Testemunhas da solidão

Extraído da edição 95 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Night Shadows, Edward Hopper, 1921.

Já tratamos algumas vezes da literatura policial na Enclave, muitas vezes desembocando organicamente no noir. Também já escrevemos especificamente sobre a solidão em Mad Men, obra-prima da televisão. Hoje, em outra eterna interseção (ou recursão?), ligamos mais pontos óbvios para seguir pensando dentro da caixa de forma quinzenal.

A literatura policial – essa mais urbana, americana, do século 20 – tem um apelo claro. Nas palavras de Raymond Chandler, seu representante máximo, mistérios “são quase que o único tipo de ficção que não está querendo dar um passo mais largo que as pernas”. O gênero que o consagrou, moldado por Dashiell Hammett, é conhecido por apresentar detetives particulares apanhando, mas seguindo em frente até o fim da trama.

Hammett apresentou ao mundo Sam Spade e o agente da Continental; Chandler, Philip Marlowe; Rex Stout, Nero Wolfe e Archie Goodwin. Por fim, Ross MacDonald sustentou uma carreira longeva com seu herói Lew Archer, tão implacável como qualquer outro, mas talvez mais complacente com a miséria alheia.

Após uma longa sequência mergulhando nesses e em outros autores próximos (como Cornell Woolrich), porém mais recentemente conhecendo a fundo o desenvolvimento de MacDonald, este editor se perguntou, entre trench coats e gotas de chuva: para além de afinidade estética, onde está o apelo narrativo em acompanhar detetives particulares apanhando e seguindo em frente?

Sem o menor risco de trazer um raciocínio inédito, a conclusão é simples.

Primeiro, sabemos que narrativa alguma se sustenta sem alguma relação (mesmo que de desprezo) com seus personagens. O enredo mais interessante do mundo não vale nada se os personagens são um lixo incapaz de articular nada além de lixo, ao passo que personagens interessantes vivendo um dia banal podem compor uma história cativante.

Com essa premissa bem estabelecida, a literatura dos detetives durões nos oferece uma relação curiosa. Afinal, ela funciona porque posiciona o leitor como testemunha da solidão de seus heróis. Sim, eles sempre apanham e seguem em frente. Mais do que isso, no entanto, esses personagens o fazem de maneira – constantemente – solitária, embora jamais declarada diretamente, ou com uma metafísica extensa. Estão cansados demais para isso.

Os detetives vagam, visitam locais onde não foram convidados para conversar com pessoas que não querem dialogar, extraem pedaços de informação, brigam, bebem, dormem mal e ligam pontos com pouco ou nenhum auxílio. Em primeira pessoa, com períodos curtos e diretos, expõem a própria vulnerabilidade enquanto relatam resiliência.

Ao leitor, também resta ir em frente. A literatura policial urbana desse grupelho de americanos é simplesmente irresistível.

Baú: de Quintino Bocaiuva para Machado de Assis

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Machado de Assis,

Respondo á tua carta. Pouco precizo dizer-te. Fazes bem em dar ao prélo os teus primeiros ensaios dramaticos. Fazes bem, porque essa publicação envolve uma promessa e acarreta sobre ti uma responsabilidade para com o publico. E o publico tem o direito de ser exijente contigo. E’s moço, e foste dotado pela Providencia com um belo talento. Ora, o talento é uma arma divina que Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor serviço dos seus semelhantes. A idéa é uma força. Inoculal-a no seio das massas é inocular-lhe o sangue puro da rejeneração moral. O homem que se civiliza, cristianiza-se. Quem se ilustra, edifica-se. Porque a luz que nos esclarece a razão é a que nos alumia a consciencia. Quem aspira a ser grande, não pode deixar de aspirar a ser bom. A virtude é a primeira grandeza deste mundo. O grande homem é o homem de bem. Repito, pois, nessa obra de cultivo literário há uma obra de edificação moral.

Das muitas e variadas formas literárias que existem e que se prestam ao conseguimento desse fim escolheste a forma dramática. Acertaste. O drama é a forma mais popular, a que mais se nivela com a alma do povo, a que mais recursos possui para atuar sobre o seu espírito, a que mais facilmente o comove e exalta; em resumo, a que tem meios mais poderosos para influir sobre o seu coração.

Quando assim me exprimo, é claro que me refiro às tuas comédias, aceitando-as como elas devem ser aceitas por mim e por todos, isto é, como um ensaio, como uma experiência, e, se podes admitir a frase, como uma ginástica de estilo.

A minha franqueza e a lealdade que devo à estima que me confessas obrigam-me a dizer-te em público o que já te disse em particular. As tuas duas comédias, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a profusa riqueza do teu estilo. Não inspiram nada mais do que simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas as formas da concepção.

Como lhes falta a idéia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São valiosas, como artefatos literários, mas até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma.

Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me diriges, devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre a rampa da cena do que há em oferecê-las à leitura calma e refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo à apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comédias são para serem lidas e não representadas. Como elas são um brinco de espírito podem distrair o espírito. Como não têm coração não podem pretender sensibilizar a ninguém. Tu mesmo assim as consideras, e reconhecer isso é dar prova de bom critério consigo mesmo, qualidade rara de encontrar-se entre os autores.

O que desejo o que te peço, é que apresente nesse mesmo gênero algum trabalho mais sério, mais novo, mais original e mais completo. Já fizeste esboços, atira-te à grande pintura.

Posso garantir-te que conquistarás aplausos mais convencidos e mais duradouros.

Em todo caso, repito-te que fazes bem. Sujeita-te à crítica de todos, para que possas corrigir-te a ti mesmo. Como te mostras despretensioso, colherás o fruto são da tua modéstia não fingida. Pela minha parte estou sempre disposto a acompanhar-te, retribuindo-te em simpatia toda a consideração que me impõe a tua jovem e vigorosa inteligência.

Teu

Q. Bocaiúva.

Quintino Bocaiuva, 1862-1863 (Wikisource).

Osny Tavares: Ensaiemos!

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um amigo me contou de seu rápido encontro com Umberto Eco em uma praia italiana, e eu imagino a cena conforme descrita: o célebre escritor estirado numa cadeira com a pança peluda ao sol, na qual apoiava uma revista do Pato Donald. Para o meu amigo, e para mim, a visão é um símbolo prosaico dos caminhos nem sempre óbvios pelos quais o pensamento sobre a cultura pode enveredar.

O RelevO é abrangente: vai de Homero a Hermes & Renato. Uma vez mais, retrata a diversidade formada pela nossa comunidade de leitores. A aculturação não é um domínio sobre o repertório do outro, mas o encontro de novas conexões e possibilidades. 

