Coincidência cósmica

Extraído da edição 51 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

john f. kennedy

Uma das cenas mais marcantes do século 20 consiste no assassinato de John F. Kennedy. O presidente norte-americano participava de uma carreata em Dallas quando foi atingido no pescoço e na cabeça por dois tiros de rifle às 12h30. Sua morte – com apenas 46 anos – ocorreu em meio a uma escalada de tensões da Guerra Fria.

Por muito tempo, só se falou nisso – literalmente, a ponto de o assunto receber cobertura ininterrupta por quatro dias seguidos nos Estados Unidos, uma sequência superada apenas após o 11 de setembro de 2001. O impacto do assassinato gravado do líder de uma das nações mais poderosas do mundo em um contexto político cheio de faíscas não tinha precedentes.Mas John F. Kennedy estava muito bem acompanhado em sua transição para o que quer que (não) aconteça após a morte.

Enquanto um país ficava de cabeça para baixo em Dallas, Aldous Huxley via (nesta ou em outra dimensão) seu pitoresco pedido de leito de morte ser atendido em Los Angeles. “LSD, 100 microgramas, intramuscular”: este foi o recado escrito que Huxley, já incapaz de falar diante de um avançado câncer na laringe, entregou à esposa, Laura Archera.

Ela cumpriu a solicitação do escritor inglês com duas injeções: uma às 11h20, outra às 12h20, isto é, apenas dez minutos antes do assassinato de Kennedy. Um relato bastante detalhado dos últimos dias do autor de Admirável Mundo Novo e A Ilha, escrito pela própria Laura, pode ser lido aqui (em inglês).

Neste relato – uma carta endereçada ao irmão mais velho de Huxley –, Archera menciona a transmissão do assassinato de Kennedy na televisão (antes de administrar a primeira dose, o que contraria a estimativa dos horários, portanto deve ter havido alguma confusão cronológica deste momento delicado).

Aldous Huxley morreu às 17h30, aos 69 anos, no conforto das palavras de apoio de sua esposa, que, mantendo-se a seu lado, tranquilizava-o a respeito de “ir em direção à luz”. Segundo ela, “tanto os médicos como a enfermeira disseram nunca ter visto alguém em uma condição física similar se despedir tão desprovido de dor e luta. Nunca saberemos de fato se tudo isso é real ou apenas a ilusão motivada por nossa vontade, mas certamente todos os sinais externos indicavam que [sua morte] foi bela, pacífica e tranquila”.

Em outra coincidência cósmica, o horário de 17h30 já havia definido a morte de C. S. Lewis em Oxford, Inglaterra, em um fuso-horário diferente (neste caso, antes das mortes de Kennedy e Huxley). O autor d’As Crônicas de Nárnia havia sido diagnosticado com doença renal crônica naquele mesmo mês, bem como havia sobrevivido a um infarto em julho.

Lewis caiu em seu quarto pouco menos de uma hora antes do assassinato de Kennedy e morreu alguns minutos depois, uma semana antes de completar 65 anos. Sua morte também viria a ser completamente ofuscada. Dias, anos e décadas depois, nos damos conta de que o 22 de novembro de 1963 foi ainda mais impactante do que seu choque imediato demonstrou.

City pop

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City pop album cover by Hiroshi Nagai

City pop: uma nomenclatura tão vaga, genérica e imprecisa que não chega perto de contemplar a especificidade do gênero em questão. Trata-se de um pop japonês com cara, cheiro e gosto de algo perdido entre os anos 1970 e 80, com influência explícita do que se consagrava nas rádios dos Estados Unidos daquela época, e não só de lá.

Tem um pouco de soul; um pouco de funk; um pouco de fusion; um pouco daquilo que você ouve na recepção do dentista (em Curitiba, a Ouro Verde FM) – mas em japonês. É leve, muito leve. Talvez porque o Japão ainda aproveitava os efeitos de seu milagre econômico.

A atração começa com ‘Plastic love‘, de Mariya Takeuchi. Embala-se com Tatsuro Yamashita, não por coincidência marido de Takeuchi. Aí surgem Miki Matsubara, Junko Yagami, Tomoko AranToshiki Kadomatsu… você caiu no vórtice e já confere os covers, mashups e que tais.

O algoritmo do YouTube providencia tudo. Um mix atrás do outro te mergulha em um gênero acessível, irresistível e indecifrável – isso porque o city pop parece cativar principalmente aqueles desprovidos de qualquer relação com o país asiático. Seu apelo mundial deriva da internet e foi exponenciado pela plataforma de compartilhamento de vídeos.

Basta rolar pelos comentários da supracitada ‘Plastic love’, pináculo do gênero – só aquele link inserido já acumula mais de 20 milhões de visualizações –, para compreender a sensação compartilhada pelos ouvintes. O que os une é o sentimento de nostalgia por algo não vivido, as saudades de um passado fictício. (Sabemos exatamente quão corno isso soa, mas a reação comum é inegável a quem trafegar pelo YouTube e observar o padrão temático dos milhares de comentários espalhados.)

O city pop é, acima de tudo, um mundo que não existiu. Como um Homem do Castelo Alto às avessas, oferece o otimismo cósmico a partir do qual a vida é uma Califórnia japonesa, e você, o condutor em uma estrada ensolarada, espaçosa, despreocupada. Ouça e adentre essa rota livre de tensão: um, dois, três; ichi, ni, san.

Um caminho pelo qual o mundo não só não enveredou como jamais poderia enveredar. Há uma razão, portanto, para soar tão corno: alguns clichês são tão gastos que não poderiam se desfazer de sua condição de verdade implacável. O mundo não é a estrada vazia de uma Califórnia sinalizada em kanji; o tempo não passa onde ele não pode existir.

Esse apelo tão irrestrito, afinal, só poderia receber um nome vago, genérico e impreciso: city pop.

***

A imagem utilizada no texto foi ilustrada por Hiroshi Nagai, o cartaz do city pop. Muitas capas da época são dele; algumas recentes também – como a de Pacific Breeze (2019), compilação da americana Light in the Attic Records já projetada em um mundo nem utópico nem distópico, mas cheio dus tópico, tá ligado. Ouça aqui.

Essa mesma gravadora também lançou – pela primeira vez fora do Japão – alguns discos de Haruomi Hosono, líder do magistral Yellow Magic Orchestra e grande fonte de influência para o city pop. Mas o YMO é um capítulo à parte e um dia certamente voltaremos ao grupo: Ryuichi Sakamoto que nos aguarde.

