulo Sérgio, o cantor. Brega, romântico, popular. Morreu precocemente, aos 36, vítima de um derrame cerebral – há exatos 40 anos e 10 dias de quando escrevemos este texto. Tinha lá suas polêmicas.
Inegavelmente parecido com Roberto Carlos, foi comparado com o rei e tachado de imitador. Quando finalmente se conheceram, em 1973, deram-se muito bem – ao menos na frente das câmeras.
Mas o que impactou foi ‘Não creio em mais nada‘, do disco Paulo Sérgio Vol. 4 (1970, Spotify). Arranjos, batida, letra, melodia e até um certo groove: esse manifesto de fatalismo, aparentemente composto por Totó, é uma bomba da mais atemporal resignação.
Não sei o que faço
Se volto agora ou continuo a seguir
Eu sinto cansaço
E já não sei se vale a pena insistir
(…)
Não creio em mais nada
Já me perdi na estrada
Já não procuro carinho
Me acostumei na caminhada sozinho
A vida toda só pisei em espinho
Já descobri que o meu destino é sofrer
Os remixes contemporâneos já começaram a pipocar – aqui e aqui, por exemplo –, e Fernanda Takai, pescando o zeitgeist, lançou uma versão da música em junho.
Para você que está desanimado, soque o play e complemente seu drama existencial com esses 140 segundos de cinismo: hoje não será melhor do que ontem, e sigamos em frente! Boa segunda-feira e uma grande semana para todos nós.
E ela jamais conseguira explicar, nem mesmo compreender, que o que adorava não era o emprego – qualquer emprego serviria –, nem mesmo a independência que o emprego lhe propiciava (embora isso fosse importante para uma mulher sempre à beira do divórcio). No fundo, o que ela adorava e precisava era do trabalho em si. “Trabalho duro”, seu pai sempre dissera, “é o melhor remédio para todos os males do homem… e da mulher”, e ela sempre acreditara nisso. A pressão, a agitação e as luzes do escritório, o almoço rápido entregue numa bandeja, o despacho de papeis, e o atendimento de chamadas telefônicas, o cansaço das horas extras e o grande alívio de tirar os sapatos à noite, num cansaço que sempre a deixava inerte, com força apenas para tomar duas aspirinas, um banho quente, comer um jantar leve e cair na cama – eis a essência do que ela adorava; era isso que a fortificava contra as pressões do casamento e da maternidade. Sem isso, conforme costumava dizer, teria enlouquecido.
Richard Yates, Foi Apenas um Sonho (Rua da Revolução), 1961. Edição brasileira da Alfaguara, 2009.
Viajar (do Brasil) ao Japão é caro, muito caro. Passagem, hospedagem, câmbio, escalas, comida: há diversos estímulos ao desestímulo. Àqueles que não dispõem do orçamento necessário para essa locomoção resta o YouTube, onde é possível vivenciar as ruas de alhures com imagem, som e movimento em alta definição.
Refiro-me à quantidade crescente de walking tours disponível no YouTube. Neles, alguém caminha pela cidade portando uma câmera e captura o som ambiente do trajeto. Ao longo do caminho, não há qualquer intervenção, interação ou interatividade em geral: o transeunte anda; nós assistimos.
Deixar esse tipo de vídeo na televisão se tornou um hábito pessoal há tempos. Descobri a prática com o canal hongkongmap, em que um sujeito munido de boa vontade trafega por Hong Kong. Não há imersão maior para um vídeo, e os walking tours – espalhados pelo mundo inteiro – permitem sentir uma cidade distante com o encanto de seu movimento orgânico.
Rambalac talvez seja o mais conhecido em relação ao Japão, onde também vale acompanhar o Nippon Wandering TV (por exemplo, no popular Kabukicho). São diversos os contextos, mas me apetecem particularmente as caminhadas noturnas. A imagem de abertura foi retirada deste vídeo aqui, em Shibuya (Tóquio).
Como um irmão do ASMR, esse gênero de vídeo oferece uma contemplação relaxante; a passividade agradável de acompanhar com os olhos, converter a falta de letramento (de ideogramas, por exemplo) em recepção estética e escutar aquilo que a distância – com ou sem quarentena – não deixa alcançar.