Ensaio é gênero investigativo por excelência. Espécie de crônica acadêmica, tateia pubescente pelas áreas do saber especulando sobre o novo. É literário em seus recortes e filosófico em seus objetos. Este ombudsman é um grande fã do gênero, e encontraria alguma felicidade em vê-lo com mais frequência neste jornal.

A edição anterior, de julho, trouxe um bom exemplo. Saul Cabral Gomes Júnior cruzou Heidegger e Clarice Lispector em “O Dasein clariceano”. O ombudsman, que leu nada do primeiro e algo da segunda, recebeu uma análise pessoal —suficiente em si —, que se projeta em direção a uma cátedra. O manejo conceitual em um campo distinto é ferramenta pedagógica e literária de grande valor.

O domínio teórico não é condição para uma boa leitura do texto. Ao contrário, o bom ensaio aproveita o ineditismo do leitor. Escapando ao risco do pedantismo, é possível ser leve, alegre e profundo, comunicando a um público de não iniciados.

O pool de autores e autoras do RelevO certamente encontrará muitas tangências dignas de serem rabiscadas. 

Em uma pança larga cabem bibliografias das mais diversas. 

 

Baú: John Gray

Extraído da edição 94 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Um fantoche pode parecer a própria encarnação da falta de liberdade. Seja movido por uma mão oculta ou puxado por cordéis, não tem vontade própria. Seus movimentos são comandados pela vontade de outro — um ser humano que decidiu o que o fantoche fará. Totalmente controlado por uma mente fora dele, o fantoche não tem escolha em sua maneira de viver.

Seria uma situação insuportável, não fosse o fato de que um fantoche é um objeto inanimado. Para sentir falta de liberdade, é preciso ser um ser consciente. Mas um fantoche é um objeto de madeira e pano, um artefato humano sem sentimento nem consciência. Um fantoche não tem alma. Consequentemente, não tem como saber que não é livre.

Para Heinrich von Kleist, no entanto, os fantoches representavam um tipo de liberdade que jamais estaria ao alcance dos seres humanos. Em seu ensaio “O teatro de marionetes”, publicado em 1810, o escritor alemão leva o narrador, perambulando por um parque da cidade, a encontrar “Herr C.”, que acaba de ser nomeado primeiro bailarino da Ópera. Vendo-o em diversas oportunidades em um teatro de marionetes montado na praça do mercado, o narrador manifesta surpresa pelo fato de um dançarino frequentar essas “pequenas burletas”. Em resposta, Herr C. comenta que um dançarino pode ter muito a aprender com esses espetáculos. Pois tantas vezes não são os títeres — controlados do alto pelos titereiros — extremamente graciosos em seus movimentos de dança? Nenhum ser humano poderia se equiparar às marionetes em sua graça natural. O títere é:

incapaz de afetação. — Pois a afetação ocorre, como se sabe, sempre que a alma […] se situa em um lugar que não seja o centro de gravidade de um movimento. Como o titereiro, manuseando os cordéis ou o fio, não tem outro ponto de apoio senão o que está sob seu controle, todos os outros membros são o que devem ser: inertes, meros pêndulos, e apenas obedecem à lei da gravidade; um excelente atributo que em vão procuraremos na maioria de nossos dançarinos […] esses fantoches têm a vantagem de ser resistentes à gravidade. Do peso da matéria, o fator que mais atua contra o dançarino, são totalmente ignorantes: pois a força que os eleva no ar é maior que a que os prende ao solo […]. As marionetes mal tocam o solo, feito elfos, a parada momentânea confere aos membros um novo ímpeto; mas nós o usamos para repousar, para nos recuperar do esforço da dança: um momento que evidentemente não é dança em si mesmo, com o qual nada podemos fazer, exceto superá-lo o mais rapidamente possível.

Quando o narrador reage com espanto a essas afirmações paradoxais, Herr C., “cheirando uma pitada de rapé”, observa que ele deveria ler “com atenção o terceiro capítulo do Gênesis”. O narrador entende a alusão: ele tem “perfeita consciência dos danos causados pela consciência à natural graça de um ser humano”. Mas ainda assim se mostra cético, e então Herr C. lhe conta a história de como enfrentou um urso. Bom esgrimista, ele seria capaz de trespassar com facilidade o coração de um ser humano; mas o animal se esquivava, aparentemente sem qualquer esforço:

Ora eu investia, ora simulava um ataque, já estava suando em bicas: tudo em vão! O urso não se limitava a se esquivar a todas as minhas investidas, como o melhor esgrimista do mundo; quando eu simulava um ataque — nenhum esgrimista seria capaz disso —, ele sequer reagia: olhando-me bem nos olhos, como se pudesse ver minha alma, ficava com a pata erguida, de prontidão, e, quando minhas investidas não eram sérias, ele nem se mexia.

Os seres humanos não são capazes de imitar a graça de um animal assim. Nem a fera, nem o fantoche, sofrem da maldição do pensamento autorreflexivo. Por isso, na visão de Kleist, é que são livres. Se os seres humanos um dia forem capazes de alcançar esse estado, será apenas depois de uma transmutação em que se tornem infinitamente mais conscientes:

assim como duas linhas que se cruzam em um ponto, depois de terem passado por uma infinidade, subitamente convergem de novo do outro lado, ou como a imagem em um espelho côncavo, depois de viajar na direção do infinito, de repente se aproxima de novo de nós, também, quando a consciência tiver por assim dizer passado por uma infinidade, a graça retornará; de tal maneira que a graça estará mais puramente presente na forma humana que não tiver consciência ou a tiver em um alcance infinito, vale dizer, em uma marionete ou em um deus.

O diálogo é concluído dessa maneira:

— Mas então — intervim, meio confuso — precisaríamos comer de novo da Árvore do Conhecimento para retornar ao estado de inocência?
— Certamente — respondeu ele —, é o capítulo final da história do mundo.

John Gray, A Alma da Marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana, 2015 (ed. Record, 2018).

Conan, o último de sua era

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Conan O’Brien, o ruivo grandalhão mais longevo entre os apresentadores de talk show nos Estados Unidos, pendurou as chuteiras – ao menos no formato que o consagrou.

Americano de ascendência irlandesa, Conan comandava algum talk show desde Late Night with Conan O’Brien (NBC), em 1993, quando ele ainda era um jovem roteirista de Os Simpsons. O apresentador chegou a trocá-lo pelo The Tonight Show, ainda na NBC, por um breve período (que acarretou uma polêmica longa e desinteressante), então assumiu Conan (TBS) em 2010. O último episódio de Conan foi ao ar mês passado e incluiu uma entrevista conduzida por Homer Simpson.