O assassinato d’O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford

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São raros os filmes monumentais; aqueles que te submetem a um estado contemplativo de agradecer à Estética. Esporadicamente, um alinhamento perfeito entre os indivíduos envolvidos na produção presenteia o mundo com a demonstração de uma visão capaz de unir forma e conteúdo primorosamente, fornecendo uma obra tão estupidamente bela que assombra sua memória em razão do poema visual com que teve contato.

Isso aconteceu com O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007), um western pouco western. Nele, a ideia de “a cada frame uma pintura” foi executada com um capricho ímpar pelo diretor australiano Andrew Dominik, que dispunha de uma carta sagrada na manga: o diretor de fotografia Roger Deakins. Inglês (não confundir com Dickens), o arcanjo das lentes é colaborador frequente dos irmãos Coen (e, mais recentemente, de Denis Villeneuve).

Mas o filme não é só – visualmente – espetacular. Dominik adaptou a película de um romance homônimo de Ron Hansen (1983), potencializando suas forças, amenizando suas fraquezas e conferindo uma caracterização bastante vitoriana, dessaturada, sem chapéus de cowboy ou barris. O livro, apesar de competente, não é uma obra-prima. Por sua vez, Nick Cave e Warren Ellis (que também faz parte dos Bad Seeds) compuseram a belíssima trilha sonora.

Jesse James, um personagem histórico (nome familiar?), é um capítulo à parte – em algum momento, falaremos sobre ele por aqui. Mas conhecer sua vida não é necessário para apreciar a película. James foi um fora-da-lei que havia lutado na Guerra Civil Americana defendendo violentas guerrilhas dos Confederados. Bandido frio, herói local, Robin Hood… tornou-se um personagem folclórico cujas lendas e fatos se misturam na mesma nascente.

James morreu (ou fingiu a própria morte) em 1882, assassinado – pasmem – por Robert Ford, um colega, amigo e discípulo que o idolatrava. Seu assassinato foi um evento histórico em razão da popularidade da vítima, àquela altura uma celebridade para uma cultura moderna que se erigia. Tanto o romance como o filme retratam o protagonista como um homem temido porém perturbado, perseguido por traumas antigos e cansado do fardo da vida.

Brad Pitt, também produtor da obra, o interpreta. Pitt, que já fez aquele filme, aquele outro e aquele outro, declarou à GQ que “meu filme favorito é o de pior resultado entre tudo que já fiz, O Assassinato de Jesse James” (e o afirmou dez anos depois, não em uma entrevista de promoção com blogueiros – detalhe importante). Em sua pele, James, neurótico e melancólico, está à beira da insanidade.

Ao lado dele, vemos o irmão Affleck talentoso; Sam Rockwell; Mary-Louise Parker; aquele herói dos Vingadores que atira flechas e até a Zooey Deschanel. Na condição de antagonista perturbado, Affleck é impecável: numa trama cujo desfecho já é revelado pelo título, seu personagem segura as pontas para manter a ambiguidade necessária em sua relação com o protagonista. Ao longo da narrativa, portanto, as revelações são primordialmente psicológicas – e o que se se sucede após o assassinato em questão é tão importante quanto este fato.

O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, enfim, é um filmaço. Se desconfia que eu esteja exagerando, assista a essa cena em tela cheia, na mais nítida definição do vídeo e com som alto. Cena que, aliás, foi homenageada no último Red Dead Redemption. Outros argumentos audiovisuais repousam aqui e aqui.

Então por que, diante de tamanha chupação – oito parágrafos, no nosso caso –, esse filme passou tão batido?

Porque O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford foi boicotado pela própria produtora/distribuidora.

Dominik e Pitt, com o apoio de Ridley Scott – também produtor –, brigaram com a Warner Bros. por um controle maior sobre a edição final. Até aí, tudo bem: nada mais ordinário na indústria. Tão desconfiado como envolvido, a estrela principal mantinha uma cláusula em contrato que impedia qualquer alteração do título do filme (o que não permitiu que o pouco acessível nome da obra se tornasse, digamos, Clube da Pólvora ou Deu a Louca no Cowboy).

Mas o conflito tomou proporções maiores. Diante da recepção fria dos testes de público a um western com pouca ação e muita contemplação – “é realmente desprovido de enredo”, resumiu Dominik –, o processo de edição levou nove meses e algumas demissões do diretor. Havia uma confusão, para os espectadores, sobre a postura de Brad Pitt no filme: não fazia sentido que uma estrela daquele calibre, interpretando o protagonista, fosse tão melancólica.

Dessa forma, preocupações surgiram no estúdio, àquela altura já preocupado com a duração da película, que viria a ter 160 minutos. Toda a etapa de pós-produção levou mais de um ano e contou com editores diferentes – Michael Kahn, por exemplo, foi enviado pela Warner para compor um filme com menos de duas horas. “Pagaram a ele uma fortuna, e acho que ninguém sequer olhou aquela versão”, contou Hugh Ross, assistente cuja voz, a princípio provisória, viria a permanecer como a narração do filme.

Diante da recepção invariavelmente morna a diferentes cortes – e muito por conta do apoio de Brad Pitt e Ridley Scott –, o estúdio aceitou a versão inicial de Dominik, que contratualmente não tinha direito à palavra final. Ainda que com restrições, o filme a que temos acesso foi primordialmente – embora não totalmente – encaixado pelo diretor.

No entanto, a vitória se mostrou parcial – pírrica, talvez. Porque a partir disso a Warner desistiu. Isto é, não só de uma versão, mas do projeto como um todo. Antecipando o que considerava um iminente fracasso de público, a companhia sequer tentou divulgá-lo. Quando finalmente estreou, em 21 de setembro de 2007 – um ano depois da data anunciada –, O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford podia ser visto em… cinco cinemas dos Estados Unidos.

Sem qualquer esforço para divulgar o filme, a Warner seguiu a lógica de que, se você não tentar, não pode perder. Aos poucos, com críticas positivas, a produtora/distribuidora lembrou de, afinal, distribuir, e a obra chegou a constar em 301 telas americanas ao longo das 19 semanas em que foi exibido. Mas os dados já haviam sido lançados: não houve qualquer chance de a película gerar um impacto para além de nichos específicos.

