Não creio em mais nada

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Minha mãe provavelmente se envergonharia, mas apenas no último fim de semana conheci quem foi Paulo Sérgio (1944-1980) – o músico, não o atacante. (O atacante jogou com o Totti.)

A Enclave, como já reconhecemos, não escapa à sua natureza millennial. Há vantagens, como saber desinstalar tudo o que desacelera um Windows praticamente por instinto. E há desvantagens, como a falta de contato direto com elementos culturais renegados pela crítica.

Volta e meia, elementos assim – como o cantor Paulo Sérgio – são redescobertos pela internet, e então novas gerações se surpreendem, resgatam e reinterpretam o adormecido. Tratamos de algo parecido quando escrevemos sobre o city pop.

Em uma dessas mixtapes difíceis de mapear por que exatamente surgem nas recomendações do YouTube, conheci Paulo Sérgio, o cantor. Brega, romântico, popular. Morreu precocemente, aos 36, vítima de um derrame cerebral – há exatos 40 anos e 10 dias de quando escrevemos este texto. Tinha lá suas polêmicas.

Inegavelmente parecido com Roberto Carlos, foi comparado com o rei e tachado de imitador. Quando finalmente se conheceram, em 1973, deram-se muito bem – ao menos na frente das câmeras.

Mas o que impactou foi ‘Não creio em mais nada‘, do disco Paulo Sérgio Vol. 4 (1970, Spotify). Arranjos, batida, letra, melodia e até um certo groove: esse manifesto de fatalismo, aparentemente composto por Totó, é uma bomba da mais atemporal resignação.

Não sei o que faço
Se volto agora ou continuo a seguir
Eu sinto cansaço
E já não sei se vale a pena insistir
(…)

Não creio em mais nada
Já me perdi na estrada
Já não procuro carinho
Me acostumei na caminhada sozinho
A vida toda só pisei em espinho
Já descobri que o meu destino é sofrer

Os remixes contemporâneos já começaram a pipocar – aqui e aqui, por exemplo –, e Fernanda Takai, pescando o zeitgeist, lançou uma versão da música em junho.

Para você que está desanimado, soque o play e complemente seu drama existencial com esses 140 segundos de cinismo: hoje não será melhor do que ontem, e sigamos em frente! Boa segunda-feira e uma grande semana para todos nós.

Walking tours

Extraído da edição 64 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Viajar (do Brasil) ao Japão é caro, muito caro. Passagem, hospedagem, câmbio, escalas, comida: há diversos estímulos ao desestímulo. Àqueles que não dispõem do orçamento necessário para essa locomoção resta o YouTube, onde é possível vivenciar as ruas de alhures com imagem, som e movimento em alta definição.

Refiro-me à quantidade crescente de walking tours disponível no YouTube. Neles, alguém caminha pela cidade portando uma câmera e captura o som ambiente do trajeto. Ao longo do caminho, não há qualquer intervenção, interação ou interatividade em geral: o transeunte anda; nós assistimos.

Deixar esse tipo de vídeo na televisão se tornou um hábito pessoal há tempos. Descobri a prática com o canal hongkongmap, em que um sujeito munido de boa vontade trafega por Hong Kong. Não há imersão maior para um vídeo, e os walking tours – espalhados pelo mundo inteiro – permitem sentir uma cidade distante com o encanto de seu movimento orgânico.

Rambalac talvez seja o mais conhecido em relação ao Japão, onde também vale acompanhar o Nippon Wandering TV (por exemplo, no popular Kabukicho). São diversos os contextos, mas me apetecem particularmente as caminhadas noturnas. A imagem de abertura foi retirada deste vídeo aqui, em Shibuya (Tóquio).

Em Singapura, há o Discovery Walking Tours TV. Por sua vez, o POPtravel surge em diversos países europeus, bem como o LivingWalks. De Nova York, conheço o IURETA e. O Nomadic Ambience acumula material (muito bem gravado) do mundo inteiro.

Como um irmão do ASMR, esse gênero de vídeo oferece uma contemplação relaxante; a passividade agradável de acompanhar com os olhos, converter a falta de letramento (de ideogramas, por exemplo) em recepção estética e escutar aquilo que a distância – com ou sem quarentena – não deixa alcançar.

Marco Pierre White

Extraído da edição 63 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

A Enclave de hoje trata – inédita e indiretamente – de gastronomia. A newsletter nunca comeu num restaurante com estrela Michelin, tampouco ingeriu alguma estrela, nem mesmo assistiu (a) algum Masterchef. Portanto, vamos nos limitar a aspectos mais simbólicos (poéticos?) da temática.

O nome do chef Marco Pierre White não apenas parece resumir uma aliança da Primeira Guerra Mundial. Também singulariza um indivíduo inglês notável na cozinha – e notabilizado além dela.

Aos 32 anos, White foi o mais jovem a receber três estrelas Michelin. Isso equivale a ganhar três Copas do Mundo (mas é bem menos interessante). Também é tido como o primeiro chef celebridade, e aparentemente já fez Gordon Ramsay chorar. Nada disso nos interessa muito.

O que realmente cativa na figura de Marco Pierre White é, primeiro, o simbolismo de sua trajetória; segundo, ouvi-lo falar.

Porque este inglês alto, cabeludo e revoltadinho abandonou suas três estrelas Michelin e se aposentou. Cansado de “ser avaliado por pessoas que entendem menos que eu” e indisposto a manter um restaurante apenas com seu nome – isto é, sem participar ativamente das tarefas diárias –, White, até então um rockstar de dólmã, decidiu largar a maratona de trabalho intenso que o levara ao topo. Ele se aposentou em 1999, aos 39 anos.

De origem operária em Leeds, Marco Pierre White se mudou para Londres aos 16 anos – sem dinheiro nem projeção. Lá, trabalhou sob a tutela de Pierre Koffman, Raymond Blanc e Nico Ladenis (a honestidade intelectual nos obriga a apontar que esses nomes não nos indicam absolutamente nada).

Seis anos depois, já tinha o próprio restaurante – e a primeira estrela Michelin. Com o tempo, minado por cigarro, álcool e falta de sono, o jovem chef construiu sua imagem de intenso, explosivo e errático – um enfant terrible –, traços ocultos hoje.

Por exemplo, aqui, emburrado com uma jornalista, White ainda não domina seus poderes comunicativos. Fica evidente como – hoje – ele contornaria a situação desconfortável com a elegância assertiva pela qual é reconhecido atualmente.

Uma síntese de seu magnetismo pode ser verificada quando ele cortou cebolas sem abandonar o contato visual com os participantes do Masterchef Austrália. Precisão técnica milimétrica, olhar intenso sobre os óculos, oratória impecável, lição clara. Outra, nessa vulnerável entrevista em um talk show irlandês.

Afinal, Marco Pierre White intimida. O sujeito é alto e dispõe de compleição robusta e de voz firme. Suas frases intervaladas (e, pelo contexto, muitas vezes acompanhadas de uma faca…) o transformam numa mistura de Hannibal Lecter com um cobrador de dívidas eslavo.

É interessantíssimo, praticamente viciante, vê-lo falar. Talvez nada deixe isso mais evidente do que seu Q&A na Oxford Union: White narra a própria vida com um raciocínio claríssimo, uma capacidade assustadora de articulação. Ele soa como se lesse um livro pronto. Essas sim, características que admiramos em qualquer um.

Cozinhar deve ser prazeroso; se for um trabalho, peça comida”. Depois de fechar um contrato milionário com a Knorr, Marco Pierre White administra restaurantes e pubs em seu nome. Sua autobiografia, O Diabo na Cozinha, foi traduzida em Portugal.

