Baú: Trevanian

Extraído da edição 108 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Nikolai tocou com os dedos o supercílio quebrado. — Não foram os seus guardas, senhor. A maioria dos ferimentos é o resultado do interrogatório ao qual me submeteram os americanos.

— A maioria deles? E os outros?

Nikolai abaixou os olhos na direção do chão e pigarreou. Sua voz estava áspera e fraca e naquele momento precisava ser fluente e persuasivo. Prometeu a si mesmo que não permitiria, nunca mais, que a sua voz fraquejasse por falta de exercícios. — Sim, a maioria. O resto… Devo confessar-lhe que cometi algumas auto-agressões. Desesperado, bati com a cabeça de encontro à parede. Foi uma atitude tola e vergonhosa, mas sem nada para me ocupar a mente… — deixou que a voz definhasse e manteve os olhos baixos.

O Sr. Hirata estava perturbado só de pensar nas repercussões de um caso de loucura e suicídio quando já estava no final de sua carreira, especialmente agora que só lhe faltavam alguns anos para a aposentadoria. Prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance e saiu da cela tumultuado e agitado diante do pior tormento para um funcionário público civil: a necessidade de tomar uma decisão por sua conta.

Trevanian, Shibumi, 1979 (ed. Círculo do Livro, 1984).

Nuno Rau: Entre texto, contexto e interpretações (ou: Baudelaire, quem diria, acabou no Mercadão de Madureira…)

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Confessar, preciso confessar que as primeiras vezes que entrei em contato com a poesia de Baudelaire, algo que estava posto sobre os versos — e entre eles — me fazia sentir um certo incômodo, em parte, e um tanto de tédio. Antes disso, na infância e na adolescência, lia os poemas como uma experiência direta e sem filtro de nenhuma natureza, e foi assim que atravessei românticos, parnasianos, modernos, tudo que se abrigava sob o nome de poesia chamada marginal (que só merecia esse rótulo agregador por sua marginalidade em relação ao mercado), o furacão Fernando Pessoa, e alguns inclassificáveis, como Augusto dos Anjos. Revirando aqui esse tempo, percebo que talvez tenha começado cedo a tentar entender o que existia de pensamento para além das margens dos poemas, o que havia de debate sobre a produção d_s poet_s: lendo as revistas dos anos 1970 — Revista Escrita, José, e O Saco, principalmente, além de ter conseguido naquela época as também incríveis Navilouca e Almanaque Biotônico Vitalidade, que não continham entrevistas ou ensaios, mas cujos projetos eram, em si mesmos, projetos-pensamento —, lendo aquelas revistas comecei a conhecer o que gravitava em torno da escrita, algumas das questões específicas da poesia e outras, do campo ampliado da cultura.

Foi ali pelos vinte e bem poucos que cheguei a Baudelaire, e nesse momento já tinha o hábito de buscar apoios no que havia sido escrito sobre _s poet_s que estava lendo, achava — e não estava exatamente errado — que, por esse caminho, iria encostar melhor na pele dess_s poet_s, perceber seus mínimos movimentos, capturar garrafas de náufrago tantos nos versos como nos espaços entre eles, esse contrabando que poetas mais interessantes fazem embarcar no que escrevem e nem sempre (quase nunca?) são realmente decifrados. Pois aqui, nessa articulação, caí numa armadilha: o que havia me chegado às mãos sobre Baudelaire não passava de uma recepção conservadora – e, por isso mesmo, equivocada – de sua poesia. A leitura pela chave da arte pela arte (o poeta como artista puro e reacionário em política), a ênfase absoluta nos procedimentos técnicos, ótica pela qual ele não diferiria estruturalmente dos parnasianos, a fixação de sua imagem como um dândi, um burguês excêntrico, tudo me levava àquela sensação incômoda de tédio, que nada mais era do que uma recusa do que os comentários sobre a obra faziam aderir a ela, no contexto da minha experiência pessoal de poeta muito jovem e sem grana num subúrbio afastado de uma das periferias do capitalismo.

Essa sensação só começou a se dissipar quando conheci o que Walter Benjamin escreveu sobre a poesia de Flores do Mal, e se afastou de vez quando li os livros de Dolf Oehler sobre o mesmo assunto. Foi por tais leituras que soube que a reação de Brecht a Baudelaire foi semelhante à minha, e mesmo, de um modo geral, a crítica de esquerda até um dado momento — Lukács, Sartre etc. Sob essa chave de interpretação, a leitura caía refém de uma série de esquematismos, mal-entendidos e condenações acríticas, porque, na realidade, Baudelaire cifrou em seus poemas uma crítica profunda a respeito do pensamento burguês e seu modus operandi. Seria uma contradição minha essa recusa ao poeta da arte pela arte, o poeta mestre da técnica, já que considero a técnica (ao lado do conhecimento da tradição) um eixo essencial da poesia? Não, porque a técnica e o conhecimento da história da poesia não são conflitantes com seus aspectos políticos, sociais, além de seu punch existencial. Essa é uma falsa oposição, que, por razões óbvias de espaço, não será possível aprofundar, além de não ser esse o objetivo: o que gostaria de ter exposto era a modificação de meu olhar sobre a poesia baudelairiana, e, com ele, toda a minha compreensão.

Essa longa confissão se deu por conta das artes do Acaso, esse deus quase sempre avaro, mas que tem sido pródigo na minha relação com o RelevO: quase sempre tenho alguns insights prévios sobre esta coluna e, quando recebo o jornal, nele encontro fragmentos que apontam para esses insights. No excelente texto de Greicy P. Bellin sobre os contos de Joyce em Dublinenses , eis que me deparo com uma menção a Baudelaire por conta de sua relação com as transformações de Paris em sua época. De algum modo, também, o poema de Ana Vilalta, por celebrar em sua fatura – e com precisão – uma relação técnica entre poesia e prosa, mostrando como os limites andam mesmo borrados, e também que dessa investigação se pode produzir excelente poesia. Até as traduções de João Moura Fernandes — gostei especialmente das soluções adotadas na versão do poema de Frost — remetem ao Baudelaire tradutor de Poe, assim como as tensões que o poema de Rafael Iotti explora também remete, de algum modo, a ele. Dos textos em prosa, há um pisar no chão do real que me trouxe o trecho de Cerco animal, de Vanessa Lodoño, bem como o humor ácido que se infiltra na dicção do personagem do conto de Marlon Grando, na escolha das palavras que caracterizam uma pessoa de outra geração.

Hoje, penso, não passa despercebido a ninguém que escritor_s, poet_s, folósof_s, crític_s, artistas, todos foram, até há não muito tempo — regra quase geral —, filhos da burguesia, das classes médias, de parcelas bem privilegiadas dessas classes médias. Uma das marcas distintivas da boa literatura, da boa poesia, é o senso de contradição e de oposição com a classe de origem, se essa classe for privilegiada. Baudelaire é apresentado por Oehler, em Terrenos vulcânicos, como um traidor de classe, e Drummond, por Vagner Camilo no excelente livro Da rosa do povo à rosa das trevas, como um deslocado na família, na classe social e na vida pública, um gauche. A saudável diversidade (de classe, de gênero, de orientação sexual) que incidiu sobre o perfil de escritor_s e poet_s mudou a dinâmica como estava estabelecida até o penúltimo quarto do século passado.