E assim, O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford arrecadou domesticamente cerca de um décimo dos $30 milhões gastos para sua concepção, e pouco mais do que isso globalmente – $4 milhões. Teve duas indicações ao Oscar – Roger Deakins na cinematografia; Casey Affleck como ator coadjuvante. “Sempre me deixou perplexo como o roteiro é uma adaptação fiel ao livro, e o filme é exatamente o roteiro. Não sei o que eles estavam esperando”, sintetizou Ross. O estúdio sabia exatamente a aposta que havia feito.

De acordo com Dominik, há pelo menos outras três versões mais longas do filme, duas delas muito boas e uma correspondente a uma tortura de quatro horas. Todas têm zero esperança de lançamento, mesmo com o apelo de uma massa apaixonada, porém extensa como uma kombi – e do próprio diretor de fotografia.

***

  • O livro chegou a ser publicado no Brasil com a capa do filme (ed. Novo Conceito) e pode ser encontrado facilmente na Estante Virtual.
  • Tentando compreender o raciocínio da empresa bilionária, o pessimismo da Warner em relação à obra não se justificou exclusivamente pelo conteúdo da obra: tudo indicava que um lançamento àquela altura já não atrairia o público, muito por conta da temática (ver item abaixo). A produtora aproveitou para nem tentar.
  • 2007 foi um ano notável para o lançamento de belos filmes com cenários tipicamente associados ao western, com Sangue Negro (Paul Thomas Anderson) e Onde os Fracos Não Têm Vez (irmãos Coen). Curiosamente, o editor d’O Assassinato (…), Dylan Tichenor, deixou a produção para trabalhar em Sangue Negro, ao passo que Roger Deakins também é responsável pela cinematografia de Onde os Fracos Não Têm Vez, pela qual também foi indicado (por filmes diferentes, portanto) ao Oscar 2008. Nele, foi derrotado por Robert Elswit, diretor de fotografia de – adivinha só – Sangue Negro. Que triângulo amoroso, não?
  • Três anos depois, Roger Deakins foi diretor de fotografia de outro western, Bravura Indômita (2009), dos irmãos Coen – esse derivado de um romance espetacular.
  • Andrew Dominik e Brad Pitt viriam a trabalhar juntos no projeto seguinte do diretor, O Homem da Máfia (2012).

Ukiyo-e

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A gravura é a arte de impressão que surge na China no século 9 (e você ainda achava que o primeiro livro impresso do mundo tinha sido a Bíblia de Gutemberg…) e marca a Idade Média no Ocidente. Feita pela criação de uma matriz única, cria a possibilidade de cópia em grande escala, funcionando como um grande carimbo. Entre as inúmeras técnicas de gravura, a primeira a ser desenvolvida foi a xilogravura.

A xilogravura é a arte de trabalhar com a madeira, primeiro lhe entalhando e em seguida passando camadas de tinta no alto relevo produzido, que ao ser prensado sobre um papel transmite a imagem “desenhada” na matriz. Cada cor a ser usada deve ser passada separadamente para o papel, o que, junto do tempo de espera da secagem de cada mão, torna grande o tempo gasto com cada trabalho.

No Ocidente, o maior exemplo que temos de gravura japonesa é certamente a Grande Onda de Kanagawa:

 

Essa xilogravura é uma ukiyo-e e foi criada em torno de 1833. Foi gravada por Katsushika Hokusai e faz parte de uma série de 36 obras que representam o Monte Fuji. Hokusai demonstrava um grande amor pela paisagem japonesa e criou centenas de ukiyo-e nesta temática.

Ukiyo-e, em português “Retratos do Mundo Flutuante“, são xilogravuras feitas no Japão do período Edo – marcado pelo isolamento drástico do Japão ao resto do mundo e que serviu para o aprimoramento e desenvolvimento de novas técnicas artísticas. As ukiyo-e geralmente representavam a beleza da mulher, momentos históricos, o teatro Kabuki, paisagens, enfim, o cotidiano japonês deste período. Por mais que hoje sejam exibidas em belas exposições nos mais importantes museus ao redor do mundo, quando surgiram eram comuns e de fácil acesso, muitas vezes servindo como papéis bonitos para enrolar peixe.

A beleza desta arte está dividida em muitas partes, literalmente, pois não era feita por um único par de mãos, mas por várias pessoas trabalhando juntas. Pelo menos três: o artista, o talhador e o impressor. Essa técnica se tornou um dos mais famosos estilos artísticos japoneses e muitos historiadores da arte chegam a descrever a história da arte do Japão com base unicamente no estudo das ukiyo-e, o que, claro, corresponde a um reducionismo.

Mesmo assim, o papel dessas xilogravuras na identidade artística nacional é tamanho que as ukiyo-e foram a principal referência estética do japonismo, tendência na pintura europeia do século 19 em que artistas, sobretudo impressionistas franceses como Degas e Monet, se inspiraram nas cores vivas e no movimento da arte japonesa para compor suas obras e para estudar. Van Gogh, por exemplo, copiou diverssos trabalhos de Hiroshige e pintou árvores que claramente homenageiam as cerejeiras nipônicas. Outros pintores, como Felix Valloton, Paul Gauguin e Edvard Munch, chegaram a experimentar com essa técnica diretamente e foram precursores de seu uso no Ocidente. Já quase no século 21, a obra de Hokusai ainda é fonte de releituras, como em Uma Súbita Rajada de Vento, do fotógrafo canadense Jeff Wall.

Outra curiosidade sobre as ukiyo-e é que elas são as responsáveis pelo surgimento dos mangás. E o precursor dessa ideia foi o próprio Katsushika Hokusai. Em 1814, ele desenhou uma série de 15 ukiyo-e, as encadernou e batizou de Hokusai Manga, ou “esboços de Hokusai”. Nela estão cenas do dia a dia, paisagens, estudos sobre animais, plantas e também histórias de fantasmas.

Para ler mais a respeito, admirar e até participar de leilões de ukiyo-e originais, visite o site da Fuji Arts — e nos agradeça depois!

[por Flávia Rhafaela]

Leão do Castelo de Gripsholm

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No século 18, as relações diplomáticas entre Suécia e Argélia eram bastante próximas. Os escandinavos enviavam vários presentes valiosos aos argelinos e em troca tinham garantida a passagem segura e gratuita de seus navios pelo mar mediterrâneo. Em retribuição, em 1731 o Rei Frederik I recebeu do Dey (uma espécie de regente) da Argélia alguns mimos, que incluíam: um leão, três hienas e um escravo liberto, que se tornou o cuidador dos animais. Todos viveram suas vidas no luxuoso Djurgården, o parque real.