Kim Philby: traição do século

Extraído da edição 15 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.

Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.

Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos, tornando-se um dos traidores mais famosos da história. “Para trair, você primeiro precisa pertencer. Eu nunca pertenci”, afirmou ele próximo de sua morte, em 1988. Uma das carreiras arruinadas pelo agente duplo foi a de John le Carré, que se utilizaria dessa experiência para escrever O Espião que Sabia Demais (1974), muito bem adaptado ao cinema em 2011.

Conturbado, enigmático ou apenas consistentemente filho da puta, Kim Philby comandou tragédias familiares, envolvendo várias esposas e várias esposas somadas a tragédias familiares. Sempre fiel à União Soviética, ele passou seus últimos anos em Moscou, supostamente melancólico e desiludido – e certamente embriagado.

Repleto de medalhas (e sem arrependimentos), teve um funeral de herói. Ele fazia parte do círculo hoje conhecido como Cambridge Five, cujos agentes duplos haviam sido recrutados ainda antes da Segunda Guerra Mundial (uma trama que perpassa o enredo do filme Jogo de Imitação, 2014, porém sem grande precisão histórica).

Sobre Philby, A Spy Among Friends (2014), de Ben Macintyre, é um belíssimo livro. O ex-colega John le Carré assina o posfácio.

Escritores sonham com personagens eletrônicos?

Extraído da edição 62 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

A Enclave de hoje é menos informativa e mais reflexiva. Ou “faz uma provocação”, como diria o tio que ainda considera rock’n’roll um elemento subversivo, ou a moça do processo seletivo do RH, ou o acadêmico submetendo seu trabalho a um congresso local desértico.

Mês passado, concluí no Playstation 4 o jogo Batman: Arkham Knight (2015), quarto e último título da saga Batman: Arkham. Um jogo de mundo aberto, isto é, que te permite circular livremente por toda a área projetada.

Não poderia me importar menos com o protagonista ou com seu universo, tampouco havia jogado qualquer um dos títulos anteriores. Nunca havia lido qualquer história em quadrinhos sobre Batman e só assisti à mesma trilogia (Dark Knight) que boa parte do planeta viu.

O jogo havia me atraído simplesmente porque a cidade (Gotham) parecia atraente – de fato é – e voar sobre ela parecia prazeroso – também é.

Paralelamente, o jogo mais recente com o protagonista Homem-Aranha, Marvel’s Spider Man (2018), permite que o jogador controle o personagem em Nova York – algo distante de ser inédito, mas que obteve maior sucesso nessa encarnação. Ainda não joguei, mas parece divertidíssimo.

Isso me leva ao seguinte ponto: se eu (1) fosse criança ou adolescente e/ou (2) me interessasse genuinamente por esses personagens – considerando que posso controlar o Batman em Gotham e o Homem-Aranha em Nova York –, o que me faria abrir um livro?

Indo além, o escritor contemporâneo que almeja qualquer tipo de reconhecimento além de seus amigos conhece as principais narrativas contemporâneas? Por fim, esse conhecimento é relevante para que ele atinja qualquer que seja seu objetivo?

Cem anos atrás, não havia videogame, não havia televisão e o cinema era bem diferente daquilo que conhecemos. Naturalmente, as mídias em questão evoluíram de forma exponencial nesse período, bem como a produção musical.

Até o teatro, que é literalmente movimentado por pessoas que praticam teatro, consegue utilizar novas possibilidades multimídia a seu favor.

A literatura não. Nem seria justo cobrar o mesmo avanço das mídias recentes, afinal trata-se de uma arte muito mais antiga. Sugiro meramente enxergar esse cenário como premissa.

Explicar o valor da literatura é pregar para convertido. Mas desconfio – e aqui me posiciono sobre a segunda pergunta – que boa parte dos autores com que convivemos, vivendo de escrita ou não, não tem a menor ideia de como as principais narrativas do planeta são consumidas hoje.

Isso inclui os videogames, que movimentam bilhões de dólares por ano e entregam algumas das obras mais interessantes da Terra – a trilogia Mass Effect é tão excepcional quanto qualquer romance ou filme excepcional.

O RelevO já tem quase dez anos, e particularmente me envolvo com isso há pelo menos oito. Nesse tempo, tivemos contato direto e indireto com perfis variados de autores – talentosos e fracos, frustrados e orgulhosos, consagrados e obscuros (e combinações entre esses elementos).

Uma quantidade razoável acredita enfaticamente que cabe ao planeta reconhecer seu brilhantismo, isto é, do autor – o planeta é só um receptáculo de seu imensurável (e despercebido) talento, rotacionando especificamente em razão dele.

E sinto – não é ciência, não é peer-reviewed, é apenas experiência empírica com intuição calibrada – que muitos escritores ainda enxergam a literatura com o olhar de cem anos atrás (e que pouco ou nada aconteceu com as artes desde James Joyce).

Sem noção alguma de como a roda gira, do que é uma roda e do que significa girar. Apenas à espera de uma editora e de leitores.

Porque, na verdade, explicar o valor do videogame como arte narrativa também é chover no molhado. A literatura é por si só um fim e um ponto de partida: aquilo que se destaca nela logo é adaptado a outras mídias.

Não proponho que todo artista seja um gamer, tampouco defendo a mídia porque é moderna. Sugiro que a compreensão do que move as narrativas mais estrondosas do planeta (em termos de investimento e impacto cultural imediato) pode refinar um pouco a cosmovisão.

Alheio a tudo isso, o escritor contemporâneo está mais próximo do tio do rock ou da moça do RH.

Cornell Woolrich, cínico dos cínicos

Extraído da edição 61 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Policial corrompido; político corrompido; empresário corrompido; protagonista corrompido; amigo do protagonista corrompido; mulher mais bonita que o protagonista corrompida – na literatura policial do século passado (e em seus filhos e netos), o que sobra de puro é o álcool.

Dashiell Hammett (O Falcão Maltês, 1929) e Raymond Chandler (O Sono Eterno, 1939, e O Longo Adeus, 1953) são os nomes mais lembrados dessa roupagem da ficção policial, que passou a ser tipicamente americana, urbana e fria. James M. Cain e Ross MacDonald também caracterizaram os alicerces da estética noir (cigarros, coquetéis, detetives particulares ranzinzas, femmes fatales etc.), tão replicada até hoje.

Nas obras de Hammett, o cinismo deriva de um problema quase logístico: seus protagonistas, cansados e espancados, seguem em frente porque sobrevivem. O cinismo de Chandler é mais estilístico (James Ellroy, de Dália Negra e Los Angeles, Cidade Proibida: “Hammett escrevia o tipo de sujeito que ele temia ser. Chandler escrevia o tipo de sujeito que ele desejava ser”).

Mas há Cornell Woolrich (1903–1968), menos lembrado que os anteriores. Um autor cujo cinismo tão agudo só poderia derivar de um irrefreável desprezo pelo ser humano. Numa escala de 0 a 10 de fatalismo – em que 0 corresponde a um cliente de coach, e 10, ao próprio Emil Cioran –, Woolrich se alçava ao topo.

Cornell Woolrich costuma ser reconhecido pelo conto que inspirou Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock. Também é dele o romance A Noiva Estava de Preto (1940), que François Truffaut adaptou para o cinema em 1968. Em sua literatura não há redenção ou perdão: os personagens estão fadados à desgraça, e não há página folheada que não assombre o leitor com a clara sensação de que a tragédia acompanha tudo de perto.

