Baú: Tom Jobim

Extraído da edição 85 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Eu digo por razões dialéticas: a proximidade do mar, o fato do João [Gilberto] ser baiano, o fato do Vinicius [de Moraes] ser um homem culto. Eu acho que houve uma série de circunstâncias para que isso [bossa nova] acontecesse. No Rio de Janeiro ainda existe uma influência climática, uma vagabundagem, certa folga que favorece a criação. Aqui é o pindorama. Você não pode compor “No rancho fundo” em Nova Iorque, não pode. Você pode compor como memória: Guimarães Rosa, por exemplo, escreveu grande parte de sua obra na Alemanha, João Cabral de Mello Neto em Barcelona. Mas o que eles traziam dentro? Quer dizer, o sujeito escreve como memória. É possível que eu vá pra Moscou, fique num quarto de hotel e faça um choro autenticamente carioca. Mas isso é pelo que eu tenho dentro da cabeça. Você não pode se descartar do seu meio. Eu nunca fiz outra música que não música brasileira, porque é o melhor que a gente sabe fazer. (…)
O Villa-Lobos, por exemplo, dizia que era o último dos grandes músicos. Tive a felicidade de conhecê-lo e creio que ele queria dizer com isso, que um músico no sentido que ele foi cada vez se torna mais difícil no mundo de hoje, entende? A música passa a se tornar uma arte visual, ligada a gestos, roupas, imagens, atitudes, política e tudo o mais. A gente pergunta: mas qual é o meio de se ouvir uma sinfonia? Radinho de pilha ou televisão? Esses dois meios são inadequados. Como você vai ouvir a Sagração da primavera no radinho do carro? Você pode, mas está perdendo 90% do conteúdo sonoro.
A música exige uma atenção por parte do ouvinte que hoje em dia não tem mais tempo. Ainda outro dia li no jornal que tudo que tem mais de cinco minutos de existência deve ser destruído. Quer dizer, toda obra que exige muito tempo, como um romance por exemplo. Você vê, nós pensamos hoje em dia em termos de leitura dinâmica, de informação, de passar a vista em quatro ou cinco jornais, três revistas e se libertar daquilo o mais rapidamente possível e, ao mesmo tempo, estar informado para estar por dentro, não é? Eu não creio que essas coisas levem à criatividade. O indivíduo que sofre de superinformação, de superalimentação, de supertrabalho, de superócio, ele está sempre dirigido, entende? E as pessoas são dirigidas muito facilmente, o que é lamentável descobrir, não é fato? (…)
Sinto uma padronização e diversificação de quase tudo. Muitas vezes, os jovens que se dizem livres e que almejam a liberdade estão todos se vestindo igual, tendo as mesmas atitudes, o que nos faz supor que eles não sejam tão livres assim. (…) O sujeito acreditar em ideias é um problema, o raciocínio comparativo é falso. O dar nome às coisas prejudica a compreensão: quer dizer eu chamo Maria de Maria, e penso que conheço Maria, quando Maria não é nada disso.

Antonio Carlos Jobim, 1968 (!). Encontros: Tom Jobim. Frederico Coelho e Daniel Caetano (org.). Azougue Editorial, 2011.

Jessica Walter

Extraído da edição 84 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

A atriz Jessica Walter morreu em 25 de março, isto é, há dez dias. Ela teve uma carreira longeva, com destaque para Play Misty for Me (Perversa Paixão, 1971), em que sua personagem, Evelyn, persegue Clint Eastwood, por sinal em sua estreia como diretor. Também ganhou um Emmy em 1975, com a série (e a protagonista) Amy Prentiss (1974).

Como a maioria da minha geração, no entanto, conheci Jessica Walter graças a Arrested Development (2003), brilhante série de comédia que acompanha os Bluth, uma família decadente e picareta em busca de algum alinhamento interno.

Arrested Development acabou precocemente (2006) e retornou desnecessariamente (2013, depois 2018). Nesse meio tempo, influenciou qualquer produção audiovisual que visasse a fazer alguém rir. Criada por Mitchell Hurwitz e narrada por Ron Howard (aquele), a série atingiu uma execução absoluta em sua proposta errática.

Hurwitz criou personagens tão problemáticos como marcantes, com frases igualmente marcantes e dramas visíveis, expostos em comentários banhados no mais absoluto cinismo. Isso tudo rodando por meio de um elenco muito acima da média, capaz de conferir o dinamismo necessário para o roteiro funcionar.

Afinal, em sua produção original (2003-06), o que havia de incomparável em Arrested Development era o ritmo. Este é justamente o que afasta quem (ainda) não a compreende, mas encanta quem compra a ideia. Uma vez que o espectador entra no ritmo dessa dança, ele se vê diante de uma miríade de caminhos para rir (inclusive com piadas escondidas).

E Lucille Bluth, interpretada por Jessica Walter, é consistentemente a personagem mais engraçada da série mais engraçada de sua época. Lucille é a matriarca alcoólatra, cruel, elitista, controladora, ciumenta, xenófoba e racista da família.