Alguns anos após o leão morrer, o rei enviou os restos do felino (a pele e os ossos que haviam sobrado) para que um taxidermista o reconstruísse em toda a sua glória. O leão seria exposto no castelo como um símbolo da força da Coroa sueca. O problema era que o taxidermista nunca tinha visto um leão pessoalmente e teve que se basear em relatos escritos e brasões de armas. Como é de se imaginar, o resultado ficou uma bosta:

Essa espécie de Ecce Homo animal está em exposição no castelo de Gripsholm, hoje um museu, e é um dos muitos exemplos de animais exóticos sendo mal desenhados por artistas europeus. Nas iluminuras medievais, principalmente nos bestiários, eram comuns as representações bizarras de animais como elefantescrocodilos e corujas.

O tempo passou e pouca coisa mudou: em 1840, Londres renovava a Trafalgar Square, sua principal praça, e encomendou, além de uma coluna imensa, esculturas de quatro leões. O encarregado pelos leões foi Sir Edwin Landseer,  pintor especializado em retratar animais como cães, cavalos, touros… mas não muito familiarizado com esculturas. Ou leões.

De fato, o único espécime desse animal que o artista conhecia era o leão do zoológico da cidade, e quando este morreu, Landseer pediu para que deixassem o corpo em seu ateliê para que ele pudesse estudá-lo. Mas, dizem, ele demorou tanto para terminar seu projeto que os restos  do bicho começaram a se decompor. Faltando ainda as patas a serem esculpidas, Edwin usou seu cachorro como modelo e terminou a obra.

resultado final lembra mais um esfinge do que um leão propriamente dito e causou estranhamento aos olhares mais críticos na época, mas não chama tanta atenção dos transeuntes e turistas que passam pela praça hoje em dia. Ao menos não a ponto de as pessoas deixarem de tirar fotos e escalar os bichanos de bronze. De todo modo, se for esculpir ou empalhar um leão, talvez a relação entre perfeição e pressa tenha que ser reconsiderada.

Tony Garnier

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No início do século passado, Lyon, na França, passava por uma grande industrialização. Centro metalúrgico, a cidade, cuja linha férrea com início em St. Étienne havia sido asegunda da história do país, já se adaptara a uma nova realidade de produção. Somam-se a isso a primeira fábrica de automóveis da França – uma Berliet –, testes com os primeiros aviões e a invenção do cinematógrafo. (Lembra do primeiro filme exibido ao público? Aquela fábrica se tornou o Instituto Lumière.)

Lyon, enfim, compunha um contexto agitado, modernizado e propício a especulações. Isso provavelmente borbulhava na cabeça de um arquiteto local, o talentoso Tony Garnier. Nascido em 1869, Garnier estudou na École des Beaux-Arts, em Paris, e retornou a Lyon, onde projetou aquela que seria, para ele, a cidade ideal. Seu projeto, Une cité industrielle, refletia o planejamento de uma utopia.

Une cité industrielle foi publicado em 1917 após vários anos de estudos. Preocupado com a monotonia do trabalhador em seu ofício, Garnier visou ao lazer e à acessibilidade de áreas verdes — cada casa de família, por exemplo, teria um jardim. A cidade foi idealizada para 35.000 habitantes e continha as seções industrial, agricultural, universitária, sanitária, residencial e pública, esta última dividida entre setores administrativo, cultural e esportivo.

A utopia projetada por ele não continha delegacias, tribunais, prisões ou igrejas. Porque capitalismo. Não obstante, existe ali um legado arquitetônico mais rico do que a ignorância arquitetônica do editor permite enxergar – como a existência de edifícios de concreto armado – portanto permanecemos na apreciação estética. Se você entende algo de francês, vale se atentar a este documento aqui. Se não entende, fique pelas imagens e dificilmente se arrependerá.

Por quem os sinos dobram

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Dizem que nada se cria, tudo se copia. O título deste texto foi copiado de uma música de Raul Seixas chamada “Por quem os sinos dobram”. Essa música é boa, mas seu significado é um pouco obscuro. Ao menos no começo Raul canta “nunca se vence uma guerra lutando sozinho”. A canção é a primeira faixa do lado B do disco Por quem os sinos dobram, lançado em 1979.

Em 1984, o Metallica lançou a canção ‘For whom the bell tolls’, que em português poderia ser traduzido como “Por quem os sinos dobram”, apesar de o sino em inglês (bell) estar no singular. A canção tratava dos horrores de uma guerra. Em 1993, o Bee Gees lançou uma canção chamada ‘For whom the bell tolls’, que também pode ser entendida como “Por quem os sinos dobram”. Essa canção é sobre desilusão amorosa.

Algumas décadas antes, em 1940, Ernest Hemingway publicou o romance For whom the bell tolls (em português, Por quem os sinos dobram), um romance sobre a guerra civil espanhola que influenciou bastante, ao menos, a música do Metallica.

Muito, muito antes, em 1624, um reverendo e poeta inglês chamado John Donne escreveu, na cama em que passou dias a um passo da morte, um livro chamado, adivinha!, Devotions upon emergent occasions. Era uma coleção de 23 pequenas “devoções”, uma para cada dia de internação, sobre seu processo de adoecimento e cura e outras questões humanas.

Na Devoção XVII, John Donne traz o seguinte trecho, originalmente:
“No man is an Iland, intire of it selfe; every man is a peece of the Continent, a part of the maine; if a Clod bee washed away by the Sea, Europe is the lesse, as well as if a Promontorie were, as well as if a Mannor of thy friends or of thine owne were; any mans death diminishes me, because I am involved in Mankinde; And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee.”

Em português, tradução livre:
“Nenhum homem é uma ilha, todo em si; todo homem é uma parte do continente, uma parte da terra; se um torrão de terra é levado pelo mar, a Europa é diminuída, tanto se fosse um promontório, como também se fosse uma casa de teus amigos ou a tua própria; a morte de todo homem me diminui, porque sou parte na humanidade; e então nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

E foi daí surgiu essa frase consagrada na cultura popular.

Do quarto de Donne, ele conseguia ouvir os sinos da igreja tocando. Isso significava que alguém que vivia ali perto havia morrido, e as pessoas se perguntavam: por quem os sinos dobram? Em outras palavras, quem morreu?

O reverendo se perguntava se as pessoas não achavam que tivesse sido ele próprio.