Woolrich dispunha de um talento incomum, ainda que com graus variados de qualidade na execução – seus romances oscilam e podem pecar pela inconstância, às vezes com um desfecho apressado, capazes de derrubar uma construção caprichadíssima. A arte bruta de contar histórias era-lhe natural; a ela se juntavam enredos notavelmente instigantes e a esculhambação dos próprios personagens.

Levar em conta a vida pessoal de um autor para avaliar sua obra é sempre arriscado (e, muitas vezes, preguiçoso), mas são fortes os indícios de que este escritor americano – que também utilizava o pseudônimo William Irish – sangrou na literatura as angústias de um desenvolvimento melancólico.

“O escritor pulp Cornell Woolrich poderia ter sido um personagem de uma de suas histórias – um alcoólatra recluso que perdeu a perna por gangrena, um gay não assumido que viveu com a mãe em uma série de hotéis ao longo da vida adulta. Ele passou muito tempo sozinho, olhando por janelas, mas certamente sabia escrever” – sintetizou sabiamente esta divulgação, de onde também extraímos a imagem de abertura.

Por isso, caro assinante da Enclave, se você não conhece Cornell Woolrich e quer esbarrar em uma literatura trágica, porém (ou porque) envolvente, os contos e romances deste cínico vêm a calhar. Janela Indiscreta (coletânea de contos) e A Dama Fantasma (romance) são favoritos pessoais.


Boa parte dos livros mencionados nesta edição – não só os de Woolrich, mas de Hammett, Cain e Chandler (selo Alfaguara) –, foi publicada pela Companhia das Letras e pode ser encontrada de forma mais barata (às vezes, muito barata) em sebos, catalogados ou não na Estante Virtual.

Não estamos recebendo dessas empresas – o que nos parece óbvio, porque ninguém nos ofereceria dinheiro para nada –, porém não queremos ser acusados de sucesso.

Shahdaroba: Roy Orbison e o escapismo dos solitários (feat. David Lynch)

Extraído da edição 60 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Até pouquíssimo tempo atrás, as informações – ou melhor, impressões – sobre Roy Orbison estavam catalogadas de maneira equivocada na minha cabeça. Isto é, eu acreditava que o baladista americano – responsável por ‘In dreams‘, ‘Oh! Pretty woman‘, ‘Crying‘ e por participar do Traveling Wilburys – era muito mais antigo do que de fato foi.

Orbison estourou na virada da década de 1950 para 1960. Até 1964, já tinha lançado todas as músicas mencionadas, além de ‘Only the lonely‘. Essa fase foi certamente seu ápice – o “Caruso do rock” cairia num longo ostracismo no fim daquela década, permanecendo no esquecimento até os anos 1980. Na má fase profissional, ainda perderia a esposa em 1966 (acidente de moto) e os dois primeiros filhos em 1968 (incêndio residencial).

Minha impressão era de que este músico pertencia a uma época anterior. Isso porque Orbison dispunha de uma voz de senhor em um rosto de senhor. Mas Roy Orbison, nascido em 1936, tinha apenas 29 anos na imagem que abre este texto (retirada desta apresentação aqui). Na capa do disco In Dreams (1963), lançado aos 27 do cantor, a impressão de senioridade é ainda mais forte.

Enfim, isto de certa forma é irrelevante. Mas tem (mais ou menos) um ponto: o apogeu de Orbison está muito mais associado a um outro universo; um passado em preto e branco; um mundo pré-1968, com seus respectivos atrativos e problemas. Semioticamente, remete mais aos anos 1950 – isso confere um caráter idílico/onírico à sua obra.

Com isso, retomo justamente o álbum In Dreams (sonhos!), cujo tom onírico, portanto, precede a nostalgia que reforça este mesmo tom. Ou seja, antes de qualquer retrotopia, o disco já nasce com um aspecto de devaneio: o escapismo solitário a que (finalmente) nos referimos.

Redescobri Roy Orbison assistindo a Mad Men. No final da terceira temporada, ouvimos ‘Shahdaroba’, deste mesmo disco. Não darei detalhes sobre o enredo ou o impacto na cena em questão, porque todo indivíduo deveria assistir à série, e sou grato ao ser humano extraordinário que insistiu para que eu a visse.

‘Shahdaroba’, escrita por Cindy Walker, descreve um termo (supostamente do Antigo Egito) usado como subterfúgio para as ocasiões em que “um sonho morre” ou uma “cidade chora”, para quando “as lágrimas escorrem”. Shahdaroba “significa que o futuro será muito melhor que o passado”.

Roy Orbison era o introvertido talentoso cujas baladas lamurientas afagavam as dores pessoais. Era praticamente o oposto de um galã frenético como Elvis Presley (que, por sinal, considerava Orbison o melhor cantor do planeta). A Black & White Night, gravada em 1988 – ano de sua morte –, ilustra perfeitamente a dinâmica de suas apresentações: limpeza, refinamento técnico e uma voz extraordinária.

‘Shahdaroba’, tal qual a faixa-título, encapsula a natureza dos sonhos, a dor da realidade e, principalmente, a discrepância entre ambos. Às vezes – talvez principalmente neste momento –, todos precisamos de um lugar imaginário ao qual recorrer. Roy Orbison tem sido um grande amigo.


  • David Lynch teve papel determinante na redescoberta de Roy Orbison por parte das gerações posteriores a seus principais sucessos. Em Blue Velvet (1986), uma de suas cenas mais marcantes (com a habitual mistura entre o esquisito e o hipnotizante) tem ‘In dreams’ dublada pelos personagens – até Dennis Hopper surtar.
    • No ano seguinte, Orbison já gravava seu último álbum de estúdio, Mystery Girl, produzido por Jeff Lynne, que viria ser lançado em 1989 e obter enorme sucesso – mesmo que ele não tenha vivido para testemunhá-lo.
    • Dois anos depois (1988), gravava e lançava o primeiro disco com os Traveling Wilburys ao lado de Bob Dylan, George Harrison, Tom Petty e e Jeff Lynne.
  • De acordo com Lynch, Orbison inicialmente não gostou do uso de sua música no filme, mas reconsiderou sua opinião após revê-lo, seguindo a sugestão de amigos. Lynch e Orbison se conheceram depois disso, e o diretor – que também é músico – gravou e mixou uma nova versão de ‘In dreams’.
  • Llorando‘, uma verdadeira pancada cantada por Rebekah Del Rio naquela cena de Mullholland Drive (2001), é um cover de ‘Crying‘. Del Rio apareceu na terceira temporada de Twin Peaks com a balada ‘No stars‘, composta pelo próprio Lynch, a qual muito remete às composições de Roy Orbison.
  • Bom, meu, eu particularmente tenho paixão assim pelo David Lynch, meu. Ele é tu-do! Meu, ele mistura muito bem essa coisa do inconsciente, abstrato com essa tecnologia estrambólica, polipotética, parafernálica, meu. Meu, Blue Velvet, meu. Blue Velvet é tudo! Blue Velvet, meu. Blue Velvet. A história é sobre um amigo de um cunhado de um… que doou sangue e tinha uma batida de carro. E no final tinha alguma coisa sobre veludo azul, meu. Por isso que o filme é Blue Velvet! Nome do filme… Blue Velvet.”

Ilha dos mortos

Extraído da edição 59 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

O quadro Ilha dos mortos, do suíço Arnold Böcklin (1827-1901), era muito popular. Tão popular que marcava presença “em qualquer lar alemão de classe média” no início do século passado. Até Hitler, o próprio, comprou a terceira versão de Ilha dos Mortos – a que você vê na abertura deste texto – em 1933. Conta-se que tanto Freud como Lenin adoravam-na. Böcklin pintou as seguintes cinco versões.