O apelo de Conan O’Brien é simples: ele é um sujeito tremendamente inteligente tentando ser o mais bobo possível em suas interações. Com o aspecto de um cartum gigante, Conan costuma ser o alvo da própria piada, e em suas interações com outros (famosos ou não) fica evidente sua capacidade de fazer qualquer um rir de forma sincera, geralmente armado apenas da própria espontaneidade.

O que parece ser justamente o ponto cego de seu gênero de atuação. Nos últimos anos, esses talk shows americanos – uma instituição sempre copiada no mundo inteiro – mudaram. A internet expandiu sua audiência tremendamente e possibilitou esquetes muito bem produzidas, já pensadas para a propagação digital.

Por outro lado, talvez pela gradual desimportância do tempo televisivo; talvez pela hiperatividade do espectador; talvez pela urgência em capturar o maior engajamento possível com todas as faixas etárias possíveis; talvez pela tentativa generalizada de transformar a existência em algo “tipo a Marvel”; talvez por puro desespero; talvez por mero desgosto do editor… há menos conversas (isto é, interações entre adultos atentos) genuínas e engraçadas no formato.

Por exemplo, de um lado, Jimmy Fallon e James Corden, com seus joguinhos e risadas ininterruptas, testam a paciência de qualquer espectador com uma abertura mínima para o cinismo [a linha do escapismo], ao passo que Stephen Colbert e Seth Meyers pregam para convertidos, num estilo de comédia cada vez mais refém de conteúdo (e alinhamento) político [a linha do proselitismo]. Craig Ferguson, o bom caótico, já abandonou o talk show há anos.

Resta Jimmy Kimmel, que vez ou outra proporciona um quadro marcante, mas simplesmente não dispõe da mesma aptidão para o humor natural. Nenhum deles tem a fluidez do irlandês Graham Norton, por exemplo. O formato imortalizado por Johnny Carson e conhecido por certa maturaridade, enfim, mantém outras preocupações hoje (o que, por si só, não é nenhum problema). A respeito do talk show como gênero contemporâneo, há considerações interessantes nessa conversa com Conan O’Brien em Oxford.

Ademais, não bastasse a concorrência com absolutamente tudo (Netflix, Playstation, TikTok etc.), outra competição emergiu. Porque conversas mais detalhadas, histórias de bastidores e anedotas em geral parecem cada vez mais direcionadas aos podcasts – cuja produção, por sinal, é muito mais simples e barata. Não à toa, a impressão recente é de que qualquer pessoa pública mantém um (e ganha um bom cascalho extra no fim do mês, afinal basta anunciar e recolher o dinheiro do anunciante, sem intermédios).

O próprio Conan criou um podcast (Conan O’Brien Needs a Friend) e parece ter se dado conta da leveza do formato, que não chega perto de exigir todo o preparo necessário em comparação com um episódio de TV, o qual, muitas vezes, pode incluir um convidado indesejado, empurrado pela emissora, ou conversas interessantes, mas limitadas pelo fator tempo.

Fora do talk show, mas agora contratado pela HBO, Conan O’Brien não se aposentou do entretenimento. A mudança provavelmente será uma evolução, capaz de aproveitar mais sua habilidade para interações aleatórias e explosões de nonsense. Basta vê-lo perambulando pelo mundo: seus momentos em viagens se tornaram o Conan Without Borders e, mais do que isso, permitiram uma rara apreciação de um sujeito que faz uso da própria sagacidade para produzir uma alegria tão boba que só pode exigir muito talento.

Nossa bandeira jamais será… igual?

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Tal qual a próxima Olimpíada (Tóquio 2020), que se iniciará no fim de julho (de 2021), os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, foram um tanto atípicos, embora por razões bem distintas. Afinal, havia o fator Hitler, que por sinal ainda não tinha assumido como chanceler da Alemanha – o que ocorreu em 1933 – quando a sede do evento foi escolhida, isto é, em 1931.

Em 1936, no entanto, Berlim já estava devidamente preparada (nos padrões do Partido Nazista) para receber o mundo e propagar o arianismo que excitava seu comandante. Isso incluía a exclusão de atletas judeus da delegação alemã, processo iniciado já em 1933.

  

Diante de tensões em qualquer esfera, houve ameaça internacional de boicote. Por sua vez, isso permitiu a participação de judeus e negros, o que possibilitaria momentos belíssimos, como a histórica vitória de Jesse Owens.

Mas todos esses fatos são bastante conhecidos. No momento, não trataremos de nenhuma das bandeiras (literais ou figuradas) mencionadas. Com seu olhar atento ao irrisório, porém curioso, a Enclave – sem querer, como toda descoberta alegre – ficou encantada com a seguinte situação.

1º de agosto de 1936, cerimônia de abertura, estádio Olímpico de Berlim, 49 nações. O Haiti desfila com sua bandeira civil:

Participando do mesmo ritual, a delegação de Liechtenstein estranha. Isso porque ela se via representava pela seguinte bandeira:

Nem um, nem outro sabia até os Jogos Olímpicos de 1936: Haiti e Liechtenstein tinham a mesma bandeira desde 1921 (a do principado europeu veio depois, pois os caribenhos já a usavam desde o século 19).

Além da ausência de Wikipédia, a confusão provavelmente ocorreu porque a República do Haiti já dispunha de uma variação dessa bandeira militar com um brasão ao centro, bem semelhante à atual.

A partir disso, os países construíram uma relação diplomática harmoniosa e se mantiveram parceiros comerciais até hoje, incluindo tradicionais programas de intercâmbio entre os governos. “Isso só pode significar algo; nós temos tanto em comum!”, afirmaram embaixadores de ambas as nações, enquanto repudiavam Adolf Hitler.

Brincadeira, até parece. Liechtenstein apenas adicionou uma coroa à sua (e só sua) bandeira já no ano seguinte, representando seu principado.