Fra Angelico

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Fra Angelico e sua Anunciação – a transição perfeita entre o Gótico e o Renascimento

O Renascimento, se é que isso realmente existiu, pode ser visto, ainda que de maneira bastante simplista, como a transição entre a representação artística rudimentar do período Gótico e as inovações que culminaram nas formas e proporções perfeitas do David de Michelangelo. Na realidade, esse trajeto foi muito mais tortuoso do que os almanaques de história da arte fazem parecer, e não foram poucas as ramificações, bem como idas e vindas dos artistas.

É fato, porém, que nesse espaço de mais de 200 anos as artes visuais passaram por uma transformação profunda: os motivos representados deixaram de ser estritamente religiosos e rigidamente ditados pela tradição bizantina para incorporar símbolos pagãos e métodos sistemáticos de representação de luz e espaço. E não houve nenhum artista que expressasse melhor o equilíbrio entre esses dois mundos do que Fra Angelico.

Fra Angelico, muito antes de ser um licor, era Guido di Pietro, um pintor que começou seus estudos como iluminador (fazedor de iluminuras) e mais tarde tornou-se frade. Seus trabalhos sempre tiveram motivos religiosos, tanto pelo século em que vivia quanto pela sua intensa fé pessoal: pintava peças de altar para igrejas e objetos de devoção pessoal para patronos mais abastados. Apesar de estar envolvido direta e profundamente com a Igreja, não se limitava a reproduzir a pintura religiosa tradicional. Ao contrário, estava completamente consciente das mudanças que aconteciam ao seu redor.

O estilo em voga para a pintura religiosa na época era o Gótico Internacional, em que figuras esbeltas com rostos angelicais idealizados contracenam num espaço celestial austero e normalmente folheado a ouro. O que se pretendia era representar o mundo espiritual e a mensagem trazida do evangelho. Um dos exemplos mais simbólicos dessa escola é a Anunciação de Simone Martini, realizada praticamente 100 anos antes de Fra Angelico começar a pintar.

Contemporâneo de Fra Angelico, Masaccio era um expoente de sua geração. Sua pintura O Pagamento do Tributo, entre as mais influentes desse início de Renascença, foi uma das primeiras a empregar a perspectiva linear, que acabara de ser desenvolvida por Brunelleschi, para criar a ilusão de um espaço realista. Com isso, veio a preocupação com o peso e o volume dos personagens, além de sua disposição nesse espaço, algo que não acontecia anteriormente.

Anunciação de Fra Angelico, um afresco de 1446,  é uma síntese dessas vertentes. Seus personagens – o Anjo Gabriel e a Virgem Maria – seguem a estética gótica com seus corpos leves, auréolas bidimensionais e a gravidade da troca silenciosa de olhares. Mas ao contrário da pintura de Martini, nessa cena as figuras habitam um espaço realista, uma varanda cuidadosamente composta respeitando a perspectiva de um ponto. Além disso, nota-se o capricho com o qual os detalhes arquitetônicos foram executados. Arcos ogivais, marca inconfundível do Gótico, dividem o espaço com capitéis jônicos e coríntios que só poderiam ser desenhados por alguém que estudou os textos antigos de Vitrúvio e estava em contato com o retorno da arquitetura clássica.

Ao mesmo tempo, alguns detalhes impedem o balanço perfeito da obra: a grama do lado esquerdo da imagem é representada sem profundidade alguma, como um papel de parede estendido entre o piso da varanda e a cerca de madeira. E mais: o teto, apesar de ser muito lindo, parece estar muito baixo, de modo que se a Virgem se levantasse, provavelmente bateria a cabeça. Mas engana-se quem pensar que isso aconteceu por inaptidão ou incapacidade técnica.

São escolhas conscientes que o autor fez para contrastar a santidade dos protagonistas com um ambiente mundano. Inclusive as colunas e arcos da Anunciação lembram muito o pátio do Convento de São Marco em Florença, onde está a pintura em questão e onde Fra Angelico pintou a porção mais célebre de sua obra. A intenção era auxiliar os monges e frades que habitavam o local em sua meditação, aproximando-os das figuras e ensinamentos transcendentais expressos nesse afresco.

Em suma, Fra Angelico foi o artista que melhor balanceou tradição e inovação no século 15 na Europa. Dominava igualmente a estética gótica e a renascentista e com total consciência se utilizava de diferentes  recursos para atingir seu público de maneiras diversas, sem nunca deixar de ter uma aura de santidade em volta de seu trabalho. Não à toa foi beatificado em 1982 pelo Papa João Paulo II e elevado ao status de padroeiro universal dos artistas.

Bônus: não deixe de conferir neste link uma galeria de fotos do Convento de São Marco, hoje um museu, mostrando como as pinturas de Fra estão dispostas nas paredes das celas individuais, os dormitórios dos monges, e como elas conversam com o espaço que ocupam. E falando em ocupar espaço, agradecemos formalmente ao sr. Ivan Gambus, que foi a Florença, visitou o museu de San Marco e nos trouxe lindas fotos, estórias e o livro-guia oficial. Obrigado, sr. Ivan Gambus.

Lucien Rudaux

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Na minha infância, ainda em Porto Alegre, lembro de um CD-ROM próprio para Windows 95 dedicado ao nosso Sistema Solar. As poucas memórias sobreviventes são borradas, mas é certo que havia os planetas e que era possível clicar neles. A partir disso liam-se informações sobre cada um, com imagens – estáticas, nada de animação – acompanhadas por uma trilha sonora discreta. Não o encontrei na internet.

Nossa Lua, apesar de não ser um planeta, era a mais impactante, pois me ocorre que sua coloração mais fria convergia com a sonoridade cuja clara ambientação de solidão no desconhecido atingia seu objetivo. Eu sentia um medo saudável daquelas imagens — e certamente repeti o fascínio posteriormente com registros melhores, animações mais modernas e sonoridades mais bem gravadas.

Mas antes de qualquer software, e antes de Clarke, de Kubrick e, principalmente, de Clarke e Kubrick, havia Lucien Rudaux, pioneiro de arte espacial. Rudaux (1874–1947), francês, era ele próprio astrônomo, autor e ilustrador. No final do século 19, isto é, com apenas 20 anos, fundou um observatório em Donville-les-Bains, na Normandia. Rudaux serviu ao exército francês na Primeira Guerra, quando, já respeitado pelos serviços prestado ao ensino, havia sido nomeado Oficial de Instrução Pública, uma ordem honorífica.