O que poderia gerar uma caricatura unidimensional ganha aquele contorno de carisma que apenas a execução primorosa proporciona. Com suas caras e bocas, sua entonação, seu alcance e seu timing, Jessica Walter elevou a personagem a um nível em que é simplesmente impossível detestar Lucille Bluth, não importa quão detestável ela seja.

Não à toa, em Archer (2009–), a personagem Malory Archer, mãe do protagonista – e dublada por Walter –, é praticamente uma reprodução de Lucille Bluth (e, outra vez, rouba qualquer cena). Porque todo mundo conhece alguma Lucille, mas ninguém conhece essa Lucille. Tal amálgama de perversão e sagacidade só é possível com Jessica Walter.

Nos acostumamos com a morte das figuras que admiramos; a verdade é que, a essa altura (da vida pessoal e da civilização), ela impacta cada vez menos. Mas algumas, rompendo com a lógica do afeto, marcam mais que o esperado. A de Jessica Walter sensibiliza por alguns motivos imediatos:

  1. Sentimos uma espécie de carinho latente e inesgotável por quem é capaz de nos fazer rir.
  2. Ela era um componente extraordinário de (ao menos) uma obra extraordinária.
  3. A atriz visivelmente não compartilhava dos traços de personalidade de Lucille/Malory, o que só reforça sua qualidade.
Descanse em paz, Jessica. I’ll be in the hospital bar.

Baú: Thomas E. Skidmore

Extraído da edição 84 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O golpe de 10 de novembro foi o triunfo do desejo de Vargas, evidente havia muito tempo, de permanecer no cargo além do mandato legal, que expiraria em 1938. Desde 1935 ele empurrava os adversários para uma posição em que lhe fosse possível desacreditá-los ou refreá-los, ao mesmo tempo que, cuidadosamente, cultivava o apoio de bem estabelecidos grupos de poder, como os cafeicultores e a cúpula militar. Para apaziguar os cafeicultores, por exemplo, em outubro de 1937 Vargas havia baixado o teto dos preços do café brasileiro, num esforço para aumentar as vendas (e, quem sabe, a renda total das exportações) no exterior. No que dizia respeito aos militares, o comando do Exército planejava uma solução autoritária para a crise política brasileira desde a revolta comunista de novembro de 1935. A cúpula militar achava que o Brasil não tinha capacidade para aguentar a confusão e a indecisão da disputa política aberta, e amedrontava-se com a possibilidade de novos avanços dos radicais de esquerda – que, se um dia chegassem ao poder, poderiam acabar com o papel de árbitro supremo dos conflitos políticos exercido pelas Forças Armadas. No fim das contas, o golpe de 1937 foi possível porque a classe média, esse pequeno mas importante grupo social capaz de assegurar o equilíbrio de qualquer sistema de eleições livres restrito a eleitores alfabetizados, estava confusa e dividida. Alguns eleitores de classe média continuavam leais a seu tradicional constitucionalismo liberal, e depositaram suas esperanças em Salles Oliveira na campanha de 1937. Outros, perdida a confiança em seu liberalismo original, voltaram-se para o radicalismo de esquerda ou de direita. Ao fazer isso, admitiram na prática que a fórmula liberal já não se aplicava ao Brasil e que estavam, portanto, preparados, ainda que inconscientemente, a aceitar, quase sem protesto, o tipo especial de autoritarismo que Vargas impôs, de súbito, em novembro de 1937. O golpe de novembro de 1937 fechou o sistema político. E todas as questões de força eleitoral nas eleições marcadas para janeiro de 1938 se tornaram acadêmicas.

Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), 1967 (Companhia das Letras, 2010).

Osny Tavares: Um olho na estrutura, outro na dialética

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Jornal pressupõe jornalismo? Inicio essa coluna com um beliscão num tema recorrente entre a comunidade do RelevO. Cito resposta do editor a uma correspondência publicada na edição anterior: “Geralmente, nós publicamos textos com caráter menos jornalístico. O foco é a seleção e publicação de novos autores e autoras contemporâneas”. 

Se a costura do jornal são os contos e poesias, os textos de análise são os patches que lhe dão o colorido. Retomando a já saudosa tradição dos suplementos de crítica dos grandes jornais, temos encontrado aqui interessantes comentadores da cultura. Março nos trouxe uma crônica sobre o bicheiro Castor de Andrade (Enclave) e uma resenha sobre coletâneas de Nelson Rodrigues (Laércio Becker) – decerto, duas oposições que tensionam o carioquismo. De forma similar, Elton Mesquita fala sobre as trocas simbólicas entre Brasil e Portugal, ou a falta delas. 

Assim, o periódico se revela sartreanamente vesgo: um olho aponta para a estrutura; o outro, para a dialética. Dessa junção, constrói sua atualidade. Embora não seja propósito dessa publicação, a formação de repertório é condição fundamental para a comunicação cultural. Seja na crítica, seja na produção ficcional, a referência é a matéria-prima do sentido textual. 