A tristeza, a dor e alguma revolta podem nos levar a uma aproximação com o riso — de si mesmo e dos outros — e foi dentro dessa perspectiva que, olhando para a cena da poesia, imaginei a divisão de quem escreve poesia em duas categorias básicas: Poetas da Varanda Gourmet e Poetas Palha de Aço, estes últimos podendo ser chamados de Poetas do Mercadão de Madureira (vocês conhecem o Rio de Janeiro? Caso não, podem trocar por Poetas do Ver o Peso, o antigo, no caso de Belém do Pará. Dica: pesquisem o bairro no contexto do Rio). O mundo literário apresenta a mesma estrutura da sociedade em geral, a mesma divisão de classes, e por vezes de modo nada agradável, para dizer o mínimo, porque inverte os vetores da atribuição de valor, e, em alguns casos, poéticas insípidas são supervalorizadas, e mesmo justificadas teoricamente — o que não as faz menos ruins. Baudelaire seria, aqui, o poeta que desceu da varanda gourmet e veio comer pastel e beber cerveja no Mercadão de Madureira, onde veio se tornar flaneur.

Essa brincadeira pessoal não funciona como esquematização desse pertencimento a mundos diferentes, como se ele possibilitasse ou impedisse a produção de boa ou excelente poesia. Não é tão simples. Uma visão elitista diria que só privilegiad_s são capazes de produzir uma boa escrita, enquanto uma visão populista advogaria que só as classes espoliadas, justamente por essa espoliação, são capazes de produzir poesia de qualidade, posto que crítica. A visão mais realista talvez afirme que só artistas conscientes de suas próprias contradições, estejam onde estiverem, é que podem realizar obras realmente válidas, caso as encarem de frente.

O Baudelaire que habita em mim só se incomodou, na edição de maio, com a menção a Ayn Rand e seu livro A nascente, que defende um individualismo radical bem adequado ao ataque neoliberal de que somos reféns, o que parece ser a tônica da série Mad Men, objeto do artigo da seção Enclave. Por fim, daqui fiquei pensando que o Mateus Ribeirete deve descansar seu corpo massacrado pela Gop Tun 2022 no Relev’Otel Fazenda (vou procurar todas as indicações de som que ele fez, confesso que música eletrônica nunca foi bem a minha praia). Por fim, gostei da viagem em torno do samba de Bide e Marçal, esses bambas cariocas das décadas heroicas da malandragem. Persistente leitor, esteja você no Mercadão de Madureira ou na Varanda Gourmet, pense no junkspace que é o presente em que vamos enfiados até pelo menos o pescoço, e invente as suas formas de rebelião, de não conformismo, como fez Baudelaire pelas ruas de Paris e pelas páginas dos livros — de servidão voluntária já andamos cheios demais.

Sensos e generosidades

Editorial extraído da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O RelevO sempre se diferenciou de uma organização com fins lucrativos – não só pela desorganização de seus primeiros anos e pela incapacidade de lucrar, contínua – e se assemelhou a uma instituição, operacionalmente. Não entendemos, de forma alguma, que o nosso impresso mensal de literatura desenvolva atividades como as de hospitais, universidades e igrejas (sequer temos crenças). Todavia, acreditamos que temos alguma relevância (com o perdão do trocadilho) tanto em quesitos editoriais como de acessibilidade ao nosso trabalho, que busca apresentar novos autores e descentralizar perspectivas do meio literário (o que também não sabemos se conseguimos, dada a nossa limitação logística). De fato, muito do que fazemos é pelo senso livre e particular de gostar do que fazemos – e de primar absolutamente por continuidade.

Nesses quase 12 anos de existência, apostamos muito em nosso senso de comunidade, promovendo a autocrítica constante, criando o cargo de ombudsman, abrindo ao leitorado as cartas mais negativas possíveis e divulgando o nosso balanço financeiro mensalmente. Não temos vergonha de nossos índices e práticas, que até poderiam ser chamadas de modelo de negócio caso tivéssemos certeza que chegamos até aqui com um plano.

A transparência é um pilar do nosso projeto editorial e não negamos que utilizamos desse expediente para a publicidade de nossas ações. Pagamos os autores e autoras e divulgamos isso. Confiamos em nosso corpo de assinantes para superar crises. Esforçamo-nos para entregar, todo mês, o melhor periódico que conseguimos.

Se não apelamos diretamente para o slogan “Não deixe o RelevO morrer”, não deixamos de reconhecer que sempre expomos nossas fragilidades e dificuldades em busca de compreensão e de suporte financeiro. Também por isso, entendemos como necessário agradecer a cada um que ouve nossos chamados nas circulares mensais direcionadas aos assinantes, que nos escrevem depois de nos encontrar numa biblioteca do interior, gente que manifesta generosidade genuína e se compadece da nossa situação de busca simples por continuidade,. E é apenas isso que buscamos: continuar.

Obrigado. Boa leitura a todos.

Nuno Rau: Poet_s vagam atônit_s pelos vãos de um século incendiário (ou: o mundo é um holograma ou essa parada do real é concreta mesmo?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O Acaso é um deus estranho, e sua maior diversão parece ser pregar peças nas pessoas distraídas e desavisadas, às vezes empurrando grandes feitos da História, em outras se satisfazendo com o milimétrico tropeção existencial. O que posso dizer é que foi uma surpresa abrir o RelevO de abril e ver, algumas páginas adentro — meus ímpetos retrô dão saltos mortais triplos de contentamento — as colunas Hi-Fi Braziliance e Enclave. A primeira nos trouxe Dolores Duran com sua “Ternura Antiga”, passeando por diversas versões dessa canção tão delicada, e a segunda estampa a imagem de um cinema, o Fox Bruin Theatre, um palácio de cinema com 670 lugares, localizado no bairro Westwood de Los Angeles, Califórnia, cenário do filme Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino… Fosse por aqui não estaria mais de pé, já que os cinemas andam sendo demolidos, as livrarias fechando, os bares tradicionais da boemia sendo transformados em points de playboys, a cidade derretendo e refundindo seus metais em direções que não podemos supor com precisão, sob o influxo do capital volátil e agora também cripto-alado.

Futuros distópicos à parte, algumas coisas postas na edição de abril me jogaram num campo de reflexão: a paixão de Tarantino por uma Hollywood que não existe mais, o poema da pesada de André Giusti (“Talking ‘bout our generation”), as angústias do poeta Felipe Mamone expostas nas cartas d_s leitor_s, a menção a Edmund Burke no conto de Luciana Merley (“Lendo jornal no Mercado Central”), e a própria imagem de um mercado central, que nos grandes centros do Brasil ocupa, em geral, edifícios do século 19, com estruturas em ferro importadas de Manchester, tudo isso junto me levou a pensar sobre a complicada relação com a tradição, o que implica, por complementaridade, na relação com o presente. Observo com agudo interesse o arco tenso da poesia brasileira há bastante tempo, e nesse percurso observei que, a partir dos anos 1980, o interesse de jovens poetas — com raras exceções — parecia, em paralelo a uma insistente ancoragem à dicção cabralina, se descolar do tecido de nossa tradição e buscar referências exógenas: Cristophe Tarkos, Sylvia Plath, William Carlos Williams estão entre _s preferid_s daquela primeira década pós-marginal, quando a maioria se regozijava em conversar com Oswald, Mário, Bandeira, Drummond, e — por que não? — o invasivo Cabral. Ou seja, parece que um corte foi desferido sobre o tecido que vinha sendo trançado desde, ao menos, Gregório de Matos Guerra.