  • Primeira, 1880 (“Basel”).
  • Segunda, 1880 (“Nova York”).
  • Terceira, 1883 (“Berlim”).
  • Quarta, 1884, destruída na Segunda Guerra Mundial.
  • Quinta, 1886 (“Leipzig”).

A primeira e a segunda são notavelmente mais escuras – podemos dizer que representam momentos diferentes do dia. O pintor ainda trabalhava na primeira quando foi visitado pela viúva Marie Berna em Florença. Berna, uma futura condessa que havia perdido o marido logo após se casar, encomendou uma versão de Ilha dos mortos, pedindo que o artista acrescentasse um caixão e uma figura feminina próximos ao remador (Caronte?). Böcklin certamente gostou da ideia, pois também a aplicou no primeiro quadro e nos seguintes.

Seu estúdio ficava próximo ao Cemitério dos Ingleses, em Florença, onde uma de suas filhas havia sido enterrada. Böcklin teve 14 filhos, cinco dos quais morreram ainda na infância e outros três cuja morte ele presenciou.

Ilha dos mortos – qualquer versão – é uma dessas obras suficientemente fantásticas a ponto de qualquer comentário sobre ela ser um desperdício. Não há o que verbalizar sobre um conteúdo visual tão imediatamente cativante. Sua atmosfera é ao mesmo tempo pacífica e soturna; seu conteúdo é claro, porém enigmático. Vemos os ciprestes no centro da ilha, mas com a indicação de um infinito impossível de adentrar. Ilha dos mortos faz sempre com que queiramos vê-la mais e mais de perto, e este parágrafo não escapa à própria descrição de desperdício.

Depois do sucesso, Böcklin pintou A Ilha da vida em 1888. Ela é bem menos interessante – o mistério da morte segue intrinsecamente tentador.

Influenciado pela pintura, Rachmaninoff compôs um poema sinfônico em 1908. Ilha dos mortos despertou outras diversas influências, entre elas homenagens de Dalí e H. R. Giger. Recentemente, a RTS (Radio Télévision Suisse) produziu uma incrível animação que nos permite trafegar junto ao barqueiro. Ela consta no YouTube (em 360°, portanto use o mouse) e pode ser admirada com áudio em inglês ou em francês.

Vivendo a cidade: a construção do universo de Blade Runner

Extraído da edição 58 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Douglas Trumbull, diretor de efeitos especiais: o horizonte é uma mesa.

Propaganda da Heineken com Ronaldinho Gaúcho; clipe do cara de ‘Old town road’; clipe de Luan Santana e Alok: não interessa quão variado o contexto, é evidente que os responsáveis pelo audiovisual se inspiraram em Blade Runner (1982), ou nos filhos de Blade Runner, ou nos netos de Blade Runner. As ideias de cyberpunk e ficção científica como um todo foram ressignificadas com o filme, ele mesmo ressignificado com suas diferentes versões ao longo do tempo.

O fato é: se assistimos a qualquer coisa com chuva e néon, com certeza os indivíduos por trás das câmeras estudaram o universo de Blade Runner para replicar algo dele. Mesmo que eles trabalhem em um comercial da Claro com o Tiago Leifert – como podemos constatar aqui entre os 18 e os 24 segundos. Ou em genéricos impactantes como um comercial da Claro.

Há diversas razões para Blade Runner ter sido tão extraordinário. Como esmiuçamos em nosso texto sobre a série Community (2009-2014), omeletes de qualidade exigem ovos de qualidade. Ridley Scott, diretor (e, nesta analogia, ovo), dispunha de ao menos outros três: Syd Mead, Douglas Trumbull e Vangelis, cada qual um pináculo virtuoso por conta própria.

Não trataremos deles – guardando assunto para uma próxima oportunidade –, então vamos nos limitar a uma demonstração da magia do universo visual de Blade Runner, isto é, a Los Angeles de 2019 representada no filme.

A execução, por parte de Scott, com auxílio de Trumbull, do imaginário da narrativa de Philip K. Dick e dos objetos de Mead passa por um fator pouco a pouco revalorizado pelo cinema: a ausência de computação gráfica. O cenário de Blade Runner é real, portanto a cidade a que assistimos foi montada – tanto as ruas como as estruturas grandes, em miniatura (conforme demonstra a imagem de abertura).

O resultado da população daquela Los Angeles nos mostra camadas e camadas de pessoas, cada qual com um capricho em sua identidade. A cena em que o protagonista, Deckard, persegue Zhora, uma replicante (indivíduo criado por bioengenharia), é especialmente emblemática para visualizar essa dimensão. Podemos assistir à sequência neste link.

Nela, vemos figurantes de roupas, etnias, semblantes, religiões e culturas diferentes – com ritmos, direções e atividades diferentes. Pinçar frames não faz justiça à cena, pois retira dela o movimento e o dinamismo da composição entre esses elementos tão breves – mas aqui está um exemplo.

Não há música, apenas os ruídos caóticos da cidade: passos, veículos, diálogos, cantoria, semáforo sonoro. A quantidade de detalhes é embasbacante; a variedade de roupas, extrema. Em poucos minutos, enxergamos, portanto entendemos em que consiste aquele universo. Chuva e néon são elementos da composição, não muletas visuais.

Por fim, ‘Blade runner blues‘, de Vangelis, emerge no desfecho da sequência para indicar que o resultado da perseguição é um tanto trágico, apesar de o protagonista alcançar seu objetivo. E nós, o público, queremos cada vez mais morar naquele ambiente, mesmo diante de todas as informações explícitas e implícitas de seus problemas. É a magia da catarse.

É claro que isso não exige apenas imaginação e boa vontade. Executar tamanha escala de perfeccionismo demanda não só trabalho como orçamento – ninguém classificaria tarefa similar como tranquila, ou mesmo exequível.

Mas é exatamente por isso que, quase 40 anos depois, Blade Runner permanece uma referência visual para gênios e genéricos. Para a Heineken; para o cara de ‘Old town road’; para Luan Santana e Alok; para a Claro. Ao contrário dos indivíduos, o sublime não se vai como… ok, como lágrimas na chuva.


  • Inebriado pelo universo de Blade Runner? Aproveite nossa playlist com ambientações (ruídos, músicas, recortes) do filme.
  • O documentário Dangerous Days (2007), de três horas e meia, segue como dádiva absoluta para os fãs.
  • Outra cena é especial para a ambientação: quando Roy Batty e Leon Kowalski se encontram, logo antes de visitar Dr. Chew, o fabricante de olhos. Eles caminham pela direita da tela e somem de nosso campo visual. Ao invés de cortar a sequência, o diretor opta por movimentar a câmera para a esquerda, onde não há mais personagens relevantes ou ação. Vemos somente a cidade a partir do que parece ser um beco, e então um grupo de ciclistas passa. Só depois revemos Batty e Leon, já de outro ângulo, agora atrás dos ciclistas – que ainda trafegam pelo centro da tela. Assim assimilamos a perspectiva do cenário, compreendemos o que compõe a cidade e, mais do que isso, nos deixamos levar pela experiência estética de contemplá-la.

Louis Vuitton, mestre das malas

Extraído da edição 57 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Existe uma diferença significativa entre o primeiro baú – de topo arredondado – e o segundo – retangular. Para constatá-la, basta juntar vários destes objetos: uma pilha de unidades do baú retangular se manterá em seu devido lugar, ao passo que uma pilha de unidades do baú arredondado formará um caos semelhante a uma rodada de Tetris encerrada precocemente.