A escrita pressupõe leitura, que pressupõe tempo passado. A pauta do RelevO faz visitas sociais à estante dos lançamentos, mas se conforta na sessão dos clássicos. Experimenta o novo tangenciado no perene. 

Como registro de seu tempo, esse jornal tem o desafio de ser contemporâneo sem sucumbir à pauta novidadeira. Para isso, tem optado por acompanhar menos a agenda de lançamentos das editoras comerciais. Essa escolha o distingue das resenhas que predominam na internet, onde as breaking news da literatura ressoam com mais intensidade. 

Emitir juízos antecipados é caminho fácil para o constrangimento. Todo jornalista cultural já deve ter repassado mentalmente suas apostas e se perguntado onde está tudo aquilo agora. Contudo, a segurança do cânone não pode enrijecer precocemente a musculatura analítica dessa plataforma.

Tales from the Loop: alívio espaço-temporal

Extraído da edição 83 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Nosso hipertexto de hoje é um tanto azedo e resmungão – ao menos em sua primeira metade –, mas não deve ser levado tão a sério, isto é, ainda menos que o usual.

1.

A Enclave é uma grande fã de ficção científica, por isso mesmo se vê um pouco cansada de ficção científica. Com a herança maldita da (promissora, porém intragável) Black Mirror e seus episódios projetados como grafites do Banksy, parece que tudo ficou “distópico”, afinal “Facebook” ou tanto faz.

Seguindo a mesma linha, alguns devem ter assistido a Electric Dreams, espécie de Black Mirror genérica e supostamente adaptada das obras de Philip K. Dick – um escritor cheio de defeitos, mas jamais acusado de falta de diversão, ao contrário de Electric Dreams (também promissora, bem mais intragável).

Assistimos a quatro dos dez episódios produzidos pelo Channel 4. Ou cinco, ou seis, pois é sempre difícil pormenorizar o esquecível. Certamente não conferiremos os outros seis (ou cinco, ou quatro), porque há pouquíssimo a se ganhar ali.

Nos últimos anos, também houve o lançamento de Altered Carbon. Chuva! Néon! Detetives! O que poderia dar errado? Também não conseguimos ir além de dois episódios, dada a fraqueza dos personagens, da trama, dos atores e da crítica social explícita demais para gerar qualquer reação. Mas yeah, distopia!

(Enquanto obra de ficção científica, Altered Carbon certamente é inferior ao clipe de Alok & Luan Santana; a esse clipe do maluco de ‘Old Town Road’ e à propaganda da Heineken com o Ronaldinho Gaúcho.)

Perdidos entre efeitos especiais e metáforas baratas, roteiristas, diretores e produtores esquecem que, por exemplo, Firefly (2002) é uma das melhores séries de ficção científica de todos os tempos mesmo parecendo uma novela do SBT.

2.

No entanto, um sopro de ar fresco vem arejando esse segmento tão querido: trata-se da série Tales from the Loop, lançada ano passado pela Amazon Prime. Ficamos curiosos ao ler que ela seria um anti-Black Mirror.

Para aproveitar a contextualização do texto de Beatriz Amendola,
“a série criada por Nathaniel Halpern (‘Legion’, ‘The Killing’) tem um passo mais contemplativo, com viagens no tempo e idas a outros mundos servindo para explorar temas tão reais quanto universais, como luto, família e solidão. Seu olhar para a existência humana é mais delicado e, também, mais esperançoso. É quase um anti-‘Black Mirror’.”

Tales from the Loop parte de um universo concebido pelo sueco Simon Stålenhag, cujas telas – como a que abre este texto – circulam pela internet há algum tempo. Você pode (e deveria!) vê-las aqui.

Stålenhag visualizou e conseguiu expressar um retrofuturismo analógico e elegante (portanto, o oposto de Stranger Things… brincadeira, essa a gente nem viu). O loop em questão corresponde a um acelerador de partículas em uma cidade (bastante rural) da Suécia.

A série parte desse cenário, sem se preocupar com grandes explicações, mas sem abandonar a coesão narrativa. Visualmente, é criativa e estimulante, e a trilha sonora – de Philip Glass e Paul Leonard-Morgan – é encantadora por si só. Inclusive, você pode (e deveria!) ouvi-la mesmo sem assistir à produção.

Embora cada um dos apenas oito episódios se concentre em um personagem ou núcleo distinto, esses indivíduos retornam, trafegando sutilmente ao longo da temporada. Aos poucos, montamos um quebra-cabeça suficiente para apreciar as peças soltas e encaixadas dessa obra convicta em sua lentidão, mas jamais desinteressante.

Até porque sutileza talvez seja o ponto principal: embora contemple viagens no tempo e autômatos, a série tem em sua doce melancolia a catarse mais valiosa.