Um ombudsman às vezes percebe que não consegue se afastar de suas obsessões, e mesmo se esforçando para não sair dos trilhos do que se vincula aos materiais do jornal a que se dedica, acaba trocando as pernas em suas ideias fixas: eis que, como confessei acima, poemas, contos, textos e matérias do periódico me jogaram na cara o precioso tema de nossa relação com a tradição, e suas não poucas contradições (que, por sua vez, se trança com a questão de março (para o que olhamos quando estamos escrevendo?) junto com a de abril (que é escrever poesia nesse começo de terceira década do século 21?). No ensaio Sobre tradição, que integra o volume Sem diretriz: Parva aesthetica, Adorno pontua que “o que parece não ter história, ser um puro começo, é antes de tudo uma vítima da história, e tão mais funesta por não ter consciência disto”, e complementa: “O escritor que resiste aos momentos de aparência da tradição, encontra-se contudo enredado nela, sobretudo por meio da linguagem”; como também: “Assim como a tradição aferrada a si mesma é ingênua, também é ingênuo aquilo que carece de tradição em absoluto, pois desconhece o que há de passado nas relações pretensamente puras com as coisas, não turvadas pela poeira do parecer.”

Para pensadores como Adorno e Lukács, a tradição é incompatível com as sociedades burguesas, está sempre em contradição com elas, empenhadas em sua necessidade de fabricar novos produtos (que na arte se caracteriza pela “crescente e incessante obrigação da recusa, segundo Adorno, pela aceleração na troca de movimentos e programas estéticos), autofagocitando tudo com sua força centrípeta. Com a aceleração do empuxo neoliberal, o descarte do passado é motor da produção do novo, cada vez mais, já que seus processos de produção e reprodução são vinculados tão somente à razão instrumental, prática, e não a uma razão integral, totalizante. Ocorre que este passado permanece como fantasma: convertido em forma vazia, sem relação com as formas sociais que lhes deram origem (e igualmente sem a pesquisa de possibilidades de novas relações dessas formas com as formas sociais), vemos o verso livre, as formas fixas, a experiência do poema concreto, a poesia visual serem empregados acriticamente.

É nesse cenário que a recusa da passada de bastão de poetas como Drummond, Murilo, Mário, Jorge de Lima, Cecília, Henriqueta, entre outr_s, repelidos em face de uma tradição exógena, soa deslocada. Alguém pode argumentar que é visível o diálogo com poetas como Ana Cristina César, Torquato Neto, Hilda Hilst, Paulo Leminski e Roberto Piva, mas desconfio que, nestes casos, a aura romântica que paira sobre a imagem de cada um, como um adensamento de matéria simbólica gerado pelo destino trágico que os irmana, se sobrepõe aos aspectos realmente significativos da obra de cada um, refletindo apenas apreensão superficial, porque sem conversar com a concepção de mundo dest_s poetas, com a História, com suas estéticas. Em lugar disso, a forma pura, o gesto esvaziado de conteúdo.

É nesse contexto, de quem apercebeu-se que o verso não morreu, e que temos que lidar com a falência das utopias (junto com elas, em direção aos mesmos ralos, foram as vanguardas), é que podemos ir conversando criticamente com vozes que vieram antes de nós: a tradição é algo que a gente ama, mas é também, e sempre, o indício de uma tragédia, muitas aliás, que nos trouxeram até aqui – nosso tempo espelha conflitos e contradições que eram ainda mais intensos no século anterior: machismo, racismo, sexismo, a exploração do trabalho, tudo enfim que representa um rol de bandeiras pra gente, agora, e cada vez mais. Não há território pacífico. Quem me conhece sabe que gosto de brincar com sonetos, por exemplo, e isso tem dois lados. Um lado é não afastar uma forma que foi criada e desenvolvida por pessoas como nós, e que tem um teor de atualidade que pode ser recuperado, desde que bem feita a abordagem, desde que não sejamos neoparnasianos, ou tentemos apenas emular a intensidade com que Drummond, Murilo e Jorge de Lima se aplicaram nessa forma, munidos das potências simbólicas de seu tempo. O outro lado é: nenhuma forma nos chega pura, as formas vêm sujas de História, e toda História humana é barbárie (cf. Benjamin).

Não pensar nisso é ser inocente, seja para negar o já feito, seja para abraçá-lo. Isso vale também, e muito, para a apropriação dos ganhos do concretismo. Os textos e manifestos do concretismo e da poesia práxis do período heroico chegam a ser ridículos pela sua fé absoluta no progresso da técnica, o que significava uma adesão a um modelo que politicamente, na prática, estava em contradição com as crenças dos poetas, porque os irmãos Campos, Décio e os demais se opuseram, tanto quanto a turma do Chamie, ao regime do golpe civil-militar de 1964. Resumindo: vivemos sobre um chão de brasas, está ardendo, e a gente se mover é difícil, há gases estupefacientes no ar nublando a visão e toldando a compreensão. Estar no presente de corpo inteiro (e é só isso que temos, todos) é sempre uma aventura complexa em qualquer época.

E para não dizer que não falei da prosa, achei muito interessante que os contos “Emprendedores”, de Cid Brasil, “Lendo jornal no Mercado Central”, de Luciana Merley, o hilário “Celsinho Kaizen”, dos editores, “Estranhos na noite”, do uruguaio Rodolfo Caravia, em tradução de Johann Heyss, bem como o ensaio “Abrace o caos,” de Otávio de Moura Brandão, todos dialogam com fragmentos de nosso mundo atomizado e fetichizado.

Fato é que gostaria de investir uns poucos cobres em ações da cerveja BuZazen, do Celsinho Kaizen (leiam o conto, não vou dar spoiler), deve arrebentar nas vendas, e quem sabe mesmo acionistas mini-mini-minoritários consigam desconto na compra… Tem que ser divertida — apesar dos aspectos distópicos — a aventura: isso é o que nos salva em meio a um século incendiário.

Pedintes

Editorial extraído da edição de maio de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Ao longo de quase 12 anos de existência & suas consequências, o RelevO fez algo além de circular mensalmente e colaborar para o desmatamento de reservas de reflorestamento: pedir.

Desde o dia da criação mental do Jornal, o que mais fazemos é pedir. Foi assim em agosto de 2010, quando conseguimos dois anunciantes para custear a impressão (quando conseguíamos imprimir 1000 jornais com R$ 200). Quinze dias depois, o Jornal começava a circular em não mais do que dez lugares do Paraná, diversos exemplares soltos no banco de passageiros do mesmo Gol 1994 que ainda hoje transporta os fardos coletados na gráfica (com custos que agora aumentam a cada três meses).

Em 2012, ambicionando a estabilidade e o fim da dependência exclusiva de anunciantes, começamos a vender assinaturas, que custavam, então, R$ 50 ao ano. Em pouco mais de dois meses de prospecções, tínhamos 100 assinantes e a esperança de que conseguiríamos mesmo imprimir um jornal de literatura com alguma regularidade. Neste período, demos alguns saltos que podemos considerar, hoje, como excessivamente arrojados para o nosso perfil de investimentos em mais de uma década.

A entrada de assinantes nos levou a tomar medidas de cunho organizacional. Precisávamos entregar os jornais e justificar a confiança daqueles que adquiriam 12 edições antes mesmo de receber a primeira. Ali, aprimoramos nossas planilhas, ampliamos nossa rede de distribuição para angariar mais leitores e chegamos a ter 25 anunciantes em 2015, com edições de 32 páginas e seis mil exemplares de tiragem.