Baú: Chandler vs. ficção científica

Extraído da edição 93 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Você já leu isso que chamam de ficção científica? É uma gréia. Escreve-se assim:

Fiz meu checkout com K19 em Adabaran III e atravessei a escotilha de crumalite no meu modelo 22 Sirius Hardtop. Encaixei o timejector em segunda e fui abrindo caminho entre a relva azul de manda. Minha respiração congelou em pretzels cor-de-rosa. Acionei as barras de calor e os Brylls dispararam em cinco pernas usando as outras duas para produzir vibrações de crylon. A pressão era quase insuportável, mas eu detectei a variação no meu computador de pulso através dos cisícitos transparentes. Apertei o gatilho. O fino raio violeta era frio como o gelo ao atingir os montes cor de ferrugem. Os Brylls se reduziram ao tamanho de meia polegada e eu me apressei a pisoteá-los com o poltex. Mas não foi o suficiente. Um clarão súbito me envolveu e a Quarta Lua acabava de nascer. Eu tinha exatamente quatro segundos para deixar no ponto o desintegrador mas o Google tinha me avisado que não era o bastante. Ele tinha razão.

Pagam dinheiro vivo por essa porcaria?

Raymond Chandler, carta a seu agente literário, 1953. Tradução de Bráulio Tavares.
Mais informações – inclusive sobre o uso do termo “Google” em 1953 – neste link.

Osny Tavares: Achados na tradução

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Faz alguns anos que o RelevO encontrou um nicho interessante na tradução de obras e autores inéditos. A cada mês, o jornal traz uma boa coletânea de poemas, contos e outras peças, geralmente acompanhadas do original e de uma apresentação. Assim, acrescenta uma utilidade própria do veículo periódico: receber e divulgar uma literatura que, embora chancelada em outros DDIs, ainda não encontrou gancho para a publicação em livro pelo mercado editorial convencional. 

A edição de junho, por exemplo, publicou poemas do polonês Aleksander Wat, traduzidos por Piotr Kilanowski e apresentados por Fernanda Dante. A escolha chama a atenção para um interessante fenômeno de localização. É desnecessário situar a região de Curitiba em geral — e a cidade de Araucária, em particular — como centro de irradiação da cultura polonesa no Brasil, além de QG do Jornal.

Antes mesmo do célebre poeta bigodudo, a comunidade de imigrantes e descendentes da Polônia têm mantido e dissipado a cultura do país de origem. Basta citar o sucesso da poesia de Wisława Szymborska por aqui. Publicada pela primeira vez em 2011, com tradução da professora Regina Przybycien, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a vencedora do Nobel de Literatura em 1996 consolidou seu nome entre os leitores de versos daqui.

Universalizar é localizar. Que, cada vez mais, o RelevO tenha a felicidade de identificar e irradiar esse tipo de fenômeno. E que, a partir da Colônia Thomaz Coelho, Nossa Senhora de Czestochowa possa estender suas bênçãos sobre a saúde financeira e intelectual do jornal. 

Queimando um milhão em nome de… algo

Extraído da edição 92 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O conceito de loucura é definido e disputado há tempos num bolo que envolve medicina, psicologia, Michel Foucault, meu pau de óculos e a importantíssima luta antimanicomial. Um consenso que parece atravessar todas essas instâncias é o de que alguém que literalmente queima dinheiro só pode estar louco.

Em 23 de agosto de 1994, Bill Drummond e Jimmy Cauty, a dupla de artistas do K Foundation (ex-The KLF), queimaram um milhão de libras esterlinas para a performance de arte K Foundation Burn a Million Quid.

Dinheiro vivo, real (um parêntese, aliás, para a gíria Quid, que no inglês britânico é usada para se referir à libra, e que deriva do latim quid pro quo, algo como “tomar uma coisa por outra”, de onde deriva também a expressão em português “quiprocó”, familiar a todo fã de Los Hermanos).

A performance virou um filme, as cinzas do dinheiro queimado viraram um tijolo – que depois também virou um filme – e, com o tempo, as explicações dos dois artistas para essa loucura ficaram cada vez mais lacônicas e arrependidas.

Drummond e Cauty formaram o duo The KLF (não confundir com KLB), produtores de um poperô de qualidade que fez um sucesso estrondoso no início dos anos 1990. Impostos deduzidos, no ano de 1992, quando eles se aposentaram precoce e mui artisticamente do mundo da música, ainda havia algo em torno de 1 milhão de libras esterlinas.

Esse dinheiro todo, que foi para a K Foundation, deveria ser utilizado em projetos artísticos e, principalmente, para o apoio de artistas fudidos.

Mas, como tão bem colocou Drummond, eles perceberam que o principal fator para ser um artista fudido é justamente a parte de ser mal pago. Em nome da arte, portanto, esse dinheiro não seria dado a ninguém – ele se tornaria o próprio material das obras.

Foi assim que eles começaram a contactar galerias de arte e pensaram em planos grandiloquentes de exposições, como a Nailed to the Wall, em que o dinheiro seria pregado à parede, ou a ideia de uma exposição itinerante pela União Soviética com um milhão de libras (abandonada provavelmente pela falta de fé das seguradoras).

Drummond e Cauty já tinham um histórico piromaníaco, o que contribuiu para que a ideia de simplesmente queimar o dinheiro fosse tomando forma e virasse uma performance intimista numa casinha da ilha de Jura, na Escócia.

O jornalista Jim Reid (não confundir com… Jim Reid) foi o único a acompanhar a hora inteira em que o dinheiro queima – parte dele saiu voando, em brasa, para o delírio da comunidade vizinha –, enquanto uma câmera filma o processo. Esse vídeo foi exibido por cerca de um ano e, depois, destruído para sempre (aparentemente, um deles guardou uma cópia), dando início a um período de 23 anos de moratória em que os artistas não falariam sobre o assunto.

Em 2017, houve um debate promovido pelo duo de artistas durante o lançamento de 2023, trilogia de livros de ficção científica.

Hoje, os arteiros são lembrados sempre como aqueles que queimaram um milhão de pilas e ensaiam declarações menos artísticas e mais reticentes sobre a razão que leva alguém a queimar um milhão de pilas. Quem os conhece diz que nunca mais foram os mesmos.

por Marceli Mengarda

Baú: Jared Dillian

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Em 1999, quando o mundo era só otimismo, quando havia táxis roxos do Yahoo! patrulhando as ruas de São Francisco, eu era funcionário do pregão de opções da Pacific Coast Options Exchange. Foi lá que aprendi como os mercadores financeiro funcionavam. Eu passava grande parte do tempo de pé nos fundos do nicho da Intel-Oracle com os outros funcionários e corretores; ou seja, a área onde os corretores de opções da Intel e Oracle se reuniam.