Tales from the Loop, enfim, consegue um feito raro, não só para a ficção científica: produzir beleza. O que sempre foi e sempre será mais difícil do que projetar qualquer simbolismo manjado, efeitos especiais brilhantes ou o cinismo absoluto. A Enclave recomenda – e ressalta que azedos e resmungões fornecem bons filtros.

Baú: Robert Hughes

Extraído da edição 83 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Veja – O senhor teve contato pessoal com artistas como o americano Andy Warhol. Quais suas impressões dele?
Robert Hughes – Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até produziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dúvida de que é a reputação mais ridiculamente superestimada do século XX.

Veja – E quanto ao francês Marcel Duchamp?
Hughes – Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primeiro artista em minha lista dos mais importantes de sua época. Sua elevação à condição de figura “seminal” nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de idéias notáveis. Pessoalmente, prefiro um pintor como o francês Pierre Bonnard. Muita gente considera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um trabalho de Duchamp. Além disso, a influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi liberadora, mas também catastrófica.

Veja – Por quê?
Hughes – Porque ser o pai dessa bobagem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para compreender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos infantis. Ou precisa ler uma bula para entender o que o artista quis dizer.

O guardião da arte. Veja entrevista: Robert Hughes, 21/04/2007.

After Hours, o esquecido de Scorsese

Extraído da edição 82 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em noites de confinamento – voluntário ou por inércia –, a imagem das ruas vazias da cidade têm me lembrado de After Hours (Depois de Horas), não um disco recente, mas o filme de Martin Scorsese, lançado em 1985.

After Hours me fez gostar de cinema, isto é, não de “ver um filme”, mas de apreciar a imagem, a edição, a trilha sonora, as pontas amarradas de uma história; enxergar aquela arte como uma linguagem própria. O estalo começou ali, na adolescência.

Trata-se, claro, de conclusões retroativas: não tive uma epifania e/ou passei a dedicar a vida ao Expressionismo alemão no Ensino Médio (nem agora). Mas o território começava a ganhar um mapa; um esboço de mapa. Por isso, Depois de Horas, além de seu valor intrínseco, puxa um valor afetivo.

Como toda curiosidade genuína, esta nasceu com a guarda baixa, não contaminada pela pretensão. Lembro de ligar a televisão (cinza, de tubo) no início da madrugada e, por acaso, parar no canal que transmitia After Hours.

Não sabia que aquele era um filme de Scorsese, o que tampouco faria diferença, porque ‘scorsese’ podia muito bem ser o nome de um molho, à época. Também não saberia descrever a função de um diretor. Hoje, me impressiona quanto não ouço grandes menções à película quando o assunto é a filmografia desse brilhante contador de histórias.

No entanto, havia uma magnetismo naquelas imagens, mesmo que jurássicas do ponto de vista de um adolescente. Tudo se passava à noite, porém uma noite estranha, com personagens fascinantes, pitorescos. Nenhum cenário ou sujeito daquela trama poderia existir sob a luz do dia.

Exceto o protagonista, Paul, interpretado por Griffin Dunne (recentemente, ele apareceu na extraordinária Succession). Paul é um eterno deslocado no enredo, atirado como uma bola de pinball entre um desconforto e outro – o que faz de sua jornada tão cativante.

Em Nova York, nosso herói conhece uma mulher e combina de encontrá-la após o trabalho. A partir daí, surgem problemas que, ao invés de soluções, acarretam novos problemas. Até porque a verdadeira protagonista de After Hours sequer é Paul, mas a própria noite, com seu eterno mistério e a não linearidade exclusiva às sombras.

Flutuando por cenários típicos de Edward Hopper, mas com enorme sensibilidade cômica, Scorsese costurou um filme de Alfred Hitchcock a seu modo – podemos chamar de paródia. São premissas literalmente fascinantes, pois geram um deslumbramento, uma curiosidade que leva à aproximação.

Talvez esse efeito seja amplificado agora, quando não conseguimos nós mesmos testemunhar qualquer não linearidade na magia da noite. Afinal, não há magia: travados no tempo, resta o resgate de elementos queridos. After Hours é um deles.