Aí percebemos nosso teto de produção. Com fechamentos confusos e altos índices de erros de checagem, vimos que 32 páginas eram um excesso; também enxergávamos de maneira mais notória os efeitos da crise de formato, com o predomínio do digital e o fechamento de diversas marcas conhecidas da dita mídia tradicional. Tínhamos alguns sinais oscilantes: crescíamos, mas também gastávamos mais energia.

Em 2015, com o aumento de diversos custos (pois veja), como combustíveis e gráfica, começamos campanhas mais agressivas para ampliar o nosso fluxo de caixa. Não foram poucas as noites em que o editor do periódico escreveu para amigos, conhecidos, contatos e qualquer ser humano que pudesse gostar do nosso projeto editorial. “Que acha da ideia de assinar o Jornal RelevO?”. Foi em 2018 que chegamos a 1000 assinantes e pensamos: será possível ter mais assinantes? Acreditávamos que sim – e ainda acreditamos, hoje, com pouco mais de 1100 assinantes (patamar que não conseguimos ultrapassar desde 2019 e que não sofreu quedas severas com as permanentes crises econômicas).

Desde então, o cenário mudou muito. Os custos cresceram ainda mais, os hábitos de leitura mudaram — nos chamam de “experiência offline” —, tivemos uma pandemia, os índices de renovação caíram, as reclamações aumentaram. Ao mesmo tempo, solidificamos nossos processos, nos tornamos ainda mais antifrágeis e convivemos com alguma resiliência com o nosso cinismo, sem fazer clima de terra arrasada, mas também sem deixar de considerar os desafios do nosso meio de atuação.

A pandemia, sem dúvida, foi o momento em que mais pedimos, em que mais apelamos para o nosso senso de comunidade. Ao diminuir a tiragem, cessar a distribuição em pontos físicos e ter os custos aumentados em cadeia, temos cada vez mais dificuldades para abrir novos mercados e dependemos sobremaneira de nossos assinantes.

Não temos vergonha de pedir. Em nossas circulares, destinadas apenas a assinantes e colaboradores, contamos os nossos percalços e os esforços para manter em circulação o periódico que gostamos de seguir produzindo. Não são poucos os dias em que nos perguntamos se não estamos exagerando no drama. E 2022 está mesmo complicado.

Enquanto interessarmos como produto e como projeto literário, pediremos. Quando não for mais possível manter a Operação RelevO, ainda assim seremos gratos por tantos anos e anos em que os nossos pedidos viraram o pagamento de contas, a edição seguinte, a manutenção de nossa circulação. Somos mesmo muito gratos.

Uma boa leitura a todos.

Shibumi!

Extraído da edição 107 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Shibumi (1979), de Trevanian (Rod Whitaker), é um livro esquisito. Não necessariamente pela forma atípica ou por um conteúdo extravagante, mas existe algo inerentemente curioso nesse romance de espionagem.

A começar por seu autor. “Mas quem diabos é ‘Tre-va-nian’? ‘Tre-va-ni-an‘?” foi minha reação ao deparar de algum modo – não lembro qual – com a recomendação de Shibumi pela internet. Quem confiaria em um escritor de um nome só?

Rod Whitaker (1931-2005), a despeito de uma carreira acadêmica regular nos Estados Unidos, não só vendeu, mas também vendeu bastante assinando como Trevanian, um pseudônimo/heterônimo/alterego misterioso que só viria a ser desvendado alguns anos antes da morte da pessoa física.

Whitaker publicou seu primeiro romance – já sob o heterônimo Trevanian, uma homenagem ao historiador G. M. Trevelyan (1876-1962) – em 1972. The Eiger Sanction (Escalada Mortal) logo viria a ser adaptado (e estrelado) por Clint Eastwood, em 1975, para desaprovação do escritor, incomodado com a miopia interpretativa de quem não identificou os tons satíricos da obra.

  • Escalada Mortal acompanha um professor de arte-alpinista-assassino-mercenário (não dá para desconfiar de imediato? Professor de arte não completa uma volta no Parque Barigui, oras).

Mas é aí que as coisas começam a ficar mais interessantes. Porque, considerando o que lemos em Shibumi – e Escalada Mortal (ed. Landscape, 2007) já foi devidamente comprado para a biblioteca Enclave –, Trevanian produz muito mais que apenas paródia.

Afinal, Shibumi é sim um livro esquisito. Também é um baita romance. A narrativa acompanha Nicholaï Hel, nascido de uma aristocrata russa com um alemão e crescido em uma Xangai ocupada pelos japoneses – sem conhecer o pai, praticamente sem a mãe –, depois no próprio Japão (Heru), por fim no Japão ocupado por americanos, após o fim da Segunda Guerra.

Apaixonadamente multicultural e com um explícito viés antiamericano, o universo de Shibumi se estende ao País Basco, onde mora Hel (e onde morou Whitaker), agora um assassino aposentado, embora ainda temido. Também se passa em Londres e em Washington, de onde a CIA alinha suas operações com a Matriz, uma corporação gigantesca e sem rosto controlando o planeta a partir do petróleo e de suas calculadas motivações políticas.

Já em seus cinquenta anos, Hel mora num castelo sem energia elétrica, explora cavernas, joga Go, pratica jardinagem japonesa, é capaz de matar qualquer um com qualquer instrumento (“a fucking pencil…”) e conseguiria entregar prazer a qualquer mulher por uma eternidade. Hel fala quase dez línguas e desenvolveu um senso de proximidade com o qual detecta não só aproximações físicas, mas seu aspecto anímico.

Um James Bond cavaleiro do zodíaco. Hel é o homem, uma máquina, uma besta enjaulada com ódio – apenas à procura de viver com shibumi, uma perfeição espontânea. E, claro, algo o fará voltar ao jogo.

Se os elementos são nitidamente exagerados, para não dizer escrachados, acontece que Trevanian consegue trafegar entre a paródia pornográfica de 007 (um dos personagens se chama D.I.L.D.O!) e o romance de desenvolvimento lento, disposto de enorme caracterização, com maestria – a maestria de quem domina a técnica e se vê forçado a brincar.

Ademais, o livro antecipa diversos tópicos em voga hoje, como inteligência artificial, ecologia, interferências de política externa e a ubiquidade de instituições dúbias. Trevanian aproveita para espalhar seu veneno em vários (vários!) tópicos, da CIA à pop art, todos com a rabugentice fundamentada de que gostamos. Há um senso de humor preciso.

Com a imagem do herói silencioso multicultural de origem misteriosa lutando contra organizações onipresentes, Shibumi inspirou a divertidíssima franquia John Wick – no primeiro filme, até vemos um personagem segurando o livro. Inclusive, Chad Stahelski, o diretor, adaptará o romance para o cinema em algum momento.

Como esta é uma newsletter, grosso modo, de adaptações e intertextualidade, pensemos em alguns pontos aqui.

  • Pela natureza longeva da narrativa, que abrange muitas décadas, será uma tarefa difícil.
  • O antiamericanismo em Shibumi, obra de um americano que adora o Japão, certamente será diluído.
  • Torço para manterem a pluralidade linguística – do russo ao basco –, agora que esse povo finalmente descobriu as legendas.