Essa desordem em nosso cenário hipotético prejudica os objetos contidos em cada baú arredondado. Por sua vez, o cenário hipotético já não foi apenas hipotético: muito antes das malas com rodinhas (“Como é possível conceber que se passaram quase 6 mil anos entre a invenção da roda e essa implementação brilhante (por algum fabricante em um monótono subúrbio industrial)?“) e dos extravios em Guarulhos, viajar exigia um empenho logístico maior do que um check-in no app da Latam.

Na metade do século 19, durante ou depois da Revolução Industrial, para se deslocar era necessário subir em uma carruagem, barco ou no recém-desenvolvido (e lento) trem. Nesse contexto, um sujeito muito astuto otimizou a maneira como indivíduos poderiam carregar e guardar suas bagagens. Pelo título do texto, você deve imaginar a quem nos referimos, o que remove qualquer margem de surpresa.

O adolescente Louis Vuitton (1821-1892), antes de ser simulacro de camelódromo, tendo perdido pai e mãe, saiu de Anchay – a pouco menos de 500 km da capital – para morar em Paris, onde se desenvolveu na confecção de bagagens sob a tutela de Monsieur Maréchal.

Com o tempo, Vuitton se tornou empacotador oficial da corte (com ô) francesa – pense num cara bom com malas, não é mesmo? Hahahahaha… Era ele, portanto, o responsável por organizar os baús de ninguém menos que a imperatriz Eugênia, esposa de Napoleão III. Também era responsável por fabricá-los (os baús, não os monarcas).

Além da experiência, isso lhe rendeu clientes, contatos e, claro, status. Quando Vuitton abriu a própria loja, na década de 1850, o transporte ferroviário crescia. No fim dessa mesma década, Louis Vuitton implementou seus inovadores baús retangulares. Ele havia se inspirado na marca inglesa H. J. Cave, creditada como a primeira a confeccionar bagagens de mão.

A engenhosidade de Louis Vuitton lhe valeu a consagração, que perdura até hoje. Por sua vez, o logotipo da LV foi desenvolvido após a morte do criador, já visando a impedir falsificações. Mérito de seu filho, George, que também ajudou a criar o sistema de trancas nas bagagens – até então (estamos falando das últimas décadas do século 19), qualquer um podia furtar os pertences contidos nas malas. Como no aeroporto de Guarulhos!

Como (mas não necessariamente por que) Community é brilhante

Extraído da edição 56 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Community

Dez anos atrás – um pouco antes, um pouco depois – a emissora americana NBC encaixava uma sequência mágica de séries de comédia. Nas noites de quinta-feira, o canal de TV aberta transmitia The Office (2005-2013), 30 Rock (2006-2013), Parks and Recreation (2009-2015) e Community (2009-2015), não necessariamente nessa ordem.

Até o momento, todas envelheceram muito bem. Claro que não faz muito tempo que acabaram, portanto não dispomos do distanciamento necessário para cravar a relevância histórica de cada uma, mas é notável como a audiência da internet não só não permitiu que arrefecessem como parece impulsioná-las gradativamente.

Community retornou à Netflix brasileira há pouco tempo, o que tem renovado seu público. A série também está disponível no Prime Video. Já faz mais de dez anos que o primeiro episódio foi ao ar, e esse envelhecimento reforça a impressão de que Community estava à frente de seu tempo.

As histórias de bastidores da produção são bastante conhecidas. A maioria envolve as peripécias do criador, o idiota-prodígio Dan Harmon, e o temperamento complicado de Chevy Chase, de longe o nome mais famoso da atração, ao menos quando ela começou.

Grosso modo, Community não conseguia uma grande audiência. Harmon foi demitido da própria criação. Uma temporada se passou sem ele – abaixo das outras. Surpreendentemente, Harmon foi readmitido para outra. Durante e depois dela, alguns atores deixaram a série, a qual foi cancelada, então magicamente reativada pelo Yahoo, onde permaneceu por uma temporada final. A audiência se manteve, se não baixa, ao menos pouco impressionante. Mas Community terminou com dignidade.

E, de fato, não abordaremos tanto por que razão Community é brilhante, embora possamos fazê-lo em outra oportunidade. A série é engraçada (oras); tem personagens carismáticos, com dilemas verossímeis; carrega a metalinguagem como recurso, não muleta; fornece pastiches e paródias caprichados; abraça o multiculturalismo dos personagens de forma muito genuína.

Enfim, como toda ou, pelo menos, a maioria das obras extraordinárias – e Community é uma obra extraordinária –, o êxito artístico da criação de Dan Harmon exigiu a colaboração de um núcleo de pessoas talentosas. Afinal, como já sintetizou José Mourinho, “sem ovos, não se fazem omeletes – e depende da qualidade dos ovos”. Isso responde como Community se tornou brilhante: com muitos ovos de qualidade.

Depois de Community, Dan Harmon criou Rick and Morty (2013-) com Justin Roiland. A animação estourou e dispõe da notável vantagem mercadológica de vender bonecos e afins. Além disso, ser uma animação (que depende mais do próprio Roiland, quem grava as vozes dos protagonistas) confere uma flexibilidade maior para contornar o comportamento errático de Harmon.

Os irmãos Anthony e Joseph Russo, produtores executivos da série e diretores de 48 de seus 110 episódios, acabaram contratados pela Marvel para dirigir Tanto Faz 5 e Herói Genérico 7, além dos dois últimos filmes dos Vingadores. Cada um deles rendeu mais de US$ 2 bilhões aos androides da Disney, e o último detém a maior bilheteria da história do cinema.

A Enclave não assistiu, portanto não avalia; fato é que ninguém é escolhido para tocar um projeto tão grande sem apresentar um leque amplo de habilidades – mesmo que depois elas sejam pasteurizadas sem dó.

Por sua vez, Ludwig Göransson, responsável pelas músicas autorais que ouvimos ao longo de Community, compôs as trilhas sonoras de Creed (2015), The Mandalorian (2019-) e Tenet, o próximo filme de Christopher Nolan. Além disso, colabora frequentemente com o rapper Childish Gambino, assinando composições e produções em todos os seus álbuns.

Childish Gambino, para quem desconhece a ligação, é Donald Glover, e Donald Glover – ator, músico, roteirista (de 30 Rock, inclusive) e criador de Atlanta (2016-) –, hoje mais consagrado do que nunca, é um dos protagonistas de Community.

Ainda no elenco, Jim Rash ganhou um Oscar pelo roteiro adaptado de Os Descendentes (2011). Alison Brie, que já dava as caras em Mad Men (2007-2015), participou de BoJack Horseman (2014-2020) e estrelou GLOW (2017-2019). John Oliver estourou na HBO com seu Last Week Tonight (2014-). Concluímos que eram ovos muito competentes em diferentes esferas: está respondido o como.

Anteontem (18), durante a quarentena, o elenco se reuniu (com Dan Harmon) para ler o roteiro de um episódio icônico da quinta temporada – um bottle episode, isto é, aquele mais econômico possível, que geralmente se passa em um só cenário. Eles também responderam perguntas de fãs.

Há uma leveza na dinâmica dos envolvidos – leveza repetida em toda interação pública de elenco e produção, que costumam se reunir em diferentes projetos atuais. Essa naturalidade, a famosa química, é mais abstrata, mas certamente explica, ora como causa, ora como consequência, como (e por que) uma obra consegue atingir todo o seu potencial. Pode ser verificada na constância com que um faz o outro gargalhar, costurando a atmosfera típica de piada interna.