Baú: Marc Fischer

Extraído da edição 82 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Começo de imediato com meu interrogatório:
— Garrincha, por quanto tempo você foi o cozinheiro preferido de João [Gilberto]?
— Pouco mais de cinco anos, mais ou menos.
(…)
— E como era quando João ligava?
— Sempre a mesma coisa. Onze da noite, no Plataforma, o telefone tocava, e João dizia: “Boa noite, Garrincha”. E eu: “Boa noite, João”. Ele: “Como vai, Garrincha?”. “Tudo bem, João.” “E como vai sua esposa, Garrincha?” “Bem também, João.” “E as crianças, como estão?” “Todas bem, João.” “Adriana sarou?” “Sarou, sim. A gripe já passou.” “O que tem hoje no cardápio, Garrincha?” “Acabamos de receber peixe fresco, João. Um bacalhau maravilhoso, servido com legumes e arroz. É muito bom, acabei de experimentar, comi ainda agorinha.” “E o que mais tem, Garrincha?” “O de sempre, João: picanha, churrasco, costelinha, lombo de porco, costeleta de cordeiro, atum, perca, lagosta, peixe-espada.” “O peixe-espada está bom, Garrincha?” “Está excelente, João. Vou mandar grelhar e temperar com uma nova mistura que acabei de inventar. Você vai adorar.” “Vou querer o steak, Garrincha.” “Está bem, João.” Então, entre meia-noite e uma da manhã, o mesmo entregador levava quase sempre o mesmo prato para ele. Deixava o pedido no chão, diante da porta. E, no dia seguinte, a cena toda se repetia.
— Quanto tempo durava a conversa ao telefone?
— Uns quarenta minutos.
— E assim foi durante cinco anos?
— Assim foi durante cinco anos.
— Você nunca viu João pessoalmente?
— Não, nunca vi.
— O entregador chegou a ver ele?
— Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.
— Mas isso é piração, Garrincha.
— Isso é João Gilberto, meu senhor.

***

Depois, [Roberto Menescal] põe de lado o violão e diz:
— Então… Quer dizer que você quer se encontrar com João Gilberto?
— É.
— Pois tome cuidado — avisa Menescal.
— Por quê?
— João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.
— Como assim?
— De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre.
(…)
— Você parece ser imune a ele. Por quê?
— Eu me afastei na hora certa. Contato mesmo, a última vez que tivemos foi em Nova York, em 1962. Na época do concerto no Carnegie Hall.
— E o que aconteceu em Nova York?
— Olha, eu simplesmente me cansei do tipo. Estávamos circulando por Manhattan, porque João queria comprar um chapéu, um daqueles chapéus típicos, com uma pena do lado. Assim sendo, fomos a uma chapelaria. Uma chapelaria muito boa, com paredes de quatro metros de altura e um gigantesco sortimento de chapéus, que os vendedores foram trazendo para João, um atrás do outro. E João dizia: “Este é bonito, mas não tem esse modelo num cinza um pouco mais claro?”. E o vendedor: “Sim, podemos fazer”. João: “Não, não, melhor não. Gosto daquele ali em cima, se bem que… a pena deste aqui é muito mais bonita”. “Podemos trocar”, disse o vendedor, “fazemos o chapéu como o senhor preferir.” João: “Não sei… Não, me traga aquele outro ali, o da prateleira”. Passamos quatro horas naquela chapelaria, sem que ele comprasse o tal chapéu. Assim é João. Como uma criança. E nem vou contar a você quantas vezes ele já me telefonou no meio da noite, pedindo que eu levasse um violão para ele, um violão que nunca devolvia ou dava de presente a alguém, como se fosse dele, sem me agradecer, sem nem mesmo abrir a porta para apanhar o instrumento.
— Ele sempre foi assim ou ficou desse jeito?
— É assim desde que conheço ele.

Marc Fischer, Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto, 2011 (Companhia das Letras).

Adam Worth, Napoleão do crime (parte 2)

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Georgiana, Duquesa de Devonshire (1785-87), por Thomas Gainsborough. “Eu poderia acender meu cachimbo nos olhos dela”, irlandês bêbado desconhecido.

Na parte 1, começamos a narrar as peripécias de Adam Worth pautados pelo livro O Napoleão do Crime (1997), de Ben Macintyre.

Hoje, acompanharemos Henry J. Raymond, a identidade abraçada por Worth após deixar os Estados Unidos e rumar à Europa, em 1869. Se você tem a sensação de já ter ouvido esse nome em algum lugar, é porque Henry Jarvis Raymond (1820-1869) foi um dos fundadores do New York Times. A nova alcunha de Worth, portanto, já partia de uma piada com o recém-falecido – e homem ilustre da época.

Adam Worth e Piano Charley (agora Charles H. Wells), literalmente parceiros em crime, desembarcaram em Liverpool para morar no hotel Washington, onde se interessaram (ambos!) por uma funcionária do bar.

A irlandesa Kitty Flynn, uma ambiciosa jovem de origem pobre, passaria anos envolvida num triângulo amoroso que pareceu funcionar muito bem a um trio eternamente descolado dos padrões éticos ou morais vigentes. Em Liverpool, Worth roubaria as joias de uma loja de penhores após distrair o dono e copiar sua chave em cera. Moleza.

Ansioso, o trio se moveu para Paris no final de 1870, durante a Guerra Franco-Prussiana, onde (e quando) “uma mulher podia ser presa por fumar nos jardins das Tulherias, porém a imoralidade pessoal era quase de rigueur. A superfície era magnífica, mas a corrupção e a libertinagem desregradas”.