Havia um corretor ali chamado Jack Taylor. Jack tinha 1,90 metro, 110 quilos e nenhuma noção de espaço pessoal. Passava metade do dia em um mercado particular acelerado, como se tivesse fumado crack, negociando tudo que aparecia: “COMPRE POSIÇÃO, JAN 30 COMPRA, 20 LOTE! VENDA POSIÇÕES, DEZ 25 VENDA! SAGEOLA! SAGEAROONI!” Jack se remexia todo, sacudindo seus relatórios de risco amassados, esbarrando em outros corretores no nicho, comendo lagosta e burritos de filé, peidando no resto da turma e saindo para fazer sexo com uma das funcionárias da bolsa atrás da caçamba de lixo.

Eu queria ser como Jack.

Queria ser como Jack porque ele parecia ser uma das mais simples e belas criações de Deus. Ganhar dinheiro, bom. Perder dinheiro, ruim. Burrito, bom. Ressaca, ruim. Minha vida parecia terrivelmente complicada, e se eu pudesse reduzir minha existência a esse nível primordial, seria uma experiência libertadora.

Mas eu estava errado. A personalidade selvagem de Jack era uma cortina de fumaça, um mecanismo de defesa que ele criara para convencer os outros (e talvez também a si mesmo) de que sua vida era simples assim. Ele não era um cara simples, era bastante complicado. Um garoto inteligente que se formara em uma universidade de ponta, que fizera escolhas deliberadas e racionais em relação ao que fazer da vida e que naquele momento experimentava dúvidas. A encenação era seu modo de lidar com isso, seu modo de se distrair da realidade de que os mercados financeiros são um modo cruel de ganhar a vida.

Hoje em dia Jack tem uma loja de sanduíches em Chicago: Jack’s Sandos.

Jared Dillian, Surtando em Wall Street, 2011 [ed. Zahar, 2014].

Mad Men, dança da solidão

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Queríamos ter escrito este texto em maio, mas outros acabaram entrando na frente. Pois foi no quinto mês de 2015 que o universo pôde assistir ao último episódio de Mad Men (AMC, 2007, sete temporadas). Portanto, já faz seis anos que a série criada por Matthew Weiner encontrou seu desfecho. Como passa o tempo…

Mad Men acompanha Don Draper (Jon Hamm), diretor criativo em uma agência de publicidade, do início até o fim da década de 1960. A partir do protagonista garanhão, testemunhamos o desenvolvimento de seus colegas, familiares e – tão importante quanto – fantasmas do passado.

A série remete imediatamente a belas roupas, belos cenários, belos coquetéis e muitos cigarros, e trabalha diretamente com a ideia de identidade. Mas o ponto nevrálgico dessa obra-prima audiovisual, cuja elegância narrativa consegue superar a dos trajes, cenários e coquetéis, é mesmo a solidão.

Mad Men vive sempre sob um cinismo saudável. Isto é, não aquele absoluto, que não enxerga valor em nada (“Um cínico é um homem que sabe o preço de tudo, mas o valor de nada”, Oscar Wilde, 1892). A partir disso, a série nunca deixa de se configurar segundo a condição de que todo homem é uma ilha (logo, discordando de John Donne).

Não há intimidade que não possa ser traída; não há comunicação imune ao não dito; não há confiança inquebrável. No cerne de todas as suas relações, o ser humano permanece, em última instância, sozinho. Se a filosofia da série discorda de Donne, concorda com Joseph Conrad (1899): “Vivemos como sonhamos – sozinhos”.

Essa constatação não repele senso de humor, muito ao contrário. Mad Men é engraçada, exponencialmente engraçada conforme conhecemos seus personagens (e, consequentemente, suas fraquezas). Ao unir esses dois elementos e expressá-los sempre com sutileza – e, agora sim, em belos cenários, belos trajes e belos coquetéis –, a série se consolida como um produto inesquecível.

Da literatura americana do século 20, Matthew Weiner absorveu quatro influências bastante explícitas: A nascente (Ayn Rand, 1943); O homem no terno de flanela cinza (Sloan Wilson, 1955); Foi apenas um sonho (tradução adotada para Revolutionary road, Richard Yates, 1961) e os contos de John Cheever (compilados em The stories of John Cheever, 1978; no Brasil, em 28 contos de John Cheever).

Um dia, escreveremos sobre a influência de cada uma delas. Por ora, restam a menção e as recomendações. No momento de publicação deste texto, Mad Men está disponível no Brasil pelo Prime Video e pelo Now, após deixar o catálogo da Netflix.

Passados 14 anos da estreia e seis do encerramento, não há qualquer sinal de envelhecimento. Tampouco haverá, pois Mad Men examina com enorme sensibilidade as fraquezas da natureza humana. E esta, como bem sabemos, nunca muda – “os seres humanos continuam os mesmos, com mais ou menos dentes podres” (2012).

Baú: Ross Macdonald

Extraído da edição 91 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando vi meu provável cliente no pátio ensolarado do lado de fora do snack bar, não tive dificuldade em reconhecê-lo. Ele parecia uma fortuna afastada umas três gerações de sua origem. Embora não pudesse ter mais vinte e poucos anos, seu rosto era macilento e contrito. O rosto de um rapaz de meia-idade. Sob o terno bem-talhado, vestia uma camada de gordura – uma armadura facilmente penetrável. Possuía o tipo de olhos castanhos e suaves que com frequência são míopes.

Quando cheguei perto de sua mesa, ele levantou-se depressa, quase derrubando a cerveja.

— Deve ser o senhor Archer.

Respondi que sim.

— Estou contente em vê-lo — disse ele, estendendo-me uma grande mão amorfa. — Vou pedir alguma coisa para o senhor. O prato quente de segunda-feira é cozido à New England.

— Não, obrigado. Almocei antes de sair de Los Angeles. Mas aceito uma xícara de café…

Ele foi até o bar e trouxe o café para mim. Na figueira que cobria uma parede do pátio, um casal de tentilhões discutia questões de família. O macho, que tinha a fronte salpicada de vermelho, levantou voo rumo a alguma missão. Meu olhar o acompanhou pela faixa de céu azul até perdê-lo de vista.

Ross Macdonald, Dinheiro sujo, 1966 [Ed. Companhia das Letras, 1989].

Brazilliance: entrevista com Andreas Dünnewald

Extraído das edições de maio (parte 1) e de junho (parte 2) do Jornal RelevO: as duas partes foram agrupadas neste link. O RelevO pode ser assinado aqui. Também apresentamos o Brazilliance na Enclave, nossa newsletter, que pode ser assinada gratuitamente.