John Wick, por ora, sobrevive bem à superexposição (já são três filmes, rumo ao quarto), provando que filmes de ações não precisam ser estúpidos. Ou melhor, que podem até ser simplistas, desde que a ação em si seja vistosa, coreografada, bonita.

Afinal, ninguém se importa com explosões sequenciais e cortes indecifráveis, mas é possível aproximar uma luta armada de um balé – e incrementá-la com luzes, trajes e objetos cativantes. John Wick sabe fazer isso (como o primeiro Kingsman também fez).

Mais do que isso – e é aqui que a franquia realmente captura parte do apelo de Shibumi (como o primeiro Kingsman também capturou) –, essas narrativas temperam nossas vidas entediantes com um “e se?” lúdico, constante na infância, mas adormecido na rotina amorfa da vida.

“E se esse vendedor fosse um espião procurando informações?”; “e se essa porta trancada levasse a um porão da máfia?”; “e se esse prédio fosse um centro de comunicação de uma agência secreta?”; “e se esse corredor…”. O universo pelo qual transita o interminável Keanu Reeves carrega todo o ethos do romance – quem o ler logo identificará.

Por fim, ecos de Shibumi atravessam mídias: no videogame, a saga de Metal Gear parece ensopada de Trevanian, ao passo que desbravadores de Mass Effect reconhecerão Thane Krios como um Nicholai Hel alienígena.

Excelente para um livro esquisito: quem duvidaria de um escritor de um nome só?

Baú: Anthony Bourdain

Extraído da edição 107 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Meu primeiro indício de que comida era algo mais que uma substância para se enfiar na boca quando batia fome – como que enchendo o tanque do carro – veio no final do quarto ano primário. Foi durante as férias em que viajamos para a Europa a bordo do Queen Mary e aconteceu no salão refeitório da classe econômica. Há uma foto dessa viagem: minha mão de óculos escuros à la Jackie O., meu irmão caçula e eu terrivelmente chiques para o cruzeiro, alvoroçadíssimos com nossa primeira visita à terra natal dos ancestrais de meu pai, a França.Foi a sopa.

Estava fria.

Uma descoberta e tanto para um menino curioso cuja experiência em sopas até aquele momento ia de creme de tomate Campbell’s a canja de galinha. Eu já havia comido em restaurantes, claro, mas essa foi a primeira comida em que realmente prestei atenção. Foi a primeira comida de que gostei e, mais importante, de que me lembro de ter gostado. Perguntei ao nosso paciente garçom britânico o que vinha a ser aquele líquido deliciosamente fresco e saboroso.

“Vichyssoise”, foi a resposta, palavra que até hoje – mesmo agora, uma veterana cansada de guerra de tantos cardápios, preparada mais de mil vezes por mim – ainda guarda um tom de magia. Lembro-me de tudo sobre essa experiência: a forma como nosso garçom tirou-a de uma terrina de prata com a concha, o frescor das cebolinhas verdes francesas que ele colocou por cima para guarnecer, o gosto cremoso e forte do alho-poró com batata, o choque agradável, a surpresa de saboreá-la fria.

Não me lembro de muita coisa mais a respeito da travessia do Atlântico. Assisti a Boeing Boeing com Jerry Lewis e Tony Curtis no cinema do navio e a um filme com Bardot. O velho transatlântico tremeu, roncou e vibrou que foi um horror a viagem inteira – cracas no casco era a explicação oficial – e de Nova York a Cherbourg foi como cavalgar um cortador de grama gigante. Meu irmão e eu não demorados a nos sentir entediados e passamos grande parte do tempo no “salão jovem”, ouvindo “House of the Rising Sun” na vitrola eletrônica ou vendo a água se mexer para lá e para cá feito um vagalhão contido entre quatro paredes na piscina de água salgada do convés inferior.

Mas aquela sopa fria nunca mais me deixou. Ela ressoou, me acordou, me deixou consciente da língua e, de alguma forma, me preparou para os acontecimentos futuros.

Anthony Bourdain, Cozinha Confidencial, 2000 (Companhia de Mesa, 2016).

Nuno Rau: O sexo é mais importante que a poesia (e que a prosa) (ou: Vicente de Carvalho não era um normal.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Não, prezad_s leitor_s do RelevO. Apesar de abril ser o mais cruel dos meses, criando lilases da terra morta, misturando memória e desejo, ao menos segundo o poeta que, a despeito de ser um conservador, mexeu na água parada da poesia de seu tempo (em qualquer tempo nunca está de todo parada, nunca de todo fazendo onda, ainda que a marola seja muita), este ombudsman ficou apenas preocupado com o editorial de março, que nos relembra o aumento exponencial da conta de luz, o preço da gasolina, os custos postais de envio, tudo isso que torna uma equação complexa o simples fechamento do balancete mensal do jornal, pelo equilíbrio cada vez mais difícil das colunas “créditos” e “débitos”.

Vida de editor é um calvário em vida — excetuando-se, talvez, os daquelas mega-editoras como a Record, a Companhia das Letras, a Penalux e a Patuá (vamos sonhar, Wilson, Tonho e Edu!) —, e só a paixão pela atividade, somada a certa dose de falta de juízo, justifica que uma pessoa dispenda horas que poderia empregar em atividades muito mais lucrativas apenas pra fazer chegar a leitor_s que sequer conhece pessoalmente, na maioria dos casos, um recorte da produção contemporânea de poesia, literatura, tradução etc. Mergulhado em preocupação com o equilíbrio financeiro do Jornal, pensei em formular um título de algum modo sensacionalista para, quem sabe, trazer mais assinantes, e animar alguns daqueles que, combalidos pelos embates da vida (e principalmente impactados pela mesma espiral inflacionária em que o atual desgoverno tem nos mergulhado com cada vez mais traços de sadismo), estejam pensando, dentre as despesas a eliminar, justamente nesse veículo de cultura. Se conseguir, com isso, manter um assinante, já me sinto justificado.

A lembrança do abril de Eliot, no entanto, tem muito mais a ver com nosso presente: The Waste Land foi quase inteiramente escrito sob a influência da pandemia global que abalou o mundo quando mal acabava a Primeira Grande Guerra: a gripe espanhola. Eliot e Vivien Haigh-Wood, sua esposa na época, contraíram o vírus em dezembro de 1918. A guerra havia terminado um mês antes, e o vírus espalhou-se pelo mundo, impulsionado pela movimentação de tropas, com primeiro e maior impacto nos países que participaram do conflito. Contam que Eliot escreveu grande parte do poema durante sua recuperação, e não deve ser fortuita a sobreposição de imagens do Inferno de Dante à paisagem urbana de Londres. Fato é que vamos, agora em 2022, pela casa de 660 mil mortes pela COVID-19 só no Brasil, às voltas com uma guerra movida por interesses de duas potências imperialistas e seus afãs de expansão, com potencial de se tornar um conflito mundial, e com o neoliberalismo fazendo estragos cada vez maiores em nossas consciências, entre outros desastres mais ou menos anunciados. No campo das relações pessoais, somos expostos a todo tipo de preconceito e retrocesso, esbarrando com canalhas que estavam com suas partes podres escondidas em armários lacrados nos últimos anos, e resolveram expô-las com inacreditável orgulho.