Filho do pintor Edmond Rudaux, Lucien sem dúvidas herdou a aptidão para representações visuais, a maioria delas produzida nas décadas de 1920 e 30, após a atuação militar. Com elas, fugindo de planetas montanhosos, oferecia imagens mais sóbrias cujo realismo superou até seus sucessores. Seus traços acumulam ainda mais valor conforme caçamos, ou tentamos emular, retrofuturismo.

Pioneiro, Rudaux virou prêmio. E se já temos muitos outros registros, imagens melhores e fotografias mais precisas, suas ilustrações sobrevivem pelo único caminho capaz de garantir sobrevivência de qualquer arte: estética, o encanto cuja coceira limita as palavras e permite, vez ou outra, que o medo seja saudável; e a solidão, confortável.

Trench coat

Extraído da edição 46 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

A relação entre guerra e moda é muitíssimo forte – nós até já providenciamos alguns exemplos na Enclave 42, e também já tratamos do fraque. Um dos exemplos mais clássicos da convergência entre esses dois campos cabe ao trench coat, aquele casacão belíssimo visto em pessoas elegantes no inverno. E em detetives sombrios, mas chegaremos lá.

trench coat (casaco de trincheira, ao pé da letra) é facilmente reconhecido: um agasalho extenso, do tamanho de um sobretudo, com duas lapelas largas, botões e um cinto que afunila a cintura de quem o veste. Tradicionalmente na cor cáqui, hoje é produzido em outras colorações (entre as alternativas mais comuns, cinza e preto).

Inicialmente concebido no início do século passado pelas marcas Burberry e Aquascutum, ambas britânicas e ambas careiras, o trench coat nasceu como item opcional do Exército Britânico. Era uma alternativa mais leve em relação ao sobretudo. Seu tecido – a gabardina – havia sido inventado por Thomas Burberry no final do século 19. Na Primeira Guerra Mundial, já foi presença constante entre os soldados britânicos.

Impermeável e provido com vários bolsos e fivelas, caiu nas graças dos soldados, que não o abandonavam após voltar das batalhas. Durante a Segunda Guerra, estava estabelecido – outros países já haviam confeccionado seus trench coats.

Sua popularização entre civis se deu por meio do cinemaHumphrey Bogart em Casablanca (1942) e Peter Sellers nos filmes d’A Pantera Cor de Rosa popularizaram de vez o item, que na década de 1960 já caía no gosto de moderninhos em geral. Você pode comprar um trench coat igual ao de Bogart na própria Aquascutum por R$4.715, por que não? Na Burberry, um modelo feminino está à venda por R$ 14.540.

A essa altura, as telonas também já haviam solidificado o gênero noir: detetives alcoólatras, art déco, femmes fatales, traições perversas. Humphrey Bogart, sempre ele, havia auxiliado na montagem do arquétipo, vide as adaptações de Falcão Maltês (1941) e The Big Sleep (1946). Passado o tempo, o trench coat se consolidou como um clichê do noir. Basta equipá-lo com um fedora, um maço de cigarros e bastante mal-humor para você se pagar de Philip Marlowe por aí.

Síndrome ACHOO

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Sabe aquela sabedoria popular de olhar para o Sol quando alguém não consegue espirrar? Isso realmente funciona para algumas pessoas, e essas pessoas provavelmente são portadoras da Síndrome ACHOO, acrônimo de Autosomal-Dominant Compelling Helio-Opthalmic Outburst (Síndrome Autossômica Dominante do Espirro Provocado por Exposição ao Sol), ou simplesmente Reflexo do Espirro Solar.

Essa síndrome é caracterizada por um formigamento no nariz e uma vontade incontrolável de espirrar ao olhar para uma fonte de luz muito intensa, normalmente o Sol. É uma condição genética de herança dominante, ou seja, se você tem é porque um dos seus pais também a tem. Ela vem de uma mutação no cromossomo 2. Embora não seja uma entidade clínica muito comentada, estima-se que afete por volta de um quarto da população mundial.

Essa condição já é conhecida há milhares de anos: Aristóteles, provavelmente por ser portador da ACHOO, questionava por que o Sol poderia provocar espirros. Sua teoria era que, com o calor, as narinas suavam e o espirro seria uma maneira de limpá-las. Muitos séculos depois, o físico Francis Bacon, um conhecido “espirrador solar”, desmentiu o filósofo grego ao não espirrar enquanto ficava no Sol. Sua explicação foi que o problema estava nos olhos: eles lacrimejariam ao olhar o Sol e escorreriam até o nariz, causando o espirro. O problema é que o lacrimejamento e a passagem da lágrima até o nariz são muito mais lentos do que o espirro nessas condições.

Ainda não há consenso quanto à explicação, mas hoje acredita-se que o reflexo do espirro solar seja causado por uma hiperexcitabilidade do córtex visual, a parte do cérebro responsável por processar imagens, aliado a uma ativação cruzada do nervo trigêmeo, que inerva tanto a região dos olhos quanto o nariz e a boca. Apesar de sua fisiopatologia complexa, a síndrome ACHOO é relativamente benigna, afinal, espirrar às vezes não é lá um incômodo muito grande.

O problema existe quando o espirrador solar tem alguma ocupação de risco, como cirurgião, motorista ou piloto de caça, em que um espirro pode acarretar uma MORTE. Nesse caso, como para os outros pacientes com esse reflexo, recomenda-se o uso de chapéu e óculos escuros em caso de exposição ao Sol ou a luzes fortes.

Antonio Sant’Elia

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Algumas pessoas, projetos ou fenômenos acumulam reconhecimento não somente pelo que foram, mas também pelo que poderiam ter sido. Como nas despedidas prematuras do Duna de Jodorowsky, do craque Dener e do humorista Douglas Kenney, a arquitetura – e o imaginário do século 20 como um todo – pode enxergar a morte precoce de Antonio Sant’Elia com uma lamentação bastante fundamentada.

Nascido em Como (Born in Eat), Sant’Elia estudou arquitetura em Milão. Lá, conheceu figuras como Carlo Carrà, Umberto Boccioni e Luigi Russolo, concluindo a formação de professor de desenho arquitetônico. Trabalhou como empreiteiro nas obras de um canal e passou a ter contato mais direto com questões urbanísticas, sobre as quais nunca deixou de pensar.