Brazilliance: o alemão por trás de um catálogo extraordinário da música brasileira

Descobrimos o Brazilliance por acaso, parando em uma página que fornecia o histórico de lançamentos da música ‘Lamento no morro’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com artistas, capas e tudo. Dois pontos chamaram atenção de imediato: a catalogação impecável da informação e a acessibilidade aos materiais, isto é, além de informação, é possível escutar cada uma das versões elencadas. Há 167 páginas como a de ‘Lamento no morro’, encorpando o mapeamento da música brasileira no século XX, principalmente no que tange ao samba-canção e à bossa nova. Também há 13 mixtapes extraordinárias, separadas por tema (From the Vault), e índices de artistas e músicas. A partir disso, um novo universo se abriu: no Brazilliance, editado pelo alemão Andreas Dünnewald, conhecemos e reconhecemos a música brasileira. Logo nos interessamos, portanto entramos em contato para entender quem (e o que) move um trabalho tão fino. Nesta e na próxima edição do RelevO, compartilhamos nossa conversa e incentivamos, convidamos, convocamos qualquer leitor com o menor interesse na música brasileira a acessar o Brazilliance, um verdadeiro baú boiando pela internet. Dünnewald também é autor de Brazilliance (2011, ed. Conte Verlag), livro que compila 1.111 capas de discos brasileiros lançados entre 1952 e 1977.

JORNAL RELEVO: Nossa primeira pergunta é… por quê? Digo, por favor fale um pouco sobre quem você é e o que gerou esse seu interesse em música brasileira.
ANDREAS DÜNNEWALD: Nasci em 1964 e moro em Frankfurt am Main (Alemanha). Em uma vida passada estudei design de moda, gráficos de moda, design de estampas e alfaiataria em Viena (Áustria). Apesar de certo sucesso inicial depois de retornar, eu não gostava da indústria e a deixei após três anos. Na minha vida atual, trabalho em escritório, o que não era exatamente o plano, mas foi apenas uma das voltas e reviravoltas.
Foi no verão de 2007 que eu, enquanto procurava algo que não ouvia havia muito tempo em minha coleção de discos, deparei com um disco de João Gilberto (que, depois descobri, era uma compilação de seus três primeiros álbuns). Eu conhecia a bossa nova que os brasileiros haviam gravado com músicos de jazz nos Estados Unidos, mas – subitamente me dando conta de que aquele era o som original – me perguntei: como a bossa nova soava no Brasil? Como era o resto da música [brasileira] naquele tempo? Quem eram os músicos e cantores?

JR: O que veio primeiro, sua curiosidade pelas capas de discos brasileiros ou pela música?
AD: Procurando na internet, me surpreendi ao encontrar sites cujos donos investiam horas intermináveis digitalizando discos esgotados e suas capas – e disponibilizando-os aos fãs para download. O melhor deles era o Loronix, do Zecalouro, um músico do Rio de Janeiro com uma rede que incluía alguns artistas da época. Loronix era um paraíso musical formativo, embora tenha existido por apenas três anos. Por muitos anos, o número desses sites cresceu constantemente, mas hoje há apenas alguns ativos, como o Parallel Realities, de Milan Filipović, na Sérvia, e o Toque Musicall, de Augusto TM, no Brasil. Eu tive a sorte de procurar exatamente na hora certa.
Aqui na Europa, existia (e existe) só um repertório curto disponível em CD, mas os downloads de vinil ofereceram a verdadeira extensão. Foi assim que descobri cantores e músicos que amei desde então, como Elza Laranjeira, Miltinho, Edison Machado e Moacyr Marques, bem como músicas cuja beleza eu não sabia que existia, como ‘Não Me Diga Adeus’, ‘Derradeira Primavera’, ‘Você Passou’ e ‘Murmúrio’.
Um amigo – que havia ficado igualmente impressionado com o que encontrei – me pediu para discotecar em sua festa de Ano Novo, e projetamos um slideshow com 300 capas de discos na tela para que os convidados pudessem ver aquilo que escutavam. Enquanto ajeitávamos o projetor e a tela, ainda em cima de uma escada, tive a ideia de fazer um livro sobre essas capas deslumbrantes. Foi assim que o Brazilliance começou como livro – apenas para mim e um público privado. Conforme o primeiro rascunho tomava forma, entrei em contato com uma gráfica recomendada por um amigo que trabalhava nessa área. Quando viajei os 200 quilômetros para visitar a gráfica e discutir a escolha de papel e a capa, para minha surpresa, eles me informaram que também tinham uma editora e que queriam publicar meu pequeno livro. Precisei de três anos e meio para, a partir daquela ideia na escada, segurar o livro em minhas mãos.

JR: Sobre o livro… Brazilliance é muito mais focado no design, certo? De que forma ele levou ao trabalho no site?
AD: Considerei acrescentar texto no livro, mas decidi que ele deveria consistir puramente em uma galeria visual. Há alguns livros semelhantes, mas (considerando que o meu seria meramente privado àquela altura) eu não tinha qualquer intenção de competir com eles. Bossa Nova e Outras Bossas, de Caetano Rodrigues e Charles Gavin, foi o primeiro e ainda é o melhor. Infelizmente, trata-se de uma edição limitada, publicada em 2005, que logo se esgotou. Ao menos consegui uma cópia usada, ao contrário do livro seguinte de Gavin, 300 Discos Importantes da Música Brasileira, publicado em 2008 e também esgotado rapidamente. Ademais, há o Bossa Nova and the Rise of Brazilian Music in the 1960s, lançado em 2010 pela Soul Jazz Records, em Londres, com uma diagramação adorável, mas bem menos completo e com alguns erros editoriais.
Enquanto finalizava meu livro, passei a construir meu site, afinal de que outra maneira o mundo saberia sobre o Brazilliance? Além disso, o site nos permite experienciar a música contida dentro dessas capas fabulosas. Para combinar os dois, eu baseava os artigos em páginas duplas selecionadas do livro, de cujas capas escolhia os cantores e músicos para os retratos e as playlists. Naturalmente, esse conceito não poderia continuar para sempre, por isso encerrei depois de 45 artigos e iniciei as páginas de músicas.