Lá, o trio abriu um bar, cuja engenhosidade era tão cinematográfica que merece ser detalhada:

O American Bar era uma operação dupla. O segundo andar do prédio foi transformado numa espécie de clube para norte-americanos em visita à cidade, completo com as últimas edições dos jornais dos Estados Unidos e escaninhos de onde os expatriados podiam apanhar sua correspondência. (…) Nos andares superiores da casa, entretanto, a cena era bem diferente. Ali Worth e Bullard montaram uma operação de jogo em grande escala, bem equipada e totalmente ilegal. Importando crupiês dos Estados Unidos e especialistas em bacará, deram ao covil um lustro cosmopolita, mas foi Kitty quem acabou sendo a principal atração, porque “sua beleza e seus modos cativantes atraíam muitos visitantes norte-americanos” (…).
Havia um botão de alarme discreto, instalado atrás do bar, “que o barman apertava, tocando uma campainha nos salões de jogos acima sempre que a polícia ou qualquer pessoa suspeita entrasse”. Segundos depois de ter soado o alarme, Worth podia apresentar os andares superiores do número 2 da rue Scribe de forma tão calma e respeitável quanto os inferiores.

O ambiente, hoje um dos hotéis mais caros de Paris, funcionou por três anos, durante os quais a dupla mantinha roubos esporádicos (de diamantes, por exemplo) e o trio galgava espaço na nobreza local. Quando começaram a dar bandeira de suas atividades paralelas, os três venderam o bar e zarparam para Londres.

“Henry Raymond”, “Charles Wells” e Kitty Flynn se estabeleceram no Western Lodge, uma bela mansão onde Worth atingiria sua maturidade picareta e se converteria num verdadeiro líder do submundo, sempre marchando conforme a própria batida.

Personagem de traços peculiares – “orgulhava-se de um regime pessoal severo, abstinha-se de bebidas fortes, levantava-se cedo, trabalhava duro na profissão escolhida, fazia donativos às instituições de caridade, talvez até frequentasse a igreja e, ao mesmo tempo, quebrava todas as leis que pudesse encontrar e enriquecia-se com a riquesa dos outros” –, ali se concretizava o Napoleão do crime.

Usando seus associados de maior confiança, ele distribuía serviços criminosos, em geral em bases contratuais e através de outros intermediários, para homens (e mulheres) selecionados do submundo de Londres. Os vigaristas que executavam os trabalhos sabiam apenas que as ordens eram passadas de cima para baixo, que os lucros eram bons, o planejamento impecável e que os alvos – bancos, caixas de estações ferroviárias, residências de indivíduos ricos, correios, armazéns – eram selecionados pela mão de um grande mestre. O que eles nunca ficavam sabendo era o nome do homem no topo, nem mesmo o daqueles no meio da pirâmide de comando que Worth estruturara. (…) Worth estava praticamente imune  (…). Sempre fanático pelo controle, Worth estabeleceu sua própria forma de omertà por força de sua personalidade, de sua rígida atenção aos detalhes, de sua supervisão severa mas sempre anônima de todas as operações e do gasto de uma proporção de seus lucros para garantir, se não a lealdade, pelo menos o silêncio. (…)
Sóbrio, trabalhador e leal, Worth era um criminoso de princípios, os quais impunha a sua quadrilha com disciplina rígida. Com exceção de Piano Charley, os bêbados eram excluídos e a violência terminantemente proibida. “Um homem com cérebro não tem o direito de carregar armas de fogo”, ele insistia.

Nesse contexto, Adam Worth roubou a Duquesa de Devonshire, tela de Thomas Gainsborough que você vê na abertura deste texto, em 1876. A duquesa havia sido perdida por décadas, então foi reencontrada, depois adquirida por William Agnew – o maior preço já pago por uma pintura, à época – e exposta na galeria do comprador na Old Bond Street, para deleite do público. O quadro já era objeto de disputa entre os Rothschild e os Morgan nos Estados Unidos.

Desesperando todos eles, de madrugada, Worth/Raymond subiu pela frente da galeria com auxílio de um capanga e se apoiou no parapeito da janela. Tudo isso enquanto o vigia dormia (bons tempos…).

Com um pé-de-cabra, forçou o batente da janela e entrou. Cortou o retrato da moldura com uma lâmina, enrolou-a cuidadosamente e saltou nos ombros de seu assistente para sumir com a duquesa e causar um alvoroço sem precedentes.

O quadro permaneceria com o Napoleão do crime por 25 anos, durante os quais ele a levaria em suas inúmeras viagens. Nesse período, Worth/Raymond, cada vez mais a figura viva da duplicidade, criaria uma enorme obsessão pela duquesa e se envolveria em uma negociação extremamente peculiar para devolvê-la.

Mas este texto já se estendeu muito: os detalhes, somados ao desfecho de Adam Worth e às suas influências na (Mori)arte, estão todos lá n‘O Napoleão do Crime (1997), que obviamente recomendamos.