Ele estava sempre escrevendo por dinheiro, não apenas pelo dinheiro, mas porque estava desesperado para pagar dívidas. E ele escrevia rápido. E colocava sua dor nas páginas, sua necessidade de respostas, a busca por esperança e a tentativa de obter sentido nas coisas. Sua raiva, sua amargura, suas recriminações. Você não saberia dizer se ele lutava com suas forças ou fraquezas. Ele não escrevia como alguém que tenta criar um grande romance. Ele escrevia como alguém que tenta sobreviver.
A Enclave de hoje trata – inédita e indiretamente – de gastronomia. A newsletter nunca comeu num restaurante com estrela Michelin, tampouco ingeriu alguma estrela, nem mesmo assistiu (a) algum Masterchef. Portanto, vamos nos limitar a aspectos mais simbólicos (poéticos?) da temática.
O nome do chefMarco Pierre White não apenas parece resumir uma aliança da Primeira Guerra Mundial. Também singulariza um indivíduo inglês notável na cozinha – e notabilizado além dela.
Aos 32 anos, White foi o mais jovem a receber três estrelas Michelin. Isso equivale a ganhar três Copas do Mundo (mas é bem menos interessante). Também é tido como o primeiro chef celebridade, e aparentemente já fez Gordon Ramsay chorar. Nada disso nos interessa muito.
O que realmente cativa na figura de Marco Pierre White é, primeiro, o simbolismo de sua trajetória; segundo, ouvi-lo falar.
Porque este inglês alto, cabeludo e revoltadinho abandonou suas três estrelas Michelin e se aposentou. Cansado de “ser avaliado por pessoas que entendem menos que eu” e indisposto a manter um restaurante apenas com seu nome – isto é, sem participar ativamente das tarefas diárias –, White, até então um rockstar de dólmã, decidiu largar a maratona de trabalho intenso que o levara ao topo. Ele se aposentou em 1999, aos 39 anos.
De origem operária em Leeds, Marco Pierre White se mudou para Londres aos 16 anos – sem dinheiro nem projeção. Lá, trabalhou sob a tutela de Pierre Koffman, Raymond Blanc e Nico Ladenis (a honestidade intelectual nos obriga a apontar que esses nomes não nos indicam absolutamente nada).
Seis anos depois, já tinha o próprio restaurante – e a primeira estrela Michelin. Com o tempo, minado por cigarro, álcool e falta de sono, o jovem chef construiu sua imagem de intenso, explosivo e errático – um enfant terrible–, traços ocultos hoje.
Por exemplo, aqui, emburrado com uma jornalista, White ainda não domina seus poderes comunicativos. Fica evidente como – hoje – ele contornaria a situação desconfortável com a elegância assertiva pela qual é reconhecido atualmente.
Uma síntese de seu magnetismo pode ser verificada quando ele cortou cebolas sem abandonar o contato visual com os participantes do Masterchef Austrália. Precisão técnica milimétrica, olhar intenso sobre os óculos, oratória impecável, lição clara. Outra, nessa vulnerável entrevista em um talk show irlandês.
Afinal, Marco Pierre White intimida. O sujeito é alto e dispõe de compleição robusta e de voz firme. Suas frases intervaladas (e, pelo contexto, muitas vezes acompanhadas de uma faca…) o transformam numa mistura de Hannibal Lecter com um cobrador de dívidas eslavo.
É interessantíssimo, praticamente viciante, vê-lo falar. Talvez nada deixe isso mais evidente do que seu Q&A na Oxford Union: White narra a própria vida com um raciocínio claríssimo, uma capacidade assustadora de articulação. Ele soa como se lesse um livro pronto. Essas sim, características que admiramos em qualquer um.
“Cozinhar deve ser prazeroso; se for um trabalho, peça comida”. Depois de fechar um contrato milionário com a Knorr, Marco Pierre White administra restaurantes e pubs em seu nome. Sua autobiografia, O Diabo na Cozinha, foi traduzida em Portugal.
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