JR: Você já esteve no Brasil? Além da música, você mantém algum tipo de relação com a cultura brasileira?
AD: Não, nunca fui ao Brasil e quase nunca conheci brasileiros, embora cerca de seis mil morem na minha região.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

JR: Você havia comentado que não fala português. Como isso afeta sua pesquisa? Você tem algum amigo brasileiro (ou português) para te ajudar – ou sequer precisa?
AD: Ao longo dos anos, aprendi algumas palavras das letras, assim como aprendi algumas das óperas italianas. Falar a língua certamente ajudaria com a pesquisa – e talvez algum dia eu comece a aprender –, mas ela funciona bem com os tradutores online.
Quanto às páginas das músicas, para mim é importante incluir as letras, e por sorte a maioria está disponível na internet. Nem sempre certas, no entanto. Por isso eu sempre as comparo acusticamente com as gravações originais antes de usá-las em um artigo.
Porém, traduções para o inglês [das letras] que refletissem precisamente a dicção e o estilo – portanto, expressão e emoção – seriam a conclusão perfeita para essas páginas. Sem saber as letras, nós (não brasileiros) definitivamente estamos perdendo algo. Traduções automáticas não compreendem as complexidades de uma língua, e muitos dos meus acessos vêm da América do Norte, Europa e Ásia – pouquíssimos entendem as palavras originais. Seria incrível se essa parte artística das músicas pudesse ser compreendida por todos, mas isso demandaria alguém disposto a traduzi-las, o que seria uma tarefa literária.

JR: Em todos esses anos, qual é sua maior surpresa ao lidar com a música brasileira (incluindo as capas)? No sentido de “meu Deus, isso é um tesouro escondido!”.
AD: Nos primeiros anos, claro, qualquer nova música, cantor, banda e arte gráfica parecia uma caça ao tesouro que desenterra joias. Entretanto, a maior surpresa foi quando o neto e o filho de Eddie Moyna me escreveram em questão de dez minutos.
Nos anos 1950 e 1960, designers gráficos sequer eram mencionados pelas gravadoras, e as grandes, como a RGE, não mudaram isso depois. Portanto, infelizmente pouquíssimos nomes são conhecidos. Cesar G. Villela aparentemente foi o primeiro a conseguir fazer um nome para si (que então passou a ser impresso nas contracapas), mas nada pode ser encontrado sobre outros, como Joselito, Maurício, Moacyr Rocha, Mafra – ou Eddie Moyna. Então foi um prazer muito especial – e completamente inesperado – escrever [o artigo] A Special Feature on Eddie Moyna depois que seu filho Carlos me providenciou algumas informações. Porque, até onde eu sei, trata-se do único retrato desse artista gráfico.

JR: Você é um colecionador de discos? Tem os discos físicos dessas capas que chamaram sua atenção?
AD: Alguns anos atrás, reduzi substancialmente minha coleção física, mas minha coleção digital consiste em cerca de 50 mil músicas, das quais cerca de 15 mil são brasileiras. Definitivamente corro risco de me viciar, mas hoje defino o HD do meu laptop como limite. Além de cerca de 80 CDs e 20 discos de vinil, minha coleção brasileira é digital porque é difícil comprar os vinis originais na Europa. Então, aprecio especialmente meu exemplar de Convite ao Drink (1960), de Djalma Ferreira, com seu fabuloso encarte de Joselito e fotografia de Mafra.
Como não falo a língua, não faria sentido abrir uma conta em um portal de sebos brasileiro, onde há muitas opções de escolha. Comprar discos internacionalmente ainda pode ser caro em razão de possíveis taxas alfandegárias. Mas o Youtube também pode ser uma grande fonte de gravações antigas. Eu até encontrei algumas joias em um portal romeno de mp3.

JR: Você já leu Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer? [Nota: livro em que o autor, um alemão, vem ao Rio de Janeiro obcecado para encontrar João Gilberto. Fischer se matou antes do lançamento.] Em termos de livros, especificamente, sei que parte do trabalho de Ruy Castro foi traduzido para o inglês, mas realmente não tenho ideia do que mais pode ter chegado à Alemanha vindo daqui. O que você me diz?
AD: Chega de Saudade, de Ruy Castro [ed. Cia. das Letras; na Alemanha, Bossa nova – The Sound of Ipanema: Eine Geschichte der brasilianischen Musik], é um livro excelente, escrito de maneira muito cativante, com grandes histórias de fundo. Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer, vale a pena por sua perspectiva muito pessoal. Além deles, li alguns livros publicados em inglês no Brasil e nos Estados Unidos, mas não me lembro deles, então evidentemente não foram muito instrutivos para mim. Antonio Carlos Jobim: um homem iluminado [ed. Nova Fronteira], de sua irmã Helena Jobim, ainda está na minha lista.

JR: Brasileiros entram em contato com você por conta do Brazilliance?
AD: Ocasionalmente. Seja para elogiar — o que, obviamente, é sempre um prazer —, seja porque estão procurando algum disco ou música. Mas de vez em quando algo especial acontece.
Certa vez, alguém entrou em contato a respeito do disco Orquestra de Danças (1957), da Orquestra do Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro. O tio dessa pessoa havia composto três das músicas e participado das gravações. O sindicato em questão estava preparando seu aniversário de 50 anos, mas não tinha uma cópia do disco — que não estava disponível em lugar algum. Claro que foi um prazer lhes providenciar, ao menos de forma digital.
Outra vez, um casal me escreveu dos Estados Unidos indagando se João Gilberto e Tom Jobim tinham tocado no cruzeiro que eles fizeram do Rio de Janeiro a Nova York em 1962. Eles me perguntaram se isso poderia ter acontecido. Depois de alguma pesquisa, tive de responder que isso seria muito difícil, tendo em vista que à época ambos estavam tocando em seu famoso espetáculo no Au Bon Gourmet, no Rio, quando ‘Só danço samba’, ‘Garota de Ipanema’ e ‘Samba do avião’ estrearam para o público. Mas foi uma pergunta absolutamente comovente.