Baú: Vladimir Nabokov

Extraído da edição 81 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em qualquer era que Sebastian tivesse nascido, ele ficaria igualmente divertido e infeliz, alegre e apreensivo, como uma criança numa pantomima de vez em quando pensa no dentista de amanhã. E a razão de seu desconforto não era que ele fosse moral numa era imoral, ou imoral numa era moral, nem era a sensação paralisante de sua juventude não florir com a naturalidade suficiente num mundo que era uma sucessão muito rápida de funerais e fogos de artifício; era simplesmente a sua consciência de que o ritmo de seu ser interior era tão mais rico do que o de outras algumas. Mesmo então, bem no final de seu período em Cambridge, e talvez antes também, ele sabia que seu menor pensamento ou sensação tinha sempre pelo menos uma dimensão a mais do que os de seus vizinhos. Ele podia ter se vangloriado disso se houvesse qualquer coisa melodramática em sua natureza. Como não havia, só lhe restava sentir a estranheza de ser um cristal entre vidros, uma esfera entre círculos (mas tudo isso não era nada comparado ao que ele experimentou ao finalmente mergulhar em sua tarefa literária).

Vladimir Nabokov, A verdadeira vida de Sebastian Knight, 1941 (Ed. Alfaguara, 2010).

Osny Tavares: Quem lê, quem escreve, quem lê

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O publisher do RelevO concede ao ombudsman um espaço nobre, neste alto de página 5. Centrão entre percepções de quem faz e quem lê, ele pode ser um criador de caso ou um pacificador — se competente, as duas coisas. 

Na edição de fevereiro, a leitora Brunna Gabardo escreve longamente sobre sua experiência de leitora do jornal, distribuindo seu carinho entre o conteúdo e a plataforma impressa. Ao revelar seu próprio interesse e aspirações literárias, induziu-me a uma reflexão que, pouco depois, na coluna Editorial da mesma edição, cresceu para tema de coluna: há categorias fixas para definir o autor e o leitor deste periódico?

Porque naquele espaço, o fundador revelou o episódio de um possível assinante que exigiu ser colunista como contrapartida. A partir dele, é possível especular quais as diferentes percepções de valor que os leitores possam vir a ter sobre o produto. Também se eles creem representarem um papel específico em seu ciclo de vida. E, primordialmente, se veem as instâncias de leitor e autor no RelevO como verticais e fixas. 

Este jornal tem um pé em cada era: analógico por formação e essência, digital por espírito dialético. Da primeira traz o custo marginal. Tudo nele custa algo; e quanto mais há, mais custa. Do segundo traz a possibilidade de criar algo que os novos chamam de comunidade de fala. A literatura produzida nela sempre será a mais próxima. E, porque não, por consequência, a mais valiosa?

Embora realizar essa ideia seja uma questão de curadoria, portanto editorial, a contribuição primeira dos textos é função voluntária de um pressuposto leitor. De forma que esse é o único ombudsman que pode, legitimante, voltar-se contra os leitores que representa. E, de espírito ainda mais livre, os leitores podem rebelar-se entre si. E, ultimamente, consigo mesmos. 

Na mesma edição, o poema de Larissa Adur é um exemplo de localização (não por acaso, seu título é um endereço). O humor da página central pode ser um último estímulo para ainda acompanhar notícias. E aponto especialmente para a novidade jornalística do ensaio “Ex Nauseam”, de Algum Lucas — uma confissão de agora. 

Há no jornal um esforço pela proximidade. Cabe ao veículo torná-la mais intensa, de forma que até os ligeiros possam vê-la.

Adam Worth, Napoleão do crime (parte I)

Extraído da edição 80 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Leitores das aventuras de Sherlock Holmes já ouviram – ou melhor, leram – essa descrição. Não é por acaso, afinal trataremos da maior inspiração para o arquivilão prof. Moriarty.

O criminoso mais brilhante do século 19 foi um baita cavalheiro, de certa forma. Adam Worth, possivelmente nascido Wirth, provavelmente nascido Werth, certamente nascido na Alemanha (em 1844), migrou cedo com sua família para os Estados Unidos.

Quando a Guerra Civil Americana estourou, em 1865, Worth já era um adolescente promissor na arte da falcatrua: ele se consolidou como um bounty jumper (saltador de recompensa, em tradução livre). Ou seja, sua atuação consistia em alistar-se tanto na União como na Confederação, e então sumir.

Conforme relata Ben Macintyre em O Napoleão do Crime (Cia. das Letras, 2000), fonte das informações e das citações deste texto:

Durante os meses seguintes, Worth estabeleceu um sistema: ele se alistava num regimento qualquer, sob nome falso, recebia a gratificação que estivesse sendo oferecida, em seguida desertava. Assim foi que vagou de um lado do esparramado exército a outro, mudando de nome a cada parada e desenvolvendo um talento para a farsa que, mais tarde, tornar-se-ia uma profissão em tempo integral.

A prática, além de obviamente malvista, era criminosa. Bounty jumpers costumavam utilizar tantas identidades quanto possível, e Worth havia contado com a sorte ao ser erroneamente declarado morto, quando ainda lutava (a princípio, de verdade) pela União, em 1862.