Com demais artistas nacionalistas e falastrões, aderiu ao Futurismo e criou o manifesto de arquitetura do movimento (1914), cujas ideias defendeu até o fim da vida. O que, na verdade, foi pouco depois disso, pois Sant’Elia morreu em 1916, aos 28 anos. Ele servia voluntariamente ao Exército Italiano e lutou contra o Império Austro-Húngaro em meio à Batalha de Isonzo, durante a Primeira Guerra Mundial.

Mas Sant’Elia é um arquiteto de legado atípico: apenas um de seus projetos foi construído Villa Elisi, 1912), o qual nem caracterizaria um one-hit wonder, pois Villa Elisi sequer dispõe de alguma notoriedade. A grande contribuição de Antonio Sant’Elia ressoa nos cenários futuristas que até hoje emulam vários de seus traços. Não à toa, Sant’Elia ficou conhecido como o arquiteto que inspirou Metropolis e Blade Runner, não por acaso entre os filmes visualmente mais influentes da história. (Estamos há zero edição sem falar em Blade Runner).

Suas contribuições mais vívidas provêm de 1913, quando passou a representar a utopia moderna com  que sonhava. Com uma delas iniciamos o texto; com algumas outras o encerramos. Interessados podem conferir todos os desenhos (sobreviventes) de Antonio Sant’Elia na página dedicada à obra deste arquiteto e no WikiCommons. É uma pena que ele não tenha vivido tempo suficiente para contribuir ainda mais com nosso imaginário de futuro.

Irmãos Hitchens

Extraído da edição 45 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Christopher Hitchens

Christopher Hitchens é o grande arquétipo de intelectual moderno, um modelo de forma e conteúdo a que tantos aspiram sem sucesso. Iconoclasta, genuinamente sarcástico, independente – enfureceu direita e esquerda conforme lhe pareceu justo –, compunha sua persona com bebedeira e, principalmente, com seu sotaque inglês proferido num inconfundível barítono.

Ao longo da vida, Hitchens se destacou escrevendo para a Vanity Fair, na qual publicou perfis de personalidades como Madre TeresaPrincesa Diana e Mel Gibson. Travou por décadas uma batalha contra religiões, instituições religiosas e religiosidades em geral. Padeceu por conta de um câncer no esôfago, e suas memórias da doença formam o excelente Últimas Palavras (2012). Aleatoriamente, ele também foi babá de Olivia Wilde – os pais dela são jornalistas renomados com quem Christopher mantinha amizade.

Provocador afiado, Hitchens não fugia de debates, principalmente daqueles com temática espinhosa. Em 2008, discutiu Deus, religião, Guerra no Iraque et cetera, diante de 1.400 pessoas, com um de seus maiores oponentes, um sujeito de opiniões simetricamente opostas, contra quem já havia duelado verbalmente – e talvez até fisicamente – diversas vezes. No caso, Peter Hitchens… seu irmão mais novo.

Peter: “alguns de vocês devem saber que tenho um irmão, Christopher, que discorda de mim em quase tudo. Alguns dos que leem seus livros e artigos também sabem que eu existo, embora eles geralmente desgostem de mim quando o fazem. Mas em geral nós habitamos mundos separados – em diversos níveis. Ele é da esquerda, mora nos Estados Unidos e recentemente se tornou um cidadão americano. Eu sou da direita e, após alguns anos na Rússia e nos Estados Unidos, moro no coração da Inglaterra. Ocasionalmente nós nos enfrentamos em público“. Um bom contexto inicial.

Peter Hitchens

Hitchens vs Hitchens, irmãos Gallagher da biblioteca, é um caso que traria diversão e dor de cabeça a um psicólogo, ou a vários deles. Filhos de um oficial da Marinha Real Britânica que lutou na Segunda Guerra, ambos – ateus e socialistas na juventude – chegaram a se filiar ao Labour Party inglês. Os dois também seguiram o caminho do Jornalismo.

Peter reavaliou sua ideologia (e sua descrença) após viajar o mundo em cobertura para o Daily Express. As experiências na Tchecoslováquia, na Romênia e em Moscou o alteraram. Ele viria a abraçar a crença em Deus e defender a cultura cristã. “Um clichê de descoberta tão óbvio e universal, e também tão profundo, privado e único para ser discutido com estranhos”. Pouco flexíveis e bastante expressivos, suas desavenças duraram décadas.

“Acho que Peter e eu tivemos azar de ele nascer perto demais de mim [3 anos] para ser um irmão mais novo que precisasse de proteção, mas perto o bastante para ser um rival, esperto e duro. Certamente lembro de dizer que ele era adotado, com uma chance razoável de ele ter acreditado”, contou Christopher.

A divergência entre eles cresceu após o 11 de setembro de 2001, momento a partir do qual Christopher passou a defender a invasão americana no Iraque – o que surpreendeu a opinião pública, tendo em vista suas décadas de atuação à esquerda da discussão política. Peter levantou o assunto no Spectator, endereçando-o diretamente a Christopher. A tensão só se expandiu desde aquele momento – no debate mencionado anteriormente, em 2008, eles talvez estivessem em um pico de discórdias.

(Peter se referiria àquele encontro como um dos piores momentos de sua vida: “só me dei conta quando caminhei pelo hall e, pela primeira vez, vi mil pessoas que me odiavam. Elas não me odiavam por quem eu era; me odiavam porque para elas Christopher era uma megaestrela no filme principal, e eles tinham que sentar e me aguentar como antigamente se sentava ao longo de um filme B no cinema, antes do filme real”.)

A relação entre os irmãos Hitchens é extraordinária, ao menos para quem não participou dela. Um correspondia ao oposto do outro. Ao mesmo tempo, eles eram tão incrivelmente parecidos – isto é, não só pelos traços ou pela voz grossa, mas sim pela condição de ambos se tornarem comentadores culturais notáveis, sempre munidos por um repertório artístico extenso.

O final dessa história, na verdade, é mais bonito do que se poderia imaginar de dois cabeças-duras de alto funcionamento. Após o diagnóstico de câncer de Christopher – e do tratamento amplamente documentado por ele mesmo –, os irmãos se reconciliaram, ou ao menos conseguiram se encontrar e conviver pacificamente. Eles ainda debateriam em público em 2010, um ano antes da morte de Christopher (o que, em uma grande coincidência cósmica, ocorreu três dias antes do fim da Guerra do Iraque). O tom foi definitivamente mais amistoso naquela ocasião.

“Nós nos demos surpreendentemente bem nos últimos meses, melhor do que por cerca de 50 anos”, constatou Peter após perder o irmão mais velho.