Community é uma série sobre amizade e (não) pertencimento. Joel McHale, protagonista (e eventualmente produtor informal), compreende exatamente a que se refere a magia de seu conteúdo: “Dan (Harmon) é o mestre das piadas dirigidas aos personagens, e há uma diferença muito grande entre piadas e piadas dirigidas aos personagens, que partem do que se passa com o personagem – em oposição a ‘aqui vai algo engraçado para falar’ (…). Por isso eu ficava furioso quando algum crítico dizia ‘é só humor referencial’.”

Com os instrumentos certos, Dan Harmon conseguiu converter sua visão em uma comédia demasiadamente humana, traduzindo a insegurança, o comprometimento e o humor derivados da construção de intimidade. Community emula o conforto de ser alvo das piadas de um amigo muito próximo.

Igualmente humanos: adeus a Tony Allen, Aldir Blanc e Florian Schneider

Extraído da edição 55 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Tony Allen (esquerda), Aldir Blanc (superior direita) e Florian Schneider (inferior direita).

Já havíamos sentido a morte de Moraes Moreira em abril. Mas três outras mortes – tão demograficamente distantes, tão inquestionavelmente impactantes – afetaram a música nos últimos dias.

Em 30 de abril, perdemos Tony Allen, 79, em razão de um aneurisma da aorta abdominal. Nigeriano, Allen era um baterista extraordinário, reconhecido por tocar (e, literalmente, conduzir) a banda de Fela Kuti, expoente do afrobeat, que muito influenciaria o pós-punk e, posteriormente, a música eletrônica. Sobre ele, disserta o convidado Matheus Chequim.

Tony Allen pode não ter sido o rosto nem a voz do afrobeat – este certamente foi seu parceiro Fela Kuti. Mas nada disso se sustentaria em pé sem um corpo, do qual saem pernas e braços e onde fica o coração: órgão fundamentalmente rítmico e mais essencial do organismo. Este foi o baterista Tony Allen. Sem ele, jamais teria existido o afrobeat – palavras do próprio Fela.

Se o afrobeat assim é chamado, é porque existe algo de distinto sobretudo em seu ritmo, em sua batida. Na percussão não existe tonalidade. Isto é, não existe fá, nem sol, nem ré. O papel da bateria é essencialmente o da sustentação, mas há diversas maneiras de se equilibrar. Tony Allen criou silenciosamente um ritmo que foi capaz de segurar a explosão e a inquietação de Fela Kuti, e ao mesmo tempo libertar os corpos que, contagiados, inevitavelmente se põem a dançar.

O afrobeat seguramente não morrerá. Mas a morte de Tony Allen nos tira um criador prolífico que jamais se acomodou com um legado que já havia precocemente deixado escrito. Nas últimas duas décadas de vida, trabalhou com os mais diversos músicos, se associando a artistas como Damon Albarn (Blur/Gorillaz) e Charlotte Gainsbourg. Também chegou a gravar disco com o “mago” do techno, Jeff Mills.

Miles Davis disse um dia que o afrobeat era a música do futuro. Brian Eno considerou Tony Allen o maior baterista que já viveu. Certa vez, quando indagado se pensava em aposentadoria, Tony Allen declarou: “Não sei o que essa palavra significa.Tocarei até meu último suspiro.

Em 4 de maio, morreu Aldir Blanc, 73, vítima de COVID-19. Blanc era compositor e cronista; exalava o carioquismo reconhecido pelo Brasil e pelo qual o Brasil é reconhecido. Em Vida Noturna (2005), interpretou todas as letras de um disco pela primeira vez. Com a palavra, Daniel Zanella.

A morte de Aldir Blanc me comove como a derrota de uma estrela, ocasião suspensa de supernova — borboleta vadia, nos deixa na chuva, com a mão no bolso. O compositor carioca é a tríade basal da letra brasileira, ao lado de Chico Buarque e Paulo Cesar Pinheiro, sem a importância de ordens e estabelecimentos, afinal, quem orgulhava-se de ser o emérito do boteco, “Doutor, quer cerveja ou pinga com limão?”, não corria atrás de pinguins de geladeira.

A música brasileira, enquanto patrimônio, enquanto sumidouro do espelho… Existem tantos outros grandes compositores, tantos outros que foram acometidos pela desgraça de bem-escrever, compositores de um Brasil hediondo com seus expoentes, um Brasil que cantarola letras sem saber intencionalmente quem as compôs. Aldir, artista introspectivo, reflete, tensiona o que é ser contemporâneo, pertencer ao agora, e ainda nos remete ao estremecer das essências primeiras.

Aldir… Aldir atingiu um índice fundador de sujidade e lirismo, de indiscrição e elegância. A sua gnose era a gnose do bar, a gnose do amor derradeiro, a gnose do silêncio, como se habitasse em suas letras uma paleta de sóis discretos, luminar de grandezas e ressalvas. Ouvir “Vida Noturna”, espantosa madrugada serena em forma de disco, de 2005, resguarda as profundezas desse compositor, e aqui também intérprete, ora na direção do pôr do sol, ora diante do quarto silencioso, “que amores terminam no escuro, sozinhos”.

Ouvi-lo pela primeira vez sempre foi aquela pinga da sede de noite, o estupor do conhaque, a mulher de vermelho disparando no crepúsculo. Reouvi-lo: a constatação do fim em si mesmo, a aceitação do sorriso covarde, a claridade da manhã que se mede pelo simples, pelo direto, o cultivo da tristeza, um piano acompanhando o desterro.

Constelação maior, Aldir Blanc sempre foi estar no melhor inferno ao som da Ave-Maria. Para onde foi Aldir Blanc? Tudo depende, como “depende o seu conceito de assassinato”, especula em “Lupicínia”. Certamente os gênios brindam no céu, “andorinhas fazem ninho nas ruínas” e os deuses embriagam-se da essência do imorrível.

“Estrela é só um incêndio na solidão”, escreveu.

Por fim, em 6 de maio o público foi informado da morte de Florian Schneider, 73 – que ocorrera, por conta de um câncer, em 21 de abril. Schneider fundou o Kraftwerk com Ralf Hütter no início dos anos 1970 e deixou o grupo em 2008. Além de fundadores, ambos foram responsáveis pela fase mais prolífica da banda, na segunda metade daquela década.

A influência do Kraftwerk, a perfeita simbiose homem-máquina, é imensa, imensurável. Mapeá-la não diz respeito a quem tentou reproduzir ou emular seu som – vai muito além disso. É um exercício análogo a entender como a evolução da tecelagem afetou a produção de roupas.

Schneider e Hütter são responsáveis por um impulso sem fim na produção de ritmo, textura e melodia. ‘Neon lights‘, contida na obra-prima The Man Machine (1977), é uma síntese disso em 9 minutos.

É quadrada, porém melódica. Seus sintetizadores, melancólicos, conduzem à poesia imagética do futuro com a qual o Kraftwerk se consagrou. Uma letra simples e cantarolável é pincelada, então gradativamente cede espaço a uma suave combinação de rastros sonoros tenros, longos e devaneadores, potencializados em um fone de ouvido competente ou em uma caixa de som grande e limpa.

Também há o fator visual. Poucos grupos se tornaram tão marcantes, tão reconhecíveis como aqueles quatro robôs no palco, que permitiram de uma só vez não só uma identidade inconfundível, mas também a condução enigmática, misteriosa e privativa da trajetória do grupo.

Kraftwerk, uma criação tão alemã com consequências tão universais, tornou-se significado e significante, um farol mental a guiar seus sucessores. A morte de Florian Schneider é sensível por nos lembrar que nem mesmo esse robô brilhante (enigmático, misterioso e privativo) escapa à condição de humano.