Após a guerra – encerrada em 1865 –, Worth se estabeleceu em Nova York, que acolhia quilingues e sevandijas de todos os tipos (o filme Gangues de Nova York, baseado em livro homônimo de não ficção de 1927, se passa basicamente nesse cenário).

As coisas começaram a decolar para Adam Worth. Primeiro praticando pickpocketing (crimes de carteirista), depois como líder de gangue. Logo foi preso, e mais rapidamente ainda fugiu. Um universo se abriu para o malandro quando Fredericka Mandelbaum o acolheu.

Poderosa matriarca do submundo, “Marm” era uma receptadora/interceptadora extraordinária, servindo como um verdadeiro sistema de conexão entre mercadorias roubadas e eventuais compradores. Perfeitamente encaixado nessa equação, Worth passou a roubar bancos, atividade na qual se destacaria pelo resto da vida.

Nesse ramo, compôs sua obra-prima (até então, vamos com calma!) em 1869, ao lado do parceiro americano Charles Bullard, o Piano Charley, e do irlandês Big Ike Marsh. Juntos, eles assaltaram o Boylston National Bank, em Boston. Para fazê-lo, elaboraram um plano engenhoso:

Fazendo-se passar por William A. Judson e Co., negociantes de tônicos de saúde, os parceiros alugaram o prédio adjacente ao banco e puseram uma divisória na frente da janela na qual estavam expostas “umas duzentas garrafas contendo, segundo os rótulos, quantidades de ‘Tônico Oriental Gray'”. “As garrafas tinham o um propósito duplo (…); o de mostrar o negócio e o de evitar que o público visse o lugar” (…).
Depois de calcular cuidadosamente o ponto onde a parede da loja era contígua ao cofre de aço do banco, os ladrões começaram a cavar. Durante uma semana, trabalhando apenas à noite, Worth, Bullard e Marsh empilharam o entulho nos fundos da loja até que, finalmente, “o cofre ficou exposto”.

Restou cortar o cofre, o que não foi tarefa fácil, tendo sido pacientemente realizada com a realização de inúmeros furos pequenos, os quais formaram um buraco de apenas 45 x 30 centímetros, pelo qual Worth entrou. De lá, começou a retirar o tesouro, que dormia guardado em baús de lata. Pela manhã, os três sumiram em uma carruagem, então pegaram um trem para Nova York.

O roubo – de cerca de 200 mil dólares – foi, sob qualquer critério, estrondoso, chocando a sociedade (e, naturalmente, trazendo dores de cabeça para a dupla protagonista na ação). Marsh logo retornou à Irlanda, onde bebeu seu dinheiro. Então voltou aos EUA e foi preso tentando assaltar outro banco.

Worth e Bullard, cientes dos riscos envolvidos – a agência Pinkerton, precursora do FBI, passou a persegui-los – decidiram rumar à Europa. Antes disso, colheram os frutos do roubo ao Boylston National Bank:

Agindo com rapidez, o par despachou os papéis roubados para um advogado (…) com instruções para esperar alguns meses, depois vender os títulos por uma fração do valor real e remeter os lucros no tempo devido. Na época esse era um método amplamente aceito de se recuperar propriedade roubada, sob as vistas da polícia, que muitas vezes ajudava a negociar o retorno dos títulos, para vantagem tanto dos donos quanto dos ladrões. “Tudo que [os ladrões] precisam fazer é entrar ‘num acordo’, o que significa abrir mão de parte dos lucros, e depois dedicar suas horas de lazer a planejas novas vilanias”, observou o Boston Sunday Times.

No Velho Continente, a vida dupla de Adam Worth começou, ou melhor, desenvolveu-se como nunca. Ali ele morreu novamente: o gentleman Henry J. Raymond – um bon-vivant, um aristocrata – tomou seu lugar. E a história de Worth/Raymond ainda notabilizaria diversos episódios, todos pitorescos.

> PARTE 2 <

Baú: Toquinho

Extraído da edição 80 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Todo músico tem a sua ‘Aquarela’. Essa música não tem muita explicação porque ela é uma antimúsica. É uma música grande, tem uma letra enorme, não tem refrão e fala de uma maneira fatalista que tudo vai acabar. Tudo vai se descolorir. O mundo vai acabar. E virou uma música infantil porque as crianças detectaram nela um começo lúdico. “Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo”… Mas, na segunda parte dela, ela fala da morte. Então é uma música que não tinha que fazer sucesso. E ela fez sucesso no mundo inteiro e em várias línguas que eu gravei. Ela tem 37 anos de vida e hoje é tocada. ‘Aquarela’ tem um carisma inexplicável para mim. Canções como essas ficam maiores do que seus compositores. Ela já não pertence a mim. É assim que é a vida. Você faz a música e a joga para o mundo, que nem um filho. E depois que está no mundo, a vida dele já não te pertence. São filhos que estão aí mundo afora e às vezes voltam para te ver.

Toquinho, 2020.