JR: O que você geralmente escuta? Em geral, não só de música brasileira. Aliás, você toca algum instrumento?
AD: Cresci escutando discos de jazz e a música pop da American Forces Network (AFN) [serviço governamental de mídia das forças armadas americanas], porque minha mãe não gostava da rádio alemã. Meu programa favorito quando adolescente eram as paradas dos Estados Unidos de 1935 a 1950, todos os domingos de manhã na AFN. Nelas, descobri as orquestras de Tommy Dorsey e Harry James e cantoras como Billie Holiday e The Pied Pipers.
Quando comecei a pintar e desenhar, aos 14, passei por várias fases, e uma delas foi a da Ásia Oriental. Enquanto alguns compravam discos do Abba, eu comprava swing music, música japonesa de koto e óperas chinesas, que eu ouvia alto, muitas e muitas vezes. Isso me levou à [ópera] Turandot, de Puccini (a gravação definitiva, com Birgit Nilsson, 1966), e ao mesmo tempo eu ia de ‘Mirage’, de Stan Kenton (de seu disco Innovations in Modern Music, 1950), direto para A Sagração da Primavera, de Stravinsky.
No início dos anos 1980, o pós-punk e a new wave se tornaram meu universo musical, mas também o pop e o soul dos anos 1960 — e mais jazz (hardbop e cool jazz), além de cantoras como Sarah Vaughan e Nancy Wilson. Eu não sobreviveria na tão falada ilha deserta sem New Order/Joy Division, Siouxsie and The Banshees, Chris Connor, Dusty Springfield e tudo que soa como Wall of Sound, de Phil Spector, e Motown. Óperas, principalmente as de Puccini e Verdi, têm um lugar especial no meu coração, tal qual cantoras como Renata Tebaldi.
A música mais tocante já escrita, na minha opinião, é ‘Ich bin der Welt abhanden gekommen’, de Gustav Mahler, principalmente quando cantada pela inigualável Christa Ludwig. Qualquer um que não seja duramente afetado pela beleza e pela verdade dessa música provavelmente está morto.
O que torna a música tão incomparável é seu efeito imediato e livre de influências. Podemos ter nossas preferências e achar outras coisas absolutamente detestáveis, mas nunca conseguimos escapar dos efeitos inconscientes da música. Nesse sentido, para mim, essa é a mais emocionante das artes, talvez até a mais humana.
Não sei tocar nenhum instrumento, não sei ler partituras e, infelizmente, também não sei cantar, embora eu creia que a voz seja o instrumento mais belo. Mas isso não me impede de me ver como um indivíduo musical, porque não limito meu gosto e tenho a necessidade de adquirir conhecimento a respeito da música de que gosto — conhecimento que me permite compreendê-la melhor.

JR: Na primeira parte da entrevista, perguntei por que razão você começou o Brazilliance. Agora te pergunto: por que você o mantém? 
AD: Conhecedores do jazz estão familiarizados com o Great American Songbook, uma coleção de standards de jazz e música popular que se estendem aproximadamente de 1920 até 1960. Mas a ideia de cânone das músicas mais importantes e influentes, cujo legado resistiu ao teste do tempo, aplica-se igualmente ao Brasil, porque inúmeras músicas, principalmente dos anos 1930 até os anos 1960, tornaram-se standards por direito próprio. Elas foram gravadas muitas vezes, suas letras são conhecidas e elas ainda são amadas e tocadas. Gosto de pensar nelas como o Brazilian Songbook, embora ninguém o chame assim. E porque aparentemente ninguém tentou juntar tal coleção — que apresente as diversas gravações e tente informar algo sobre as composições —, fiz isso com o Brazilliance desde 2014.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

JR: Por fim, de que maneira você compila e organiza as informações do Brazilliance? (Percebi que boa parte das páginas da seção de referências, por exemplo, já nem é mais atualizada).
AD: Até o momento, o Brazilliance tem cerca de 170 páginas de músicas de 1937 até 1970; a cada dez, uma é uma versão brasileira de uma música internacional. ‘Manhã de Carnaval’ é a mais extensa, com 75 gravações. Geralmente apresento todas as versões que tenho ou consigo encontrar. Apenas em listas longas eu retiro uma ou outra, quando estas não acrescentam algo em relação às adicionadas. Ainda resisto à tentação de publicar músicas que, incompreensivelmente, foram gravadas apenas uma vez, então é necessário haver ao menos duas gravações para eu criar uma publicação. Idealmente, músicas do mesmo ano de origem não seguem uma à outra, e a ordem de publicação também deve alternar entre gêneros e velocidade, bem como em número de gravações.
De acordo com os anos de origem, o foco provavelmente se concentra por volta de 1960, mas esses anos foram obviamente muito criativos, com um número impressionante de grandes composições. Gosto particularmente das orquestrações e dos arranjos daquele tempo, e, estilisticamente, essa época também foi bastante diversa. Sou especialmente apegado ao [gênero musical] sambalanço, por exemplo. Apesar de sua popularidade, ele só corresponde a um período muito curto.
A pesquisa muitas vezes é difícil, porque as fontes não são tão extensas quanto as de gêneros dos Estados Unidos e da Europa. Os arquivos mais importantes são o Instituto Memória Musical Brasileira e o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Contudo, nenhuma fonte é livre de erros e, para conseguir fornecer uma informação confiável, preciso comparar muito conteúdo on-line com criticidade. Muitas vezes é como um quebra-cabeças em que você tem de organizar as peças enquanto as agrupa. Ainda assim, meu próprio conteúdo dificilmente é livre de erros.
Não cito as fontes porque isso aumentaria meu empenho enormemente. Mas verifico tudo — tanto quanto é possível — por precisão e, quando em dúvida, me abstenho de fornecer informações. Minha página de referências lista de forma incompleta os sites que lidam com a música sobre a qual escrevo, ainda que alguns deles tenham sido descontinuados.
Além das páginas de músicas, outros capítulos adicionaram facetas ao longo dos anos:
From the Vault, em que ofereço minhas compilações pessoais. Comecei em 2017, quando tinha pouco tempo para as páginas de músicas. Como essa série parece ter tido alguma popularidade, porém, decidi continuar.
Em 2020, comecei o Reutilisation, uma série sobre gravações nas quais arranjos e outras faixas foram reaproveitadas. Na maioria dos casos, a gravação original continha um vocalista, ao passo que a segunda era instrumental. Um olhar mais atento revela que, em cada caso, ambas as gravações foram lançadas pela mesma gravadora (ou por uma de suas subsidiárias), o que claramente indica que elas apenas queriam reduzir os custos de produção ou aproveitar-se de músicas populares uma segunda vez. Mas os resultados geralmente são muito válidos. Além disso, é a perfeita trivia de colecionador.
Em 2021, comecei o Pseudonyms, uma série sobre músicos que utilizaram pseudônimos para além de seus nomes reais. Como é uma série nova, ainda há apenas um artigo até o momento — sobre Ed Lincoln, que certamente teve mais [pseudônimos] que qualquer um, com ao menos 18 —, mas outros virão.
E quem sabe, numa dessas invento outra coisa. O Brazilliance se tornou meu bebê (enquanto escrevo isso, minha gata, Elza, subitamente olha fundo nos meus olhos, mesmo que ela parecesse estar dormindo) e ainda é divertido. Então, definitivamente pretendo continuar… Bem como meu segundo site, KEUP — My Favourite Things, que comecei em 2019. Quase se poderia pensar que o Brazilliance não é o suficiente para mim.

Brazilliance, por Andreas Dünnewald.