Se Tony Allen, Aldir Blanc e Florian Schneider se juntassem para criar uma só música, teríamos lírica, percussão e melodia. Orgânico e eletrônico. Nigéria, Brasil e Alemanha. Tudo o que perdemos em algumas semanas.

Melancolia mortal da trilha sonora infantil

Extraído da edição 54 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Na infância, é improvável que consigamos mapear exatamente aquilo que nos cativa em um filme ou personagem. Nossa rede de conexões é confusa; nosso vocabulário, limitado. Talvez por isso mesmo aquilo que nos cativa cedo seja tão direto, instintivo e marcante; talvez, ao contrário, por isso seja mais frágil – não tenho ideia.

De todo modo, houve um momento do ano passado em que minhas emoções me pegaram de surpresa. Comia (um prato executivo de arroz, feijão, frango e salada) durante meu intervalo de almoço e utilizava meu fone de ouvido para gastar tempo no YouTube.

Levado pelo algoritmo, revi determinada cena de um desenho muito querido em razão do apego emergido e consolidado na infância. Ao assisti-la, subitamente senti aquele amortecimento dos pômulos que denuncia o despertar das glândulas lacrimais: eu estava segurando choro. O que não era ou é comum, muito menos diante de um prato de frango grelhado, em público, às 12h30.

A cena provinha de Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya, 1986-1989), anime muitíssimo popular entre as crianças brasileiras dos anos 1990. Não lembrava sequer a última vez que havia visto qualquer coisa relacionada com a franquia, e ainda assim aquilo me derrubou de imediato.

Para quem não conhece ou não se recorda, Cavaleiros do Zodíaco, criação de Masami Kurumada (1953-), é puro melodrama. Os cavaleiros em questão usam armaduras e lutam em defesa da reencarnação da deusa Atena. A todo momento, os protagonistas, órfãos e irmãos de criação, precisam superar adversários mais fortes em seu caminho de sangue, suor e lágrimas.

Um amigo apanha pelo outro, sacrifica-se pelo outro, tenta (ativamente, às vezes comicamente) morrer pelo outro. Todos se motivam e lutam por uma causa maior, e no fim o personagem principal (Seiya), após ser surrado feito purê, sempre resiste e vence.

O universo da narrativa consiste em uma mistura desenfreada de mitologia greco-romana e nórdica, cristianismo e budismo, astronomia e astrologia a partir da qual uma molecada se estoura na porrada usando armaduras caprichosamente desenhadas – até porque boa parte do apelo da série vinha, ou melhor, ainda vem, da venda de bonecos.

Por fim, a cena que me comoveu era a de Hyoga, um cavaleiro de bronze, derrotando o próprio mestre, Camus de Aquário. Se essa sequência de palavras não lhe diz nada, não há problema, pois a trama não será relevante aqui. (Mas o nome “Camus” é sim uma homenagem explícita ao autor d’A Peste.)

O fato é que, naquele momento, meu cognitivo finalmente ligou os pontos – e só precisou de vinte anos para fazê-lo. O que impulsionava a comoção súbita era, além do melodrama usual das mortes do anime, sua trilha sonora, sempre sinfônica e melodiosa.

É típica da produção. Nos momentos dramáticos de Cavaleiros do Zodíaco, não raro um acompanhamento vocálico se junta à orquestra. ‘Inside a dream‘ é um exemplo clássico; ‘Sad brothers‘, outro. ‘Aria of the three‘ toca na cena mencionada.

Até então, essas melodias marcantes não me apontavam nome ou rosto. Mas o responsável pelas trilhas sonoras é – era – Seiji Yokoyama. Não sei quão comum é ou era compor sinfonias tão completas para animes; conheço pouco sobre este universo. No entanto, é certo que as composições de Yokoyama – ora épicas, ora suaves, sempre com belos arranjos –, não contêm nada de intrinsecamente infantil.

Seiji Yokoyama morreu de pneumonia em 2017, aos 82 anos. Não sabia quem ele era, portanto não pude lamentar. Sua música comoveu minha infância e, de forma contraintuitiva, hoje parece comover ainda mais. Ao identificar seu valor, descobri uma lembrança de morte que continuará comigo.

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Menos colarinho, mais Marlon Brando

Extraído da edição 53 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Da esquerda para a direita, Cary Grant, Clark Gable, Humphrey Bogart e Gary Cooper

Você provavelmente está usando uma camiseta agora, principalmente se estiver em casa. Eu estou. Mas se prestarmos atenção às representações visuais de um passado não muito distante – desde o início do século 20 –, observaremos essa peça em contextos diferentes do atual. Em Mad Men, Peaky Blinders e virtualmente qualquer filme de guerra ou western, a camiseta costuma ser encontrada sob a camisa de botões do personagem masculino.

Ora com henley, ora com ceroula, ora com union suit, fato é que o dorso esteve coberto de maneiras diversas, intermediando a relação da pele com a camisa. Em determinado momento, porém, a camiseta – esta tão popular hoje – deixou de ser algo que usa se por baixo para se tornar algo que se usa. Quando, exatamente?

Claro, transformações culturais não ocorrem do dia para a noite – seria irresponsável atribuir tal mudança a um só evento. Por outro lado, isso é exatamente o que faremos, visto que carecemos de compromisso com a verdade, confundimos correlação com causalidade e porque, afinal, acabamos de alertar para nossa licença poética (“qualquer coisa, chama de literatura”, aconselhou um amigo historiador, sóbrio há quase dez dias).

Uma contextualização responsável já foi feita no Gizmodo, cuja leitura recomendamos. Dela extrairemos algumas informações antes de seguir adiante:

“Pouco após o fim da guerra, o autor F. Scott Fitzgerald se tornou a primeira pessoa conhecida a usar a palavra ‘camiseta’ (ou t-shirt, em inglês), em seu romance Este Lado do Paraíso, como um dos itens que o personagem principal leva para a universidade. (…) Quando a Segunda Guerra Mundial começou, a camiseta ‘moderna’ já era comum em escolas e universidades pelos EUA, mas não era onipresente e ainda era usada por adultos, por exemplo, como uma camisa interior. (…) O que fez com que elas se tornassem populares entre todos foi o fim da guerra, quando os soldados voltaram para casa e começaram a incorporar a vestimenta ao guarda-roupa tradicional, da mesma forma como faziam durante a guerra.”

Pois bem. Lembremos o arquétipo do galã na Era de Ouro de Hollywood, desde antes até depois da Segunda Guerra (1939-1945): Cary Grant, Clark Gable, Humphrey Bogart e Gary Cooper, como na imagem de abertura deste texto. Há um padrão claro ali, isto é, de vestimenta – sequer abordaremos fatores raciais, ainda mais evidentes.

Estes senhores, enfim, estão devidamente engomados para nossos padrões atuais. A estrela hollywoodiana, dentro ou fora das telas, era um homem de terno de flanela cinza até os anos 1950, e terno, colete, Brylcreem e chapéu.

Em 1951, o filme Uma Rua Chamada Pecado foi lançado, adaptando a peça homônima de Tennessee Williams (A Streetcar Named Desire, 1947, também traduzida como Um Bonde Chamado Desejo – que, por sinal, hoje seria um ótimo título de funk carioca). E um jovem Marlon Brando, então com 26 anos, apareceu da seguinte forma.

Mais sedutor do que nunca, Brando foi Stanley Kowalski, papel que já vinha interpretando na peça durante temporada da Broadway. Este personagem havia retornado da Segunda Guerra Mundial, e não por acaso é um grande adepto de uma simples camiseta (suada, gasta e até rasgada). Stanley é bruto, instintivo e carnal, uma contraposição visível ao galã hollywoodiano clássico.