Impossível aqui não abrir outro breve parêntesis. Como é bem sabido, Marx escreveu na abertura de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1852: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. O que dizer quando comparamos os acontecimentos do Brasil atual com o fato de que, em plena gripe espanhola, os países não divulgavam notícias sobre a doença, como, por exemplo, fez o presidente norte americano Woodrow Wilson (1856-1924), ao censurar a imprensa para que as mortes não fossem noticiadas. As fake news também grassavam, ainda que não tivessem este nome: como a Espanha não estava envolvida diretamente na Primeira Grande Guerra, as notícias sobre a doença vinham de lá, e, por tal motivo, a gripe ficou conhecida como “espanhola”. Qualquer semelhança com o presente não é mera coincidência.

Mas voltando ao que nos interessa mais, como toda obra que não mergulha na banalidade, o poema eliotiano não é uma coisa só, não é apenas uma notícia cifrada sobre pandemia e guerra: ele descreve e encarna a grande crise da cultura ocidental dos inícios do século, teorizada depois por Adorno, entre outros, crise que arrisco dizer que ainda nos afeta, nesse momento tardo-moderno, pós-moderno para alguns. Trazendo para mais perto de nós, essa crise só foi de fato integrada ao pensamento de Mário de Andrade mais de quinze anos depois (The Waste Land é de 1922), a partir de 1938, na longa crise pessoal desencadeada pelo fim da experiência do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, órgão que ele capitaneou ao longo de três intensos anos, uma história que precisaria ser mais bem conhecida por todos, porque nos faz compreender muito do que nos caracteriza e nos afeta hoje como país. Essa aventura, somada ao fato de que Mário considerava que toda arte possui um significado coletivo, e que devemos nos precaver contra todo formalismo e individualismo, também explica, em parte, a desilusão dele com os rumos do modernismo, desilusão que é, de muitos modos, a tônica de Drummond em Claro Enigma, publicado em 1951, e provavelmente seja o fundo obscuro que move os poemas do Livro de Sonetos (1949), de Jorge de Lima, e alguns outros.

Nesse contexto — e a história necessita que a olhemos com viés sempre crítico —, a alegre crença no progresso do Concretismo em seus primeiros anos soa como uma inocência sem par, a despeito do que seu ímpeto nos trouxe de bom. Meu argumento aqui é de que vamos em meio à mesma crise, o aprofundamento das estratégias do capitalismo para permear todos os âmbitos de nossas vidas e converter tudo em moeda, crise que cada geração encara de modo diferente. Não sei para vocês, mas é o que vejo quando leio os poemas de Maria Cristina Martins, Maria Clara Viana, o poema-pedrada de Gary Snyder traduzido por Morgana Feijão, ou ainda os exercícios de suprarrealismo de Paul Éluard, traduzidos por Henrique Nascimento. Em tempos bem diferentes, parece que um vetor comum os atravessa como motor, como ignição da escrita. O mesmo nos contos de Rodrigo Neves, Fernanda Mellvee, Dan Porto, ou os textos não assinados (Rinha de Especialistas, uma delícia, e a “notícia” sobre o primeiro disco nacional fumável). Destoa um pouco o nosso bom e velho Vicente de Carvalho, que por uma questão de rigidez geracional não conseguiu ouvir a Balada do Louco, com os Mutantes. Teria lhe feito bem, certamente. Cabem menções à coluna Enclave, que me fez sentir nos anos 1970 ouvindo um álbum dos 2000 (confesso que não conhecia o Nicola Conte, e que achei o som dele bastante careta), e à história de “Anoiteceu”, canção de Francis Hime e Vinícius de Moraes (esses não serão nunca caretas).

Talvez caiba aqui voltar à questão: o que é escrever poesia (e conto, e romance, e ensaio) nesse começo de terceira década do século 21? Para o que olhamos? De que modo olhamos? O que podemos arrancar das convulsões do tempo presente? Estamos indo em rumos acertados? Existem rumos acertados? Quando leio os textos do RelevO (assim como os da revista em que sou coeditor) sempre me atravessam, e nunca pacificamente, tais perguntas. Do mesmo modo quando escrevo um poema.

Para finalizar, não custa lembrar aos mais distraídos e aos inocentes do Leblon (cf. CDA): o mundo ainda não deu certo, e vamos imersos em muitos dos mesmos problemas dos séculos 18, 19, 20, fora os que a criatividade humana conseguiu produzir depois. Alguma dúvida? Basta entrar num grupo de WhatsApp bolsonarista, ler algum texto produzido pela Empiricus Research ou escutar qualquer pronunciamento do Paulo Guedes como ministro. Depois dessas longas digressões, volto ao título: sexo e poesia, embora não sejam incompossíveis, não são esferas que possam ser comparadas deste modo rasteiro, a não ser pelo fato de que sexo ruim e poesia idem causam, depois, a mesma sensação desagradável, e que um bom poema pode ser comparável ao sexo no prazer que causa (sem maiores detalhes). Não se pode, assim, estabelecer uma escala entre os dois campos, nem por metáfora.

De mudanças e sobrevivências

Editorial extraído da edição de abril de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Conforme havíamos antecipado, a anuidade do RelevO finalmente subiu. Os R$ 60 que nos acompanhavam desde o fim de 2019 deram lugar a um pagamento anual de R$ 70. Os demais planos (apoiador e patrocinador) também tiveram reajustes proporcionais. Não estamos contentes, mas também não queremos ser repetitivos diante do que já descrevemos a respeito do aumento de custos para a operação do Jornal. Não podíamos seguir com os mesmos patamares de cobrança na medida em que os custos dispararam nos últimos três anos.

Neste espaço do editorial, geralmente tratamos dessa mesma operação. É a nossa oportunidade de comunicar mudanças maiores — ou simplesmente ideias fixas. Também temos o hábito de contextualizar nosso meio, com seus vícios e virtudes. Muitas vezes nos repetimos, afinal nossa existência não é tão emocionante. Somos uma espécie de relógio com algum defeito de fábrica não suficiente para a sua inviabilização funcional.

Recentemente, disponibilizamos todos os textos de nossos ombudsman no site do Jornal. Também migramos todas as nossas edições para lá, sem depender mais de domínios alheios. Elas constam em PDF, diagramadas, em suas versões finais. Porém, ao contrário do que às vezes se deduz de nosso ofício — hoje menos do que antes —, não temos interesse em migrar todo o conteúdo do RelevO, separadamente, para o nosso site. Isto é, cada texto, cada poema, cada contribuição enviada, mapeando a informação e disponibilizando-a por meio de endereços únicos.

Embora essa atitude pudesse aumentar o nosso tráfego (e, consequentemente, converter-se em assinaturas), o passo adiante na grande rede aproximaria nosso peculiar impresso de um ponto desconfortavelmente digital. Entendemos que o Jornal é um espaço de ampliação de vozes escritas do contemporâneo e de diversão para os envolvidos, o que nos leva a evitar a repetição de colaboradores. De modo paralelo, apostamos na mudança regular de ombudsman, cargo que aponta para outra direção importante: a transparência e a legitimidade do nosso senso de comunidade a partir de nossas características. Tudo isso nos afasta da individualidade e de certos mapeamentos da informação.

Sobrevivemos à era de blogs e à euforia (assumida) com as redes sociais. Esse é o nosso “antes”. Curiosamente, hoje nos questionam muito menos sobre a possibilidade de transformar o RelevO em uma “revista digital”. Também curiosamente, a experiência do Jornal como um veículo intrinsecamente impresso parece mais valorizada hoje do que há dez, oito, seis anos. Ao longo desses anos, sabendo exatamente quem somos, vimos muitos projetos, revistas digitais e demais páginas prioritariamente associadas à internet sumirem. Não somos um projeto que ambiciona ser o maior de seu segmento, tampouco aceitamos nossas limitações como desculpa para os nossos gaps (sobretudo logísticos e que não estão sob nosso controle na maior parte do tempo).