Christopher and Peter Hitchens

Latrinas romanas

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Latrina romana

Você reconhece a estrutura da imagem acima? Consegue identificar o ambiente? Imagina o período a que pertence? Vejamos mais de perto.

Latrina romana

E agora, visualizou algo? Talvez algum objeto a ser encaixado, ou então algo a se puxar. Seria uma prisão, um estábulo ou algum tipo de parque? E se inseríssemos alguns personagens…

Latrina romana

Pronto. Talvez você tenha percebido de imediato, talvez você não identificasse de modo algum. Fato é que as duas primeiras fotografias dizem respeito a banheiros públicos da Roma Antiga, onde a privacidade não era lá uma grande demanda, ao menos não nesse recinto, ao menos nesse período – para um ponto de referência, pensemos em algumas décadas antes de Cristo (ou 1976 + algumas décadas antes de Francesco Totti).

Não por acaso, “latrina” deriva do latim lavatrina. Em uma cidade com quase um milhão de habitantes, pouquíssimos dispunham de banheiros privados. Além das fossas em que se despejava a urina – sobre a qual havia um imposto, afinal, dinheiro não tem cheiro –, essas latrinas públicas estavam à disposição de homens, mulheres e crianças (ao mesmo tempo!) e, mais do que ponto de alívio, serviam como espaço para conversa.

O conteúdo desprendido pelos habitantes em seus assentos de madeira caía diretamente na água. Essa água corria em direção à Cloaca Maxima, isto é, ao sistema de saneamento da Roma Antiga que tinha, ou melhor, tem seu fim no Rio Tibre. Uma imagem melhor do funcionamento pode ser conferida neste link.

E como eles se limpavam? Se você prestou atenção na terceira imagem deste quadro, viu que os sujeitos sentados carregam uma espécie de vareta. Na ponta da vareta em questão, havia uma esponja, ou então algum tecido. Isso podia ser lavado na água corrente, que se vê ao centro da imagem. Não pense, porém, que cada um tinha a sua: o uso da vareta esponjosa era compartilhado.

Em todo o caso, sempre se podia usar as mãos…

Mission Hill

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Mission Hill
Mission Hill: tão legal que não foi pra frente. Ou legal porque não foi pra frente?

Mission Hill foi uma animação produzida pela Warner Bros entre 1999 e 2000 por Bill Oakley e Josh Weinstein (não aquele Weinstein…), ambos promissores roteiristas de Os Simpsons à época. A série retratava o cotidiano de um grupo de amigos num bairro de uma metrópole norte-americana indefinida – uma mistura de Nova York, Boston, Portland e San Francisco. Lá, rejeitados sociais, figuras caricatas e esquisitos em geral vivem em relativa harmonia.

Os protagonistas são Andy, um jovem cartunista frustrado e despreocupado que passa seus dias bebendo, trabalhando num emprego sem perspectiva numa loja de colchões e recebendo cartas de rejeição de revistas por seus quadrinhos. Kevin é seu irmão mais novo, um gênio completamente caxias que se muda para a cidade para viver com seu irmão e sonha em entrar nas melhores universidades do país enquanto termina seus estudos numa escola onde ninguém, nem os professores, se importa com nada.

A casa onde moram ainda conta com Jim, amigo de Andy, tão doidão e folgado quanto ele, com a diferença de ter um emprego promissor enquanto jovem cool em uma empresa de publicidade. Além dele, lá vivem Posey, a amiga esotérica de yoga, massagem e vegetais orgânicos (Phoebe Buffay?) e Stogie, cachorro de infância dos dois irmãos, sequelado após anos lambendo cervejas e cigarros caídos no chão. Na vizinhança do prédio estão um casal judaico-latino de artistas ativistas com seu bebê e um casal gay tão adorável quanto briguento, dono de uma lanchonete local.

Mission Hillera diferente por representar e escarniar a contracultura e tratar com franqueza de assuntos pouco abordados em outras animações, especialmente Os Simpsons. Na maioria dos desenhos, os problemas aparecem, se desenvolvem e são resolvidos no espaço de 30 minutos, enquanto em Mission Hill os personagens se encontram em cenários sem solução clara, com angústias típicas dessa fase de transição entre a escola/faculdade e a vida adulta. Temáticas “reais demais” para os Simpsons, por exemplo.

Outro detalhe é que na animação de Matt Groening não havia personagens com idade entre crianças e adultos, e os poucos adolescentes (Jimbo e seus amigos) raramente tinham importância no enredo das histórias. Mission Hill falava a língua dos jovens esquisitos e dos descolados – e tirava onda com hipsters antes disso se tornar a thing. Continha referências diversas e sutis – de Beck a Kafka ao Plano 9 do Espaço Sideral –, além de ser visualmente muito bonita. A trilha de abertura era da banda Cake.

Mission Hill
Esteticamente, a série também fugia do padrão, com uma paleta de cores fluorescentes e contornos maldefinidos.

Mesmo com tudo isso, a série não durou nem um ano, sendo cancelada antes mesmo de completar uma temporada. Então o que deu errado? Os produtores Oakley e Weinstein culpam a Warner: na época, o canal ainda buscava uma identidade e, na tentativa de brigar com os concorrentes, colocou Mission Hill no horário nobre, junto de programas como The Jamie Foxx Show e The Steve Harvey Show, que em nada se assemelhavam ao humor absurdo e melancólico da animação.

Com audiência péssima para o horário, foi rápida e completamente descartada: a série foi cancelada antes de terminar a produção de sua primeira temporada, e antes mesmo de serem exibidos todos os episódios que haviam sido produzidos. (À Firefly!

Todos queriam ter seu próprio Simpsons, e com isso a Warner Bros ignorou a proposta de Mission Hill de ser uma alternativa à família amarela, e não um competidor. A série só voltou à TV anos depois, com o bloco de desenhos-que-não-são-para-crianças Adult Swim, onde de fato se encaixava. No Brasil, foi transmitida no Adult Swim pelo Cartoon Network entre 2005 e 2008, junto de outras animações excêntricas como OblongsClone HighHarvey, O Advogado e Os Universitários.

Atualmente, é fácil encontrar todos os 13 episódios no Youtube – aqui ou aqui –, e assim Mission Hill sobrevive com seu pequeno culto de seguidores. Legal, honesto, diferente demais para seu tempo, uma joia que não teve sua chance de brilhar, mas que permanece ainda mais especial por conta disso.