Marlon Brando também representava uma mudança na forma de atuar, empregando um envolvimento total ao personagem. Essa postura – a que estamos acostumados hoje – difere do melodrama mais caricato a que associamos a atuação até meados do século passado. Fato é que Brando – à vontade, ousado, e já falei suado? – tornou-se um ícone visual, independentemente de quão abominável pudesse ser o desfecho de seu personagem. A partir do filme, a camiseta passou a ser muito mais aceita, utilizada e procurada como uma peça autossuficiente, isto é, sem a condição de roupa íntima.

Podemos enxergar este momento como um estopim. A camisa e o terno são cada vez mais associadas a contextos formais, ao passo que a camiseta, leve e prática – de algodão ou poliéster, com ou sem estampa –, foi abraçada pelos mais diversos grupos demográficos. Marlon Brando evidentemente não é a causa de adesão generalizada desta peça no planeta, mas um empurrão – e um ponto de referência. Aquele alinhamento do zeitgeist que, se não ocorresse por meio dele, talvez ocorreria da mesma forma, pois a receita já estava no forno. (Não somos tão descompromissados com a verdade!)

666, o número do… Vangelis

Extraído da edição 52 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

“QUALQUER UM COM INTELIGÊNCIA PODE INTERPRETAR O NÚMERO DA BESTA. É O NÚMERO DE UM HOMEM. ESTE NÚMERO É 666.” (RecordMecca)

O grego Vangelis (leia-se vanguélis, não vângelis) é um músico consagrado, consagrado demais. Ele é responsável pelas trilhas sonoras de Carruagens de Fogo (1981) e Blade Runner (1982), por exemplo.

Prolífico, onipresente e longevo, é natural que Vangelis tenha assinado inúmeros materiais para contextos diversos. Dessa forma, seu catálogo contempla desde música oficial de Copa do Mundo (2002) até a série Cosmos (1980), de Carl Sagan, que utilizou algumas de suas composições antes da popularização extrema do artista.

Dependendo da boa vontade, este grego pode ser visto como um mago do sintetizador e engenheiro da música eletrônica; também pode ser visto como um chato de new age ou sinônimo de composições datadas – ou tudo isso junto. (Estamos mais inclinados à primeira interpretação.)

E quem é jovem – como todo o corpo maciço da Enclave, composta de millennials que não coexistiram com a Iugoslávia – não teve acesso ao que Vangelis fez antes de ser o Vangelis, isto é, quando Evángelos Odysséas Papathanassíou era apenas um compositor/tecladista grego com um nome tipicamente grego tocando em uma banda grega.

A banda atendia por Aphrodite’s Child, e seu último disco é uma obra-prima.

Essa informação pode soar quase ofensiva aos mais velhos, pois a Aphrodite’s Child atingiu um sucesso notável na década de 1960, e seu vocalista, Demis Roussos (1946-2015), tornou-se uma estrela mundial. Roussos se apresentou diversas vezes no Brasil e, reza a lenda, lotou um Maracanã com capacidade para 150 mil pessoas – informação que não conseguimos confirmar em nenhuma fonte confiável.

(O fato é que Demis Roussos, notabilizado pelo figurino criativo e pela obesidade gradativa, foi um fenômeno setentista; se você, colega millennial, não o conhecia, é possível que seus pais ou avós o conheçam. Por sua vez, se você viveu o ápice da Aphrodite’s Child, muito obrigado por ler a Enclave e contorcer nossa demografia limitada – compartilhe sua memória conosco.)

Os dois primeiros discos, aos quais não nos atentaremos, são leves, agradáveis, certinhos. ‘Rain and tears‘, do primeiro, e ‘It’s five o’clock‘, do segundo, representam bem a combinação de arranjos limpos e voz angelical que caracterizava os filhos de Afrodite.

Mas o terceiro, meu amigo, o terceiro é obra do próprio Satã.

Gravado em 1970-71 e lançado em 1972 – quando a banda já havia acabado –, 666 (The Apocalypse of John, 13/18) é uma obra épica e intensa cuja qualidade se sobressai tranquilamente a seu nicho. Isto é, não é necessário apreciar discos conceituais de rock progressivo ou ataques de megalomania da contracultura para compreender por que 666 é tão… bestial.

Todas as músicas foram compostas por Vangelis; e todas as letras, pelo diretor Costas Ferris. Juntos, eles elaboraram o conceito do disco, e as aspas a seguir derivam deste texto robusto de Mairon Machado, cuja leitura recomendo aos interessados.

“Costas [Ferris] escreveu um livro conceitual para o álbum, 666 (The Apocalypse of John, 13/18), e a ideia era simples: um grande circo com acrobatas, dançarinos, elefantes, tigres e cavalos mostrando um espetáculo referente ao fim do mundo. Enquanto o show ocorre com diversos efeitos de luz e som, algo estranho começa a acontecer fora do circo, que é a revelação da destruição do planeta Terra. O público acredita que o que acontece fora do picadeiro faz parte do show, mas o narrador começa a alertar a plateia que aquilo é real. Então, uma imensa e densa batalha entre o bem e o mal passa a ser travada, até que um deles vença!”

666 contou com o retorno do guitarrista Silver Koulouris, que havia deixado a Aphrodite’s Child em razão do alistamento obrigatório. E guitarra era justamente o que faltava para o Pandemônio ser tão expressivo. Com metais, flautas e outras adições variadas, a proposta da banda ficou completa: a melhor maneira de degustar essa empreitada ocorre com ‘All the seats were occupied‘, penúltima faixa do disco, uma porrada de quase 20 minutos que basicamente repassa o álbum inteiro.

Ao contrário de tantas iniciativas de rock progressivo, que às vezes se perdem dentro da própria bunda, 666 não deixa a peteca cair em momento algum. As composições de Vangelis conseguem transitar por gêneros, arranjos e ideias. Basta ouvir ‘Babylon‘, ‘The four horsemen‘, ‘The beast‘, ‘The wedding of the lamb‘ e ‘‘ para testemunhar tamanho alcance – esta última consiste basicamente na obtenção de um orgasmo, o que não poderia ser menos Carruagens de Fogo.

Quem associa Vangelis à tranquilidade da new age ou Demis Roussos à candura de suas canções pode se surpreender ao deparar com uma combinação tão expressiva de fim de mundo, blasfêmia e orgia. Não pela surpresa, mas pela execução, 666 é um discaço e, como o próprio Apocalipse, não envelheceu nada.

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  • 666 inteiro no YouTube e no Spotify.
  • Vangelis é o diminutivo de Evángelos. Por sua vez, o nome completo de Demis era Artemios Ventouris-Roussos.
  • Por onde começar com Vangelis? See You Later (1980). A faixa ‘Memories of green’ seria (muito bem) reaproveitada na trilha sonora de Blade Runner.
  • Aliás, fãs de Blade Runner devem ter percebido (ou estranhado) ao longo do texto: o Aphrodite’s Child lançou ‘Rain and tears‘ em 1968; Vangelis, ‘Tears in rain‘ com o filme. A música acompanha o monólogo final e foi reutilizada por Hans Zimmer em Blade Runner 2049 (2017).
  • Demis Roussos no Jô Soares; Demis Roussos com Hebe Camargo.
  • ‘The friends of Mr. Cairo’, de Vangelis e Jon (Anderson, do Yes) contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura. Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa (12 minutos).
  • Demis Roussos já foi refém do Hezbollah após sequestro do voo TWA 847 em Atenas. Ao longo dos cinco dias de sequestro, o cantor completou 39 anos. “Eles me deram um bolo de aniversário e um violão para cantar. Foram bastante educados conosco”.