Por outro lado, se alguém resolvesse essa questão sem transtornos e de graça, não nos oporíamos. Enquanto houver esforço de nossa parte, porém, a ideia não entra em pauta. Podemos mudar de opinião a qualquer momento — nossa existência não é tão emocionante.

Uma boa leitura a todos.

Adaptando o beco escuro

Extraído da edição 106 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O americano William Lindsay Gresham publicou O Beco das Ilusões Perdidas em 1946, aos 37 anos. Seu romance de estreia lhe rendeu algum dinheiro – e uma adaptação para o cinema (O Beco das Almas Perdidas) logo no ano seguinte.

A década de 1950 seria um tanto mais volátil. Casado com a poeta Joy Davidman, Gresham a trairia diversas vezes, algumas delas até sóbrio. A gota d’água, quando se envolveu com a prima da esposa, acolhida pelo casal enquanto Joy estava na Inglaterra para visitar ninguém menos que C. S. Lewis, com quem trocava correspondências.

Ela voltaria a Nova York para dar um basta no constrangimento, e, em um cenário ainda mais embaraçoso, os três morariam juntos por um tempo. Então, Joy retornaria em definitivo à Inglaterra – agora com os dois filhos do casal –, e Gresham se casaria com Renée, isto é, a prima dela. Este seria seu quarto e último casamento.

Por sua vez, na Inglaterra, Joy se casaria com C. S. Lewis em 1956, o que parece ter sido uma grande evolução (e um grande alívio) para sua vida. Infelizmente, ela morreria de câncer poucos anos depois, em 1960.

Lewis adotaria seus dois filhos, o que Gresham constatou quando foi visitá-los, após a morte da ex-mulher. Também escreveria A Grief Observed, publicado sob o pseudônimo N.W. Clerk.

Em 1962, depois de descobrir um câncer na língua, um Gresham já sóbrio e bem menos problemático se hospedou em um hotel em Manhattan e se matou com uma overdose de remédios, aos 53 anos.

  • Às vezes acredito que, se tenho algum talento, não é literário, mas um talento puro de sobrevivência. Sobrevivi a três casamentos quebrados, perda dos meus filhos, guerra, tuberculose, marxismo, alcoolismo, neurose e anos de escrita freelance. Sou apenas malvado e teimoso demais para matar, creio eu.[1]

Interessado por espiritualismo (não necessariamente Espiritismo), ilusões, charlatanismo e psicologia social, Gresham trabalhou todos esses temas – mais o alcoolismo – n’O Beco das Ilusões Perdidas, recentemente adaptado para o cinema outra vez, agora pelas mãos de Guillermo del Toro. Hoje, o filme está disponível no Star+.

O Beco do Pesadelo (2021), pois, é um belíssimo filme. Situada no final dos anos 1930 e início dos anos 1940, a narrativa acompanha Stan Carlisle (Bradley Cooper), um jovem esperto com tendências à picaretagem que tenta voar perto demais do Sol ao se envolver com a psiquiatra Lilith Ritter (Cate Blanchett). Eis uma história noir de desgraçamento, território bem conhecido por Gresham.

Curioso, decidi ler O Beco das Ilusões Perdidas (publicado no Brasil pela editora Planeta, 2021) assim que saí do cinema, depois de assistir a Beco do Pesadelo. Ou melhor, no dia seguinte, após confirmar que o filme havia ganhado espaço na minha mente.

Comparando as duas obras – isto é, considerando suas diferentes mídias, mas não a noção tão tola quanto ingênua de “fidelidade” –, fica claro como del Toro potencializou seu texto-fonte para criar beleza.

Nighmare Alley, o filme, é um primor audiovisual (que, no momento, concorre ao Oscar de Melhor Fotografia). Quem recebe esse mérito é o dinamarquês Dan Laustsen, com quem del Toro já havia trabalhado nA Forma da Água (2017).

Sua homenagem à estética noir é explícita, porém a obra vai além do pastiche seguro para trabalhar suas cenas com um encanto estonteante. Há muita chuva, muitas luzes e, principalmente, muita escuridão. A união entre esses elementos, pincelada com carinho em cada frame, potencializa a narrativa.

Nighmare Alley, o livro, é cativante, mas limitado. Outrora chocante, seu impacto já perde força, apesar de a temática permanecer atual, tendo em vista a atemporalidade do charlatanismo (que existirá enquanto o ser humano pisar na Terra).

Obviamente, não podemos exigir que um livro seja um primor audiovisual. Entretanto, podemos sempre debater seu devido nível e compará-lo com sua contraparte de outra mídia. Nesse caso, há uma discrepância entre o romance e o longa-metragem, e o mérito fica com os responsáveis pelo segundo.

Isso porque, em que pese o apelo (e a autenticidade) da narrativa de Gresham, ela é um tanto unidimensional. Seus personagens, caricatos e/ou pouco surpreendentes, perdem espaço em um desenvolvimento cuja previsibilidade não é o maior problema. Voltaremos a esse ponto.

Novamente, não se trata de um romance ruim, ainda mais se ele carrega algum valor 76 anos depois de sua publicação. Porém, creio que Gresham sequer discordaria de uma avaliação mais criteriosa de seu livro, que não se destaca por estilo, enredo ou caracterização.

  • Não tenho ilusões sobre mim como um ‘autor’ – sou um escritor de aluguel que aborda a escrita como um ofício tal qual a marcenaria. Dei muitas aulas sobre a escrita de contos; os alunos provavelmente aprenderam muito pouco, mas eu sempre aprendi muito, ouvindo a mim mesmo falar sobre como a ficção curta deve ser montada.[2]

À época, O Beco das Ilusões Perdidas foi reconhecido pela maneira como trabalhou o vocabulário daquele contexto nem rural nem urbano dos circos itinerantes. O prefácio de Nick Tosches, contido na edição da Planeta, contextualiza esses méritos (que podem se perder na tradução).

Se até o momento tratamos apenas das competências audiovisuais do filme de del Toro, também precisamos registrar – e gostaria de fazê-lo de forma mais elegante, em vez de dizer isso – como uma adaptação pode elevar os méritos e amenizar os aspectos mais fracos de um texto-fonte.

O Beco do Pesadelo faz isso por meio de cortes conscientes, que removem o subenredo de líder religioso do protagonista e não elucidam seu passado. Com menos, faz-se mais. O filme também consegue mostrar os truques de Stan para “ler mentes”, ou seja, sem precisar explicá-los (nas descrições meio técnicas, meio rocambolescas que compõem um ponto baixo do livro).

Depois da limpeza, enfim, o tempero: inserções simbólicas como a do bebê Enoque engrandecem a narrativa, amarrando-a.

Por último, mas não menos importante, Rooney Mara. Ou melhor, sua personagem, Molly, crucial para o enredo. No romance, testemunhamos uma mulher tão frágil quanto estúpida, limitada a suplícios e angústias infantilizados. O longa-metragem enobrece sua vulnerabilidade e, a partir disso, permite um envolvimento muito maior.

Já me estendi demais neste texto, pelo qual devo pedir perdão, não tendo mais tempo de abreviá-lo. Na pior das hipóteses, O Beco do Pesadelo é, literalmente, espetacular. Deve ser visto à noite, no escuro e, se possível, com som alto e tela extensa.

Baú: W. Somerset Maugham

Extraído da edição 106 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Êste livro baseia-se nas minhas experiências no Departamento do Serviço Secreto durante a guerra, mas foi modificado com o propósito de ficção. O fato em si constitui tema muito pobre como enrêdo. Geralmente começa por acaso, muito antes do início da história, arrasta-se inconseqüentemente e some-se, deixando traços indecisos sem nenhuma conclusão. Arma uma situação interessante e a deixa no ar para seguir uma direção diferente que nada tem a ver com a história; não se prende a nenhuma ideia de clímax, e desperdiça inconseqüentemente seus efeitos dramáticos. Existe uma escola de novelistas que considera isso como o modêlo perfeito de ficção. Se a vida é arbitrária e irregular a ficção deve sê-lo também, pois ela imita a vida. Na vida as coisas acontecem a êsmo, e assim devem acontecer numa história; elas não conduzem a um clímax – o que é um ultraje à probabilidade –, mas sucedem-se a êsmo. (…)

Escrevi tudo isso para fazer ver ao leitor que êste livro é de ficção, se bem que eu possivelmente não diga muito mais do que vários outros livros publicados sôbre o mesmo assunto nos últimos anos e que se propõem ser memórias legítimas.

O trabalho de um agente do Serviço Secreto é, de um modo geral, extremamente monótono. Grande parte dêle é absolutamente inútil. O material que oferece para histórias é fragmentário e sem interêsse agudo; o autor tem de torná-lo coerente, dramático e provável. (…)

W. Somerset Maugham, prefácio de O Agente Britânico (Ashenden), 1928 (ed. Livraria do Globo, 1946).

Nuno Rau: (ou: para o que olhamos, e como olhamos?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um recente e nada feliz episódio envolveu o exercício da crítica e tem muito a dizer sobre quão tênue é o ponto em que estamos. O crítico Luiz Maurício Azevedo publicou uma resenha sobre o livro de um autor negro, caracterizando o trabalho como “literatura ruim”, e fundamentando tal juízo. Luiz Maurício é um intelectual negro e passou a sofrer ataques de milícias digitais, inclusive ameaças de morte: inconcebível que um crítico negro faça uma análise com rigor e, sobretudo, sem condescendência, de autor ou autora também negros. O mundo é desigual, as oportunidades, assimétricas, a meritocracia não passa de uma lenda inventada propagada pelos que têm meios, e o preconceito de várias matrizes segue ululante por aí, não raras vezes sem pudor de expor sua fisionomia podre; contudo, qualquer condescendência com a produção da arte nos empurra para o empobrecimento do debate estético imprescindível até para mudar o mundo acima descrito. Importante ressaltar também que manifestações assim, além de ferirem a autonomia da crítica, afastam muitas pessoas do exercício que é pensar sobre literatura, pelo receio do cancelamento, uma prática, no geral, daninha e antidemocrática – não será demais esclarecer que não me refiro aqui a opiniões preconceituosas e sem lastro, o que vemos por aí não raras vezes, que devem ser respondidas e problematizadas.

Tenho algumas hipóteses para o eclipse da crítica, e não cabe aqui descrevê-las, apenas dizer que uma delas é o receio do confronto em um mundo em que fatos como o reportado não são exceção, o que dá uma certa nostalgia do não vivido quando lemos Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda, o implacável Mário Faustino, que, em suas análises de livros e autores na página Poesia Experiência, do Jornal do Brasil, falava sem meias palavras e sem chapa branca sobre o bom e o ruim a seus olhos, e com fundamento.

Resolvi começar a aventura temerária que é ocupar a função de ombudsman de RelevO por esse assunto movido pelo editorial de fevereiro de 2002, que define, muito a propósito, a tarefa de editoras e editores como delicado e complexo exercício crítico. Também quixotesco, o que os editores devem considerar um elogio, já que este ombudsman nutre um nada secreto amor pelas pessoas que investem com todas as suas forças contra moinhos de vento.


Partindo desse olhar, ao ler os textos, contos e poemas selecionados para a edição, uma pergunta que sempre me ocorre marcou presença de novo: para o que olhamos quando estamos escrevendo? e como olhamos? Essas questões, aparentemente simples, constituem um dos pontos nevrálgicos da atividade de quem escreve. A quem isso importa? Não sei, ao certo. Na sociedade capitalista tudo é convertido em mercadoria, com exceção da poesia (quase sempre, porque mesmo os livros editados em pequenas editoras acabam virando objeto de escambo e fugindo à lógica mais estrita do mercado), e da ficção (uma parte, a que não consta dos catálogos das grandes editoras, pelo mesmo raciocínio). A poesia e certa prosa acabam resistindo, mas não sem pagar um pesado tributo: o da intransitividade social. Quem lê, afinal? Editoras e editores leem, por dever de ofício, em geral escolhido também por prazer, e fiquei pensando nos quase mil textos lidos, como exposto no Editorial, para extrair 50 dos quais foram selecionados os publicados: dois poemas, cinco contos, duas traduções (uma coletânea de poemas e um poema isolado).

Começando pelas traduções, foi uma alegria ler poemas de William Carlos Williams, poeta do corte e da síntese, e Joyce Mansur, com seu incêndio surrealista embebido de micro e macropolítica. Dos demais textos, preciso confessar que senti certo estranhamento pelo fato de sua quase totalidade ter como temática o campo – vasto e variado – das relações interpessoais; deles, me aproximei e afastei em proporções variadas. Tenho como premissa que, para escrever sobre um tema já muito percorrido, é preciso uma abordagem original, é preciso não cair nas armadilhas do lugar comum, ou, por outro lado, extrair do lugar comum a sua potência máxima, o que não é nada simples. Não se trata de defender uma literatura política strictu sensu, o que seria, no mínimo, ingenuidade, posto que tudo é político, inclusive o amor.

A questão aqui pode ser mais bem referida pelo título mesmo do Editorial: “Saber ser novo, saber ser atual”. Impossível não lembrar do ensaio seminal de Agamben, O que é o contemporâneo, em que, partindo do pensamento de Nietzsche e de um poema de Ossip Mandelstam, o filósofo reflete sobre a relação possível e necessária de cada um com seu presente. Pensando com Nietzsche quando afirma que “pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões, e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente por através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”, ele conclui afirmando que “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro”. Por essa via, me pergunto sempre, e de novo: para onde olhamos? Os séculos que nos precederam foram campos de conflito, e esse 21 não parece diferir em nada, com seus enfrentamentos socioeconômicos trágicos, o avanço violento do neoliberalismo, o campo da cultura envolto em contradições, sendo a literatura muitas vezes imersa e paradoxalmente propalando o sistema que negaria e que, em tese, proporia diverso, como aconteceu com boa parte da produção modernista.

Um jornal de literatura como o RelevO deve levantar essas questões, em quem o lê, elas não são realmente simples e se ligam a nossos estar agora e aqui. O que vocês acham, companheir_s de viagem no RelevO?

Aproveito para agradecer o convite do editor do periódico, que constitui uma grande oportunidade de exercer um olhar sobre a produção contemporânea, e mais ainda pela autonomia que, muito eticamente, o jornal confere aos que ocupam esta função.